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FICHAMENTO

SANTANA, Agatha Gonçalves Santana; TEIXEIRA, Carla Noura Teixeira; TEIXEIRA, Otavio
Noura. A Necessidade de Disciplinar o uso de Blockchain para a Organização de
Refugiados pelo Direito Internacional. Revista de Direito Internacional. Vol. 18, n. 1.
2021.
Objetivos:
i) realçar os pontos de vantagens de desvantagens práticas do uso da tecnologia para
fins de organização dos refugiados, ou mesmo para conservação plena de dados que
conservem elementos pessoais referentes à preservação de sua ancestralidade
antropológica e cultura de origem;
ii) necessidade de interpretação do uso dessa tecnologia à luz do Direito Internacional
dos Refugiados, formando balizas interpretativas ou guidelines para garantir os
princípios do humanismo ético que permeia os direitos humanos mais básicos dessas
pessoas.
Metodologia:
Os autores dividiram a pesquisa em duas etapas:
1º Etapa - Utilizaram-se de uma abordagem quanti-qualitativa, de objetivo
exploratório acerca da necessidade de discussão sobre aplicações e limites desta
tecnologia. Para tanto procedeu-se com um levantamento bibliográfico-documental,
confrontando o uso da tecnologia em relação às possibilidades de aplicação às
populações hipervulneráveis ou com sobreposição de vulnerabilidade, como no caso
dos refugiados. A lógica que predomina nesse primeiro momento é a hipotético-
dedutiva, para construção de hipóteses a serem consideradas pelo Direito
Internacional.
2º Etapa – Possui maior enfoque na pesquisa empírica, utilizando-se do procedimento
de estudo de caso assentada em uma abordagem qualitativa. Nessa etapa há uma
observação fenomenológica interpretativista com base no estudo de caso, com a
descrição, compreensão e interpretação dos fenômenos de aplicação do uso da
tecnologia sob um olhar transdisciplinar e transversal. A partir desse ponto, os dados
serão submetidos à metanálise e, posteriormente confrontados com a experiência do
uso da tecnologia pela ONU na Jordânia em 2017 com relação aos refugiados sírios.
Nesse sentido será aplicado o critério lógico de análise indutivo.

A tecnologia da blockchain foi idealizada por Stuart Haber e W. Scott Stornetta no


início dos anos 90, inicialmente envolvendo a criação de uma rede de blocos de
documentos protegidos criptograficamente, não podendo serem alterados seus
registros de data e hora.
A blockchain trata-se de um sistema digital no qual os dados são registados em vários
locais concomitantemente, diferentemente dos bancos de dados tradicionais, pois não
há um administrador central, não havendo como rastrear quem adicionou a
informação na rede, mas somente verificar se tal adição é válida. É uma espécie de
tecnologia de registro de contabilidade distribuída, como um livro-razão. Essa
tecnologia elimina a exigência de um provedor financeiro (ex. banco), reduzindo em
até 98% os custos operacionais.
Vivemos hoje a era da “teconoglobalização” ou Era da “Internet das Coisas”, em que a
tecnologia possui um ritmo muito mais veloz do que a filosofia, a sociologia, o direito
ou a política, em que atenção então dispensada ao sujeito de direitos, volta-se para o
objeto, nascendo a necessidade de se preocupar com a realização das finalidades
expressas nas normas do caput do artigo primeiro da DUDH. Observando-se o cuidado
de não reduzir a pessoa a um número, uma matéria-prima.
Desde o final da década de 90 passou-se a se deparar com três fenômenos: a) o uso da
informação como recurso econômico; b) difusão do uso da informação como setor
próprio da economia; e c) desenvolvimento da informação como um setor próprio da
economia.
De modo que o uso da tecnologia não poderá passar desapercebido pelo crivo das
ciências sociais, de sorte que a tecnologia possa atender aos fins sociais e humanos,
nesse sentido é que o Parlamento Europeu editou a Resolução em que afirma que a
dignidade deverá ser o centro de uma nova ética digital.
O direito internacional é reconhecido como um sistema dinâmico que vista disciplinar
e regulamentar as atividades exteriores a atividade dos Estados, bem como das
organizações internacionais e dos próprios indivíduos e tem como objetivo regular a
relação entre os interesses dos Estados e da sociedade global.
Trata-se de um direito cuja essência tem caráter protetivo, garantidor de bens básicos
à existência humana. Não rege, portanto, a relação entre sujeitos em igualdade, mas
sim em situação de vulnerabilidade. De sorte que, quando os Estados Nações assinam
as convenções internacionais, convencionam adequarem seus contornos jurídicos ao
direito internacional, limitando sua soberania dentro de um modelo cooperativo, em
prol do recrudescimento de políticas humanas.
