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p r o c ^ o pedo^d^íco
3.1. Introdução
40
A história do pensamento pedagógico, deste ponto de vista, fica no
piano de positividade, nunca ocorrendo a intervenção de um enfoque
de negatividade. Toda vez que se critica um momento anterior é em
nome da proposta de um novo modeio positivo que substituirá, com
vantagem, o modeio do momento anterior. Ainda quando ocorrem
divergências ou diferenças, pode-se afirmar que a consciência peda
gógica, na história da educação, é uma consciência tranqüita que
nunca passou por uma crise radicai.
Este questionamento radicai começa a ocorrer recentemente, na
medida em que os educadores vão se dando conta de que, na reaii-
dade, a educação é iugar priviiegiado da incuicação ideoiógica. A
educação passa a ser vista em suas imbricações com o processo sociai
abrangente, exercendo um papel intrinsecamente comprometido com
este processo sociai.
Assim, na atuaiidade, refietindo a evoiução da própria fiiosofia
e das ciências humanas, a anáiise ideoiógica da educação tem-se
desenvolvido significativamente, dedicando-se muitos pensadores a
discutir o seu sentido ideológico. Esta nova preocupação marca uma
nova orientação tanto para a própria análise ideológica — que en
contra na educação formal um relevante elemento de expressão,
constituição e irradiação da ideologia — quanto para a filosofia da
educação — que, diante da perda da inocência da educação, é levada
a rever seus fundamentos e suas diretrizes político-educacionais.
4Í
. a ideologia aborda explicitamente. A discussão específica dessa rela
ção, que está sendo pienamente assumida e tematizada na atualidade
teve em Gramsci seu ponto de partida e já um marco de referência
teórica.
Ao tratar da questão da ideologia, ele se posiciona a partir dc
ponto de vista marxista. Mas faz uma distinção entre as ideologias
historicamente orgânicas e as ideologias arbitrárias, puramente ima
ginadas pela consciência. A ideologia orgânica é aquela que corres
ponde à determinada estrutura social, constituindo a base da coesão
social e da atividade que os homens desenvolvem no interior da
sociedade. Ela atua assim como cimento da estrutura social. Seu
conteúdo é o conjunto de idéias e valores que asseguram a regula
ridade e estabilidade das relações sociais, e por isso mesmo concorre
para a cristalização das formas sociais, legitimando o poder político
e sua organização. Gramsci reconhece, assim, o caráter positivo da
função ideológica, preponderante sobre seu caráter ilusório, que fica
em segundo plano. Ê, sem dúvida, instrumento 'de dominação e
enquanto tal é que precisa ser denunciada e combatida.
Assim, cada formação social encontra, na ideologia/concepção de
mundo, o lastro de sua unidade. O bloco social tem sua unidade
conservada pela ideologia, que atua como o cimento de sua unidade
e coesão.
Coerentemente com sua visão integrativa da totalidade da expe
riência humana, Gramsci não separa as atividades do plano da
consciência — aquelas atividades normalmente consideradas teóri
cas" — , do plano das atividades concretas do existir histórico dos
homens. Vê tudo num processo único, a atividade consciente estan
do intrinsecamente misturada num amálgama único, que é a práxis
real dos homens em sociedade. Ê por isso mesmo que também não
divide os homens em seres pensantes e seres que trabalham: na
realidade, todos os homens são seres pensantes, são intelectuais,
todos são filósofos; embora nem todos tenham uma função intelec
tual (1968, p. 7). Mas qualquer que seja sua atuação profissional
ou prática, todo homem, "fora de sua profissão, desenvolve uma
atividade intelectual qualquer, ou seja, é um 'filósofo', um artista,
um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui
uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter
ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover
novas maneiras de pensar" (1968, p. 7-8). Gramsci é talvez o pen
42
sador que mais conseguiu articuiar o sentido da atividade teórica
com o da atividade prática.
A ideoiogia !he aparecerá então fundamentaimente como concep
ção de mundo, decorrente de uma atividade da consciência dos
homens, e "que se manifesta impiicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais
e coletivas" (1978, p. 16).
