artigo de revisão
CONHECIMENTO NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO
E
m seu famoso conto “Funes, o memorioso”, Para enfocar parte dessas questões,
Jorge Luis Borges narra a história de proporemos o seguinte percurso: a-) uma visão do
Tadeu Isidoro Funes, homem dotado de processo de conhecimento a partir da perspectiva
uma capacidade de memorização praticamente de Bruno Latour; b-) uma breve discussão do
absoluta: nada escapa ao seu poder de observação, conceito de informação e sociedade da informação
e nada por ele é esquecido. O narrador da a ele associado, e alguns desdobramentos dessas
estória pondera, entretanto, que Funes não era concepções na análise da estrutura capitalista
propriamente um pensador brilhante __ porque contemporânea; c-) a reflexão acerca de alguns
pensar envolve esquecer, abstrair diferenças, problemas e desafios contemporâneos para a
generalizar, especular sobre o que ainda não construção social do conhecimento a partir de
possui existência. alguns paradoxos decorrentes da discussão
Este conto parece-nos exemplar para anterior; d-) uma breve digressão sobre o papel da
refletir acerca de alguns dos dilemas postos à atividade de mediação cultural e da informação
construção do conhecimento diante de uma nesse processo.
“sociedade da informação”. As novas tecnologias
de informação e comunicação __ TICs, colocam
ao nosso alcance uma infinidade de informações 1. BRUNO LATOUR E A CIRCULAÇÃO DO
e dados, algo jamais sonhado, e que excede, em CONHECIMENTO
muito, as capacidades cognitivas individuais.
Porém, essa gigantesca memória eletrônica a Bruno Latour (2001) filia-se a uma corrente
nossa disposição, especialmente na World Wide de sociólogos, filósofos e historiadores da Ciência
Web, a rede mundial de computadores, não é, que contestam a separação radical entre sujeito-
por si só, garantia de construção ou aceso ao objeto característica do pensamento ocidental.
“conhecimento”. A “rede” oculta, também, Esses diversos autores são críticos em relação
diferenciações sociais, hierarquias, relações e ao “acordo modernista” da Ciência, o pacto que
seleções arbitrárias, processos de ocultamento __ instituiu o primado da Razão, da objetividade
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estão diante da tela do mesmo monitor está correto quando afirma que a economia e a
e batem nas mesmas teclas, mas um não competição econômica são os meios pelos quais
poderia nunca assumir o posto do outro, a civilização e a cultura se desenvolvem hoje;
porque o conteúdo de sua atividade de
elaboração é irredutivelmente diverso e por outro lado, essa apologia da economia é
intransferível (BERARDI, 2005, p. 39). falsa, já que não registra a violência embutida
no processo, a marginalização e a desigualdade
produzidas inevitavelmente e a destruição social
conseqüentemente implicada.
O processo de digitalização apresenta
O foco de Lévy na convergência entre a
dois aspectos diferentes, embora integrados. De
virtualização da economia e a constituição de
um lado, a infra-estrutura da rede telemática
uma inteligência coletiva descarta a corporeidade
possibilita a coordenação dos diversos fragmentos
física dos indivíduos e seus impulsos
do trabalho; de outro lado, dissemina-se o processo
inconscientes, o que o situa numa corrente
de trabalho em infinitas unidades produtivas
denominada por Berardi de “pensamento frio”,
autônomas, mas coordenadas e dependentes
relacionada à intangibilidade. É nesse sentido que
entre si. O trabalhador passa a se considerar o
Berardi vai opor à noção de infotrabalhador, a
“empresário de si mesmo”, provocando, entre
noção de cognitariado: “O que significa a palavra
outras coisas, uma desestruturação do salário
‘cognitariado’? É evidente que essa palavra-valise
global e a identificar seu trabalho, do ponto de
traz em si dois conceitos: o de trabalho cognitivo e
vista existencial, como uma missão.
o de proletariado. Cognitariado é a corporeidade
Berardi nota que há uma diferença entre
social do trabalho cognitivo” (BERARDI, 2005, p.
