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Introdução – A Atual Crise do Dia do Senhor 1

INTRODUÇÃO – A ATUAL CRISE DO DIA DO SENHOR

O ciclo de seis dias de trabalho e um de adoração e repouso, não


obstante o legado da história dos hebreus, tem, felizmente, prevalecido
através de quase todo o mundo. De fato, o culto judeu e cristão encontra
sua expressão concreta em um dia, a cada semana, no qual a adoração a
Deus torna-se possível e mais significativa pela interrupção das
atividades seculares.
Recentemente, entretanto, nossa sociedade tem sofrido muitas
transformações radicais, por causa de suas realizações tecnológicas,
industriais, científicas e espaciais. O homem moderno, como afirma
Abraham Joshua Heschel, "vive sob a tirania das coisas do espaço." 1 A
crescente disposição tempo e lazer, causada pela diminuição da jornada
de trabalho, tende a alterar não apenas o ciclo de seis dias de trabalho e
um de repouso, como também os valores religiosos tradicionais, e até
mesmo a santificação do dia do Senhor. Por esta razão o cristão hoje é
tentado a considerar o tempo como uma coisa que lhe pertence, algo que
ele pode utilizar para seu próprio prazer. As obrigações de culto se não
totalmente negligenciadas, são freqüentemente reduzidas e facilmente
dispensadas conforme os interesses da vida. A noção bíblica do "santo
sábado", entendida como uma ocasião de cessar as atividades seculares a
fim de experimentar as bênçãos da criação-redenção por meio da
adoração a Deus e do trabalho desinteressado pelos necessitados está
cada vez mais desaparecendo dos planos do cristão.
Conseqüentemente, se alguém observa a pres são que nossas
instituições econômicas e industriais estão exercendo para obter a
utilização máxima das instalações industriais – programando turnos de
trabalho que ignoram qualquer feriado –, é fácil compreender que o
plano a nós transmitido de uma semana de sete dias, com o seu dia de
repouso e adoração, pode sofrer alterações radicais.
O problema é constituído por uma geral concepção errônea do
significado do "santo dia" de Deus. Muitos cristãos bem intencionados
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consideram a observância do domingo como uma HORA de adoração
em vez de O SANTO DIA do senhor. Uma vez cumpridas suas
obrigações de culto, muitos, em boa consciência, gastam o restante do
domingo ganhando dinheiro ou se divertindo.
Algumas pessoas, preocupadas com a profanação generalizada do
dia do Senhor, estão desejando uma legislação civil que torne ilegais
todas as atividades não compatíveis com o espírito do domingo.2 Para
que esta legislação seja aceita até pelos não cristãos, algumas vezes tem-
se apelado para a necessidade de preservar os recursos naturais. Um dia
de total descanso para homens e máquinas ajudaria a salvaguardar nossas
reservas de energia e o precário meio ambiente. 3 As necessidades sociais
ou ecológicas, entretanto, embora possam encorajar o descanso no
domingo, dificilmente conseguirão levar a uma atitude de adoração.
Não se conseguiriam melhores resultados educando nossas
comunidades cristãs para que compreendessem o significado bíblico e a
experiência do "santo dia" de Deus? Entretanto, para que isto seja
possível, é indispensável, antes de tudo, articular claramente o
fundamento teológico da observância do sábado. Quais são as razões
bíblica e histórica para a guarda do domingo? Pode este dia ser guardado
como legítima substituição do sábado judaico? Pode o quarto
mandamento ser corretamente invocado para proibir sua observância?
Pode o domingo ser considerado como a hora de culto em vez de o santo
dia de repouso do Senhor?4
Para dar uma resposta a esses problemas vitais é indispensável
verificar, antes de mais nada "quando", "onde", e "por que" o domingo
surgiu como um dia de culto cristão. Somente após reconstruir este
quadro histórico e identificar os principais fatores que contribuíram para
a origem do domingo, será possível prosseguir com a tarefa de
reconsiderar a validade e o significado da observância do domingo.
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O Problema e Os Objetivos Deste Estudo.

