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Antonto Joaquim Severíno

Bi Temas BAsicos de Educado e Ensino


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3.1. Introdução

Como se pôde constatar peta história da formação do conceito


de ideologia, não se vê estabeiecer-se nenhuma reiação expiícita no
decorrer dessa história entre o processo ideoiógico e o processo edu-
cacionai. A questão da ideotogia, quatquer que seja a concepção de
seu significado, surge sempre em reiação ao pensamento e à ação
poiítico-sociai. É como se a práxis educacionai não estivesse intima­
mente vinculada ao processo poiítico-sociai mais ampio. isto se ex-
ptica até certo ponto porque, sobretudo no que se refere à educação
formai, à educação escoiar, entendia-se tratar-se de um processo
neutro, puramente objetivo. Quando muito admitia-se que a educação
informal era portadora de conteúdo ideoiógico, mas este era um
processo que se diiuía no processo sócio-cuiturai envoivente, não
se tratando mais de educação no sentido específico da paiavra.
Mais uma vez pagava-se aqui um tributo à dupia tradição da
história da cuitura ocidentai: de um lado, a vertente metafísica da
filosofia; de outro, a vertente positivista da ciência, vertentes que
vimos marcar a própria história do pensamento humano, no Ocidente,
informando todo o direcionamento da interpretação do seu modo de
ser e de agir.
Com efeito, praticamente até o sécuio XiX, toda teoria educacionai,
ou seja, toda explicação e justificação da educação reiacionava-se
E*** intimamente com a fiiosoíia. Pode-se dizer que toda teoria da educa­
ção era, de fato, uma fiiosofia da educação, ou seja, o educar era
concebido a partir da concepção que se tinha da natureza do homem,
do mundo e de Deus, e esta concepção era fundada em conceitos
fitosóficos, quase sempre metafísicos.
A partir do século XIX, já sob impacto da ciência moderna sobre
os modelos explicativos da natureza humana, que viabilizaram a
constituição das ciências humanas, também a educação passa por um
trabalho teórico de cientificização. Busca-se descobrir quais são as
leis específicas que presidiam as várias manifestações do fenômeno
educacionai. Conhecidas estas ieis, estariam explicados os diversos
aspectos do fenômeno educacionai e torhava-se possível ao homem
prever seus desdobramentos e intervir no seu curso. É a fase do
grande sonho de se implantar o edifício científico também na área
da educação, de revelar os fundamentos científicos, com base nos
quais desenvolver-se-á iguaimente uma engenharia educacionai. A
educação deixará de ser tanto um processo espontaneísta, dominado
por intuições meramente espontâneas, quanto um processo explicável
mediante recurso a categorias metafísicas transcendentais. Teoria da
educação passa a significar teoria científica da educação, síntese de
leis de regularidade, necessidade e universalidade que sistematizam
e unificam a dispersão dos fenômenos empíricos. Restava tão-somente
delimitar a especificidade do campo educacional, sem prejuízo de
seus aspectos comuns aos campos biológico, psicológico, econômico
e sociológico.
Ora, nem a perspectiva filosófica tradicionai, nem a perspectiva
científica moderna se deram conta da dimensão ideológica da ativi­
dade da consciência humana. Portanto, não era de sé esperar que o
pensamento pedagógico, fosse ele filosóíico ou científico, levantasse
a questão do alcance ideológico do processo educacionai.
A educação era, aliás, vivenciada como lugar privilegiado da neu­
tralidade, da objetividade, uma vez que era vista como verdadeira
correia de transmissão, como canal transmissor de cultura. Na sua
especificidade, ela não interferia no conteúdo daquilo que transmitia.
Seu papel era passar às novas gerações o legado cuitural das gerações
anteriores. Mas este legado cultural, enquanto conteúdo a ser trans­
mitido, era visto objetivamente como dado social objetivado, a ser
apropriado enquanto tal pelos novos sujeitos.
Assim, o pensamento pedagógico dedicava-se mais a buscar sua
eficácia do que a questionar o seu eventual significado ideológmo.

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A história do pensamento pedagógico, deste ponto de vista, fica no
piano de positividade, nunca ocorrendo a intervenção de um enfoque
de negatividade. Toda vez que se critica um momento anterior é em
nome da proposta de um novo modeio positivo que substituirá, com
vantagem, o modeio do momento anterior. Ainda quando ocorrem
divergências ou diferenças, pode-se afirmar que a consciência peda­
gógica, na história da educação, é uma consciência tranqüita que
nunca passou por uma crise radicai.
Este questionamento radicai começa a ocorrer recentemente, na
medida em que os educadores vão se dando conta de que, na reaii-
dade, a educação é iugar priviiegiado da incuicação ideoiógica. A
educação passa a ser vista em suas imbricações com o processo sociai
abrangente, exercendo um papel intrinsecamente comprometido com
este processo sociai.
Assim, na atuaiidade, refietindo a evoiução da própria fiiosofia
e das ciências humanas, a anáiise ideoiógica da educação tem-se
desenvolvido significativamente, dedicando-se muitos pensadores a
discutir o seu sentido ideológico. Esta nova preocupação marca uma
nova orientação tanto para a própria análise ideológica — que en­
contra na educação formal um relevante elemento de expressão,
constituição e irradiação da ideologia — quanto para a filosofia da
educação — que, diante da perda da inocência da educação, é levada
a rever seus fundamentos e suas diretrizes político-educacionais.

