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Kuwait, um poço de petróleo e incerteza no Golfo Pérsico

País acumula dinheiro, provoca vizinhos e busca seu lugar na política do Oriente Médio
aliando tradição, dinheiro e discrição

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CIDADE DO KUWAIT — Pouco conhecido, o nome vem do diminutivo da palavra


kut, fortaleza em árabe. Do calçadão, as águas de tonalidade azul turquesa, tranquilas,
fazem esquecer momentaneamente que o Golfo Pérsico - ou Arábico, como se diz por
aqui - é uma das regiões mais tensas do planeta. A capital é cercada pela areia do
deserto, e os arranha-céus de arquitetura arrojada insinuam a riqueza de seus
proprietários. Homens e mulheres circulam a bordo de carros potentes que ultrapassam
frequentemente os 120 km/hora mesmo no perímetro urbano. Bonança e velocidade,
aliás, fazem parte da história do Kuwait. Após séculos de tradição como um polo de
simples mercadores, especialistas no comércio de pérolas, a pobreza do início do século
XX transformou-se em riqueza da noite para o dia, em 1937, quando foi descoberta a
quarta maior reserva de petróleo do mundo.

Desde então, este pequeno país, cortejado pelo Ocidente e já cobiçado por vizinhos
como o Iraque de Saddam Hussein, corre para acelerar seu desenvolvimento, criar uma
identidade e marcar posição regional. A dinastia al-Sabah flerta com a democracia sem
romper o velho casamento com suas tradições tribais. Há liberdades civis, voto,
Parlamento. Mas uma simples cerveja é crime passível de prisão. A Família Real é
capaz de abrir os cofres e ofuscar gigantes da política regional, como a Arábia Saudita,
ao doar este ano US$ 500 milhões às vítimas da guerra civil síria. Por outro lado, resiste
a criar vistos de turistas e liberar, por exemplo, o consumo de álcool, atraindo mais
visitantes estrangeiros, como os que lotam as superlativas Doha, no Qatar, e Dubai, nos
Emirados Árabes Unidos. Enigmático, o Kuwait se orgulha de ser diferente dos
vizinhos. E, por isso, atrai inveja e desconfianças.

- O Kuwait prefere um estilo low profile. As disputas de influência no Golfo fazem


todos os atores especularem quais as verdadeiras ambições políticas e diplomáticas do
país. Desde os anos 1950, o Kuwait era mais avançado, mais rico, mais educado e
cosmopolita, o primeiro a ter um Parlamento e a criar um fundo nacional para garantir a
riqueza das próximas gerações. Mais recentemente, ficaram para trás na arena global
apenas por não conseguir atrair investimentos estrangeiros - afirma a especialista em
questões do Golfo Kristin Diwan, do Centro Rafiq Hariri para o Oriente Médio, do
Atlantic Council, em Washington.

A população é 70% sunita e 30% xiita; tensões sectárias existem, embora pouco se
façam sentir. São apenas 3,9 milhões de habitantes, um terço deles imigrantes
estrangeiros, e a presença predominante desses indianos, paquistaneses, bengalis e
filipinos cria situações disfuncionais no cotidiano: não é raro ver um kuwaitiano ser
forçado a falar inglês numa loja ou restaurante porque os funcionários não dominam o
idioma local, o árabe. O país tem uma área de menos de 18 mil quilômetros quadrados -
menor que a metade do estado do Rio. Os números da economia, porém, contrastam
com o tamanho do diminuto território. As reservas de petróleo do Kuwait são calculadas
em 104 bilhões de barris, o que corresponde a 10% dos estoques mundiais. A extração e
o refino do produto são as principais atividade econômicas, responsáveis por cerca de
metade do Produto Interno Bruto (US$ 182 bilhões), 90% das exportações e 95% da
receita estatal. A produção diária chega a quase 3 milhões de barris, e o governo
deposita 10% das receitas num fundo para ser usado quando as reservas do mineral se
esgotarem.

