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A Inspiração das Escrituras 1

A Inspiração das Escrituras


Filipe Dunaway

INTRODUÇÃO

A idéia básica nesta doutrina é que o Espírito Santo influenciou os autores bíblicos, de tal modo
que seus escritos, quando interpretados pelo mesmo Espírito que os inspirou, possam levar o leitor
deles à salvação em Cristo.1 A noção de que os escritos incluídos no cânone da igreja cristã são
inspirados se tornou uma questão fundamental na teologia na época depois Reforma, quando os
teólogos protestantes escolásticos, que rejeitaram a autoridade normativa concedida à tradição
eclesiástica pelos católicos romanos, tiveram que defender seu uso quase exclusivo da Bíblia como a
fonte da teologia. Desde então, as numerosas teorias de inspiração representam tentativas de
justificar a confiança que os protestantes colocam na Bíblia como a base de suas convicções
religiosas.

É importante notar que um dado teólogo pode: (1) se ocupar mais com a procura dos mecanismos
psicológicos pelos quais o Espírito teria influído nas mentes dos autores ou (2) se ocupar mais com o
que os próprios escritos bíblicos sugerem sobre sua inspiração e quais os efeitos ou resultados que o
uso das Escrituras tem tido na vida da igreja e dos indivíduos que procuram Deus nelas. No
primeiro procedimento, há um certo perigo, pois na tentativa de garantir a autenticidade da Bíblia, o
teólogo tenta racionalmente determinar exatamente como Deus deve ter agido para assegurar Sua
revelação. Neste raciocínio dedutivo, é o próprio teólogo que define detalhadamente como o
Espírito teria que agir na alma de um autor, para que seu escrito pudesse ser considerado inspirado e
digno de nossa confiança. Em seguida, é afirmada que todos os autores da Bíblia e seus escritos
foram inspirados assim e, consequentemente, todos são dignos de nossa confiança absoluta.

Na segunda opção acima, o teólogo emprega um método mais indutivo, procurando analisar
profundamente as diversas caraterísticas dos livros bíblicos, inclusive suas afirmações sobre o
envolvimento do Espírito na sua redação. Com certeza, aqui o teólogo também usa sua razão, mas
ao empregar o método indutivo, sua mente fica mais aberta diante do texto, mais atenta aos seus
pormenores e mais submisso à diversidade rica dentro dos textos. Assim, o intérprete chega à
conclusão de que as faculdades humanas foram plenamente ativas na redação destes escritos.
Portanto, “A verdade descortinada foi moldada nas formas exigidas pela personalidade, treinamento
e circunstâncias do órgão humano da revelação.”2 Além disso, este tipo de teólogo trata do assunto
mais pragmaticamente, destacando que o importante na questão de inspiração é o efeito que a leitura
do texto tem na vida do indivíduo e da comunidade. A prova definitiva da presença do Espírito na
redação se encontra nas consequências que o estudo do texto produz posteriormente nas vidas de
seus leitores. Portanto, o misterioso e inalcansável “mecanismo psicológico” é colocado de lado e,

1Esta definição da inspiração é uma forma abrevidada da definação proporcionada pelo batista A. H. Strong,
Systematic Theology (Philadelphia: The Judson Press, (1907), 1951), p. 196.
2 Esta citação e, de modo geral, o material neste parágrafo estão baseados, em grande parte, no livro do
teólogo batista E. Y. Mullins, The Christian Religion in Its Doctrinal Expression (Philadelphia: The Judson
Press, (1917), 1949), p. 142-144.
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no seu lugar, destaca-se aquilo que é existencialmente evidente e pessoalmente conhecido, a saber, o
que o Espírito faz por meio destes escritos em nossas vidas hoje.

ALGUNS TEXTOS BÍBLICOS RELEVANTES

Portanto, à luz do argumento expressado no parágrafo anterior, o procedimento a se tomar agora é


colocar diante de nós, pelo menos, alguns dos textos bíblicos que possam nos guiar em nossa
relfexão sobre a questão da inspiração. Então, em seguida, apresentamos uma lista de tais trechos
dos dois Testamentos, junto com um breve comentário sobre cada um.