O problema da observância do domingo entre os cristãos primitivos


tem despertado, em época recente, o interesse dos estudiosos de
diferentes crenças religiosas. Os numerosos estudos científicos, inclusive
várias teses doutorais, que têm aparecido nas duas últimas décadas são
uma clara evidência do renovado interesse e esforço despendido para
encontrar uma resposta mais satisfatória para a questão sempre intrigante
da época, lugar e causas da origem da guarda do domingo.5
Em estudos recentes, entretanto, a tendência tem sido tornar a
observância do domingo ou uma criação exclusiva e original da
comunidade apostólica de Jerusalém 6 ou uma adaptação pagã do "dies
solis - dia do sol" com a adoração ao sol a ele relacionada.7 Mas qualquer
investigação e conclusão que leve em conta apenas uns poucos fatores
causais é evidentemente unilateral, não equilibrada. Se reconhecemos,
como J. V. Goudoever, que de "todas as partes da liturgia as festas são
talvez as mais duradouras: é praticamente impossível mudar o dia e
forma de comemoração"8, só podemos esperar que motivos complexos e
profundos devem ter levado a maioria dos cristãos a abandonar a
imemorável e notória tradição judaica da guarda do sábado em favor de
um novo dia de culto. Em qualquer tentativa, portanto, de reconstruir o
processo histórico da origem do domingo, deve-se dar atenção ao grande
número de possíveis fatores – teológico, social, político, pagão – que
podem ter desempenhado um menor ou maior papel ao induzir a adoção
do domingo como dia de culto.
Este estudo tem dois objetivos bem definidos: Primeiro, ele propõe
o exame das teses defendidas por inúmeros estudiosos que atribuem aos
apóstolos, e até mesmo a Cristo, a iniciativa e responsabilidade de
abandonar a guarda do sábado e instituir o culto dominical. Serão
considerados os ensinos de Cristo quanto ao sábado, a ressurreição e
aparecimentos de Cristo, a celebração eucarística e a comunidade cristã
de Jerusalém, a fim de determinar que parte desempenharam, se é que
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desempenharam, no estabelecimento da observância do domingo. Nosso
objetivo é verificar se o culto dominical começou durante o tempo dos
apóstolos em Jerusalém ou se foi posteriormente. Esta verificação da
origem histórica da guarda do domingo é de grande importância, pois ela
pode explicar não apenas as causas de sua origem, mas também sua
aplicabilidade aos cristãos hoje. Se o domingo é realmente o dia do
Senhor, todos os cristãos, sim, toda a humanidade deveria sabê-lo.
Em segundo lugar, esta pesquisa pretende avaliar em que medida
alguns fatores, como os sentimentos anti-judaicos, as atitudes repressivas
que os romanos tomaram contra os judeus, a adoração ao sol e sua
relação com o "dia do sol" e determinadas motivações teológicas cristãs,
influíram no abandono do sábado e na adoção do domingo como o dia do
Senhor pela maioria dos cristãos.
Este estudo é, portanto, uma tentativa de reconstruir um mosaico de
fatores na busca de uma descrição mais exata da época e das causas que
contribuíram para a adoção do domingo como o dia de adoração e
repouso. Isto está em harmonia com C. W. Dugmore, que sugere que "às
vezes é bom reconsiderar o que a maioria das pessoas considera como
coisa definida, mesmo que não se cheque a nenhuma conclusão
surpreendente."9 Reexaminar conclusões e hipóteses aceitas, submetendo-
as a um exame crítico e minucioso, não é um simples exercício