trabalho autônomo e trabalho criativo. O primeiro
73). Desse modo, ele dirige uma última crítica a
guarda uma relação direta com o mercado;
Pierre Lévy: embora o conceito de inteligência
na maior parte das vezes, o infotrabalhador
coletiva seja útil para pensar as tendências
ainda está a serviço de um patrão (como nas
contemporâneas, ele não reduz ou resolve
modalidades clássicas de trabalho assalariado),
a existência concreta do cognitariado, assim
embora este se torne anônimo na medida em
como não reduz ou resolve a complexidade e os
que suas decisões aparecem como produtos
sofrimentos do corpo planetário.
do “sistema”, resultante de automatismos
tecnológicos e/ou financeiros. O caráter não-
hierárquico da comunicação em rede contribui 3. INFORMAÇÃO E MOVIMENTOS SOCIAIS
para uma representação ilusória do infotrabalho
como independente. Desse modo, a idéia de A esta altura da reflexão poderíamos nos
trabalho autônomo, independente, é uma ficção perguntar novamente: qual a relação que se
ideológica. O controle do trabalho assume uma estabelece entre os movimentos sociais (pensados
forma diferente do modelo taylorista: é reticulado da maneira mais abrangente possível) e as
e incorporado ao fluxo. TICs? Castells aponta alguns elementos para se
Difunde-se, assim, uma ideologia pensar essa relação. Em primeiro lugar, a crise
“felicista” (termo empregado por Berardi) que se das organizações políticas tradicionais, como os
apóia nas possibilidades abertas pelas inovações partidos, possibilitou o salto dos movimentos
tecnológicas, especialmente as TICs – vide a sociais organizados para movimentos sociais
revista californiana Wired como referência dessa em rede, articulados em coalizões constituídas
tendência. Berardi reconhece a contribuição a partir de valores e objetivos comuns. Desse
original de um dos arautos dessa tendência, modo, “a Internet é a estrutura organizativa e
Pierre Lévy, especialmente em seus primeiros o instrumento de comunicação que permite a
livros. Ressalta a importância de se abordar flexibilidade e a temporalidade da mobilização,
as tecnologias informáticas no interior de um mantendo porém, ao mesmo tempo, um caráter
quadro filosófico, assim como a construção de coordenação e um capacidade de enfoque
de conceitos estimulantes para se explorar a dessa mobilização” (CASTELLS, 2003, p. 277).
nova realidade, como o de inteligência coletiva. Em segundo lugar, os movimentos sociais
Entretanto, é bastante crítico em relação às tendem, na perspectiva de Castells, a se estruturar
suas últimas produções. Para Berardi, Lévy cada vez mais em torno de valores e de códigos
culturais, e a internet permite a disseminação
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A produção social do conhecimento na sociedade da informação
das idéias e manifestos num amplo âmbito com definindo o sentido e as orientações da
extrema velocidade. Na medida em que o poder ação individual por meio dos processos
se estrutura cada vez mais globalmente e as ações capilares, diferenciados, pontuais de
difusão de modelos simbólicos. Importa
e vivências das pessoas tendem a ser locais, a obter identificação, modelar identidades
internet fornece essa conexão local-global para a funcionais, adaptáveis, substituíveis.
interação dessas duas ordens (novas formas de (MELUCCI, 2001, p. 80).
controle e mobilização social). Por outro lado,
do ponto de vista da utilização da internet pelos Desse modo, Melucci considera o
partidos políticos, ela tende muito mais a ser conhecimento como um recurso fundamental
utilizada como via de comunicação de mão única para os “atores conflituais”: permite revelar a
do que propriamente como uma ágora eletrônica natureza real das relações sociais por trás das
que permitisse a interatividade e a participação aparências que os aparatos dominantes tendem
dos cidadãos. a impor à vida coletiva. Nas sociedades cada
Para Alberto Melucci, “nos sistemas vez mais complexas, a cultura torna-se, por
complexos, a capacidade de intervenção sobre a excelência, o terreno estratégico dos conflitos.