I. “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para memorial num livro, e relata-o aos
ouvidos de Josué, que eu hei de riscar totalmente a memória de Amaleque de debaixo do
céu” (Êx 17:14). -- Aqui Deus manda que um ser humano escreva um relato sobre um evento
específico.

II. “E [o Senhor] deu a Moisés, quando acabou de falar com ele no monte Sinai, as duas tábuas
do testemunho, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus” (Êx 31:18). -- Aqui, Deus
mesmo escreve os dez mandamentos, que posteriormente foram incluídos nas escrituras
judaicas. Contudo, é possível interpretar diferentemente a metáfora “dedo de Deus”.

III. “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-
novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos
cativos, e a abertura de prisão aos presos” (Is 61:1). -- O Espírito “inspira” um profeta, não
um escrito, neste texto. De modo geral, os profetas foram “inspirados”, isto é, chamados
pelo Senhor a pregar na base de sua participação da vida interior divina,3 e posteriormente
suas pregações foram preservadas na forma escrita, num rolo, por seus disícpulos (Jr 36:32).

IV. “Visto que muitos têm empreendido fazer uma narração coordenada dos fatos que entre nós
se realizaram, segundo no-los transmitiram os que desde o princípio foram testemundas
oculares e ministros da palavra, também a mim, depois de haver investigado tudo
cuidadosamente desde o começo, pareceu-me bem, ó excelentíssimo Teófilo, escrever-te uma
narração em ordem, para que conheças plenamente a verdade das coisas em que foste
instruído” (Lc 1:1-4). -- Neste texto, o autor de Lucas e Atos nos diz que, antes de escrever
sua obra literário-teológica, ele fez uma pesquisa histórica para averiguar os fatos e tradições
fidedignas sobre Jesus de Nazaré.

V. “Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula, e ela consente
em habitar com ele, não se separe dela” (1 Co 7:12). --Parece que neste trecho Paulo está
expressando sua própria opinião, a qual, ele mesmo reconhece, não tem a mesma autoridade
que um dito do Senhor teria. Todavia, Paulo não está aplicando esta avaliação ou limitação a

3 O grande estudioso da Bíblia Hebraica, Abraham Heschel, explicou a relação íntima entre Deus e os profetas
de Israel desta maneira: “O profeta não é uma boquilha, mas, sim, uma pessoa; ele não é um instrumento,
mas, sim, um parceiro, um sócio de Deus. Desprendimento emocional seria inteligível apenas se houvesse
uma ordem que exigiu a supressão da emoção, proibindo que se servisse a Deus ‘de todo o teu coração, de
toda a tua alma, de toda a tua força’” (The Prophets, New York: Harper & Row, 1962, pág. 25).
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tudo que escreveu nesta carta nem ao que escreveu nas suas outras cartas. Pelo contrário,
está dizendo apenas que nesta sentença ele expressa sua própria opinião ao invés de
transmitir uma palavra “revelada” ou, aparentemente, “inspirada.”