Em 2011 o mundo deparou-se com a Guerra Civil Síria ou Revolução Síria ou Revolta
Síria, que tinha como objetivo destituir o então presidente Bashar al-Assad, para
instauração de uma nova liderança democrática. Em 2013 a crise se agravou com a
reivindicação de território da Síria por parte do Estado Islâmico, onde os jihardistas
veem na luta armada a possibilidade de implementação da Sharia (organização da
sociedade de acordo com as leis mulçumanas), o que provocou a acentuação das
violações de direitos humanos.
Em 2017 a ONU lançou mão na Jordânia de um programa de ajuda humanitária,
denominado Programa Mundial de Alimentos – PMA, utilizando-se a tecnologia
blockchain, com a finalidade de garantir a alimentação das pessoas, como também
assegurar a segurança e economia nas transações, reduzindo taxas e evitando
tentativas de fraudes e corrupção.
Em junho de 2017 na Cúpula do ID2020 foi realizado consórcio público privado, onde a
Accenture e a Microsoft uniram-se com escopo de desenvolver um protótipo de rede
de identificação digital, utilizando-se da tecnologia blockchain, como forma de
desenvolver uma identidade legal para todo o planeta, partindo da premissa de que a
identidade é um direito humano básico. Esta identidade teria como objetivo essencial
auxiliar os refugiados a buscarem os serviços mais básicos como educação, saúde e
alimentação.
A partir desse protótipo, Houman Haddad, idealizou essa tecnologia como ferramenta
de transferência de renda, com base na Ethereum (forma de criptomoeada digital).
O sistema implementado na Jordânia foi incialmente testado no Paquistão, revelando
falhas, tais como lentidão das transações e altos valores de taxas. Segundo Haddad, tal
fato decorreu do fato de que o sistema foi construído em uma versão pública, em que
qualquer pessoa poderia utilizar a rede e validar transações.
Com as correções, lançou-se o programa Building Blocks, por meio do qual utilizarão
máquinas que escanearão a íris de refugiados cadastrados, cuja identidade será
confirmada em um banco de dados das Nações Unidas e consulta-se uma conta da
família mantida em uma variante do chamado blockchain Ethereum pelo PMA,
permitindo ao refugiado pagar suas contas para se alimentar e garantir acesso a
direitos básicos, ao mesmo tempo em que se obtém uma visão em tempo real das
transações.
O programa iniciou a concessão de acesso direito à quantias em dinheiro aos titulares
de contas, prevendo-se no futuro a criação de uma “carteira múltipla”, onde as
pessoas poderia utilizar o sistema para pagar outros bens, como educação, histórico de
viagens e saúde, permitindo ao refugiado entrar com maior facilidade na economia
global. De sorte que esse programa poderá ser desenvolvido até chegar ao
denominado “passaporte global”.
Este seria um modelo de negócio em que o pagamento é realizado em troca da
privacidade dos dados mais sensíveis de um ser humano, que em situação de
hipervulnerabilidade não veem outra opção que não aderir ao sistema.
Todavia, não se pode ignorar que o sistema possui falhas, tal qual o funcionamento do
sistema em locais off-line, como é a realidade de muitos campos de refugiados. Outro
problema foi a detecção da possibilidade de inserção de material ilícito em bitcoins,
vinculados à chamada “dark web”. Outro problema é o fato da ausência de
confirmação das informações fornecidas pelos refugiados, quando não haverem como
comprovar quem são ou os seus dados básicos.
Ademais, da mesma forma como demonstrou abertura para prática de atos ilícitos
dentro do uso dessas ferramentas, poderia ocorrer com a utilização de dados de
refugiados para fins discriminatórios, xenofóbicos ou outros fins comerciais, haja vista
a ausência de guidelines a serem seguidas para utilização uniforme dos blockchain.
Apesar dos riscos, há possibilidade de utilização do blockchain como ferramenta de
proteção dos refugiados indígenas, salvaguardando suas especificidades culturais e as
derivadas de suas terras tradicionais.
Assim, o blockchain se prestaria a salvaguardar a identidade cultura no processo de
perda do elo com sua cultura logo que são forçados a sair de seu país de origem, em
uma situação de perda, de choque, de ruptura. A ferramenta seria forma de guardar a
cultura e ancestralidade dessa pessoa, para protege-la e defende-la dentro de suas
origens.
