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A Bíblia geralme
geralmente
nte é definid
definidaa como “ Palavra de Deus” . As lei-
lei-
turas bíblicas nas celebrações litúrgicas são aclamadas como “Palavra
de Deus”. É comum entre crentes sustentar que os textos bíblicos, de
uma ou de outra maneira, apresentam as mesmíssimas palavras de
Deus. É um dogma fundamental do fundamentalismo. A falta de re-
flexão e, não poucas vezes, os preconceitos ou idéias ingênuas ique se
assumiram costumam conduzir a idéias errôneas ou míopes a respeito
da Bíblia enquanto Palavra de Deus (e sobre a inspiração). Por isso,
devemos deternos neste aspecto.
Esclarecimento conceituai
Literal ou metafórico?
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A Bíblia sem mitos
Os destinatários da Palavra
Mensagens em palavras
Bíblia com Revelação como tal, pensando que as palavras são a Re-
velação mesma. Vimos anteriormente que a Bíblia atesta a Revelação
acontecida , remete a ela. Por isso, podemos dizer que é Revelação
testemunhada, mas não a Revelação mesma. Portanto, não é correto
dizer que a Bíblia é a Revelação. Mas é reveladora: aponta para Deus.
É um meio de encontro com Deus, com o Deus da história. Daqui se
pode dizer que tem caráter sacramental. A Dei Verbum afirma que “a
Igreja sempre venerou a sagrada Escritura como ao corpo do Senhor...,
sobretudo na liturgia” {n. 21). O ponto de encontro é a interpreta-
ção. Sua capacidade reveladora significativa se atualiza, quando é en-
tendida e apropriada como manifestação de Deus, como Revelação.
O fato de que solenemente proclamamos como “Palavra de
Deus” os textos que lemos na liturgia em tradução, consciente ou in-
conscientemente é adjudicarlhes uma qualidade especial, quer dizer,
é atribuir a qualidade de Palavra de Deus à tradução, como a atribu-
ímos sem problemas ao texto em sua língua original. Significa isso
que a tradução goza da qualidade de Palavra de Deus? Ou o é pela
mensagem, confiados no fato de que a tradução preserva a mesma
mensagem que o texto original?
Não somente a linguagem é um meio. Também os autores dos
escritos da Bíblia foram mediadores, e antes deles todos os que inter-
vieram no processo de transmissão oral. Quando lemos ou escutamos
um texto bíblico, lemos ou escutamos aquilo que seus autores escreve-
ram para seus destinatários: o povo de Israel neste ou naquele momen-
to histórico, os coríntios, Filemon etc. Então, os escritos da Bíblia não
são Palavra imediata (não mediada) para nós. Aliás, como Palavra de
Deus, o era para seus destinatários mediante as palavras dos profetas
ou de Paulo. Encontramonos, pois, diante de uma série de mediações.
Quantas vezes não tivemos de admitir que esta ou aquela pas-
sagem da Bíblia não nos diz nada? E, no entanto, quando foi escrita,
dizia algo a seus destinatários. Como pode, então, ser Palavra de Deus
para nós? Qualificar a Bíblia como Palavra de Deus implica afirmar
que esta fala. A seus destinatários originais falava, dizialhes algo. A
pergunta que espontaneamente surge é se fala a pessoas de hoje. Na
própria Bíblia se observa esta preocupação pela relevância do que se
transmitia: de diversos modos se realizou a atualização de tradições
orais, adaptandoas a novas circunstâncias e destinatários, como fize-
ram, por exemplo, cada um dos evangelistas com relação às tradições
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A Bíblia, Palavra de Deus
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TERCEIRA PARTE
HERMENÊUTICA
20 .