VI. “Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa par ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente
preparado para toda boa obra” (2 Timóteo 3:16-17). -- Visto que no tempo em que isto foi
escrito, ainda não houve nenhum Novo Testamento, devemos concluir que o autor fez esta
declaração sobre o Antigo Testamento, aparentemente a Septuaginta que era a versão da
Bíblia usada pela igreja primitiva helenística onde Paulo e Timóteo trabalharam. É
interessante notar que a Septuaginta contém os chamados livros Apócrifos, mas, visto que o
autor de 2 Timóteo não está falando aqui sobre “os limites do cânone” (o concetio que ainda
não foi discutido na igreja), talvez seja melhor não concluir necessariamente que ele teria
aceito os livros “apócrifos” como possuindo a mesma autoridade dos outros, isto é, os livros
incluídos na Bíblia Hebraica dos judeus. De qualquer forma, o termo que nos interessa agora
é θεόπνευστος (theópneustos), que é traduzido acima com “divinamente inspirado”. Este
vocábulo, que aparece somente aqui no Novo Testamento, vem da combinação de θεός
(Deus) com πνέω (soprar). Ele é um adjetivo verbal e, consequentemente, pode ter um
sentido ativo (“soprando” ou “respirando Deus”) ou um sentido passivo (“inspirado por
Deus”). O contexo não esclarece seu sentido extato, mas, mesmo assim, é costumeiro dizer
que é passivo (“inspirado por Deus”). Contudo, mesmo aceitando esta tradução, não
sabemos extamente o que o autor está querendo dizer com esta metáfora que fala sobre Deus
soprando num escrito. Não obstante, é inegável que o autor tenha a convicção de que Deus
foi intimamente envolvido na redação dos livros do Antigo Testamento, sua Bíblia. Esta é,
sem dúvida, uma convicção muito significante, mas é importante notar que ela não é uma
teoria sobre a inspiração, isto é, não é uma explicação racional que visa mostrar
explicitamente como Deus teria sido envolvido na redação das escrituras. Tais explicações
só vêm séculos depois e elas mesmas não são “divinamente inspiradas”!

VII. Pelo que, como diz o Espírito Santo: Hoje, se ouvides a sua voz, não endureçais os vossos
corações . . .” (Hb 3:7; cf. 9:8). -- Aqui, o autor de Hebreus expressa sua convicção que o
Espírito fala por meio do texto escrito do Salmo 95:7-11. Em outras palavras, ele afirma que
o Espírito de Deus utiliza os textos escritos pelos antigos hebreus, comunicando por meio
deles, desafiando as as pessoas que lêem tais textos. Parece que o autor não se preocupa com
o mecanismo da inspiração, mas com seus efeitos nas vidas dos leitores da Bíblia. Ele não
especula sobre a natureza da inspiração, mas a pressupõe como uma realidade importante e
se interesse pragmaticamente nos resultados desejeidos da leitura de tais textos inspirados.

VIII. “Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos homens, mas os homens da parte
de Deus falaram movidos pelo Espírito Santo” (2 Pd 1:21). -- Neste contraste forte
(‘nunca . . . mas,’ οὐ . . . ἀλλὰ), o autor declara que a profecia é incitada exclusivamente pelo
Espírito Divino; nenhum homem sozinho pode proferir profecia no sentido bíblico do termo.
Os profetas são “levados” ou “movidos” (φερόµενοι) pelo Espírito e a fonte de suas
mensagens é Deus mesmo (ἐλάλησαν ἀπὸ θεοῦ). O autor de 2 Pedro não se expressa aqui
sobre os relatos escritos destas profecias; pelo contrário, ele se interesse aqui em afirmar
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somente que os homens (= profetas) foram, de alguma forma, movidos ou inspirados pelo
Espírito.

IX. “E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso amado irmão
Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; como faz também em todas as
suas epístolas, nelas falando acerca destas coisas, nas quais há pontos difíceis de entender,
que os indoutos e inconstantes torcem, como o fazem também com as outras Escrituras, para
sua própria perdição” (2 Pd 3:15-16). -- Ao lermos estes trechos importante, aprendemos que
as epístolas de Paulo já haviam sido colecionadas e já foram consideradas como sendo
incluídas nas “Escrituras” (γραφάς). Mas o importante é a afirmação: “Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi dada” (Παῦλος κατὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτῷ σοφίαν ἔγραψεν
ὑµῖν). Conforme a construção gramatical desta sentença, o sujeito do verbo “escever” é o ser
humano “Paulo” (o autor de 2 Pedro mesmo reconhece indiretamente que as caraterísticas
pessoais de Paulo estão presentes nos seus escritos, pois nas epístolas dele “há pontos difíceis
de entender”). Contudo, nesta sentença o verbo escrever (ἔγραψεν) é qualificado por uma
cláusula adverbial que descreve a maneira pela qual Paul redigiu seus escritos: “segundo a
sabedoria que lhe foi dada” (κατὰ τὴν δοθεῖσαν αὐτῷ σοφίαν). Na expressão “foi dada”,
vemos aparentemente o passivo teológico, 4 que sugere que Deus foi a fonte última da
sabedoria que Paulo teve, a qual lhe deu a capacidade de produzir a teologia pastoral mais
profunda da igreja primitiva. Portanto, devemos concluir que o autor de 2 Pedro entende que
o homem Paulo, com todas as suas caraterísticas pessoais, foi o autor das cartas “paulinas”;
mas este homem já tinha recebido sabedoria de Deus, a qual se manifestou em praticamente
tudo que Paulo falou e escreveu. Deus estava presente, de um modo especial, na vida de
Paulo, mas isto não anulou sua personalidade nem o lado humano de seus escritos.