As situações de guerras e exploratórias fizeram com que a pessoa fosse usurpada de
sua natureza humana e de sua existência, como se torne totalmente dependente das
novas necessidades a ele impostas. Nesse cenário, emerge a ONU em 1945, cuja
atuação era direcionada a atuar na manutenção da segurança e da paz internacionais,
desenvolver relações amistosas entre os Estados, bem como fomentar a cooperação
entre os povos na sistematização e efetivação dos direitos humanos, além de funcionar
como centro harmonizador das ações internacionais.
Impera notar que o refúgio não se trata de um ato discricionário do Estado concessor,
pois o reconhecimento do status de refugiado decorre a diplomas e hipóteses legais
bem definidos é um direito inerente ao ser humano. De sorte que o refugiado não se
confunde com o migrante e nem com o estrangeiro residente.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional dos
Refugiados apresentam o mesmo objeto: a proteção da pessoa humana na ordem
internacional. O mesmo método: regras internacionais assecuratórias; mesmo
sujeitos: o ser humano como beneficiário e o Estado como destinatário [e a
comunidade]e o obrigado principal do cumprimento das normas; mesmos princípios e
finalidades: a dignidade da pessoa humana e a garantia do respeito a esta; e a garantia
da não-discriminação. Diferem-se no conteúdo de suas regras, em função de seu
âmbito de aplicação.
Essa principiologia extraída do Direito Internacional dos Refugiados pauta-se no
Princípio da Solidariedade, direcionada ao acolhimento e soluções duradouras aos
seus sujeitos, para que possam garantir o suprimento de suas necessidades mais
básicas e escolhas em sua história dentro de uma vida digna.
A solidariedade antes de ser um princípio, é um dos sentimentos encontrados há mais
tempo na raça humana, sem ela não há o reconhecimento do estado de pessoa e,
consequentemente, dos próprios direitos humanos, de sorte que a proteção do ser
humano é de responsabilidade de todos [comunidade].
Não que ignorar a situação dramática daqueles que aguardam a análise dos atributos
políticos em abrigos mantidos por entidades governamentais, ou mesmo vagueando
pelas ruas da cidades, em situação de alto risco, e um quadro de vulnerabilidade
invisíveis.
Outrossim, importante destacar que o refúgio não concede um status permanente,
mas sim móvel em uma solução duradoura, enquanto perdurar as situações políticas
que motivaram o refúgio.
De sorte que o blockchain poderia facilitar e acelerar a conferência dos requisitos
legais para concessão do refúgio. Contudo, não podemos ignorar que esta tecnologia
poderia ser utilizada com fim xenofóbico, ignorando-se o princípio do non refoulement
“não devolução” ao seu país de origem sem que seja justificado por um grave e justo
motivo. Esse princípio, segundo Piovesan, é a pedra angular do direito dos refugiados.
A ideia central é a inserção da própria noção de tolerância como fundamento do
Direito Internacional dos Refugiados, enxergando-se o ser humano como uma pessoa
histórica e concreta, pondo-se o ser humano como fonte de todos os sistemas
jurídicos, uma vez que a proteção da pessoa humana é devida antes mesmo da
condição de refugiado, uma vez que os Estados hospedeiros, não raras vezes,
desconsideram as especificidades de cada povo.
Não pode se ignorar as lacuna sem alguns arranjos políticos de alguns Estados
hospedeiros, em que sinalizam para uma espécie de tolerância condicionada, com
estranhamento pela diferença, distinção no mercado de trabalho, gerando um
comportamento de não pertencimento, em um discurso ideológico entre o bem e o
mal.
Nesse sentido, poderia o blockchain promover a reaproximação do refugiado às suas
origens, não apenas em relação ao espaço, mas em reação a ideologias, política, etnia,
religião ou cultura, uma vez que a tecnoglobalização promove a relativização espacial
em que cada vez mais são realizadas atividade extraterritoriais, provocando uma
internacionalização de todo o direito.
Outrossim, deve se destacar o problema da hipervulnerabilidade, pois ainda que haja
aceitação da pessoa do refugiado, este não teria outra opção melhor senão aceitar
ceder seus dados biométricos, nesse sentido a existência de guidelines é fundamental
para criar parâmetros que os Estados possam gerir e garantir a segurança desses
dados, estabelecendo critérios exatos de como tais dados são gravados, de que forma
são armazenados, de sorte que, uma vez deformada a íris de um refugiado ou
ocorrendo mudanças fenotípicas, não tornassem impossíveis acessar esses dados.

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