ordem simbólica não só se generaliza em toda a Nesse sentido, Castells alerta que o
sociedade, mas se move também em direção ao elemento de divisão social mais importante não
indivíduo” (MELUCCI, 2001, p.39). No passado, é a conectividade técnica, e sim a capacidade
o pertencimento era pensado em termos de um educativa e cultural de utilizar a informação.
grupo; agora o indivíduo é o ponto terminal dos Trata-se, portanto, de saber onde está a
processos de regulação. O mundo contemporâneo informação, como buscá-la, como transformá-la
coloca à disposição dos indivíduos uma gama em conhecimento específico para aquilo que se
inédita de recursos simbólicos que estendem quer fazer.
seu potencial de individuação (autonomia/auto- Parcela considerável das Organizações
realização). Dessa forma, para garantir a própria Não-Governamentais (ONGs) e Organizações
integração, a sociedade não pode ficar restrita Sociais de Interesse Público (OSIPs) reflete sobre
à regulação da apropriação e distribuição de a importância da informação e da comunicação
recursos, devendo estender seu controle sobre para a efetivação de ações coletivas. Reflexão
os níveis simbólicos das ações __ as esferas que complementar àquela acerca do processo
constituem o sentido e a motivação do agir. paralelo, mas muito mais difícil, de valorização
Os movimentos sociais emergentes são do “conhecimento local”, o espaço de produção
sintomas de movimentos antagonistas. Nas do conhecimento por parte das comunidades,
sociedades contemporâneas, a produção não se um conjunto de saberes e tradições (culturais
reduz exclusivamente aos recursos econômicos, e “técnicas”), muitas vezes contraposto ao
mas, em função de sua alta densidade de conhecimento oficial, “científico”. Esse tipo
informação, investe crescentemente também de reflexão vai ao encontro da proposta de
sobre processos relacionais e sistemas simbólicos. Boaventura de Souza Santos: uma ruptura
Produzir significa cada vez mais não apenas epistemológica que atenue o desnivelamento entre
transformar recursos naturais e humanos em os discursos, que crie ao mesmo tempo um senso
mercadorias, mas também controlar sistemas comum esclarecido e uma ciência socialmente
complexos de informações, de símbolos e de responsável, gerando assim uma configuração de
relações sociais. O mercado deixa de ser espaço conhecimentos democraticamente distribuídos
exclusivo de circulação de mercadorias, tornando- (SANTOS, 1989).
se também campo de intercâmbio de símbolos: Como é claro de se perceber, a tarefa está
longe de ser fácil.
Para poder produzir e consumir, os Um fator a ser considerado aqui é o caráter
atores sociais devem “reconhecer- polissêmico da internet. Dominique Wolton (2003)
se”: na identidade que estão em aponta a diversidade de aplicações presentes na
condições de construir ou naquela que internet: a-) aplicações do tipo serviço (vendas,
lhes é imposta pela multiplicidade de
pertencimentos sociais e pelos sistemas pagamentos de impostos e taxas, cadastramento
de regras que os governam. Uma de dados pessoais, etc.); b-) aplicações do tipo
sociedade de aparatos impõe identidade, lazer; c-) aplicações relacionadas à informação-
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notícia; d-) aplicações ligadas à informação- simples relação entre dois termos de mesmo
conhecimento. As desigualdades socioculturais se nível, mas que em si ela é produtora de um
reencontram na utilização das quatro aplicações, “algo a mais”, de um estado mais satisfatório
mas é em relação ao conhecimento que as (DAVALLON, 2003). Parece ser essa a perspectiva
diferenças são maiores. que se generalizou, no interior da Ciência da
A informação-conhecimento já é seletiva Informação, acerca do papel de “mediador”.