X. Na ilha de Patmos, João disse: “Eu fui [arrebatado]5 em espírito” ou “Eu estive no Espírito
no dia do Senhor, e ouvi por detrás de mim uma grande voz, como de trombeta, que dizia:
O que vês, escreve-o num livro, e envia-o às sete igrejas” (Ap 1:10-11; cf 4:1-2; 17:3;
21:10). -- Na tradição apocalíptica, João é levado pelo Espírito ao céu onde recebe visões
de Cristo o Senhor da igreja, de Deus entronizado no céu, dos juízos de Deus contra os
injustos e da vitória do Cordeiro sobre as forças do mal. A voz celestial manda que ele
escreva o que verá. Os numerosos problemas gramaticais no Apocalipse mostram que o
autor humano, que era sem dúvida um judeu escrevendo numa língua estrangeira, era
responsável, pelo menos, pela linguagem e gramática.6 Mas mesmo assim, o autor

4 O chamado “passivo teológico” proporcionou aos antigos judeus e cristãos uma maneira de referir-se a Deus
sem usar seu nome. A relutânicia de falar ou mesmo escrever o nome divino foi uma expressão da grande
reverência que os fieis tiveram para com Deus. Então, ao usar a foz passiva (“foi lhe dada”), entende-se que
Deus é o sujeito oculto da ação verbal.
5No texto grego, não há nenhuma palavra que corresponde ao termo “arrebatado.” Portanto, traduzimos o
verbo aqui (ἐγενόµην) “estive.” Mas, como nossa explicação acima indica, a idéia de um arrebatamento ao
céu é sugerido pelo contexto geral e o fato de que o livro é um escrito apocalíptico.
6Todo leitor do texto grego do Apocalipse de João sabe muito bem que o livro contém muitos solecismos
(violações das regras da sintaxe); por exemplo, a falta de concordância é muito frequente. Uma das melhores
gramáticas do grego do Novo Testamento tem uma seção especial dedicada aos solecismos deste livro. Veja
F. Blass e A. Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature
(Chicago: University of Chicago Press, 1975), seção 136, nas pág. 75-76.
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certamente entende que Deus lhe concedeu as visões e o mandou a registrá-las num livro a
ser redigido para as sete igregas sendo perseguidas na Ásia Menor. Portanto, parece que
novamente temos um livro que manifesta as caracteríscas pessoais de seu autor e, ao memso
tempo, mostra claramente que este autor teve experiências espirituais extraordinárias que o
capacitou a relatar o conteúdo do livro. Concluimos que a influência do Espírito é
necessária, mas não suficiente, para explicar a forma e conteúdo deste documento. Para
uma explicação suficiente de sua forma e conteúdo, deve-se reconhecer tanto a influência do
Espírito quanto as peculiardades, singulares na literatura da antiguidade, de seu autor
humano.

TEORIAS DA INSPIRAÇÃO

Depois de refletirmos sobre os textos mais importantes sobre a questão da inspiração das
Escrituras, devemos entrar em outro mundo intelectual, que, pelo menos, à primeira vista, parece não
ter nada a ver com o pensamento dos autores bíblicos que estávamos considerando. Deixando o
mundo concreto da vida eclesiástica e dos interesses pastorais genuínos dos autores bíblicos,
entramos agora num mundo especulativo, num escolasticismo seco e aparentemente meio
desvinculado da vida real, com seus problemas e desafios constantes. A especulação como tal não é
ruim, mas pode ser assim, se ela for, de fato, sem contato com nossa vivência.

