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Antologia poética do período colonial

Pedro Pereira Lima Neto


Terceiro período
Literatura Brasileira I

Apresentação

A presente antologia, reúne um apanhado de textos literários do período colonial –


Quinhentista, barroco e árcade – focando-se na produção poética dos mesmos períodos,
todos agrupados dentro da mesma temática, a religiosidade, não se limitando apenas na
exaltação do religioso, mas, em alguns textos, perpassando pela crítica a religião vigente ,
à igreja católica, em si.
Os textos vão seguindo uma ordem cronológica de apresentação, do quinhentismo
ao arcadismo, partindo das belas palavras do padre Anchieta em seus poemas de exaltação
das figuras sacras, passando pelos sonetos barrocos, lamuriosos e que exprimiam um certo
“arrependimento”, de Gregório de Matos (por certas atitudes e palavras suas), até as
referências com tons de criticismo de Glauceste Satúrnio, pseudônimo de Cláudio Manuel
da Costa.

Período Quinhentista

PRIMEIRO ATO (completo) do Auto Representado na Festa de São Lourenço

Pe. José de Anchieta

(Cena do martírio de São Lourenço)


Cantam:

Por Jesus, meu salvador,


Que morre por meus pecados,
Nestas brasas morro assado
Com fogo do meu amor

Bom Jesus, quando te vejo


Na cruz, por mim flagelado,
Eu por ti vivo e queimado
Mil vezes morrer desejo

Pois teu sangue redentor


Lavou minha culpa humana,
Arda eu pois nesta chama
Com fogo do teu amor.

O fogo do forte amor,


Ah, meu Deus!, com que me amas
Mais me consome que as chamas
E brasas, com seu calor.

Pois teu amor, pelo meu


Tais prodígios consumou,
Que eu, nas brasas onde estou,
Morro de amor pelo teu.

A SANTA INÊS
Pe. José de Anchieta

Na vinda de sua Imagem


Cordeirinha linda,
Como folga o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.

Cordeirinha santa,
De Jesus querida,
Vossa santa vida
O Diabo espanta.
Por isso vos canta
Com prazer o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.

Nossa culpa escura


Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo.

Virginal cabeça,
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça;
Vinde mui depressa
Ajudar o povo,
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo.

Vós sois cordeirinha


De Jesus Fermoso;
Mas o vosso Esposo
já vos fez Rainha.
Também padeirinha
Sois do vosso Povo,
pois com vossa vinda,
Lhe dais trigo novo.

Não é de Alentejo
Este vosso trigo,
Mas Jesus amigo
É vosso desejo.
Morro, porque vejo
Que este nosso povo
Não anda faminto
Deste trigo novo.

Santa Padeirinha,
Morta com cutelo,
Sem nenhum farejo
É vossa farinha
Ela é mezinha
Com que sara o povo
Que com vossa vinda
Terá trigo novo.

O pão, que amassasses


Destro em vosso peito,
É o amor perfeito
Com que Deus amastes.
Deste vos fartasses,
Deste dais ao povo,
Por que deixe o velho
Pelo trigo novo.

Não se vende em praça,


Este pão da vida,
Porque é comida
Que se dá de graça.
Oh preciosa massa!
Oh que pão tão novo
Que com vossa vinda
Quer Deus dar ao povo!

Oh que doce bolo


Que se chama graça!
Quem sem ela passa
É mui grande tolo,
Homem sem miolo
Qualquer deste povo
Que não é faminto
Deste pão tão novo.

COMPAIXÃO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO

Pe. José de Anchieta

Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,


e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c'o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d'água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.

Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?


que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p'ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.

Ele tomou p'ra si todo o cravo e madeiro


e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!

AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO
Pe. José de Anchieta

Oh que pão, oh que comida,


Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.

Filho da Virgem Maria


Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.

E para que nos conforte


Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.

Esta divina fogaça


É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.
Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.

Quem quiser haver vitória


Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.

Ele dá vida imortal,


Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
Se contêm.

É fonte de todo bem


Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.

Oh! que divino bocado


Oue tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
A comer.

Não tendes de que temer


Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.

Que este manjar tudo gasta,


Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.

É pão dos filhos de casa


Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contino.

Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.

Este manjar aproveita


Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.

Suas graças são tamanhas,


Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.

Sua graça se derrama


Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.

Oh que entranhas piedosas


De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!

Quem vos fez tão namorado


De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!

Por caber dentro de nós


Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.

Para vosso amor plantar


Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,

Em o qual nosso padar


Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.

Uns são todos incendidos


Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,

Outros com o celestial


Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,

Outros sentem compaixão


De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.

E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.

Quem viu nunca tal comida


Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!

Como não nos enfrascamos


Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.

Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.

Aqui se refina a fé,


Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.

Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.

A claridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.

Dele nasce a fortaleza,


Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.

Deixado para memória


Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.

Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.

Meu Esposo, meu Senhor,


Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.
Pois com entranhas de Mai
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós

Com o sangue que derramasses,


Com a vida que perdesses,
Com a morte que quisesses
Padecer.

Morra eu, por que viver


Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.

Pois que para incorporar-me


E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.

