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Aula 01
Bom, primeira coisa: seria interessante explicarmos mais ou menos qual seria o
tom do curso. Não sei se vocês pegaram o folhetim com o programa; tinha um ou dois
parágrafos de texto no comecinho explicando que a ideia no decorrer deste um ano –
passarem o quê? Os alunos chegarem a definições mais ou menos claras dos conceitos
fundamentais da vida política. Primeiro chegar a um conceito do que é vida política,
chegar a um entendimento acerca do que é vida política e de quais são os conceitos
fundamentais que determinam o modo de ser ou de existir desse aspecto da realidade ou
desse ente que nós vamos chamar de ‘vida política’. Não é um exame exaustivo dessa
ciência; pelo contrário, é realmente um exame introdutório, porque a ideia é que, com o
que o sujeito aprender nesse curso aqui, ele possa examinar qualquer obra sobre ciência
política por si mesmo.
Então a ideia não é que você vá sair daqui já com o conhecimento de ciência
política total, mas como você vai ter entendido mais ou menos as regras do jogo e ter
alguma ideia de como você investiga uma questão em ciência política ou uma questão
política concreta. Porque na vida política as ações são tão complexas e elas envolvem
um número tão grande de fatores que muitas vezes as ações políticas têm significados
reais completamente opostos àqueles que aparecem imediatamente para o público.
Então quando você vê uma decisão de um presidente, um acordo entre duas nações, a
promulgação de uma lei, muitas vezes elas parecem ter um determinado significado
político e, se você examina a origem daquela ação naquele contexto político, você verá
que ela vai resultar no contrário do que estava pensando de imediato. Então ela tem um
significado contrário. Então vamos dizer que as ações políticas não são fenômenos
como as cores: você olha um negócio e fala ‘é vermelho, aquele lá é azul, aquele outro é
verde’. E essa impressão inicial não vai mudar muito por mais que você analise o que
aconteceu ali, o que é aquela cor. As cores são fenômenos que podem ser reconhecidos
imediatamente e você só precisa possuir seus nomes para classificar. Claro, as cores são
um pouco mais complexas do que isso; se você examinar as cores, você pode descobrir
quais são os elementos que as compõem dentro da própria categoria de fenômeno que é
a cor. Então você pode dizer: ‘não, as cores são combinações de outras cores. Esta cor
aqui cai bem com aquela outra ou esta complementa a outra. Esta tem o mesmo grau de
luminosidade que outra ou está é mais luminosa, aquela é menos luminosa etc. etc.’ Mas
isso não vai mudar a constatação inicial: ‘este aqui era vermelho, aquele lá era azul,
aquele lá era verde, aquele lá era amarelo’.
Pois bem, no exame de uma ação política ou de um fenômeno político qualquer
é bem possível que sua visão sobre o fenômeno mude cento e oitenta graus depois do
exame. Nesse sentido, a política é muito semelhante à ciência moral. Também os atos
humanos em geral – você vai dizer: ‘o sujeito fez isso. É justo ou injusto?’ Nós vamos
ter uma impressão inicial, mas, se você estudar a história do ato, você pode chegar à
conclusão contrária da inicial. Atos que muitas vezes parecem injustificados, depois de
um exame, se mostram como não somente como justificados, como eles eram
exatamente o dever moral do sujeito naquele momento. Por outro lado, além da
semelhança com a ciência moral e com os fenômenos morais, os fenômenos políticos
estão ligados aos fenômenos morais, porque os fenômenos políticos também são atos
humanos só encarados sob um outro aspecto. Ou então, por exemplo, a competência
técnica também é um aspecto dos atos humanos. Tudo isso são ciências ligadas aos
momentos em que as pessoas tomam decisões e modificam si mesmas ou o ambiente ou
outras pessoas.
Pois bem, a vida política acontece quando esses atos se dão no panorama mais
complexo possível, e isso vamos ver mais para adiante, mas é importante saber isso.
Como o panorama das ações políticas é muito complexo, é muito fácil que o exame
revele uma ação completamente diferente do que é nós tínhamos percebido no começo.
Isso faz com que algumas ações políticas sejam extremamente difíceis de você avaliar
no momento em que elas se dão; muitas você pode examinar quando se dão, se você já
estava examinando o contexto antes, se você já examinava o panorama antes. Mas
acontece de algumas, umas poucas, de fato não poderem ser analisadas. Por que o que
acontece? Ao contrário da ciência moral, em que a ação sob seu aspecto moral tem de
fato sempre um juízo objetivo e permanente, que é a consciência do sujeito que age.
Mesmo quando o sujeito é corrupto, ele é testemunha plena de seu ato. Ninguém é
testemunha plena de um ato político, porque um ato político nunca é exclusivamente o
ato de um indivíduo. Às vezes, o indivíduo age como um foco da ação política e aí ele
dá um novo rumo ou desvia um pouco numa outra direção uma série de atos anteriores
que são de outros indivíduos. Geralmente, uma ação política consiste em você dar um
novo rumo, uma nova orientação, um novo significado a atos prévios de outras pessoas.