No início do século passado, o respeitado teólogo batista Augustus Strong percebeu quatro teorias
de inspiração na literatura teológica de seu tempo. 7 Mesmo que o esquema de Strong não seja
completamente adequado, era o melhor disponível quando escrevi este trabalho. Eis as quatro
teorias em questão, reinterpretadas pelo autor deste escrito:

1. A Teoria Naturalista: Conforme esta teoria, Deus está presente em todos os homens e,
consequentemente, todos são inspirados. Todavia, alguns têm uma capacidade e insight naturais
extraordinários, de modo que possam produzir as grandes obras da religião, filosofia e arte.

2. A Teoria da Iluminação: A inspiração é entendida como a intensificação da “iluminação pelo


Espírito Santo” que é experimentada por todo crente. Também afirma-se que não são as palavras dos
livros bíblicos que foram inspiradas mas, sim, os autores da palavras.

3. A Teoria da Inspiração Verbal Plena ou a Teoria do Ditado: Segundo esta posição, todas as
palavras nas Escrituras foram previamente escolhidas pelo Espírito Santo e subsequentemente
ditadas aos escritores.8 Portanto, os escritores não foram realmente “autores,” mas somente “penas”

7Veja A. H. Strong, Systematic Theology (Philadelphia: The Judson Press, 1907, 1951), p.202-212, e as
modificações sugeridas por Mullins, The Christian Religion in Its Doctrinal Expression, p. 143-144.
8 A Fórmula de Consenso Suiça de 1675 declarou que mesmo as marcas das vogais hebraicas do Antigo
Testamento foram inspiradas (veja Strong, p. 209). Mas hoje sabemos que tais marcas não faziam partes dos
textos originais; foram acrescentadas ao texto bíblico, pela primeira vez, na Idade Média.
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ou “canetas”, isto é, instrumentos passivos utilizados pelo Espírito. Consequentemente, as palavras


são inspiradas aqui e não os autores.9

4. A Teoria Dinâmica: Conforme esta posição desenvolvida por Strong, o Espírito inspirou o
pensamento pré-verbal dos autores e, desta forma, permitiu que eles empregassem suas próprias
palavras, formas literárias, estilos, etc. Isto não fez os autores oniscientes nem infalíveis, mas
garantiu a transmissão fidedigna da verdade que eles foram comissionados a transmitir.

Agora, daremos nossa opinião sobre as teorias explicadas acima. (1) A teoria naturalista não
reconhece a diferença entre a idéia da inspirção artística geral e a da inspiração especial dos autores
bíblicos. Todavia, os próprios autores bíblicos e a igreja cristã, ao longo dos séculos, têm entendido
que Deus estava envolvido, de um modo todo especial, na redação dos escritos bíblicos e que Deus
os usa para transformar as vidas das pessoas que recebem sua mensagem (esta é a evidência
pragmática de sua inspiração). Então, não podemos aceitar esta teoria como sendo adequada. (2) A
teoria da iluminação é criticada por Strong por não garantir a veracidade de tudo que está nas
Escrituras, mas perguntamos: no final de contas, qualquer teoria humana pode realmente fazer isto?
De nosso ponto de vista, esta teoria tem a vantagem de tanto afirmar a influência especial do Espírito
como deixar muito espaço para a liberdade e personalidade dos autores humanos; talvez nossas
teorias não deveriam tentar fazer mais do que isto. (4) Por mais que Strong tenha tentado criar uma
quarta alternativa, sua teoria dinâmica parce ser quase igual à teoria da iluminação. Pelo menos,
ela tenta preservar também os dois aspectos essenciais de uma teoria da inspiração: a influência
divina especial e a liberdade de expressão dos autores.