3.2. A contribuição de Antonio Gramsci

No cenário filosófico contemporâneo, no concernente à abordagem


da questão tdeoiógrca na esfera específica do educacionai, destaca-se
a relevante contribuição do pensador italiano Antonio Gramsci. Si-
tuando-se na esteira do desenvolvimento da filosofia político-sociai
do marxismo, Gramsci elabora sua filosofia da práxis, através da
qual quer dar conta da totalidade da realidade histórica e social dos
homens naquilo que ela tem de especificamente humano. Amplia,
por isso, o aicance da própria fiiosofia marxista na medida em que
responde a todas as esferas do existir humano, histórico e concreto,
o potencial explicativo da metodologia dialética. Por esta razão, é
praticamente o primeiro pensador a articular, numa totaiidade de
sentido, as dimensões econômicas e as dimensões culturais da exis­
tência da sociedade, incluindo a educação, cujo reiacionamento com


. a ideologia aborda explicitamente. A discussão específica dessa rela­
ção, que está sendo pienamente assumida e tematizada na atualidade
teve em Gramsci seu ponto de partida e já um marco de referência
teórica.
Ao tratar da questão da ideologia, ele se posiciona a partir dc
ponto de vista marxista. Mas faz uma distinção entre as ideologias
historicamente orgânicas e as ideologias arbitrárias, puramente ima­
ginadas pela consciência. A ideologia orgânica é aquela que corres­
ponde à determinada estrutura social, constituindo a base da coesão
social e da atividade que os homens desenvolvem no interior da
sociedade. Ela atua assim como cimento da estrutura social. Seu
conteúdo é o conjunto de idéias e valores que asseguram a regula­
ridade e estabilidade das relações sociais, e por isso mesmo concorre
para a cristalização das formas sociais, legitimando o poder político
e sua organização. Gramsci reconhece, assim, o caráter positivo da
função ideológica, preponderante sobre seu caráter ilusório, que fica
em segundo plano. Ê, sem dúvida, instrumento 'de dominação e
enquanto tal é que precisa ser denunciada e combatida.
Assim, cada formação social encontra, na ideologia/concepção de
mundo, o lastro de sua unidade. O bloco social tem sua unidade
conservada pela ideologia, que atua como o cimento de sua unidade
e coesão.
Coerentemente com sua visão integrativa da totalidade da expe­
riência humana, Gramsci não separa as atividades do plano da
consciência — aquelas atividades normalmente consideradas teóri­
cas" — , do plano das atividades concretas do existir histórico dos
homens. Vê tudo num processo único, a atividade consciente estan­
do intrinsecamente misturada num amálgama único, que é a práxis
real dos homens em sociedade. Ê por isso mesmo que também não
divide os homens em seres pensantes e seres que trabalham: na
realidade, todos os homens são seres pensantes, são intelectuais,
todos são filósofos; embora nem todos tenham uma função intelec­
tual (1968, p. 7). Mas qualquer que seja sua atuação profissional
ou prática, todo homem, "fora de sua profissão, desenvolve uma
atividade intelectual qualquer, ou seja, é um 'filósofo', um artista,
um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui
uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter
ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover
novas maneiras de pensar" (1968, p. 7-8). Gramsci é talvez o pen­

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sador que mais conseguiu articuiar o sentido da atividade teórica
com o da atividade prática.
A ideoiogia !he aparecerá então fundamentaimente como concep­
ção de mundo, decorrente de uma atividade da consciência dos
homens, e "que se manifesta impiicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais
e coletivas" (1978, p. 16).
Para meihor se apreender a função da educação em reiação à
ideoiogia, faz-se necessário explicitar mais algumas categorias do
pensamento de Gramsci, partindo de sua visão do todo sociai. Ini-
ciaimente, contrapõe sociedade civií à sociedade política, ou os dois
grandes níveis na superestrutura: "o que pode ser chamado de 'socie­
dade civii' (isto é, o conjunto de organismos, chamados comumente
de 'privados') e o da 'sociedade política ou Estado', que correspon­
dem à função de 'hegemonia' que o grupo dirigente exerce em toda
a sociedade e àquela do 'domínio direto' ou de comando, que se
expressa no Estado e no governo 'jurídico'" (1968, p. 10-tl). A
sociedade civil é como que o campo do consenso, da adesão, en­
quanto que a sociedade política é o campo da força, expressa pela
coesão estatal.
No âmbito da sociedade civil ocorre o consenso "dado pelas
grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo domi­
nante à vida social, consenso que nasce 'historicamente' do prestígio
(e, portanto, da éonfiança) que o grupo dominante obtém, por causa
de sua posição e de sua função no mundo da produção" (1968, p. 11).
No âmbito da sociedade política, o aparato da coesão estatal
"assegura 'legalmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem',
nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a
sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na
direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo" (1968, p. 11).
Portanto, na vida social estão presentes, atuando, dois vetores,
duas funções: a função da hegemonia — poder de orientação e de
direção que um grupo social dominante exerce, com base no con­
senso, sobre toda a sociedade — e a função do comando — poder
de domínio e de controle que o aparelho estatal exerce sobre indi­
víduos e grupos.
Gramsci chama inteiecit/ais os elementos que servem de media­
dores do grupo dominante para o exercício destas funções, de
hegemonia e de comando. Por isso, os qualifica de comissários do
grupo dominante (1968, p. 11).