Nem sempre o sujeito que é esse foco – o sujeito que muda o rumo um pouquinho – está
plenamente consciente das intenções e dos valores das pessoas que estavam agindo
antes. Mais: a avaliação do ato político envolve a avaliação dessas duas coisas também.
‘Espere aí, o que os outros caras estavam fazendo, o que eles queriam, eles iriam chegar
lá, mas para onde esse cara mudou a coisa?’
Vamos começar pelo primeiro conceito, que é o seguinte: qual é o traço
distintivo da política em relação a qualquer outro grupo ou associação? Vejam bem,
várias espécies de animais formam associações ou agrupamentos, vivem de modo mais
ou menos coletivo. Por que não dizemos que esses animais têm uma vida política? Por
exemplo, por que uma alcateia não tem uma vida política ou uma colmeia ou um grupo
de leões e assim por diante? Qual a diferença entre a sociedade dos leões e a sociedade
humana? Uma das primeiras diferenças podem ser os motivos; as motivações pelas
quais os animais podem ser diferentes das motivações pelas quais os seres humanos, em
geral, se associam. Mas a verdade é que a motivação é irrelevante quanto à diferença
política e não-política. Se um grupo de pessoas se juntar para viver pelo mesmo motivo
que os lobos se juntaram para viver, ainda assim essas pessoas constituirão uma
sociedade política e os lobos nunca farão isso. A diferença não está no motivo. A
diferença principal entre a simples vida gregária – quer dizer, associar um certo número
de semelhantes para eles conviverem – e a vida política propriamente dita está no
conceito de justiça. Os lobos, quando eles se organizam na alcateia, o que vai
acontecer? Os machos da alcateia vão brigar até descobrirem quem é o mais forte. Se
eles descobrirem quem é o mais forte, o mais forte vai ser o chefe. Acabou, sem
discussão. O lobo que é o segundo mais forte, o terceiro mais forte, o último mais forte
podem não gostar da situação; evidentemente eles não gostam, todos eles queriam ser o
chefe, senão eles não teriam nem brigado: eles teriam olhado o maiorzinho e o deixado
ser chefe. Mas eles não consideram isso injusto. Agora, se vocês lembrarem si mesmos
desde crianças, vocês vão perceber que, desde criança, vocês notam a diferença entre o
desagradável e o injusto, o indesejado e o injusto. Em algum momento, essa diferença
foi se tornando clara. Foi em algum dia da escolinha em que você bateu no sujeito, daí
ele foi lá e pisou os seus lápis; é claro, ele pisar os seus lápis é desagradável, mas não é
a mesma coisa se ele simplesmente tivesse pisado os seus lápis e quebrado sem nenhum
estímulo anterior. O tipo de revolta ou de desagrado é diferente. No primeiro caso, você
só tem um sentimento de desagrado; no segundo, você tem um sentimento de injustiça e
a sua reação se chama indignação. Eu estava aqui, não fiz nada contra ele e o sujeito
veio e quebrou minhas coisas. Está claro para vocês que em algum momento vocês
perceberam essa diferença?
O que caracteriza a vida política é que não importa por que motivo os seres
humanos se associem, eles sempre esperam que essa associação seja regida pela justiça.
Ninguém se associa sem ter essa expectativa, nenhuma associação humana se constitui e
perdura – a não ser associações muito temporárias, em situações de emergência –;
nenhum ser humano forma uma associação permanente sem esperar que ela seja regida
pela justiça. Para saber isso aí você tem que simplesmente perceber isso em você: que é
impossível que você mesmo se comprometa intimamente a se associar a um grupo de
pessoas entre as quais é normal que você seja injustiçado e que você injustice as outras.
Você só faz isso deliberadamente, quer dizer, com consentimento íntimo – é claro que
você pode entrar numa associação em que as pessoas te vão injustiçar, porque ou você
entra na associação e elas vão te injustiçar ou elas vão te injustiçar de uma maneira
maior se você não entrar na associação. Ainda assim a escolha não é pelo estado de
injustiça; se o sujeito: ‘olha, ou você vem aqui e trafica conosco ou eu vou te dar um
tiro na cabeça agora’. Está bem, vale a injustiça menor. Mas, primeiro, você não dá um
consentimento íntimo a essa associação e você espera sair dela o quanto antes. Claro
que pode acontecer de você entrar numa associação obrigado assim e você mudar, você
se tornar outra pessoa, você mesmo se tornar uma pessoa mais injusta. Porque
normalmente nem os traficantes quando se associam, eles se associam para se
injustiçarem uns aos outros. Essa é uma diferença permanente, uma diferença constante
nas associações humanas. É certo que cada lobo da alcateia que não seja o chefe, que
não seja o lobo alfa se pergunta se não seria melhor se ele fosse o lobo alfa. Claro, todo
dia. Acontece alguma coisa e ele lembra: ‘puxa, seria muito melhor se eu fosse chefe
aqui’. É evidente. Mas ele não se pergunta se o certo é que ele fosse o chefe aqui. Essa
ideia não passa pela sua cabeça. Mas nós não: de qualquer grupo de que participemos,
de tempo em tempo acontece alguma coisa que pensamos ‘não, o certo é que fizesse de
tal outro jeito’ e não o melhor para mim, não sempre o melhor para mim. Às vezes, o
certo pode coincidir com o melhor para mim. Mas o fato é que esta ideia corre na nossa
mente o tempo todo.