Para meihor se apreender a função da educação em reiação à
ideoiogia, faz-se necessário explicitar mais algumas categorias do
pensamento de Gramsci, partindo de sua visão do todo sociai. Ini-
ciaimente, contrapõe sociedade civií à sociedade política, ou os dois
grandes níveis na superestrutura: "o que pode ser chamado de 'socie
dade civii' (isto é, o conjunto de organismos, chamados comumente
de 'privados') e o da 'sociedade política ou Estado', que correspon
dem à função de 'hegemonia' que o grupo dirigente exerce em toda
a sociedade e àquela do 'domínio direto' ou de comando, que se
expressa no Estado e no governo 'jurídico'" (1968, p. 10-tl). A
sociedade civil é como que o campo do consenso, da adesão, en
quanto que a sociedade política é o campo da força, expressa pela
coesão estatal.
No âmbito da sociedade civil ocorre o consenso "dado pelas
grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo domi
nante à vida social, consenso que nasce 'historicamente' do prestígio
(e, portanto, da éonfiança) que o grupo dominante obtém, por causa
de sua posição e de sua função no mundo da produção" (1968, p. 11).
No âmbito da sociedade política, o aparato da coesão estatal
"assegura 'legalmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem',
nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a
sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na
direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (1968, p. 11).
Portanto, na vida social estão presentes, atuando, dois vetores,
duas funções: a função da hegemonia — poder de orientação e de
direção que um grupo social dominante exerce, com base no con
senso, sobre toda a sociedade — e a função do comando — poder
de domínio e de controle que o aparelho estatal exerce sobre indi
víduos e grupos.
Gramsci chama inteiecit/ais os elementos que servem de media
dores do grupo dominante para o exercício destas funções, de
hegemonia e de comando. Por isso, os qualifica de comissários do
grupo dominante (1968, p. 11).
43
Gramsci designa como bloco histórico uma determinada situação
histórica, em sua giobaiidade, enquanto constituída de uma estrutura
social — as classes em relação às forças de produção — e de uma
superestrutura ideológica e política. Na medida em que a integração
entre estrutura e superestrutura for orgânica, ocorrèndo um sistema
hegemônico, dirigido por uma classe fundamental, é que se realiza
o bloco histórico. Sociedade civil e sociedade política acham-se então
articuladas, garantindo assim uma harmonia preponderante na vida
social da nação.
Portanto, a coesão social, fundada na aceitação do poder do grupo
dominante, não é decorrente apenas da coerção, mas também do
consenso em torno da visõo de mundo desse grupo dominante. Esta
concepção tem um conteuao formado de etementos do senso comum,
de costumes, de moral e de filosofia.
Este conjunto de elementos, essa concepção de mundo que cimenta
e unifica o todo social, através do consenso, é justamente a ideologia,
de cuja organização, sistematização e irradiação são responsáveis os
intelectuais, atuando através das instituições da sociedade civil. Os
cidadãos de uma determinada sociedade são totalmente envolvidos
por essa ideologia mediante a sua inserção na cultura, na religião, na
justiça, no lazer, na vida militar e, muito especialmente, na educação.
A educação é, portanto, valioso instrumento de um grupo social
dominante para o exercício de sua hegemonia, para desempenhar sua
função de direção em relação aos demais grupos sociais. A instituição
escolar, enquanto elemento 'privado' da sociedade civil, não atua
isoladamente na configuração da cosmovisão e da ideologia. Atua
conjuntamente com os demais aparelhos de hegemonia ativados na
sociedade civil pelo grupo social dominante, tais como a Igreja, a
família etc. Mas, sem dúvida, sua participação é extremamente sig
nificativa na elaboração, sistematização e irradiação da concepção do
mundo/ideologia, cimento da coesão social. Sobretudo porque ela
tem participação concentrada e específica na preparação dos intelec
tuais, que são os agentes dos aparelhos de hegemonia.
Assim, a educação tem papel importante na configuração, na
disseminação e na reprodução da ideologia e, consequentemente,
na consolidação do consenso social, na preservação do bloco histórico
dominante e na reprodução da própria estrutura de produção da
formação econômica do referido grupo.
Mas Gramsci não vê na educação, assim como nos demais elemen
tos da sociedade civil, apenas este papel de reprodução. Sua atuação
44
pode ocorrer também no sentido de afirmar e constituir a concepção
de mundo de um grupo sociai não-necessariamente hegemônico. Eia
tem também um potenciat contra-ideoiógico, apesar de estar articuia-
da prevaientemente à reprodução da ideoiogia da ciasse dominante.