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Gramsci designa como bloco histórico uma determinada situação
histórica, em sua giobaiidade, enquanto constituída de uma estrutura
social — as classes em relação às forças de produção — e de uma
superestrutura ideológica e política. Na medida em que a integração
entre estrutura e superestrutura for orgânica, ocorrèndo um sistema
hegemônico, dirigido por uma classe fundamental, é que se realiza
o bloco histórico. Sociedade civil e sociedade política acham-se então
articuladas, garantindo assim uma harmonia preponderante na vida
social da nação.
Portanto, a coesão social, fundada na aceitação do poder do grupo
dominante, não é decorrente apenas da coerção, mas também do
consenso em torno da visõo de mundo desse grupo dominante. Esta
concepção tem um conteuao formado de etementos do senso comum,
de costumes, de moral e de filosofia.
Este conjunto de elementos, essa concepção de mundo que cimenta
e unifica o todo social, através do consenso, é justamente a ideologia,
de cuja organização, sistematização e irradiação são responsáveis os
intelectuais, atuando através das instituições da sociedade civil. Os
cidadãos de uma determinada sociedade são totalmente envolvidos
por essa ideologia mediante a sua inserção na cultura, na religião, na
justiça, no lazer, na vida militar e, muito especialmente, na educação.
A educação é, portanto, valioso instrumento de um grupo social
dominante para o exercício de sua hegemonia, para desempenhar sua
função de direção em relação aos demais grupos sociais. A instituição
escolar, enquanto elemento 'privado' da sociedade civil, não atua
isoladamente na configuração da cosmovisão e da ideologia. Atua
conjuntamente com os demais aparelhos de hegemonia ativados na
sociedade civil pelo grupo social dominante, tais como a Igreja, a
família etc. Mas, sem dúvida, sua participação é extremamente sig­
nificativa na elaboração, sistematização e irradiação da concepção do
mundo/ideologia, cimento da coesão social. Sobretudo porque ela
tem participação concentrada e específica na preparação dos intelec­
tuais, que são os agentes dos aparelhos de hegemonia.
Assim, a educação tem papel importante na configuração, na
disseminação e na reprodução da ideologia e, consequentemente,
na consolidação do consenso social, na preservação do bloco histórico
dominante e na reprodução da própria estrutura de produção da
formação econômica do referido grupo.
Mas Gramsci não vê na educação, assim como nos demais elemen­
tos da sociedade civil, apenas este papel de reprodução. Sua atuação

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pode ocorrer também no sentido de afirmar e constituir a concepção
de mundo de um grupo sociai não-necessariamente hegemônico. Eia
tem também um potenciat contra-ideoiógico, apesar de estar articuia-
da prevaientemente à reprodução da ideoiogia da ciasse dominante.
Ê que na sociedade civii circuiam iivremente as ideoiogias, as con­
cepções de mundo das ciasses subalternas. Isto só não ocorre quando,
aiém do esforço de impor a sua hegemonia peia ação político-peda-
gógica, a ciasse dominante apeia também para a repressão, servindo-se
então dos apareihos repressivos do Estado. Mas enquanto a ciasse
dominante tenta construir sua hegemonia peia extensão do consenso,
eia abre necessariamente espaços para a iivre circuiaçãó das ideoiogias
representativas da ciasse oprimida e, consequentemente, permitindo
que novas concepções de mundo possam eventuaimente difundir-se
contra a ideoiogia dominante. E assim que a ação pedagógica da
instituição escoiar, como das demais instituições da sociedade civii,
pode contraditoriamente atuar no sentido de destruir a hegemonia da
ciasse dominante, A educação tem, assim, grande significado estraté­
gico na iuta contra a ideoiogia dominante, na medida em que pode
formar os inteiectuais de outras ciasses, habiiitando-os a sistematizar
organicamente a concepção de mundo dessas ciasses.

3.3. Aithusser e a teoria reprodutivista da educação

fá sob a inspiração do estruturaiismo, embora sem sair da esfera


das perspectivas marxistas, Louis Aithusser desenvolve iguaimente
detida anáiise do conceito da ideoiogia e de sua reiação com a
educação, trazendo rica contribuição à discussão atuai do probtema.
Aithusser se propõe restabeiecer a cientificidade do marxismo, uma
vez que considera que determinadas interpretações do mesmo, ao
defender perspectivas humanistas com base no jovem Marx, acaba­
ram por cair iguaimente no ideoiogismo. Seu objetivo é, pois, no
interior do próprio marxismo, distinguir ciência de ideoiogia, coio-
cando-se iniciaimente numa abordagem epistemoiógica. Com efeito,
cabe à fiiosofia proceder a purificação da ciência de toda contamina­
ção ideoiógica, bem com a sua própria purificação. Para Aithusser,
pois, o marxismo comporta uma fiiosofia capaz de se constituir numa
postura não-ideoiógica.
Define ideoiogia como um "sistema (possuindo a sua lógica e o
seu rigor próprios) de representações (imagens, mitos, idéias ou