Ao contrário de vizinhos, poder por consenso

Toda essa afluência custa desentendimentos e concessões. E talvez por isso, dizem os
especialistas, apesar da desconfiança dos vizinhos, o Kuwait está mais preocupado com
seus próprios problemas, preferindo agir nos bastidores em questões diplomáticas no
mundo árabe, como a guerra civil síria ou a instabilidade no Egito. Ao contrário de
outras dinastias da Península Arábica, a família al-Sabah não chegou ao poder no século
XIX pela força, mas através do consenso com outras tribos e clãs. Como bons
mercadores, os kuwaitianos sempre conseguiram usar a lábia e seus recursos financeiros
para ter voz junto à dinastia dominante e participar do governo, mesmo antes da
descoberta do petróleo. Logo após a independência do Reino Unido, em 1961, o emir
garantiu na Constituição direitos civis e políticos para fortalecer a unidade nacional. As
mulheres têm direito ao voto desde 2005 e, embora não haja partidos políticos formais,
o Parlamento de 50 cadeiras tem membros de diversos espectros eleitos a cada quatro
anos, incluindo nacionalistas, populistas e uma estridente bancada islamista. Outros 15
deputados, que servem como membros do Gabinete, são normalmente membros da
família real, apontados diretamente pelo emir, o xeque Jaber al-Ahmad al-Jaber al-
Sabah, de 84 anos. Ele tem poder de veto, aponta o primeiro-ministro e detém a última
palavra em assuntos de Estado.

As liberdades têm certos limites. Há quem classifique o Kuwait como uma “autocracia
de conselho e consenso”. Diante de alguma pressão ou de um governo ruim, não é raro
o emir dissolver o Parlamento - foram seis vezes desde 2006. Em 2012, com as revoltas
da Primavera Árabe a todo vapor e denúncias de corrupção surgindo, as eleições foram
antecipadas com vitória islamista. O emir interveio quando os religiosos tentaram
aprovar um projeto tornando a lei islâmica a base de toda a legislação. A medida foi
vetada, o sistema eleitoral alterado e uma onda de protestos ameaçou tragar o país aos
levantes populares, com milhares das ruas exigindo menos poderes à família real.
Houve choques e feridos. E as manifestações ganharam peso com apoio dos chamados
bidun, sem em árabe. Trata-se de um grupo de cerca de 120 mil pessoas que não têm a
cidadania kuwaitiana embora vivam no país: são descendentes de kuwaitianos que, sem
documentos, não conseguiram se registrar como nativos após a independência ou
aqueles que evadiram das Forças Armadas e deixaram o Kuwait durante a Guerra do
Golfo, considerados traidores. Novas eleições, negociações políticas e a concessão de
cidadania a pelo menos 4 mil biduns no ano passado acalmaram os ânimos - além do
fato de que a maior fonte de empregos do país é o governo, o que ajudou a facilitar o
diálogo. As medidas mantiveram o clima de instabilidade política constante, mas
controlada. Desde então, porém, ativistas têm se queixado de um aumento da censura
nas redes sociais e da perseguição daqueles que ousam se declarar contra o emir.

- Existe um grande senso cívico, e as mulheres têm poder na sociedade. Mas o próprio
processo democrático traz alguma fraqueza à família real. A grande verdade é que o
regime ainda sofre o trauma da invasão do Iraque e se sente ameaçado - pontua Kristin
Diwan.

Cabeça de Saddam Hussein é relíquia de museu

Longe do Oriente Médio, é esse o único episódio que remete ao pequeno gigante
petrolífero. Em agosto de 1990, o Iraque de Saddam Hussein acusou o país de roubar
petróleo iraquiano. Era, para alguns especialistas, a desculpa de Bagdá para se esquivar
do pagamento de uma dívida de US$ 80 bilhões emprestados para financiar a Guerra
Irã-Iraque, iniciada dez anos antes. A violenta ofensiva por terra e pelo ar permitiu a
Saddam incendiar 600 poços de petróleo em apenas dois dias, dizimar a infraestrutura
do Kuwait, causar uma onda de 500 mil refugiados e anexar o país como a 19ª.
província do Iraque. Somente sete meses depois, com o aval das Nações Unidas, uma
coalizão internacional comandada pelos Estados Unidos lançou a contraofensiva contra
as tropas iraquianas. A história da operação Tempestade do Deserto é contada no Museu
Memorial do Kuwait, onde depois de passar por corredores escuros com maquetes sobre
os detalhes da invasão e ruídos de bombas, o visitante se depara com souvenires de
guerra, como uma carteira escolar perfurada por um míssil balístico. Ao fim do passeio,
encontra-se a peça que é quase um troféu: uma enorme cabeça de Saddam Hussein. A
relíquia de bronze é parte da lendária estátua do ditador derrubada em Bagdá durante a
ofensiva americana de 2003. E foi dada de presente ao país pelos Estados Unidos.