Então uma das características da vida política vai ser justamente que ela é
sempre idealmente regida pela ideia de justiça. Quando dissemos idealmente aqui, quer
dizer simplesmente que a maior parte das pessoas prefere que a coisa seja justa,
necessariamente, quer que aquela associação seja regida pela justiça. E é por isso que
todo – vocês podem reparar –, todo e qualquer discurso político contém a expressão ‘é
justo’, ‘é bom para todos’, que substitui muitas vezes simplesmente a palavra ‘justo’.
Vocês nunca vão encontrar um discurso político dizendo que o motivo para aquela ação
é porque é melhor para mim, é melhor para esse grupo e o resto que cale a boca. Todo
discurso político é um discurso de justificação de algo. Por quê? Simples: porque essa é
a nota característica da vida política e das associações políticas. Porque em um grupo
humano qualquer, se você chegar e falar [?], pode ter lá um ou dois que vão falar: ‘ah, e
daí? Dane-se a justiça. Eu não quero o que é justo, eu quero o que é bom para mim’. E
aí todos os outros vão bater nele. A diferença então entre a alcateia e a associação
humana é a seguinte: na associação humana as pessoas batem umas nas outras até
chegarem a uma conclusão, mas elas batem umas nas outras até chegarem à conclusão
do que é justo. Geralmente é assim. Elas não batem umas nas outras até descobrirem
quem é o chefe, [mas] até elas chegarem a um consenso sobre o que seja justo. O que
aconteceu? Simples: o que parece borrar isso um pouco é o fato de as associações
políticas serem muito grandes, as sociedades políticas serem imensas, elas envolverem
milhões de pessoas. Então nós podemos ter uma impressão das coisas – você pode ter
uma impressão da vida política vendo só os discursos políticos ou os discursos de
caráter político, mesmo que não sejam feitos por um político profissional. Aí você vai
ter uma impressão da vida política. Outra coisa é você examinar a que visam esses
discursos e quais os seus reais efeitos sobre as pessoas e quais são os traços comuns. Se
você quiser entender o que é vida política, é isso: pegue todas as facções políticas, todas
as forças políticas diferentes em jogo numa situação e veja o que há de comum entre
elas. A primeira coisa que você vai notar é isso: todo mundo está tentando justificar
alguma coisa. A ideia nunca é dizer o seguinte: ‘estou fazendo um negócio aqui e todo
mundo vai ficar contente e por isso vocês devem votar em mim’. Isso não existe.
Sempre que você faça alguma coisa, alguém vai ficar contente e algum outro vai ficar
descontente. Mesmo quando o público seja só você; quando o objeto todo surtir efeito,
vai ser modificado com [?] também, às vezes você vai ficar contente, às vezes você vai
ficar descontente.
Então não existe uma melhora geral da satisfação dos desejos com nenhuma
ação política. Você pode melhorar a satisfação do desejo desses aqui e piorar daquele
dali. Só tem uma coisa que numa ação política você pode efetivamente dar a todos:
justiça. O único bem que pode ser oferecido numa ação política é o bem que visa a
todos os membros da agremiação, a todos os membros da associação. Então é por isso
que os políticos tentam convencer as pessoas de que, se eles forem eleitos e fizerem o
que quiserem, a vida será mais divertida. Só mais justa, exatamente. E, se ela for mais
justa, você vai ter menos problemas para levar uma vida divertida. Mas o benefício no
campo da satisfação do desejo é indireto.
Então a ideia central é justamente a ideia de justiça. A característica fundamental
da justiça é que, de todos os bens fundamentais, a justiça é a única que por definição é
um bem comum, um bem que pertence a mais de um. Mesmo quando o sujeito use
justiça no sentido de Platão – ou seja, a justiça seria então a reta ordem dos elementos
internos da constituição de um ser; não sei se vocês lembram isso aí n’A República.
Então ele está falando da sociedade, mas ele está usando da analogia da alma humana.
Ele fala que na alma humana tem três princípios diferentes: tem o princípio inteligente,
tem o princípio vigoroso e tem o princípio passivo, passional, os desejos. Então ele fala
que dentro de cada ser humano tem um monstro com milhares de cabeças que são os
desejos; tem um leão, que detém força; e tem um homem, que tem inteligência. E aí ele
fala que nessa pessoa, que é constituída destes três elementos diferentes, – ele diz: ‘para
cada uma das partes existe uma virtude ou uma qualidade que a torna mais perfeita.