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, conceitos, segundo o caso) dotado dc uma existência e de um papel
históricos no seio de uma dada sociedade". , . .é um "sistema de
representações (que) se distingue da ciência nisto em que a sua função
prático-socia] tem proeminência sobre a função teórica (ou função de
conhecimento)" ("Marxismo e humanismo", em A Favor de Marx,
1963, pF204). Aithusser julga que a dimensão ideológica é necessária
na vida social. Embora seja uma reiação imaginária, vivida, do homem
com o mundo, eia é também uma relação real, sobredeterminada pela
relação imaginária, sendo a expressão da "maneira como (os homens)
vivem a sua relação às condições de existência" (A Favor de Aíarx,
p. 206).'
Assim concebida, necessária e perene, nela prevalece a ilusão e
nao sua possrver encarna porutca. nlcm ^t^so, a tdcologta ó mcons
ciente, uma vez que suas estruturas atuam por um processo que
escapa à consciência do homem. Mistificadora, ocultando o todo
social aos homens, é instrumento de dominação, sendo, portanto,
própria da classe dominante, não se concebendo uma ideologia da
classe dominada.
No seu trabalho de 1969, /deoiogia e Aparelhos ideológicos do
Esíado, Aithusser recoloca a questão da ideologia, agora com um
enfoque mais político e menos eplstemoiógico. & neste trabalho que
expiicltará sua concepção sobre o papel do sistema escolar na socie­
dade capitalista. Para garantir a reprodução dos meios de produção,
o capitalismo precisa garantir também a reprodução da força de
trabalho: ora, esta reprodução da força de trabalho éstá sendo asse­
gurada pelo sistema escolar e por outras instituições, situadas fora
da produção, e pressupõe, além da qualificação dos trabalhadores,
a submissão à ideologia dominante como meio de preservar os lugares
sociais, de acordo com seu interesse. A escola é a instituição encarre­
gada de inculcar a ideologia dominante, pelo conhecimento e valores
que transmite.
Aithusser distingue, então, como Gramsci, o aparelho repressivo
do Estado (com as histâuclas de governo: tribunais, prisões, polícia)
e os aparelhos Ideológicos do Estado (com as instituições: escola,
família, Igreja, sindicatos etc.). O aparelho repressivo pertencería
ao domínio público, os aparelhos ideológicos pertenceríam ao domí­
nio privado, à sociedade civil. Os aparelhos ideológicos atuam como
preservadores da hegemonia burguesa. Embora não atuando exclusi­
vamente pela repressão ou pela ideologia, cada uma destas formas
prevalece em cada um destes conjuntos.

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* i*
Assim a escoia e, consequentemente, a educação escolarizada, é
a responsável principal pela inculcação da ideologia dominante em
todos os sujeitos das sociedades capitalistas e, consequentemente,
pela reprodução das relações de exploração que caracterizam estas
sociedades.
Aithusser precisa mais sua concepção de ideologia: representa a
relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de exis­
tência. Tem ela própria uma existência material, ou seja, se concre­
tiza em práticas sociais muito reais.
A ideologia situa-se no nível do imaginário, mas é instrumento de
luta política, que é a luta de classes na qual se acham envolvidos
todos os aparelhos ideológicos do Estado. Ela é o cimento que con­
solida a sociedade política, assegurando com sua coerência a do­
minação.
O caráter reprodutivista da educação foi também rigorosamente
explicitado por dois sociótogos franceses, Pierre Bourdieu e fean
Ciaude Passeron, em sua obra clássica, A Reprodt/pão. Como implí­
cito no próprio título, concebem a educação como Instrumento de
reprodução das relações de força vigentes na sociedade. Propondo-se
elementos para uma teoria do sistema de ensino, no contexto da
atual sociedade capitalista, mostram como a reprodução do sistema
de ensino, enquanto sistema relatlvamente autônomo, permite a
reprodução da cultura dominante, reprodução esta que atua como
poder simbólico reforçando a reprodução das relações reais de poder,
no interior das formações sociais. Os autores constroem uma verda­
deira lógica socíai da educação, expondo seu pensamento mediante
uma espécie de sistema axiomático, em que de princípios universais
se deduzem conclusões particulares. O axioma fundamental enuncia­
do é o seguinte: "Todo poder de violência simbólica, isto é, todo
poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas,
dissimulando as relações de força que estão na base de sua força,
acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas
relações de força" (1975, p. 19).
Para os autores, nas relações sociais, além das relações do poder
de violência material, ocorrem também relações de poder de violên­
cia simbólica. Isto quer dizer imposição de significações ou de valores
considerados legítimos. Esta imposição se dá mediante forças sim­
bólicas, tais como a comunicação cuitural, a doutrinação poiítica e
religiosa, a prática esportiva e a educação escolar.