(3) Mesmo que haja textos que representam comunicações diretas do Senhor aos profetas, a teoria
do ditado é obviamente inadequado para explicar a enorme variedade de vocabulários, estilos,
pontos de vista teológicos, conflitos entre trechos paralelos, etc., que vemos nas Escrituras. Tal
variedade, na realidade, aponta para uma enorme variedade correspondente de autores, cujas
personalidades se manifestam tão claramente nestes documentos. No Novo Testamento, é só
necessário notar o contraste agudo entre as cartas de Paulo, nas quais suas idéias explodem meio
desordenadamente, jamais sendo desenvolvidas plenamente, e a carta aos Hebreus, que é o produto
de um teólogo menos criativo, mas que, ao longo de seu tratado, desenvolve deliberada, sistematica,
e plenamente sua tese principal.10 Além disso, a teoria do ditado é teologicamente deficiente, pois
despreza o criatural, o humano, de modo que esta teoria seja incompatível com o ensino da própria
Bíblia sobre a encarnação: Deus se manifesta, não passando ao redor do humano, mas, sim,
precisamente por meio dele. Em Cristo, Deus levanta a natureza humana para dentro de Si. Negar

9 A teoriade ditado, que compreende a inspiração como algo mecânico, foi defendido por alguns judeus na
antiguidade: “E o Altíssimo deu entendimento aos cinco homens, e alternadamente escreveram o que foi
ditado, em caráters que eles não conheceram” (4 Esdras 14:42). É interessante que esta teoria seja defendida
pela primeira vez, que eu saiba, pelo autor de um chamado livro pseudepígrafo (4 Esdras), isto é, um antigo
livro judaico, semelhante aos livros apócrifos, que não foi inclído na Bíblia. Este fato não significa que a
idéia do “ditado” seja errada, nem que seja correta, mas é claramente interessante.
10Outro contraste muito óbvio se encontra entre Hebreus e o Apocalipse de João. Por um lado, Hebreus foi
escrito num grego gramaticamente impressionante, quase clássico no seu estilo; é o melho grego na Bíblia.
Por outro lado, o Apocalispe foi escrito num grego muito problemático, que manifesta muitos solecismos ou
violações das regras de concordância, etc.; isto sugere que, diferentemente do autor de Hebreus, o autor do
Apocalipse não conhecia tão bem a língua grega.
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isto é cometer o erro de docetismo. Ao desprezar o que é humano na revelação, a teoria do ditado
mostra sua tendência nesta direção docética. 11

CONCLUSÃO

Concluimos que uma doutrina da inspiração deve ser mais uma confissão de fé do que uma teoria
racional especulativa desenhada para “provar” a veracidade da Bíblia. Sua função não é definir o
mecanismo psicológico pelo qual o Espírito teria operado na mente dos escritores bíblicos;
deveríamos admitir que simplesmente não temos acesso a este tipo de informação. Pelo contrário, a
função desta doutrina deveria ser expressar nossa confiança na presença orientadora do Espírito nas
vidas e mentes dos autores bíblicos e nas vidas e mentes dos leitores destes escritos, que buscam
neles orientação espiritual para suas vidas. “Inspiração” significa que a Bíblia é um livro singular,
pois nela podemos ouvir a “voz” de Deus que traz julgamento, perdão e salvação aos injustos,
culpados e aflitos. Exigir mais do que isto de uma doutrina nesta área seria, de fato, uma
manifestação de uma fé fraca, a qual teme deixar a garantia desejada nas mãos do Senhor.

http://www.teologiaocidental.com

11 O termo docetismo vem do verbo grego δοκέω (dokéo), que significa “parecer.” No contexo da cristologia,
o termo é usado para indicar a posião que afirma que o Logos pré-existente só parecia se tornar um ser
humano. Em outras palavras, conforme os docéticos, o Logos não realmente se fez carne, mas só parecia ser
assim, permanecendo, de fato, um ser puramente espiritual. Tal ensino sobre a natureza de Cristo foi
condenado explicitamente na 1ª Carta de João (4.1-3) e, posteriormente, pelos pais da igreja.

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