Então para a parte inteligente, para o homem que está dentro da alma do sujeito é a
prudência ou sabedoria. Para o leão é o vigor ou fortaleza, a força. Para o monstro é a
temperança’. E ele fala: ‘e a correta hierarquia entre essas três partes é a justiça. A
justiça é a presença dessas três qualidades e o uso hierárquico correto delas’. Nesse
caso aqui, a justiça é que, por meio do leão, o homem governa o monstro; que o homem
use a força do leão para governar o monstro e isso é justiça. Mesmo então quando você
esteja falando dos elementos da constituição interna de um sujeito, você está falando de
um bem para mais de um. Por que o que acontece? A justiça então é um bem que se
agrega às três virtudes de cada uma das partes e que leva cada uma dessas partes ao
máximo possível de sua realização. Não basta que na inteligência ele tenha sabedoria,
na vontade ele tenha fortaleza e nos desejos ele tenha temperança; é preciso também que
a inteligência use a vontade para governar os desejos. Isso será um bem para os três,
porque cada um deles então será levado a seu fim próprio. A prudência é um bem só
para a inteligência; a fortaleza é um bem só para a vontade, se localiza na vontade; a
temperança é um bem para os seus sentimentos, seus desejos. Mas a justiça é um bem
para os três. Mesmo quando usemos justiça no sentido mais estritamente moral ou no
sentido da ordem ideal dos elementos que constituem um único ser, ainda assim a
justiça não é um bem que pertença a um desses elementos constitutivos; ela é um bem
comum aos três. Nenhum outro bem tem essa característica, nenhum outro bem é
efetivamente possuído plenamente por mais de um, por si mesmo.
Aluno: Ela é uma relação correta.
Ela é uma relação correta, exatamente. Ela é uma ordem nas relações. E, de fato,
ela é um bem que se encontra nas relações.
Aluno: [?]
Veja bem, não é o único bem que se encontra nas relações, mas é o único bem
encontrado nas relações que está plenamente possuído por ambos os relativos, por
ambos os correlatos. Então tem inúmeros outros bens que podemos conceber que se
encontrem nas relações, mas eles não se encontram do mesmo modo ou igualmente nos
dois extremos, nos dois polos da relação. Existem outros bens que são de caráter
semelhante; por exemplo, suponha que duas pessoas estejam discutindo uma tese para
chegar a uma conclusão. Ora, o ato de discutir é formar uma relação temporária; quer
dizer, não dá para discutir tendo só um sujeito. Mas o bem dessa relação é chegar a uma
conclusão sobre a tese, mas quando se chega a essa conclusão, acabou a relação; quando
as duas partes chegam a uma conclusão comum, acabou o debate, acabou a discussão.
Passa a ser um bem comum também, mas a relação já desapareceu. E o bem não existe
enquanto se está discutindo, se está debatendo para chegar a uma conclusão. A
conclusão só existe depois. A justiça, não; ela existe no próprio ato da relação.
Dá para entender então que toda e qualquer ação política vá se proclamar como
uma ação justiçadora ou justiceira? Quando o sujeito não vai tentar justificar a sua ação
política? Simples: quando a audiência já não tenha mais nenhuma força política, já não
tenha nenhum poder político. Aí você não precisa justificar mais. Mas aí aquela
audiência é quase parte do cenário. É que nem os políticos [?] no Brasil: antes da
eleição, eles falam um monte de coisas; depois da eleição, eles nunca mais [?] você. Por
quê? Porque não querem saber mais, você não faz mais parte do palco. A partir do
momento em que ele for eleito, ele só se justifica com seus pares.
Mas é impossível conceber uma ação propriamente política ou qualquer coisa
política que não envolva a ideia de justiça. Mesmo que de modo completamente
negativo. É possível que determinada força política já tenha uma noção de justiça que é
absolutamente perversa, que não é senão um profundo modo de injustiça. Quando a
noção de justiça é falseada? Simples: a noção de justiça é falseada toda a vez em que
você não leve em conta todos os membros reais da sociedade. Toda vem em que um
grupo qualquer, seja ele majoritário ou minoritário, – a noção de justiça vai valer e se
aplicar apenas àquele grupo, a noção de justiça foi falseada. Não é que você não possa
fazer ações políticas em defesa de um determinado grupo; você pode, mas essas ações
precisam ser ações de justiça. É evidente que você pode beneficiar determinado grupo,
porque determinado grupo pode estar sendo injustiçado. Então o seguinte: ‘vamos
inventar aqui a licença-maternidade. A licença-maternidade é maior para a mãe do que
para o pai’. Você está beneficiando determinado grupo, mas isso não necessariamente
contradiz a lei da justiça. Não é que você esteja dando mais justiça para as mães do que
para os pais e mais ainda para as mães e pais do que para os não pais e mães. É outra
coisa que você está dando a mais, para tentar restituir a norma da justiça, restabelecer a
justiça. Nem sempre que você beneficie determinado grupo você está sendo injusto ou
você está violando a justiça. Mas para que você beneficie um grupo, é preciso que haja
uma injustiça prévia, uma injustiça anterior contra aquele mesmo grupo. Do mesmo
jeito, para que numa ação política você possa legitimamente prejudicar um grupo, é
preciso que aquele grupo esteja violando a norma da justiça.