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, Nas formações sociais ocorre a constituição de várias cuituras,
correspondentes aos vários grupos ou ciasses sociais. Os autores
concebem-nas como conjuntos arbitrários, ou seja, auto-suficientes
sem vinculação a quaiquer outro que as justificasse. No sistema
global das cuituras presentes numa determinada formação sociai,
uma se impõe às demais, tornando-se a cultura dominante. Eia é
dominante por corresponder à ciasse sociai que é detentora do poder
materiai. A imposição da cultura dominante que busca sobrepujar­
as demais se dá mediante instâncias cuiturais, que constituem cada
uma um campo especifico caracterizado por uma iógica própria de
seu resp.ectivo campo: político, religioso, educacional etc.
A educação enquanto ação pedagógica é a imposição do arbitrário
cuitural de um grupe ou ciasse a outros grupos ou ciasses. Considc-
rando-se legitimada, esta ação pedagógica se exerce com autoridade,
procedendo assim a uma inculcação dos princípios e valores consi­
derados arbitrariamente como válidos pela classe dominante. Deste
modo, a ação pedagógica torna-se processo de inculcação e de re­
produção dos conteúdos culturais. Esses conteúdos, arbitrariamente
escolhidos, simbolicamente impostos, correspondem, de fato, aos
interesses das classes dominantes, enraizados portanto nas relações
de força material. Mas esta correspondência e sua inculcação e
reprodução não podem ser assumidas manifestamente, eias precisam
ser camufladas. Este ocultamento é feito peta própria educação, que
funciona então como uma ideoiogia pedagógica.
Portanto, através da educação, ocorre um processo de dupla re­
produção, A função de reprodução cultural já é consequência de
uma função de reprodução social, ou seja, das relações de poder
real reinantes entre as pessoas, grupos e classes sociais.
A educação procede ideologicamente em dois níveis:
1. °) Enquanto processo, na medida em que transmite e reproduz
conteúdos culturais, impondo-os aos sujeitos das classes dominadas,
e criando nelas, em função de seu etfms (sua predisposição em aceitar
a legitimidade da ação pedagógica da cultura dominante) um /mbítus
(sistema de disposições duráveis, permanentizadas, principio que
gera e estrutura as práticas e as representações dos sujeitos, que
conforma e orienta suas ações).
2. °) Enquanto ideologia pedagógica ou sistema de pensamento que
objetiva camuflar através de discurso articulado as reais relações de
violência material e de violência simbólica. É o pensamento peda­
gógico tentando mostrar sua autonomia e justificar sua validade.

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'

No âmbito dos estudos teóricos sobre a educação no Brasii, os


trabalhos iniciais de Luís Antônio Cunha e de Barbara Freitag, ins­
piram-se nesta perspectiva de anáüse, diagnosticando, com base em
dados de pesquisa empírica, como a educação brasiieira, além de se
reproduzir, tem reproduzido as condições sócio-econômicas dá for­
mação social do país, não constituindo espaço de contradição, nem
comportando força de transformação social.
Ainda na linha de uma concepção reprodutivista, cabe citar a
importante contribuição de outros dois sociólogos franceses, Chris-
tian Baudelot e Roger Establet. Na realidade, na análise que fazem
da escola capitalista a partir do modelo concreto do sistema francês
de ensino, estes autores afirmam colocar-se na perspectiva revolucio­
nária do marxtsmo, preocupando-se sobretudo em fazer a educação
atender aos reais interesses do proletariado. Portanto, sua abordagem
não sè limita a um diagnóstico/denúncia, ao contrário, leva a uma
proposta de ação política transformadora. Mas, ao desenvolverem
sua análise, retomam os caminhos seguidos por Althusser e Bourdieu,
os quais, contudo, são por eies criticados. Não se limitam à crítica
da escola capitalista: lutam por uma escola socialista.
Sua afirmação fundamental é de que o aparelho escolar, no contex­
to da formação social gerada pela prevalência do modo de produção
capitalista, atua no sentido da reprodução das relações sociais de
produção. Para tanto, o aparelho escolar tem papel mais significativo
do que os demais apareihos ideológicos, porque ele inculca a ideo­
logia dominante lastreando-a sobre a própria formação da força de
trabalho, acompànhando o processo da divisão social do trabalho:
de um lado o trabalho manual e, de outro, o trabalho intelectual.
Ora, esta divisão é a própria base ideológica e material da existência
das classes sociais na formação capitalista.
Portanto, na opinião destes autores, a educação escolar, mesmo
quando distribuída aos filhos dos proletários, através de suas prá­
ticas efetivas, está sempre em luta contra os interesses dos mesmos.
O proletariado é o adversário rea! que a burguesia, através desta
educação escoiar, tem necessidade de direcionar ideológica e profis-
sionaimente, para conter e dominar. A escoia tem, assim, uma dupla
função: preparar as forças de trabalho adequadas às exigências da
economia capitalista e inculcar a ideologia da burguesia, classe
dominante gestora dessa economia.
Os autores denunciam o caráter ideológico da alegada unidade da
escola e de sua função unificadora. De fato, a escola é dividida em

49
3.4. Educação: reprodução e transformação do sociat

As teorias expostas nos itens anteriores podem levar à conclusão


de que, de fato, os processos educacionais estão necessariamente
vinculados aos processos de criação e transmissão da ideologia. Com
toda razão, filósofos como Gramsci e Althusser explicitaram, em
relação á educação 'escolar, a condição de aparelho ideoiógico do
Estado, entendido este como aqueles equipamentos Institucionais,
mecanismos e processos de elaboração, sistematização e irradiação
do sistema de representação e valores que se quer presente no todo
social, como elemento unificador do mesmo e garantia de sua coesão.
Por outro lado, à base da significação dos conteúdos ideológicos,
estão sempre os interesses reais e concretos de grupos sociais bem
determinados, que se encontram estruturados mediante um sistema
de relações de poder. Como este sistema de relações de poder garante
o atendimento dos interessses destes grupos, a tendência natural é
no sentido de sua manutenção e permanência no tempo. Assim, o
papel da ideologia não é o de representar e legitimar esse sistema no
momento isolado do tempo, mas o de sustentar esta representação
e essa iegitimação durante o decorrer do tempo. Para tanto, é preciso
que a ideologia seja reproduzida, contribuindo, assim, para a repro­
dução do sistema social vigente. Ainda que os rearranjos do sistema
das relações sociais e econômicas impliquem em mudanças, estas
mudanças devem ocorrer sempre de acordo com este esquema de
sustentação, nunca comprometendo radicalmente esse sistema. É por
isso que mudanças aparentemente muito radicais ao nível da repre­
sentação ideológica, na realidade, constituem apenas transformações
superficiais da superestrutura, mantendo intactas a s . relações sociais
reais. Isto quer dizer que a expressão simbólica da ideologia pode
assumir formulações muito diversificadas sem que a elas correspon­
dam reais transformações da situação social.
Vistas as coisas assim, conclui-se que a educação tem papel signi­
ficativo na reprodução social, na medida mesmo em que atua eficaz­
mente na reprodução ideológica. Tal conclusão tende a reforçar a
posição dos pensadores que defendem a teoria reprodutivista da
educação. Neste sentido, todo discurso pedagógico — o da teoria,