Como legado, a invasão deixou exposta a necessidade de reforçar a identidade nacional,


observa o professor de Relações Internacionais George Irani, da Universidade
Americana do Kuwait. Segundo ele, como em todo o mundo árabe, o senso de
nacionalismo é fraco devido ao fracasso do Estado de direito. As leis existem em três
níveis, a islâmica, as do período colonial europeu e as tribais - mais danosas, uma vez
que, na tribo, o indivíduo é parte de uma rede de aliados, minando o papel do Estado.
Em árabe existe uma expressão, wasta, que significa apadrinhamento. E o que consolida
o nepotismo crônico, que faz os indivíduos leais não ao país, mas a seu clã.

- Apesar de ter relações diplomáticas com o Iraque pós-Saddam Hussein, os


kuwaitianos não querem uma reconciliação verdadeira. O trauma ainda é muito
presente, e a atual disputa de poder entre a Arábia Saudita e o Irã gera paranoia na
sociedade local e impede, por exemplo, investimentos no próprio país. Por outro lado,
respaldado numa forte parceria com os EUA, o Kuwait também tenta criar um consenso
de que ninguém deve bagunçar por aqui. O Kuwait criou uma maneira esperta de
sobreviver: “Fique quieto na sua e conte com a Mama América” - garante o professor.

Onde o dólar não vale nada

Nas ruas, porém, política é assunto tratado com discrição. E com uma das maiores
rendas per capita do mundo (US$ 39,9 mil), os kuwaitianos parecem não se preocupar
muito com o amanhã. As águas azuis do Golfo são convidativas ao mergulho, mas a
conservadora população local não se aventura. Os souqs (mercados) ganham vida à
noite. E a diversão preferida é ir aos shoppings, onde é possível se refugiar das
temperaturas que beiram os 50 graus no verão. Nesses templos do consumo iluminados
por reluzentes palmeiras artificiais, homens vestidos com tradicionais robes árabes
caminham por corredores largos misturados a mulheres elegantes e maquiadas em
roupas ocidentais. Muitas preferem o negro, cobertas dos pés à cabeça pelo niqab, a
veste islâmica que deixa apenas os olhos à mostra. Em comum, todos têm apreço por
gastar muitos dólares em lojas de badaladas grifes internacionais ou mesmo num
simples hambúrguer com batatas fritas. O dólar, aliás, não vale nada: no país tem a
moeda mais supervalorizada do planeta, US$ 1 vale míseros 0,28 fils, os centavos do
poderoso dinar kuwaitiano. E com um único dólar não se leva para casa nem um litro de
leite num supermercado mais modesto (0,57 fils, ou US$ 2,01). Pode-se, porém, parar
num posto para abastecer com quatro litros de gasolina (0,067 fils ou US$ 0,24 por
litro) o tanque de um carro.

Toda a preocupação com o futuro parece escondida como o petróleo que corre sob as
areias do deserto. Em 2010, o ex-premier britânico Tony Blair foi contratado pelo emir
para elaborar um relatório intitulado “Visão do Kuwait em 2035” e orientar o país a
encontrar novos rumos. O documento teve tom alarmista: é urgente encontrar maneiras
de diversificar a economia, superar o medo de perder tudo para um novo invasor e
investir mais internamente. Além, é claro, de criar um sistema tributário, já que nenhum
Estado pode se dar o luxo eterno de gastar sem arrecadar. A abundância pode estar com
os dias, mesmo que ainda longínquos, contados.

- O Kuwait é uma confederação de tribos vivendo num tempo emprestado - resume


George Irani.

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