Segundo, uma ação política real tem as características de uma ação real; quer
dizer, é preciso que ela funcione ao menos durante algum tempo. ‘Nós vamos inventar
aqui uma lei de licença-maternidade’, mas você vive num lugar em que, se uma pessoa
parar de trabalhar um dia, alguém morrerá de fome. Então é tudo muito bonito, mas não
vai acontecer. É preciso que as ações políticas tenham certa efetividade real, que elas
resolvam algum problema por algum tempo. Não é preciso que elas resolvam o
problema indefinidamente. Poder-se-ia acrescentar: ‘mas ela tem que ter o propósito de
manter a coesão do grupo’. A verdade é que o princípio de coesão de qualquer grupo
humano é a justiça. Quanto mais justa for uma associação, mais os membros da
associação quererão continuar ali.
Agora vamos explicar o seguinte: qual a diferença entre a justiça como princípio
de organização das associações humanas e a força, por exemplo, que é o princípio na
alcateia? A primeira diferença é que a força é um fenômeno externo, cuja manifestação
externa é evidente. Quer saber qual é o mais forte? Bote todo mundo para brigar e
vamos ver: o último que ficar de pé é o mais forte. Mas a justiça é um bem interno, ele é
testemunhado apenas internamente. Existem até alguns autores que afirmam que a
noção de justiça existe porque nós possuímos a linguagem articulada, porque nós
podemos criar palavras. Não é que os animais não tenham sentimentos de injustiça; é
que, como eles não podem nomeá-los, não podem articular esses sentimentos e dar-lhes
uma expressão, não podem dar um nome àquilo, eles não podem desenvolver o conceito
em certo sentido. Porque os animais são capazes de expressar seus sentimentos
concretos ou suas sensações, mas como a justiça não é algo de concreto; quer dizer, o
mesmo ato concretamente – o sujeito veio lá e roubou o seu lanche – pode ter
significados distintos em termos de justiça. Ele pode estar fazendo isso porque você
roubou seu lanche no dia anterior, ele pode estar fazendo isso porque você roubou o
lanche de um outro menor do que você, ele pode estar fazendo isso só porque é mau, ele
pode estar fazendo isso porque ele tem alguma doença [?]. A justiça ou injustiça não
está na forma externa do ato. Não tem como você ver uma coisa, testemunhar uma ação
de fora e dizer: ‘é justo ou injusto’. Se você testemunhou só a ação, você não sabe se é
justo ou injusto.
Aluno: Nós não sabemos qual a injustiça do dia anterior que gerou [?]
Exatamente, nós não sabemos o que está movendo realmente aquele ato. Você
precisa descobrir qual a força motiva, o que está movendo esse sujeito a fazer, qual a
força de intenção – que é diferente da força motiva, quer dizer, o que ele espera obter
com isso – e o que aconteceu antes. Especialmente, o que este sujeito que está sofrendo
a ação do outro fez antes. A coisa mais marcante aqui, porque a justiça não está nas
ações simplesmente; está principalmente nas respostas às ações, na resposta à ação ou à
inação. Nenhuma ação, por si, é justa ou injusta, mas apenas enquanto ela é resposta a
uma situação. Como, evidentemente, toda e qualquer ação humana é resposta a uma
situação, seja uma situação existencial, seja uma situação de ação; quer dizer, seja uma
situação de inação ou – ela é resposta a uma ação ou a uma inação, toda e qualquer ação
humana. Toda e qualquer ação humana ou é justa ou é injusta, mesmo que o sujeito não
esteja consciente do fato de a sua ação ser uma resposta à situação. Você pegue lá uma
criancinha de quatro anos, de três anos de idade: ela vai lá e toma o brinquedo de outra
criancinha de três anos de idade. É muito difícil que aos três anos de idade ela tenha
alguma noção real do que significa propriedade etc. etc. É muito difícil também que,
sempre que uma criança de três anos pegue o brinquedo da outra de três anos, ela esteja
querendo prejudicar o outro; às vezes, ela quer, porque as crianças não são tão inocentes
quanto as pessoas dizem: isso é uma superstição. Basta observar as crianças que você
vai ver que algumas são mais inocentes e outras são menos e nenhuma delas é inocente
em todos os casos; nenhuma, nenhuma. Se tiver uma: ‘opa, espere aí, vamos botar essa
aqui num mosteiro, porque ela vai ser o grande santo da nossa geração’. Nem sempre
ela quer prejudicar o outro, ela só queria pegar o brinquedo. Mesmo então que não
houvesse nenhuma intenção maligna subjetiva, de fato ela foi lá e cometeu uma
injustiça. Ela já cometeu a injustiça. Por quê? Porque a outra pegou o brinquedo
primeiro; o brinquedo estava ali para todos, a criança A foi lá e pegou e a criança B foi
lá e tomou da criança A. Vocês já viram esse ato acontecer entre crianças? Acho que
todo mundo que já viu crianças, já viu esse ato acontecer. Veja bem, você não precisa
estabelecer essas regras: a criança que pegou o brinquedo primeiro brinca com o
brinquedo e acabou. Você não precisa pensar estas regras para elas estarem lá.