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o da legislação e o da prática educacional — é necessariamente um
discurso ideológico auto-reprodutivo e reprodutor das relações sociais
que estruturam determinada sociedade.
Mas esta função reprodutiva da educação não esgota sua signifi­
cação total: a eddcação, contraditoriamente, é também força de
transformação objetiva das reiações sociais, ou seja, a força da edu­
cação não tem sentido unívoco enquanto pura instância de reprodução.
Ao contrário, os processos educacionais no seu conjunto e no seu
interior geram e desenvolvem também forças contraditórias, que com­
prometem o fatalismo da reprodução, quer ideológica, quer social,
atuando simultaneamente no sentido da transformação da realidade
social. Em que pese o depoimento incisivo da histórta da educaçao,
dando ganho de causa à perspectiva reprodutivista, a indução histó­
rica não exaure as potencialidades da educação. Não é porque a
história da educação tem manifestado muito mais a força reprodutora
dos processos educacionais que ela deva ser considerada univocamente
nesse sentido.
A força da contradição está presente no processo educacional
porque eia é uma realidade em todo o processo social, não podendo
a educação constituir uma exceção. A educação insere-se numa tota­
lidade na qual vigora um processo dialético constitutivo profundo,
que faz com que a realidade social seja trabalhada por forças con­
traditórias. Não é só no plano da lógica que se impõe invocar a
superação do predomínio do princípio da identidade não-contra-
ditória, é também no piano do real que impera o princípio da
contradição. Ainda quando a manutenção e a reprodução de um de­
terminado tipo de estruturação das relações sociais dão a impressão
de estabilidade e permanência, isto não comprova a inexistência de
força contraditória que pode impeli-la no sentido de sua transforma­
ção e superação.
O real é contraditório, e a educação desenvolve-se igualmente num
processo em que se embatem forças contraditórias, que podem ser
ativadas pela práxis humana. Assim sendo, a educação não é apenas
o lugar e o mecanismo da reprodução ideológica e social, nem o
discurso pedagógico só abre espaço para a significação ideológica
no sentido reprodutivista. A educapão pode também desenvolver e
implementar um discurso contra-ideoidgico.
Assim, sem desconhecer as funções assumidas por ela, tanto de
reprodução das relações sociais como de inculcação da ideologia da
classe hegemônica, é preciso levar em consideração sua força de

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0
mediação na ruptura desses processos. Ao possibilitar às ciasses
subalternas a apropriação do saber sistemático, reveiando-ihes, por
essa mediação, as reais relações de poder em que se estrutura a socie­
dade, a educação lhes permite também a compreensão do processo
social global, uma vez que este saber está genética e contraditoria-
mente vinculado à situação social por mais que, ideologicamente, se
tente camuflar esta vinculação. O saber acaba levando ao questiona­
mento das relações sociais, mediante um processo de conscientização
do real significado dessas relações enquanto relações de poder,
revelando,inclusivca condição de contraditoriedade que as permeia.
Assim, a educação acaba atuando, efetivamente, no sentido da for­
mação política das classes dominadas, tanto ao nível da gestação de
sua consciência de classe, como ao nível de sua instrumentação para
a práxis política mais adequada. Por isso, tem razão Cury quando
afirma que "a educação, como atividade, partícipe das relações
sociais contraditórias, é então uma instabilidade mais ou menos
aberta à ação social. Se sua função social esteve mais comprometida
com os interesses dos grupos dominantes do que com os interesses
e valores das classes subalternas, isto não é uma fatalidade e nem
é a sua sina. Se coopera com a reprodução das estruturas vigentes,
ela se mescla no conjunto de uma ação social transformadora que
se opõe à organização capitalista de produção, mediante a aceleração
da consciência de classe" (1985, p. 130).

a) Por detrás da política edacacionai


A educação, mediante seus processos específicos, reproduz e incul-
ca a ideologia. Mas, a ideologia tem sua gênese na própria realidade
social, cujo lastro básico é constituído p^las relações de poder, poder
este fundamentalmente econômico, uma [vez que é a propriedade dos
meios de produção que garante também o exercício do poder social.
Nas atuais sociedades modernas de formação econômica capitalista,
como é o caso da sociedade brasileira, a organização social tem por
base a presença de classes sociais antagônicas, com duas classes
proeminentes, a burguesia e o proletariado, sem prejuízo da existência
de outros segmentos sociais intermediários com atuação significativa,
mas que não chegam a constituir uma classe no sentido estrito.
É no nível das relações sociais entre estas classes e entre grupos
sociais que é elaborada a ideologia, como já se viu. A ideologia,