Ê que na sociedade civii circuiam iivremente as ideoiogias, as con
cepções de mundo das ciasses subalternas. Isto só não ocorre quando,
aiém do esforço de impor a sua hegemonia peia ação político-peda-
gógica, a ciasse dominante apeia também para a repressão, servindo-se
então dos apareihos repressivos do Estado. Mas enquanto a ciasse
dominante tenta construir sua hegemonia peia extensão do consenso,
eia abre necessariamente espaços para a iivre circuiaçãó das ideoiogias
representativas da ciasse oprimida e, consequentemente, permitindo
que novas concepções de mundo possam eventuaimente difundir-se
contra a ideoiogia dominante. E assim que a ação pedagógica da
instituição escoiar, como das demais instituições da sociedade civii,
pode contraditoriamente atuar no sentido de destruir a hegemonia da
ciasse dominante, A educação tem, assim, grande significado estraté
gico na iuta contra a ideoiogia dominante, na medida em que pode
formar os inteiectuais de outras ciasses, habiiitando-os a sistematizar
organicamente a concepção de mundo dessas ciasses.
45
, conceitos, segundo o caso) dotado dc uma existência e de um papel
históricos no seio de uma dada sociedade". , . .é um "sistema de
representações (que) se distingue da ciência nisto em que a sua função
prático-socia] tem proeminência sobre a função teórica (ou função de
conhecimento)" ("Marxismo e humanismo", em A Favor de Marx,
1963, pF204). Aithusser julga que a dimensão ideológica é necessária
na vida social. Embora seja uma reiação imaginária, vivida, do homem
com o mundo, eia é também uma relação real, sobredeterminada pela
relação imaginária, sendo a expressão da "maneira como (os homens)
vivem a sua relação às condições de existência" (A Favor de Aíarx,
p. 206).'
Assim concebida, necessária e perene, nela prevalece a ilusão e
nao sua possrver encarna porutca. nlcm ^t^so, a tdcologta ó mcons
ciente, uma vez que suas estruturas atuam por um processo que
escapa à consciência do homem. Mistificadora, ocultando o todo
social aos homens, é instrumento de dominação, sendo, portanto,
própria da classe dominante, não se concebendo uma ideologia da
classe dominada.
No seu trabalho de 1969, /deoiogia e Aparelhos ideológicos do
Esíado, Aithusser recoloca a questão da ideologia, agora com um
enfoque mais político e menos eplstemoiógico. & neste trabalho que
expiicltará sua concepção sobre o papel do sistema escolar na socie
dade capitalista. Para garantir a reprodução dos meios de produção,
o capitalismo precisa garantir também a reprodução da força de
trabalho: ora, esta reprodução da força de trabalho éstá sendo asse
gurada pelo sistema escolar e por outras instituições, situadas fora
da produção, e pressupõe, além da qualificação dos trabalhadores,
a submissão à ideologia dominante como meio de preservar os lugares
sociais, de acordo com seu interesse. A escola é a instituição encarre
gada de inculcar a ideologia dominante, pelo conhecimento e valores
que transmite.
Aithusser distingue, então, como Gramsci, o aparelho repressivo
do Estado (com as histâuclas de governo: tribunais, prisões, polícia)
e os aparelhos Ideológicos do Estado (com as instituições: escola,
família, Igreja, sindicatos etc.). O aparelho repressivo pertencería
ao domínio público, os aparelhos ideológicos pertenceríam ao domí
nio privado, à sociedade civil. Os aparelhos ideológicos atuam como
preservadores da hegemonia burguesa. Embora não atuando exclusi
vamente pela repressão ou pela ideologia, cada uma destas formas
prevalece em cada um destes conjuntos.
46
* i*
Assim a escoia e, consequentemente, a educação escolarizada, é
a responsável principal pela inculcação da ideologia dominante em
todos os sujeitos das sociedades capitalistas e, consequentemente,
pela reprodução das relações de exploração que caracterizam estas
sociedades.
Aithusser precisa mais sua concepção de ideologia: representa a
relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de exis
tência. Tem ela própria uma existência material, ou seja, se concre
tiza em práticas sociais muito reais.