Isso é importante e interessantíssimo acerca do conceito de justiça: a justiça é
sempre um fenômeno que se dá entre um corpo de normas inexpressas e permanentes e
um corpo de normas expressas e impermanentes. Nas regras que criamos depois, as
regras que nós criamos que são posteriores à justiça e que são necessariamente atos
conscientes, necessariamente promulgadas e conhecidas, são posteriores ao fenômeno
da justiça e injustiça. Existem normas que são, por definição, posteriores à ação humana
e, portanto, à justiça ou à injustiça e outras que são, por definição, anteriores e que
sempre estão lá. E a justiça ou injustiça de um ato simplesmente explicita a existência
dessas normas. Não é assim: em algum dia, alguém inventou a lei ou a norma ‘a criança
que pegar o brinquedo primeiro continua brincando com ele’. Ninguém inventou essa
norma. Ela estava lá, sempre, e você percebeu essa norma quando a primeira criança B
tomou o primeiro brinquedo da primeira criança A. Você se deu conta de que a norma
estava lá. Por que essa norma estava lá? Simples: porque é impossível que as crianças
de três anos desenvolvam um conceito justo de propriedade. Então os brinquedos que
estavam lá são propriedade comum das crianças, efetivamente. Como o pátio é
propriedade comum dos detentos ou a sala de recreação do hospício é propriedade
comum dos loucos. Por que essa propriedade é comum? Porque é impossível que esses
grupos desenvolvam uma noção justa de propriedade, uma noção adequada de
propriedade. O louco não consegue porque é louco, o detento não consegue porque é
mau e a criança porque é criança, porque é incompetente. É impossível que elas
realmente possuam propriedade.
Isso quer dizer que as normas da justiça derivam do quadro real das
circunstâncias, elas são uma dimensão desse quadro e que percebemos quando, na ação
humana, uma pessoa se confronta com a outra. Isso é extremamente importante porque
hoje se pensa – é muito comum pensarmos que decidimos uma norma e, a partir daí, é
justo cumprir essa norma. Não, só é justo cumprir essa norma se, quando você a
cumpre, se destaque da realidade sua justiça, se evidencie sua justiça. Se não, não. Se
tudo fosse uma questão de convenção, não existiriam leis injustas e, portanto, seria
sempre injusto combater as decisões do Poder Legislativo. Sempre por definição, mas
nós sabemos que não é sempre, por definição, injusto combater as determinações do
Poder Legislativo. Às vezes, é injusto não combater.
Então é extremamente importante perceber que por trás da ação humana, e
realmente por trás, existe toda a dimensão das normas e princípios que determinam a
justiça ou injustiça de um ato. Do mesmo jeito que, por exemplo, por trás de qualquer
fenômeno físico existe um conjunto de normas ou regularidades ou proporções e
equações que regem aquele fenômeno e que fazem com que ele seja tal como ele é. As
regras sempre e necessariamente estão lá e que um ambiente justo – veja bem, já vamos
descartar a ideia do ambiente absolutamente justo em que as pessoas são tão
contemplativas e espirituais que elas não precisam agir, elas repousam no seu próprio
ser e pressentem aquelas normas que estão por trás da ação humana; todas as pessoas,
todas as pessoas são o Ramana Maharshi, elas sentam na floresta e chegam ao Absoluto.
Todos. Então vamos excluir a existência dessa sociedade. A sociedade mais justa é
aquela em que as normas criadas a posteriori guardam uma proporção com as normas
que existem antes da ação humana, de modo que as normas convencionadas depois da
ação humana sirvam de indicação para o sujeito de quais são as normas que estejam por
trás da ação humana. É por isso que em nenhum sistema jurídico a ignorância da norma
justifica a ação. Isso é um traço universal. ‘Ah, mas eu não sabia que tinha essa lei’.
Bom, dane-se meu filho: não sabia, deveria saber. Os sistemas jurídicos adotam essa
postura por quê? Porque por trás da ação humana existem normas e as normas que nós
estamos criando aqui simplesmente visam à máxima aplicação daquelas normas que
antecedem a ação. Um sistema jurídico, por definição, nominalista ou positivista – ‘as
normas são puramente convencionadas ou criadas’ – não teria o direito de dizer que a
ignorância não justifica, porque é perfeitamente razoável que você ignore a opinião de
um outro, que você não saiba qual a opinião do outro sobre o que é justo ou injusto.
Você não pode ficar todo o dia se informando sobre as opiniões de um grupo que, às
vezes, vive muito longe sobre o que é justo e injusto. O que valida essa postura é a ideia
de que aquele grupo representa a consciência dessas normas que estão por trás da ação
humana. É por isso também que em todos os povos primitivos as leis são sagradas. As
leis são sagradas por quê? Porque as leis, nesse sentido, são semelhantes aos ritos ou às
ações espirituais. Elas revelam algo oculto, elas revelam um aspecto da realidade que
afeta sua vida, que está plenamente presente na sua vida, mas que é oculto. E é por isso
que essas leis eram sempre preservadas por meio de – ‘não, vamos aqui guardar esse
objeto simbólico, que representa isso aqui’; é por causa dessa consciência de que uma
lei só é uma lei de fato porque ela revela esse fundo normativo da ação humana que só
aparece ao sujeito individual na medida em que ele vá agindo ou testemunhando ações
de outros.