pelo seu próprio conteúdo, e também pelos Por outro lado, a idéia de mediação acaba
procedimentos de pesquisa dos usuários. A forma por cobrir coisas tão diferentes entre si, que
de construir e apresentar a informação, prevendo vão das velhas concepções de “atendimento
os meios para acessá-la, não é universal, está ao usuário” à atividade de um agente cultural
relacionada muito mais aos esquemas culturais em uma dada instituição – museu, biblioteca,
de quem a disponibiliza do que aos esquemas arquivo, centro cultural –, à construção de
de quem as busca. Essa constatação demarca a produtos destinados a introduzir o público
ingenuidade __ ou o oportunismo __ do postulado num determinado universo de informações e
de uma “neutralidade técnica” da organização da vivências (arte, educação, ecologia, por exemplo),
informação. Nesse sentido, torna-se evidente a à elaboração de políticas de capacitação ou
importância dos processos de mediação cultural de acesso às tecnologias de informação e
e da informação. comunicação, etc. Desse modo, uma definição
consensual de mediação parece impraticável:
sempre contextualizada, torna-se um conceito
4. INFORMAÇÃO E MEDIAÇÃO plástico que estende suas fronteiras para dar
O conceito de mediação cultural e da conta de realidades muito diferentes entre si
informação mereceria por si só uma discussão à (DAVALLON, 2003).
parte; pontuaremos apenas um dos aspectos do Wolton reforça a importância das funções
tema, desenvolvido com maior detalhamento em do mediador, ao posicionar-se contra a ideologia
outra ocasião (ALMEIDA, 2008). do “faça você mesmo” (do it yourself), a idéia de
Para as Ciências Sociais, a noção de que a rede proporciona a liberdade por permitir o
mediação está intrinsecamente ligada as livre acesso individual ao mundo de informações
chamadas “teorias da ação”. A ação social é disponíveis ao usuário. Em primeiro lugar, ele
sempre situada e analisada na esfera da vida recorda que nem todas as informações encontram-
pública (mesmo quando, aparentemente, se se disponíveis de fato: muitas envolvem
trata de uma ação individual). Desse modo, a diferentes formas de acesso, econômicas, sociais,
comunicação é um fenômeno que fundamentaria culturais. Em segundo lugar, ele chama a
a ação, e aqui vale recordar as implicações que atenção para o papel estratégico, e, na sua visão,
Jürgen Habermas retira desse fato em sua teoria libertador dos intermediários culturais e da
da ação comunicativa. As mediações são, nessa informação. Nesse sentido, relembra o processo
perspectiva, as conexões que se estabelecem entre de “vulgarização” do século XVIII: aqueles que
as ações sociais e as motivações (individuais/ sabiam mais transmitiam seus conhecimentos,
coletivas). Podem ser vistas como sinônimo de direta ou indiretamente, aos que sabiam menos,
processos de interlocução e/ou interação entre possibilitando a esses o ingresso no mundo do
os membros de uma comunidade, por meio dos conhecimento, pressuposto do exercício efetivo
quais os laços de sociabilidade são estabelecidos da capacidade de julgamento esclarecido __ um
e alimentados, constituindo dessa maneira o dos pilares da noção de cidadania.
“mundo da vida”. Assim, a linguagem e a ação Nos breves pontos elencados acima,
comum são os fatores privilegiados de mediação. vislumbram-se consideráveis desafios dos pontos
Essa concepção sociológica do conceito de de vista intelectual e político compreendidos no
mediação sintoniza-se com o que Jean Davallon conceito de “mediação”. Em que medida a Ciência
considera como um dos sentidos de senso da Informação está – ou pretenderia estar – a altura
comum atribuído à idéia de mediação: a ação de desses desafios? Setores da Ciência da Informação
servir de intermediário ou de ser o que serve de têm se mostrado mais sensíveis a esta perspectiva,
intermediário. Cristaliza-se aqui a concepção de buscando incorporar o “conhecimento local” dos
que essa ação não é o estabelecimento de uma usuários a partir de metodologias como os estudos
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A produção social do conhecimento na sociedade da informação
ABSTRACT This work is an approach to some problems and challenges to a contemporary social construction
of knowledge from some paradoxes generated around the concepts of knowledge, information,
culture and information society. The article proposes to think over problems about a common
sense concept which is that the technologies would automatically release the man from repetitive
work and would allow the access to information and knowledge. In this sense, it points out to the
importance of cultural mediation and information activities in the field of Information Science.
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