52
como forma de consciência, enucieia e sistematiza, através de con­
ceitos significativos e de valores legitimadores, os interesses das
classes sociais. Quanto mais é dominante uma classe social, mais ela­
borada e sistematizada se torna sua ideologia, uma vez que ela deve
ser hegemônica, impondo-se às demais classes e segmentos sociais
não-domin antes. ^
Por outro lado, uma classe dominante não exerce seu poder sobre
a sociedade, de maneira direta. Nas sociedades modernas, o poder
social se politiza e é exercido através do Estado. O Estado é uma
instância política que já se explica por exigência da própria ideolo­
gia, ele já é uma forma de se assegurar o direito ao poder social
por uma determinada classe social, mediante uma estrutura institu­
cionalizada.
O planejamento e a execução das ações necessárias e pertinentes
ao exercício do poder social se dão, ao nível do Estado, através da
política social e administrativa que constituem a base do governo da
sociedade. Assim, atendo-nos tão-somente à educação, o Estado a
implementa mediante sua política educacional. É no âmago desta
política educacional feita de idéias, planos, legislação, medidas admi­
nistrativas e processos efetivos de ação prática, que ganha forma a
ideologia do Estado e, consequentemente, da classe hegemônica.
Assim, para se fazer uma explicitação da possível significação da
; educação de uma determinada sociedade, o caminho é o da reto­
mada da história da política educacional,.do Estado, que a repre­
senta enquanto sistema de poder. Até o momento, a discussão das
relações ideologia/educação foi feita a partir da perspectiva do pen­
samento teórico. A abordagem feita situou-se ao nível do discurso
teórico explícito, ou seja, reapresentando-se sinteticamente as análi­
ses e explicações feitas por sociólogos, filósofos e educadores. Tra­
tava-se antes de uma retomada histórica e de uma discussão de idéias.
Sendo objetivo da próxima parte deste livro explicitar a signifi­
cação ideológica da educação brasileira, será então necessário reto­
mar o seu processo real enquanto processo histórico-social da educa­
ção, enquanto fenômeno histórico concreto. Esta realidade educa­
cional, fenômeno político e social que se desdobra no tempo, tem
como causas determinantes as efetivas relações sociais mediatizadas
pela política educacional do Estado, política esta obviamente inse­
rida no universo mais amplo da política social como um todo.

53
b) Meoiogia, realidade educacional e legislação
De um primeiro ponto de vista, discurso pedagógico pode referir-se
às construções teóricas mediante as quais se expressa o próprio pen­
samento educacionai. Seja através das teorias científicas, seja através
das idéias fiiosóficas, ocorre sempre um pensamento teórico que visa
explicitar e expiicar o fenômeno educacional, estabelecendo-lhe sua
especificidade, revelando seus múltiplos aspectos e dimensões. Pode-
-se falar genericamente de "teoria da educação" e se fazer uma his­
tória das idéias pedagógicas. E assim que se se refere ao pensamento
pedagógico de Rousseau, de Platão, de Skinner, de Rogem ou de

Mas, de um outro ponto de vista, a educação pode ser vista como


uma prática social e histórica concreta. A educação é então um pro­
cesso sdcio-cMituraí que se dá na bistdria de uma determinada socie­
dade, envolvendo comportamentos sociais, costumes, instituições, ati­
vidades culturais, organizações burocratico-administrativas. É o que
se podería chamar a "realidade educacional" de um país com suas
escolas, com seus currículos, com seus sistemas de ensino, com suas
estruturas e funcionamento concretos. Este é o solo real em que se
dá o processo educacional. Desta perspectiva pode-se fazer uma his­
tória da educação, enquanto retomada descritiva e sistematizante dos
fatos e dados sócio-culturais da educação. É a educação enquanto
evento social, desdobrando-se no tempo histórico, E a razão de se
falar de um discurso pedagógico enquanto prática educacional,
enquanto atividade real presente no conjunto total da prática de uma
dada sociedade. Este é também uma forma de discurso pedagógico,
ainda que não descrito ou verbalizado através de palavras: ele se
exprime mediante ações concretas, mas comporta um sentido, tanto
á quanto o discurso teórico,
No entanto, há ainda um terceiro plano do qual se pode encarar
o discurso pedagógico nas sociedades humanas, preponderantemente
nas sociedades modernas: é o piano do legal. O processo educacional
desenvolve-se na sociedade supostamente de acordo com normas jurí­
dicas, dispositivos legais elaborados e impostos pelo poder político-
-burocrático encarnado pelo Estado. Como todas as demais ativida­
des da sociedade, também a educação não escapa ao controle da
superestrutura jurídica, estabelecida a nível da organização do poder
político que domina e dirige toda a vida social. A educação não
acontece, pois, espontaneamente, na realidade social, ela é regulamen­