A ideologia situa-se no nível do imaginário, mas é instrumento de
luta política, que é a luta de classes na qual se acham envolvidos
todos os aparelhos ideológicos do Estado. Ela é o cimento que con
solida a sociedade política, assegurando com sua coerência a do
minação.
O caráter reprodutivista da educação foi também rigorosamente
explicitado por dois sociótogos franceses, Pierre Bourdieu e fean
Ciaude Passeron, em sua obra clássica, A Reprodt/pão. Como implí
cito no próprio título, concebem a educação como Instrumento de
reprodução das relações de força vigentes na sociedade. Propondo-se
elementos para uma teoria do sistema de ensino, no contexto da
atual sociedade capitalista, mostram como a reprodução do sistema
de ensino, enquanto sistema relatlvamente autônomo, permite a
reprodução da cultura dominante, reprodução esta que atua como
poder simbólico reforçando a reprodução das relações reais de poder,
no interior das formações sociais. Os autores constroem uma verda
deira lógica socíai da educação, expondo seu pensamento mediante
uma espécie de sistema axiomático, em que de princípios universais
se deduzem conclusões particulares. O axioma fundamental enuncia
do é o seguinte: "Todo poder de violência simbólica, isto é, todo
poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas,
dissimulando as relações de força que estão na base de sua força,
acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas
relações de força" (1975, p. 19).
Para os autores, nas relações sociais, além das relações do poder
de violência material, ocorrem também relações de poder de violên
cia simbólica. Isto quer dizer imposição de significações ou de valores
considerados legítimos. Esta imposição se dá mediante forças sim
bólicas, tais como a comunicação cuitural, a doutrinação poiítica e
religiosa, a prática esportiva e a educação escolar.
47
, Nas formações sociais ocorre a constituição de várias cuituras,
correspondentes aos vários grupos ou ciasses sociais. Os autores
concebem-nas como conjuntos arbitrários, ou seja, auto-suficientes
sem vinculação a quaiquer outro que as justificasse. No sistema
global das cuituras presentes numa determinada formação sociai,
uma se impõe às demais, tornando-se a cultura dominante. Eia é
dominante por corresponder à ciasse sociai que é detentora do poder
materiai. A imposição da cultura dominante que busca sobrepujar
as demais se dá mediante instâncias cuiturais, que constituem cada
uma um campo especifico caracterizado por uma iógica própria de
seu resp.ectivo campo: político, religioso, educacional etc.
A educação enquanto ação pedagógica é a imposição do arbitrário
cuitural de um grupe ou ciasse a outros grupos ou ciasses. Considc-
rando-se legitimada, esta ação pedagógica se exerce com autoridade,
procedendo assim a uma inculcação dos princípios e valores consi
derados arbitrariamente como válidos pela classe dominante. Deste
modo, a ação pedagógica torna-se processo de inculcação e de re
produção dos conteúdos culturais. Esses conteúdos, arbitrariamente
escolhidos, simbolicamente impostos, correspondem, de fato, aos
interesses das classes dominantes, enraizados portanto nas relações
de força material. Mas esta correspondência e sua inculcação e
reprodução não podem ser assumidas manifestamente, eias precisam
ser camufladas. Este ocultamento é feito peta própria educação, que
funciona então como uma ideoiogia pedagógica.
Portanto, através da educação, ocorre um processo de dupla re
produção, A função de reprodução cultural já é consequência de
uma função de reprodução social, ou seja, das relações de poder
real reinantes entre as pessoas, grupos e classes sociais.
A educação procede ideologicamente em dois níveis:
1. °) Enquanto processo, na medida em que transmite e reproduz
conteúdos culturais, impondo-os aos sujeitos das classes dominadas,
e criando nelas, em função de seu etfms (sua predisposição em aceitar
a legitimidade da ação pedagógica da cultura dominante) um /mbítus
(sistema de disposições duráveis, permanentizadas, principio que
gera e estrutura as práticas e as representações dos sujeitos, que
conforma e orienta suas ações).
2. °) Enquanto ideologia pedagógica ou sistema de pensamento que
objetiva camuflar através de discurso articulado as reais relações de
violência material e de violência simbólica. É o pensamento peda
gógico tentando mostrar sua autonomia e justificar sua validade.