Quando na minha alma entrais


É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Enquanto a presença tarda


De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão

Seja minha refeição


E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.

Ar fresco de minha calma,


Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.

Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.

Pois não vivo sem comer,


Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.

Comendo de tal penhor,


Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.

Amém.

Jesus na manjedoura
Pe. José de Anchieta

- Que fazeis, menino Deus,


Nestas palhas encostado?
- Jazo aqui por teu pecado.

- Ó menino mui formoso,


Pois que sois suma riqueza,
Como estais em tal pobreza?

- Por fazer-te glorioso


E de graça mui colmado,
Jazo aqui por teu pecado.

- Pois que não cabeis no céu,


Dizei-me, santo Menino,
Que vos fez tão pequenino?

- O amor me deu este véu,


Em que jazo embrulhado,
Por despir-te do pecado.

- Ó menino de Belém,
Pois sois Deus de eternidade,
Quem vos fez de tal idade?

- Por querer-te todo o bem


E te dar eterno estado,
Tal me fez o teu pecado.

Período Barroco

A Jesus Cristo Nosso Senhor


Gregório de Matos

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que voa há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,


Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória

Soneto religioso
Gregório de Matos

Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,


Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer
Animoso, constante, firme e inteiro.

Neste lance, por ser o derradeiro


pois vejo a minha vida anoitecer,
é, meu Jesus, a hora de se ver
a brandura de um Pai, manso Cordeiro
Mui grande é vosso amor, e meu delito,

Porém pode ter fim todo o pecar,


E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.

BUSCANDO A CRISTO
Gregório de Matos

A vós correndo vou, braços sagrados,


Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados


De tanto sangue e lagrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados,

A vós, pregados pés, por não deixar-me,


A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,


A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.

A Maria Santíssima
Gregório de Matos

Como na cova tenebrosa e escura,


A quem abriu o original pecado,
Se o próprio Deus a mão vos tinha dado,
Podíeis vós cair, ó Virgem pura?

Nem Deus, que o bem das almas só procura,


De todo vendo o mundo arruinado,
Permitira a desgraça haver entrado
Donde havia sair nossa ventura.

Nasce a rosa de espinhos coroada,


Mas se é pelos espinhos assistida,
Não é pelos espinhos magoada.

Bela Rosa, ó Virgem esclarecida!


Se entre a culpa, se vê, fostes criada,
Pela culpa não fostes ofendida.

Ao dia do Juízo
Gregório de Matos

O alegre do dia entristecido,


O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o uzente da lua desmentido!

Rompa todo o criado em um gemido,


Que é de ti mundo?
Onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.

Soa a trombeta da maior altura,


A que a vivos e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.

Acabe o mundo, porque é já preciso,


Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.

O poeta na última hora da sua vida


Gregório de Matos

Meu Deus, que estais pendente em um madeiro,


Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer

Animoso, constante, firme e inteiro.


Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É, meu Jesus, a hora de se ver
A brandura de um Pai manso Cordeiro.

Mui grande é vosso amor, e meu delito,


Porém, pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,


Que por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.

A Jesus Cristo nosso senhor

Gregório de Matos

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada,


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,


Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Atos de arrependimento e suspiros de amor

Gregório de Matos

Ofendi-vos, meu Deus, é bem verdade,


É verdade, Senhor, que hei delinquido,
Delinquido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.
Maldade, que encaminha a vaidade,

Vaidade, que todo me há vencido,


Vencido quero ver-me e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Luz, que claro me mostra a salvação,
A salvação pretendo em tais abraços,
Misericórdia, amor, Jesus, Jesus!

A Maria dos Povos, sua futura esposa

Gregório de Matos

Discreta e formosíssima Maria,


Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia


O ar, que fresco Adônis24 te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,


Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade


Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

Achando-se um braço perdido do Menino Deus de N.S. das Maravilhas, que


desacataram infiéis na Sé da Bahia
Gregório de Matos

O todo sem a parte não é todo;


A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo o todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,


E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica o todo.

O braço de Jesus não seja parte,


Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,


Um braço, que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

Moraliza o poeta nos Ocidentes do Sol a inconstância dos bens do mundo

Gregorio de Matos
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?


Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,


Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,


E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Soneto

Gregório de Matos

Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te


Te lembra hoje Deus por sua Igreja;
Do pó te faz espelho, em que se veja
A vil matéria, de que quis formar-te.

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,


E como o teu baixel sempre fraqueja
Nos mares da vaidade, onde peleja,
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.

Alerta, alerta, pois, que o vento berra.


Se assopra a vaidade e incha o pano,
Na proa a terra tens, amaina e ferra.

Todo o lenho mortal, baixel humano,


Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é porto soberano.

Período Árcade

Ao convento do Buçaco

Cláudio Manuel da Costa (Glauceste Satúrnio)

No misterioso horror desta clausura,?


Austera habitação da soledade,
Como em base de eterna santidade,
Permanente, a virtude se assegura.

Enriquece-se a cândida estrutura


Só dos pobres adornos da piedade;
E desmaiando pálida a vaidade
Se retira sem pompa e sem cultura.