acadêmico, mas uma tarefa a ser cumprida a serviço da verdade.
Nosso estudo não se preocupa com os aspectos litúrgicos ou
pastorais da observância do domingo entre os primitivos cristãos, desde
que tais problemas já têm sido tratados exaustivamente em recentes
monografias.10 Examinaremos apenas os textos que podem ajudar a
estabelecer a época e as causas – formais e materiais, imediatas e
remotas da origem do culto dominical. Nosso propósito limita-se ao
problema das origens.
Exceto algumas referências incidentais a textos posteriores, os
documentos que examinaremos estão dentro dos quatro primeiros
séculos da nossa era. Testemunhos patrísticos serão examinados até este
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último período, a fim de verificar a validade histórica das motivações
que aparecem nos inadequados documentos da primeira parte do
segundo século. Este é o período no qual o culto dominical mudou de um
nebuloso começo para uma prática estabelecida. Sendo este o período em
que as instituições eclesiásticas ainda estavam em um estágio
embrionário, o estudante que lê os poucos documentos disponíveis com
os critérios eclesiológicos posteriores, pode facilmente enganar-se.
As fontes têm sido analisadas levando em conta os fatores
cronológico, histórico e geográfico. Passagens significativas têm sido
submetidas a cuidadoso exame, já que freqüentemente seus problemas
textuais e contextuais têm sido passados por alto ou interpretados
unilateralmente. Isto produz uma impressão que não é verdadeira. N. J.
White menciona por exemplo, "uma freqüente e inquestionada aplicação
que a igreja" faz da frase "dia do Senhor" para referir-se ao domingo
desde os primitivos tempos apostólicos.11
Os documentos disponíveis para a presente pesquisa são de
natureza heterogênea, tais como cartas, homilias e tratados. Sua
procedência, autenticidade e ortodoxia nem sempre são evidentes, mas
por serem tudo o que temos, algo de valor deve ser deles obtido.
Conforme as regras do rigor científico, pode-se fazer objeção ao uso de
um documento como, por exemplo, Pseudo-Barnabé. Entretanto, se
alguém limita-se apenas à análise de documentos de arquivos, de
monumentos arqueológicos e outras peças de incontestável autenticidade , é
impossível fazer algum progresso real, devido à sua escassez. Por esta
razão, é necessário examinar a rica literatura patrística e apócrifa, tendo
em mente as suas limitações.
Este estudo representa uma extensão da tese doutoral apresentada
em italiano ao Departamento de História Eclesiástica da Pontifícia
Universidade Gregoriana, em Roma. O material foi substancialmente
condensado e reorganizado. Esta nova apresentação é motivada no
desejo de tornar o estudo compreensível mesmo para os leitores leigos.
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A discussão de questões técnicas foi colocada em notas no final dos
capítulos.
Espera-se que o presente trabalho forneça aos teólogos os
indispensáveis dados históricos necessários para reflexões sobre o
significado do domingo, e também que possa despertar o interesse dos
historiadores para reconsiderar a questão da origem do domingo na
tentativa de chegar mais perto da "verdade". Espera-se também que os
leitores sinceros sejam estimulados, através de uma melhor compreensão
do significado do santo dia de Deus, a buscar um mais profundo
relacionamento com o "Senhor do Sábado" (Marcos 2:28).