48
'
49
3.4. Educação: reprodução e transformação do sociat
50
o da legislação e o da prática educacional — é necessariamente um
discurso ideológico auto-reprodutivo e reprodutor das relações sociais
que estruturam determinada sociedade.
Mas esta função reprodutiva da educação não esgota sua signifi
cação total: a eddcação, contraditoriamente, é também força de
transformação objetiva das reiações sociais, ou seja, a força da edu
cação não tem sentido unívoco enquanto pura instância de reprodução.
Ao contrário, os processos educacionais no seu conjunto e no seu
interior geram e desenvolvem também forças contraditórias, que com
prometem o fatalismo da reprodução, quer ideológica, quer social,
atuando simultaneamente no sentido da transformação da realidade
social. Em que pese o depoimento incisivo da histórta da educaçao,
dando ganho de causa à perspectiva reprodutivista, a indução histó
rica não exaure as potencialidades da educação. Não é porque a
história da educação tem manifestado muito mais a força reprodutora
dos processos educacionais que ela deva ser considerada univocamente
nesse sentido.
A força da contradição está presente no processo educacional
porque eia é uma realidade em todo o processo social, não podendo
a educação constituir uma exceção. A educação insere-se numa tota
lidade na qual vigora um processo dialético constitutivo profundo,
que faz com que a realidade social seja trabalhada por forças con
traditórias. Não é só no plano da lógica que se impõe invocar a
superação do predomínio do princípio da identidade não-contra-
ditória, é também no piano do real que impera o princípio da
contradição. Ainda quando a manutenção e a reprodução de um de
terminado tipo de estruturação das relações sociais dão a impressão
de estabilidade e permanência, isto não comprova a inexistência de
força contraditória que pode impeli-la no sentido de sua transforma
ção e superação.
O real é contraditório, e a educação desenvolve-se igualmente num
processo em que se embatem forças contraditórias, que podem ser
ativadas pela práxis humana. Assim sendo, a educação não é apenas
o lugar e o mecanismo da reprodução ideológica e social, nem o
discurso pedagógico só abre espaço para a significação ideológica
no sentido reprodutivista. A educapão pode também desenvolver e
implementar um discurso contra-ideoidgico.
Assim, sem desconhecer as funções assumidas por ela, tanto de
reprodução das relações sociais como de inculcação da ideologia da
classe hegemônica, é preciso levar em consideração sua força de
51
0
mediação na ruptura desses processos. Ao possibilitar às ciasses
subalternas a apropriação do saber sistemático, reveiando-ihes, por
essa mediação, as reais relações de poder em que se estrutura a socie
dade, a educação lhes permite também a compreensão do processo
social global, uma vez que este saber está genética e contraditoria-
mente vinculado à situação social por mais que, ideologicamente, se
tente camuflar esta vinculação. O saber acaba levando ao questiona
mento das relações sociais, mediante um processo de conscientização
do real significado dessas relações enquanto relações de poder,
revelando,inclusivca condição de contraditoriedade que as permeia.
Assim, a educação acaba atuando, efetivamente, no sentido da for
mação política das classes dominadas, tanto ao nível da gestação de
sua consciência de classe, como ao nível de sua instrumentação para
a práxis política mais adequada. Por isso, tem razão Cury quando
afirma que "a educação, como atividade, partícipe das relações
sociais contraditórias, é então uma instabilidade mais ou menos
aberta à ação social. Se sua função social esteve mais comprometida
com os interesses dos grupos dominantes do que com os interesses
e valores das classes subalternas, isto não é uma fatalidade e nem
é a sua sina. Se coopera com a reprodução das estruturas vigentes,
ela se mescla no conjunto de uma ação social transformadora que
se opõe à organização capitalista de produção, mediante a aceleração
da consciência de classe" (1985, p. 130).
52
como forma de consciência, enucieia e sistematiza, através de con
ceitos significativos e de valores legitimadores, os interesses das
classes sociais. Quanto mais é dominante uma classe social, mais ela
borada e sistematizada se torna sua ideologia, uma vez que ela deve
ser hegemônica, impondo-se às demais classes e segmentos sociais
não-domin antes. ^
Por outro lado, uma classe dominante não exerce seu poder sobre
a sociedade, de maneira direta. Nas sociedades modernas, o poder
social se politiza e é exercido através do Estado. O Estado é uma
instância política que já se explica por exigência da própria ideolo
gia, ele já é uma forma de se assegurar o direito ao poder social
por uma determinada classe social, mediante uma estrutura institu
cionalizada.