54

'j

tada ou seja, deve acontecer de acordo com normas e regras defi­
nidas e impostas peio Estado. Em função d:sta situação, é possível
considerar a educação em reiação à legislação destinada a regula­
mentá-la na prática; e é possível também apresentar a história da
educação de um país acompanhando a evolução dessa legislação atra­
vés do tempo, bem como retratá-la do ponto de vista desse plano
das leis.
Estes três níveis aqui intencionalmente separados são extrema­
mente importantes para a discussão do sentido ideológico da edu­
cação. De fato, eles não são separáveis, isoláveis, a não ser pata
fins da análise. A análise ideológica permite a apreensão das vin-
culações significativas possivets que interligam a prática educacional,
a legislação correspondente e o pensamento teórico relacionado a
uma e outra. Como esquema genérico, numa sociedade moderna,
tem-se que a prática real da educação implementada pela política
educacional se desenvolve de acordo cofn diretrizes legais, que são
normas que presidem à organização e ao funcionamento das institui­
ções e dos processos educacionais. A justificativa para o seguimento
de diretrizes legais é que só um Estado de direito é capaz de manter
em reiativa harmonia uma sociedade, uma vez que só assim ficam
definidos os limites entre os interesses em confronto e estabelecidos
direitos e deveres de todos. A legislação deve, pois, direcionar a
prática de forma que os objetivos e os interesses gerais da socie­
dade sejam garantidos e realizados. Uma política educacional não
pode ser arbitrária, ao contrário, deve apoiar-se sempre no direito.
Muitas vezes não se tem propriamente uma legislação explícita,
formalizada. São os próprios comportamentos costumeiros que desem­
penham o papei da legislação, uma vez que eles determinam como
deve ser a prática social.
Aceita-se assim que a legislação educacional se funda em princí­
pios admitidos como de interesse geral da sociedade e, consequente­
mente, está traduzindo concepções a respeito do que deve ser a
educação.
Deste modo, entre a prática real, a legislação e a concepção edu­
cacional vigente numa sociedade deveria haver profunda harmonia.
Do que já se viu anteriormente, conclui-se facilmente que a* legis­
lação é um veículo adequado à transmissão da ideologia, enquanto
concepção do mundo, para as instituições e práticas educacionais.
Ela serve de ponte entre as concepções ideológicas dominantes e
o aparelho escolar. A própria legislação desempenha, assim, a fun­

55
ção de aparelho ideológico do Estado, viabilizando a irradiação gene-
ralizadora de princípios educacionais que integram a concepção de
mundo, que é hegemônica, numa determinada sociedade. Cabe à legis­
lação, no caso da educação, viabilizar a efetivação de comporta­
mentos desejados de acordo com a concepção dominante vigente.
Assim, a esfera jurídica, enquanto superestrutura em relação ao
social, já representa um instrumento de transmissão e imposição ideo­
lógica, constituindo-se num eficaz aparelho ideológico do Estado,
situando-se à fronteira dos aparelhos de repressão material. Atri­
bui-se à superestrutura jurídica, ao direito e à legislação positiva,
uma qualidade intrínseca de alcance universal, capaz de estabelecer
e garantir objetivamente os interesses de todos os membros de uma
determinada sociedade, sem exceção. Ora, a análise filosófico-sociai
mostra que não á bem assim, uma vez que a superestrutura jurídica
também ela está a serviço de interesses particulares, obviamente pro­
clamados como interesses universais.
Mas no que diz respeito especificamente à legislação educacional,
ela é um veículo adequado para fazer com que os processos educa­
cionais concretizem os valores da ideologia que se quer transmitir.
A legislação educacional veicula, pois, a ideologia que o Estado, o
poder público, quer fazer vingar, através de sua política educacional.
Por sua vez, o Estado, enquanto instância política, representa deter­
minada classe social detentora do real poder, a classe social domi­
nante.
Portanto, é possível apreender, através da política educacional em
geral e da legislação educacional em particular, quais os elementos
ideológicos preponderantes que o Estado, e através dele as classes
dominantes de uma dada sociedade, quer veicular e inculcar ao todo
da população. A legislação atua ideologicamente não apenas por per­
tencer ao plano da superestrutura jurídica, mas porque tem um dis­
curso explícito diferente do discurso real, ou seja, proclama uma
coisa, enquanto deseja e visa outra. Ao nível do discurso explícito,
apresenta valores e defende interesses aparentemente universais,
enquanto que seu real objetivo permanece particular. Contudo, inte­
resses particulares da classe social dominante, que precisa viver em
meio a outras classes dominadas, geralmente majoritárias, não podem
ser apresentados como particulares, como já se viu anteriormente.
Mas a legislação educacional na exata medida em que oenha
a verdadeira ideologia das classes dominantes e do Estado (apre­
sentando os valores particulares como se fossem universais, como

56
se correspondessem aos interesses de todos) et a a reveia (uma vez
que, por trás dessa aparência é possível perceber, através da análise
filosófico-social, a sua particularidade).
Quando nos propomos a analisar a significação ideológica da rea­
lidade educacional brasileira, é possível ter em mente o real processo
social, tal como ele é recuperado pela própria abordagem histórica
em relação direta e imediata à ordenação jurídica no âmbito da legis­
lação educacional, na medida em que esta era o instrumento de orien­
tação e implementação desse processo. Na história da educação bra­
sileira, o Estado aparece, a cada momento, como o agente que, de
perto ou de longe, busca coordenar seu desenvolvimento e sua mani­
festação, fazendo isto através das diretrizes legislativas, que lhe dão
instrumentos de intervenção na vida da sociedade brasiieira. Imple­
menta, assim, sua política educacional, definindo estabe­
lecendo normas' e aplicando recursos malertots necessários para sua
realização, avaliando resultados.
É no emaranhado dessa política educacional como um todo que
se pode desvelar a significação ideológica subjacente que, afinal, pre­
side a todo o processo e o explica, em última instância.

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