Notas e referências:

1. Abraham Joshua Heschel, The Sabbath, its Meaning for Modern


Man, 1951, p. 10. O mesmo autor salienta a noção de que o judaísmo é
uma religião do tempo que frisa a santificação do tempo (ibid. p.8)
2. Sobre o desenvolvimento histórico da legislação dominical veja:
H. Gruber, Geist und Buchstabe der Sonntagsruhe, 1958, que traça tal
desenvolvimento até à Idade Média. Um tratamento similar é dispensado
por J. Kelly, Forbidden Sunday and Feast-Day Occupations, dissertação,
Catholic University of America, 1943. Para uma opinião puritana, veja J.
Bohmer, Der Christliche Sonntag nach Ursprung und Geschichte, 1951.
Ronald Goetz "An Eschatological Manifesto", The Christian Century 76
(2 de novembro de 1960): 1275, argumenta que o princípio da separação
entre igreja e estado é negligenciado pelos defensores das leis dominicais
(cf. John Gilmary Shea, "The Observance of Sunday and Civil Laws for
its Enforcement". The American Catholic Quarterly Review, 8, (1883):
152 ff.
3. Harold Linsell vai mais longe ao propor que o domingo seja um
dia nacional de repouso em seu editorial na Christianity Today de 7 de
maio de 1976, intitulado "The Lord's Day and Natural Resources". Ele
afirma que a única maneira de se conseguir o duplo objetivo da
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observância do domingo e conservação de energia seria "pela força de
uma sanção legislativa através dos representantes eleitos do povo." A
oposição dos sabatistas ao editorial, que consideram a proposta de
Lindsell como uma violação dos direitos garantidos aos americanos pela
primeira emenda da Constituição, aparentemente levou o editor a
apresentar uma contraproposta em outro editorial na mesma revista de 5
de novembro de 1976. Conforme a nova proposta de Linsell, o sábado e
não o domingo deve ser considerado como um dia de repouso para todas
as pessoas. Os adventistas do sétimo dia rejeitaram enfaticamente
mesmo a última proposta, baseando-se em que a observância obrigatória
de qualquer dia da semana seria um fardo e privaria alguns segmentos da
população da liberdade religiosa (cf. Leo R. van Dolson, "Color the Blue
Laws Green", Liberty, 72 (1977): 30.
4. W. Rordorf, Sunday. The History of the Day of Rest and Worship
in the Earliest Centuries of The Christian Church, 1968 (daqui por
diante citado apenas Sunday), p. 296, sustenta que "com certeza até o
quarto século a idéia de repouso não influiu absolutamente nada no
domingo cristão." Uma vez que na opinião de Rordorf o repouso
dominical não era um componente original ou indispensável do culto
dominical, mas uma imposição imperial (p. 168), ele levanta a
possibilidade de ser esta "uma solução ideal por fazer coincidir o dia de
repouso e o dia de culto." (p. 299). Ele prefere atribuir ao domingo uma
exclusiva função de culto que pode ser realizada na assembléia da
comunidade cristã, em qualquer momento do dia, para a celebração
eucarística.
5. Os seguintes são alguns dos mais recentes e importantes estudos:
W. Rordorf, Sunday; pelo mesmo autor, "Le Dimanche, jour du culte et
jour du repos dans l'Eglise primitive", Le Dimenche, Lex Orandi 39,
1965, pp. 91-111; Sabbat et dimanche dans l'Eglise ancienne, 1972; C. S.
Mosna, Storia della domenica dalle origini fino agli inizi del V Secolo,
Analecta Gregoriana, vol. 170, 1969; J. Daniélou, "Le dimanche comme
huitième jour", Le Dimenche, Lex Orandi 39, 1965, pp. 61-89.
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6. Esta exclusiva introdução reflete-se, por exemplo, na
metodologia de W. Rordorf, quando declara que "em principio há duas
possíveis soluções para este problema: ou nós concluímos que a
observância do domingo teve origem no Cristianismo, e neste caso temos
que procurar saber que fatores contribuíram para o seu surgimento; ou
estamos convencidos de que a Igreja Cristã adotou sua observância do
domingo buscando-a em outra fonte. Devemos chegar a uma ou outra
conclusão em nossa pesquisa da origem da observância cristã do
domingo, pois ela não pede ter sido ao mesmo tempo legada e adotada
pelos cristãos." (Sunday, p. 180). Rordorf defende tenazmente a primeira
solução, mas seu método e conclusões são criticados até mesmo por C.
S. Mosna (ver nota 8). semelhantemente J. Daniélou escreve: "O
domingo é uma criação puramente cristã, ligado ao fato histórico da
Ressurreição do senhor" (Bible and Liturgy, pp. 222 e 242). Este aspecto
é examinado nos capítulos 3, 5 e 9.
7. ver, por exemplo, H. Gunkel, Zum religionsgeschichtlichen
Verstandnis des Neuen Testaments, 1910, pp. 74f.; A. Loisy, Les
Mysteres paiens, 1930, pp. 223f; também Les Evangiles synoptiques,
1907, 1, pp. 177f.; R. L. Odom, Sunday in Roman Paganism, 1944; P.
Cotton, From Sabbath to Sunday, 1933, pp. 130f.
8. J. V. Goudoever, Biblical Calendars, 1959, p. 151. C. S. Mosna
critica W. Rordorf por dar "ao surgimento da festividade dominical uma
origem demasiadamente cristã, esquecendo outros elementos úteis e
destacando-o de seu contexto judeu" (Storia della domenica, pp. 41 e 5);
9. C. W. Dugmore (fn. 7), p. 274.
10. Para os aspectos pastorais da observância do domingo ver V.
Monacchino, La Cura pastorale a Milano Cartagine e Roma nel secolo
IV, Analecta Gregoriana 41, 1947; e S. Ambrogio e la cura pastorale a
Milano nel secolo IV, 1973; C. S. Mosna, Storia della domenica, parte
IV, trata dos aspectos litúrgico e pastoral do domingo tanto no Oriente
como no Ocidente; para a questão do repouso no domingo, ver H. Huber,
Spirito e lettera del riposo domenicale, 1961; J. Duval, "La Doctrine de
Introdução – A Atual Crise do Dia do Senhor 9
l'Eglise sur le travail dominical et son evolution", La Maison-Dieu 83
(1965): 106f.; L. Vereecke, "Le Repos du dimanche", Lumière et vie 58
(1962): 72f.
11. A Dictionary of the Bible, ed. James Hastings, 1911, s.v. "Lord's
Day", por N. J. White.

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