Dos corações humanos à harmonia


Desta muda, suavíssima eloqüência,
Mal se opõem os impulsos da porfia.

Tão forte aqui se intima a penitência,


Que a sacrilégio passa a rebeldia,
E não chega a ser mérito a obediência

ROMANCE HENDECASSÍLABO

Cláudio Manuel da Costa (pseudônimo Glauceste Satúrnio)

Se alguma vez, Euterpe soberana,


De teu métrico influxo a fértil veia
A meu ardente rogo áureas enchentes
Do licor desatou, que o monte rega,

Generosa ambição hoje ocupando


O mais nobre desejo tanto empenha
A Deidade imortal, que em ti contemplo,
Que é meu o assunto, sendo tua a empresa.

Repara, advertes aquele excelso Trono,


Em cuja adoração parece ajoelha
Reverente o respeito em tantos Astros,
Que igualmente o iluminam, como o cercam.

Desafiando a esplêndida morada


Desse brilhante campo das Estrelas,
Imagino que intentam seus fulgores
Ser em quadros de luz do Sol esfera.

Essa pompa que vês, esse aparato


Enobrece a Deidade mais excelsa,
Heroína imortal, eterno lustre
Da sagrada seráfica obediência.

Aquela, em cujos dotes mais que em


todas Pródiga dispendeu a natureza
Privilégios, que mais se imortalizam
Na admiração do mundo, que os celebra.

Aonde a discrição tão igualmente


À formosura se une, que puderam
Equivocar-se da razão os triunfos
Com os troféus, que alcança a gentileza.
Por obsequiosas vítimas, atende,
Verás a seu império ardendo acesas
Vivas porções de agrado disfarçadas
Nas imagens de humilde reverência.

Vê como em uniforme laço atadas


Uma, e outra vontade as leis observam,
Que no escrutínio dos afetos votam
As persuasões do gosto mais discretas.

Não domina a paixão; porque o acerto


Nos méritos, que o sacro objeto ostenta,
Os créditos procura, e autorizada
Inda a mesma eleição a si se eleva.

Não entendas que a hipérboles, ó


Musa, Avulta mais o empenho; a glória imensa
De tão sublime assunto é bem que advirtas,
Quando, pelo impossível, não compreendas.

É esta aquela Heroína, que nas sombras


Do desprezo apagando a sacra teia
De Himeneu, com zelosa vigilância
O casto Lume conservou de Vesta.
Da vaidade nas lâminas, que pinta
Do engano a pluma, vendo como cega
Idolatra a vontade os precipícios,
Do mundo as loucas ambições despreza.

A Figueiró teatro fez, aonde


De seus acertos a espaçosa idéia
Em religioso culto se estendesse,
Se dilatasse em exemplar prudência.

Da idade os vôos quando mais ativos,


Medindo os passos de mais larga esfera,
Do desafogo a impulsos se desatam,
Rêmoras.ao desejo era a modéstia.

De uma e outra virtude foi lavrando


O pedestal, em que de tantas prendas
A imagem singular se colocasse
No altar da fama ídolo da Inveja.

Assim crescendo assombro, assim banhando


De resplendor benéfico inda as mesmas
Liberdades, agora vê rendidas
As que de Amor ao jugo viu já presas.

Com sujeição gostosa vão prostrando


Os alvedrios as porções secretas
Do mais livre exercício, porque nada
A tanto império recatado seja.

Ó raro assombro, ó ínclito transunto


Daquelas, de quem sendo cópia bela,
Para glória do emprego, que autorizas,
Herdas o nome, e as virtudes herdas!

Se a Teresa, se a Clara, em pio obséquio,


Um claustro e outro as direções confessam:
De Clara alentas o esplendor benigno,
Vivificas a imagem de Teresa.

Ó quanta glória, ó quanto bem, ó quanta


Ventura ao grato auspício de Abadessa
Tão preclara, tão justa, e tão prudente,
A Figueiró promete a eleição reta!

Vive; e o zelo ardentíssimo, em que abrasas


O coração, às portas de ouro abertas
Pela estrada do Olimpo te conduza
A cingir a Seráfica Diadema.

E tu, Musa, se a tanto assombro agora,


Muda, pasmas, por mais que a glória vejas,
Sabe que, quanto intento a decifrá-la
Tanto me dificulta o compreendê-la.

SONETO

Cláudio Manuel da Costa (pseudônimo Glauceste Satúrnio)

Régia ação, nobre acerto, eleição rara,


No ígneo Trono, áureo assento, culta esfera,
Vos teme, vos respeita, vos venera
Digno assunto, alta empresa, honra preclara.

Voto a fé, Templo o peito, o amor Ara,


Rende grato, ergue amante, atento espera;
Pois vos vê, vos adverte, vos pondera
Fiel Judith, Raquel bela, heróica Sara.

Viva pois, brilhe enfim, logre a vitória,


Que a voz cante, honre a Musa, aplauda o engenho
Nome eterno, igual fama, excelsa glória.

Sem sombra, sem eclipse, sem despenho,


Doure o Céu, volva o plaustro, orne a memória
Nova luz, novo sol, e novo empenho?

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