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Aluna: [?]
Aluno: Não pode aplicar [?] na realidade enquanto tal, só na ação humana...
Aluna: [?]
Aluna: [?]
Exatamente, mesmo sendo a única pessoa que sabia que Ele era filho de Deus.
Veja bem, todo mundo pode acreditar que Ele era filho de Deus; ela sabia. Ela sabia que
ela não tinha dormido com ninguém, ela sabia tudo o que tinha acontecido ali, ela sabia
que eram aquele que estava sendo crucificado e, ao mesmo tempo, não só sabia, como
tinha uma ligação pessoal com aquele sujeito que estava sendo crucificado de modo
inocente. Pois é, esta pessoa aí era a única que estava em paz: isso é o grau supremo. E é
isso que o Cristo na cruz a incumbe de ensinar ao São João. Uma das últimas coisas que
o Cristo fala na cruz é olhar para ela e falar: ‘mulher, este é teu filho’, apontando para
São João; ‘esta é tua mãe’. Quando Ele fala isso, Ele está a incumbindo de ensinar São
João a chegar a esse grau e incumbindo São João de aprender. Nenhum dos apóstolos
estava nesse grau naquele momento, nenhum dos outros cristãos estavam nesse grau
naquele momento. Isso aí é um negócio raríssimo, raríssimo. E esta é a única causa real
de paz no mundo; o efeito intrínseco disso daí é propiciar a paz, isso gera a paz.
Então a justiça tem como efeito complementar ou colateral causar alguma paz,
mas nunca ela causará toda a paz e ela não causa a máxima paz; nem a máxima paz ela
não causa. Vai causar alguma paz, porque existem confrontos que são justos. Tem certas
oposições que você só pode reduzir à paz sendo injusto. Então você não pode reduzir à
paz, tem que deixar um lado subjugar o outro. Isso assim: considerando que você seja o
observador ideal que não está envolvido com nenhuma das partes. Geralmente nesses
confrontos, concretamente, quem testemunha tem que adotar um lado ou outro. E é por
isso que a justiça, às vezes, tem que garantir para alguns sujeitos o direito de confrontar
o outro por si mesmo: ‘o justo aqui é que vocês resolvam aí’. Então já fiquem sabendo:
a paz mundial será obra do Anticristo; a paz mundial O entronará, porque a paz mundial
será injustiça mundial. Por que nós resistimos a essa ideia? Simples: porque resistimos
ao sofrimento, à ideia de sofrimento. Porque a nossa consciência de transcendência
divina não é tão forte assim. ‘Não, não podia ter sofrido [?]’. Olha, já teve um sujeito
muito competente que investigou esse negócio de sofrimento e ele chegou a essa
conclusão – que foi o Buda –: ‘o único jeito de você eliminar o sofrimento, quer dizer,
você chegar à paz total é você alcançar o estado supremo de Iluminação’. Passou anos
examinando isso e era um sujeito extremamente competente. Não existem meios
humanos de eliminação do sofrimento; para que um sujeito elimine o sofrimento na sua
existência e, com isso, minimize na vida de outros, é preciso que ele alcance um estado
supra-humano, é preciso que ele transcenda o estado humano. E ele se torna um Buda.
Já para realizar o máximo de justiça, não é preciso transcender o estado humano: isso é
obra própria dos seres humanos. A pergunta ‘por que Deus permite que exista injustiça
no mundo?’ é equivalente a ‘por que Deus permite que eu exista?’. Deus permite tanta
injustiça no mundo para que eu exista e eu gosto de existir. Injustiça não é sinônimo de
mal; a injustiça é um mal para o ser humano, não para o universo total.
São dez para meio-dia. Dez minutos? Vocês têm perguntas? Dez minutos de
respostas.
É por isso que a justiça sempre foi comparada a um equilíbrio horizontal. Ela é
um elemento horizontal que tem uma referência no elemento vertical. A referência no
vertical é o seguinte: nem todo estado de consciência reflete diretamente o estado da
consciência pacificada ou da consciência plenamente humana. Nossa consciência é
sujeita a perturbações, mas a consciência humana plenamente pacificada transcende
esses estados parciais porque não importa qual seja o estado de sua consciência, você
sempre visa à pacificação de sua consciência, você sempre almeja a ela. Então a
consciência pacificada é a medida efetiva das ações humanas. É por isso que é
impossível você estabelecer a justiça sem levar em conta uma realidade que transcenda
o estado imediato da sua consciência e da consciência humana individual em geral. É
por isso que as normas fundamentais de justiça sempre foram trazidas para a
humanidade por sujeitos no estado supremo de espiritualidade. Tem aquele sujeito ali
cuja consciência estará em paz diante de qualquer situação. Por quê? Porque ele chegou
à Identidade Suprema. Moisés, Jesus Cristo, Virgem Maria. Daí chegam e falam: ‘o
justo é fazer isto e não fazer aquilo’. Os outros não têm acesso direto à evidência
imediata dessas normas e é impossível que eles, por um esforço, produzam estas normas
fundamentais. Embora a justiça humana seja propriamente uma obra humana, o seu
princípio é necessariamente supra-humano; para que a justiça comece, é preciso que
algum sujeito tenha transcendido a diferença entre o seu estado de consciência
individual e o panorama que está por trás de si. Algum sujeito tem que ter alcançado um
modo de consciência no qual ele é consciente do princípio da consciência humana e
desse panorama ao mesmo tempo.