O planejamento e a execução das ações necessárias e pertinentes
ao exercício do poder social se dão, ao nível do Estado, através da
política social e administrativa que constituem a base do governo da
sociedade. Assim, atendo-nos tão-somente à educação, o Estado a
implementa mediante sua política educacional. É no âmago desta
política educacional feita de idéias, planos, legislação, medidas admi
nistrativas e processos efetivos de ação prática, que ganha forma a
ideologia do Estado e, consequentemente, da classe hegemônica.
Assim, para se fazer uma explicitação da possível significação da
; educação de uma determinada sociedade, o caminho é o da reto
mada da história da política educacional,.do Estado, que a repre
senta enquanto sistema de poder. Até o momento, a discussão das
relações ideologia/educação foi feita a partir da perspectiva do pen
samento teórico. A abordagem feita situou-se ao nível do discurso
teórico explícito, ou seja, reapresentando-se sinteticamente as análi
ses e explicações feitas por sociólogos, filósofos e educadores. Tra
tava-se antes de uma retomada histórica e de uma discussão de idéias.
Sendo objetivo da próxima parte deste livro explicitar a signifi
cação ideológica da educação brasileira, será então necessário reto
mar o seu processo real enquanto processo histórico-social da educa
ção, enquanto fenômeno histórico concreto. Esta realidade educa
cional, fenômeno político e social que se desdobra no tempo, tem
como causas determinantes as efetivas relações sociais mediatizadas
pela política educacional do Estado, política esta obviamente inse
rida no universo mais amplo da política social como um todo.
53
b) Meoiogia, realidade educacional e legislação
De um primeiro ponto de vista, discurso pedagógico pode referir-se
às construções teóricas mediante as quais se expressa o próprio pen
samento educacionai. Seja através das teorias científicas, seja através
das idéias fiiosóficas, ocorre sempre um pensamento teórico que visa
explicitar e expiicar o fenômeno educacional, estabelecendo-lhe sua
especificidade, revelando seus múltiplos aspectos e dimensões. Pode-
-se falar genericamente de "teoria da educação" e se fazer uma his
tória das idéias pedagógicas. E assim que se se refere ao pensamento
pedagógico de Rousseau, de Platão, de Skinner, de Rogem ou de
54
'j
rí
tada ou seja, deve acontecer de acordo com normas e regras defi
nidas e impostas peio Estado. Em função d:sta situação, é possível
considerar a educação em reiação à legislação destinada a regula
mentá-la na prática; e é possível também apresentar a história da
educação de um país acompanhando a evolução dessa legislação atra
vés do tempo, bem como retratá-la do ponto de vista desse plano
das leis.
Estes três níveis aqui intencionalmente separados são extrema
mente importantes para a discussão do sentido ideológico da edu
cação. De fato, eles não são separáveis, isoláveis, a não ser pata
fins da análise. A análise ideológica permite a apreensão das vin-
culações significativas possivets que interligam a prática educacional,
a legislação correspondente e o pensamento teórico relacionado a
uma e outra. Como esquema genérico, numa sociedade moderna,
tem-se que a prática real da educação implementada pela política
educacional se desenvolve de acordo cofn diretrizes legais, que são
normas que presidem à organização e ao funcionamento das institui
ções e dos processos educacionais. A justificativa para o seguimento
de diretrizes legais é que só um Estado de direito é capaz de manter
em reiativa harmonia uma sociedade, uma vez que só assim ficam
definidos os limites entre os interesses em confronto e estabelecidos
direitos e deveres de todos. A legislação deve, pois, direcionar a
prática de forma que os objetivos e os interesses gerais da socie
dade sejam garantidos e realizados. Uma política educacional não
pode ser arbitrária, ao contrário, deve apoiar-se sempre no direito.
Muitas vezes não se tem propriamente uma legislação explícita,
formalizada. São os próprios comportamentos costumeiros que desem
penham o papei da legislação, uma vez que eles determinam como
deve ser a prática social.
Aceita-se assim que a legislação educacional se funda em princí
pios admitidos como de interesse geral da sociedade e, consequente
mente, está traduzindo concepções a respeito do que deve ser a
educação.