HISTÓRIA E FÉ
Conceito de história
vino, quer dizer, era recordada como história, não pelo fató mesmo da
estiagem, mas por sua significação para as pessoas (veja, por exemplo,
lR s 1718). Elesestavam mais interessados na explicação dos fatos do
que nos fatos mesmos. A interpretação de um acontecimento era mais
importante do que uma descrição detalhada ou uma “reportagem”
precisa do acontecido. O relato do encontro entre Davi e Golias (ISm
17), por exemplo, exagera os traços das duas figuras e dálhe um ar de
epopéia, porque o que se queria compartilhar era a mensazem de oue
Deus tinha estado com seu povo, apesar do "gigante” da adversidade.
Apresentamno como se fosse um fato estritamente histórico, porque,
para eles, era estritamente verídica a proteção divina, e uma prova
disso a oferece precisamente o duelo “histórico” entre o pequeno e
indefeso Davi (= Israel) e o “tanque de guerra” Golias (= filisteus).
Somos nós, os ocidentais, que colocamos todo o peso onde eles não o
colocaram: na pergunta pela veracidade histórica (em nosso sentido
do termo). Para eles, em contrapartida, o real e o histórico era a assis-
tência divina, e para tornála “visível” exageram. Igualmente fizeram
com os relatos do êxodo e da tomada de Jericó. Igualmente se fez em
uma série de cenas relatadas no Novo Testamento.
A tradição bíblica, de mentalidade semita, não fazia a diferença
que nós fazemos entre história, lenda, epopéia, mito e outros gêneros
literários afins, pois para eles todos falam de uma realidade de alguma
maneira acontecida. Falam de seu passado com a convicção de que
todo o narrado sobre ele havia realmente acontecido e da maneira
como se relata. Toda mudança que fizeram no relato não tinha outra
razão que a de fazer ressaltar a significação do que está relatado.
Os livros qualificados como “históricos” (Reis, Crônicas, Es
drasNeemias) não apresentam uma história como tal. Por definição,
história denota uma continuidade de acontecimentos entrelaçados,
em contraste com um acontecimento isolado, que é um acontecimen-
to histórico, mas não constitui história. O que encontramos nesses
livros bíblicos é uma justaposição de cenas ou episódios “históricos”.
São mais os vazios “históricos” que os espaços cheios. Por isso mes-
mo, não é correto falar de uma história da salvação. De fato, parti-
cularmente no Antigo TesmrnentOj O que encontra_mos_é um vaivém
entre êxitos e fracassos, prêmios e castigos, salvação e condenacão. O
que temos é uma história salvífica. uma história aberta ao futuro com
suas proposições e promessas.
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A Bíblia sem mitos
A verdade histórica
para essas pessoas a afirmar que “a Bíblia nem sempre diz a verda-
de”, ou que o relato em questão não tem nenhum valor, como se a
única verdade possível em forma narrada fosse a da história. Quem
dirá que um mito, apesar de não ser história, não tem nenhum valor
e não tem nada que dizer? Quando lemos a Mhistória” da fundação
do Império Inca, e depois nos inteiramos de que, estritamente falan-
do, não é história, mas um conjunto de mitos e lendas, talvez nos
sintamos um tanto desiludidos, até tentados a dizer: “mentiram para
nós” . No entanto, nunca foi história em sentido estrito, de modo que
não é mentira. O erro foi nosso, ao tomálo como história. E apesar
de tudo, essa “história” transmite uma verdade e uma identidade, e é
isso o que se pretendia. Quando éramos crianças, acaso não tomáva-
mos os contos como se fossem histórias reais? Em quantos deles não
se encontra uma verdade! Igualmente, os mitos, as lendas, as epopéias
e as sagas têm, cada um, seu tipo de verdade (veja o que foi dito sobre
gêneros literários, cap. 9).