Estes princípios constituem a retidão; isto é retidão. Tem aqui uma linha
longitudinal que cruza esses dois domínios: o horizonte de minha consciência que está a
minha frente e o horizonte do real que está por trás. É por isso que os princípios
fundamentais da justiça são sempre uma questão de revelação divina, sempre,
necessariamente. Uma vez que haja revelação divina, um outro sujeito fora desse estado
pode conceber e compreender racionalmente a retidão daquilo que já foi apresentado. O
sujeito fora do estado supremo pode entender do que o outro esteja falando, mas para
perceber aquilo sem ninguém falar, só ele. Embora a justiça seja uma obra humana, o
resultado de um esforço humano, o princípio da justiça necessariamente transcende o
horizonte de consciência humana comum. Isso quer dizer que a minha noção de justiça
sempre será um pouco injusta enquanto eu for um ser humano, enquanto eu for
simplesmente um ser humano. Como falamos, se existisse uma sociedade ideal
composta de Ramana Maharshi, Buda, Jesus Cristo, Muhammad, Moisés, esta seria a
sociedade que teria a plena paz. Veja bem, para que existisse um acordo entre as
principais religiões, teria que existir só os fundadores das religiões e não as pessoas para
quem eles fundaram as religiões, porque cada um deles examinaria o que o outro diz e
faz de acordo com a sua retidão interna. Então, segundo a tradição católica, que a
Virgem Maria no templo – Virgem Maria era uma das [?] consagradas no templo – lia
as Escrituras e conferia as Escrituras com a retidão espiritual que estava dentro de si. O
que essas pessoas fazem é isso. Então a Virgem Maria entraria em pleno acordo com
Moisés e com Buda. Mas a Virgem Maria tinha a função de ajudar algumas pessoas a se
aproximarem dessa retidão. Por que ela tinha essa função? Ela não tinha só essa retidão,
Deus veio e falou: ‘você tem a retidão. Agora eu vou te dar aqui um meio para que os
outros se aproximem dessa retidão’. E Ele deu na forma de seu filho. A mesma coisa
com Buda, com Moisés, com Muhammad etc. É isso que o Cristo quis dizer quando Ele
fala: ‘não vim para os sãos, vim para os doentes’. A maior parte das pessoas estão fora
dessa retidão puramente espiritual, a imensa maior parte. E isso é o maior dos males
para todas elas. No cristianismo, o detentor supremo desse estado, o representante
supremo desse estado – que é a máxima espiritualidade – não é o Cristo; o representante
supremo é a Virgem Maria, porque a Virgem Maria é um ser humano, que nem nós. O
Cristo não desenvolve a sua consciência no decorrer de sua história; ele não alcança um
estado que não possuía. Do mesmo jeito que o Pentateuco não alcança um estado que
ele não tinha; não, ele é uma revelação divina que já está pronto, vem pronto. Mas
Moisés alcança, a Virgem Maria alcança. E aí, de fato, nestes aí e desses aí é que nasce
a norma suprema de discernimento. Aí a dimensão puramente vertical toca a esfera
humana e então o ser humano pode se desenvolver a partir desse ponto. Veja bem, a
história das grandes revelações é a história de indivíduos mais-do-que-humanos que
recebem de Deus uma coisa para ensinar aos indivíduos que são menos-do-que-
humanos. Como este indivíduo tem que falar com indivíduos que são menos-do-que-
humanos, evidentemente ele tem que formular esta realidade por meio de uma série de
imagens que os doentes vão entender. Ora as imagens que ele usa são necessariamente
distintas das imagens que um outro usa num outro panorama humano. Mas essa imagem
é meio para que o indivíduo transcenda o seu estado de sub-humano para, pelo menos,
humano; e aí, talvez, para um estado supra-humano. Dá para perceber que não existe
justiça sem isso? Alguém tem que dar a norma inicial e este alguém que dê a norma
inicial tem que ter transcendido a situação em que a norma inicial apareça para aquelas
pessoas. Se ele não tiver transcendido a situação, ele não pode dar a norma inicial; ele
só pode receber alguma norma também. É por isso também que em qualquer sistema o
juiz tem que estar fora da situação, não pode ter nenhuma ligação entre o juiz e uma das
partes. Isso aí é simplesmente uma prolongação ritual do primeiro revelador, que legisla
pelo Verbo divino.
Então agora só na próxima aula. Se não ficou claro, só vai poder ficar claro na
próxima aula.