Deste modo, entre a prática real, a legislação e a concepção edu
cacional vigente numa sociedade deveria haver profunda harmonia.
Do que já se viu anteriormente, conclui-se facilmente que a* legis
lação é um veículo adequado à transmissão da ideologia, enquanto
concepção do mundo, para as instituições e práticas educacionais.
Ela serve de ponte entre as concepções ideológicas dominantes e
o aparelho escolar. A própria legislação desempenha, assim, a fun
55
ção de aparelho ideológico do Estado, viabilizando a irradiação gene-
ralizadora de princípios educacionais que integram a concepção de
mundo, que é hegemônica, numa determinada sociedade. Cabe à legis
lação, no caso da educação, viabilizar a efetivação de comporta
mentos desejados de acordo com a concepção dominante vigente.
Assim, a esfera jurídica, enquanto superestrutura em relação ao
social, já representa um instrumento de transmissão e imposição ideo
lógica, constituindo-se num eficaz aparelho ideológico do Estado,
situando-se à fronteira dos aparelhos de repressão material. Atri
bui-se à superestrutura jurídica, ao direito e à legislação positiva,
uma qualidade intrínseca de alcance universal, capaz de estabelecer
e garantir objetivamente os interesses de todos os membros de uma
determinada sociedade, sem exceção. Ora, a análise filosófico-sociai
mostra que não á bem assim, uma vez que a superestrutura jurídica
também ela está a serviço de interesses particulares, obviamente pro
clamados como interesses universais.
Mas no que diz respeito especificamente à legislação educacional,
ela é um veículo adequado para fazer com que os processos educa
cionais concretizem os valores da ideologia que se quer transmitir.
A legislação educacional veicula, pois, a ideologia que o Estado, o
poder público, quer fazer vingar, através de sua política educacional.
Por sua vez, o Estado, enquanto instância política, representa deter
minada classe social detentora do real poder, a classe social domi
nante.
Portanto, é possível apreender, através da política educacional em
geral e da legislação educacional em particular, quais os elementos
ideológicos preponderantes que o Estado, e através dele as classes
dominantes de uma dada sociedade, quer veicular e inculcar ao todo
da população. A legislação atua ideologicamente não apenas por per
tencer ao plano da superestrutura jurídica, mas porque tem um dis
curso explícito diferente do discurso real, ou seja, proclama uma
coisa, enquanto deseja e visa outra. Ao nível do discurso explícito,
apresenta valores e defende interesses aparentemente universais,
enquanto que seu real objetivo permanece particular. Contudo, inte
resses particulares da classe social dominante, que precisa viver em
meio a outras classes dominadas, geralmente majoritárias, não podem
ser apresentados como particulares, como já se viu anteriormente.
Mas a legislação educacional na exata medida em que oenha
a verdadeira ideologia das classes dominantes e do Estado (apre
sentando os valores particulares como se fossem universais, como
56
se correspondessem aos interesses de todos) et a a reveia (uma vez
que, por trás dessa aparência é possível perceber, através da análise
filosófico-social, a sua particularidade).
Quando nos propomos a analisar a significação ideológica da rea
lidade educacional brasileira, é possível ter em mente o real processo
social, tal como ele é recuperado pela própria abordagem histórica
em relação direta e imediata à ordenação jurídica no âmbito da legis
lação educacional, na medida em que esta era o instrumento de orien
tação e implementação desse processo. Na história da educação bra
sileira, o Estado aparece, a cada momento, como o agente que, de
perto ou de longe, busca coordenar seu desenvolvimento e sua mani
festação, fazendo isto através das diretrizes legislativas, que lhe dão
instrumentos de intervenção na vida da sociedade brasiieira. Imple
menta, assim, sua política educacional, definindo estabe
lecendo normas' e aplicando recursos malertots necessários para sua
realização, avaliando resultados.
É no emaranhado dessa política educacional como um todo que
se pode desvelar a significação ideológica subjacente que, afinal, pre
side a todo o processo e o explica, em última instância.
Leituras sugeridas
ALTHUSSBR, Louis. H Faror de Aíarjr. Rio, Zahar, [979.
------------- . Ideologia e ^ípareiltop /deolópicor do Estado. São Paulo, Martins
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An tonto Joaquim Severíno