Um exemplo concreto, tirado da Bíblia, é a convicção de que o
dilúvio “universal”, relatado em Gn 68, realmente aconteceu. Prova
disso é que se empreenderam expedições ao Monte Ararat (Turquia)
em busca da arca de Noé com o conseqüente desembolso de alguns
milhões de dólares. E não se encontrou nada até hoje, exceto supostos
“vestígios”. Se se encontrasse algum pedaço de madeira, até datável
por carbono 14 a uns seis milênios (como afirmam as Testemunhas de
Jeová), ainda não se teria demonstrado que esse pedaço de madeira
pertencia à arca de Noé e não a qualquer outra coisa, nem se teria
demonstrado que o relato bíblico é história. De modo imediato, o
texto em Gn 8,4 diz que “a arca pousou nos montes de (a região de)
Ararat”, no plural e sem maior especificação. Por outro lado, a lite-
ratura universal conhece outros relatos parecidos. O melhor paralelo
é a epopéia mesopotâmica de Gilgamesh, que remonta ao terceiro
milênio a.C., encontrada em vários lugares. São estas as semelhanças
que cabe perguntarse se essa peça clássica influiu no relato de Gêne-
sis. Recordemos que os israelitas estiveram exilados na Mesopotâmia
no séc. VI, época da composição do Gênesis! Além disso, assumir um
dilúvio de tal magnitude, que ultrapassa os 5.200 metros do monte
mais alto da região de Ararat, suscita um sério problema, para se re-
solver inteligentemente: imaginese o volume de água que isso supõe!
De onde veio e onde foi ao “secaremse as águas” ?
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História e fé
Bíblia ou que esses dados não interessavam aos escritores, mas sim
significa que nem tudo o que parece ser história o seja.
Certamente, é legítimo perguntar pela veracidade histórica de
um relato, mas devese ter presente o que foi dito antes: (1) o gênero
literário empregado pelo autor, (2) o fato de que perguntas sobre his
tória se respondem somente com dados de demonstrada índole histó
rica, e (3) que o propósito primordial dos escritores não se situa tanto
no nível de história, mas no campo teológico.
Tomemos outro exemplo. O relato do pecado de Acan, em Jo-
sué 7, que consistiu em ter guardado para si parte do saque tomado
na conquista de Jericó (que já vimos que não aconteceu nos tempos
de Josué!), foi destacado na tradição como causa da derrota que os
hebreus sofreram nas mãos dos habitantes de Hai. O episódio, in-
significante em si mesmo, foi narrado pela mensagem que permitia
transmitir: a falta cometida (desobediência a Deus) por um só mem-
bro do povo escolhido (Acan) refletese em todos os membros (soli-
dariedade). Originalmente, o relato do pecado de Acan não estava
unido ao da derrota de Hai. Apesar de que o vale de Açor, onde se
situa o episódio de Acan, se encontra distante de Hai, no relato ambos
os lugares são apresentados como muito próximos (v. 26). Este é um
indício de uma transformação intencional, com a finalidade de unir
o relato do pecado de Acan com o da derrota de Hai. Na realidade,
como se lê nos v. 34, a derrota se deveu ao simples fato de que os
hebreus desprezaram os habitantes de Hai. Mas, segundo o livro de
Josué, a causa da derrota teria sido outra: o pecado de Acan. Isto é
uma interpretação nitidamente teológica, não histórica, que não se
pode demonstrar por critérios históricos. Por que se deu esta inter-
pretação? Para ressaltar que a solidariedade na obediência a Deus é
indispensável para a prosperidade. O passado histórico passou a ser
passado significativo para o presente e para o futuro.
Em síntese, devese distinguir entre a verdade histórica e a ver
dade teológica, entre o acontecido e sua significação. Visto que os
relatos da Bíblia estão narrados a partir da perspectiva da fé do nar-
rador, e o propósito está em função da fé da obediência a Deus, é
recomendável começar por descobrir a mensagem teológica do relato
e somente no final colocar a pergunta pela historicidade do relato, e
não ao inverso. Em muitos grupos de estudo bíblico, lamentavelmen-
te, se concentra toda a atenção na verdade histórica, até chegase a
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