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TERRITORIALIDADES QUILOMBOLAS

Centro Odum Rondu e a tessitura da rede de comunidades quilombolas


em Laje dos Negros.

TERRITORIALITIES QUILOMBOLAS
Odum Center Rondu and weaving the network of maroon communities
in Slab of Negros.

TERRITORIALIDADES QUILOMBOLAS
Odum Centro Rondu y tejer la red de comunidades de cimarrones
en losa de Negros.
SESÃO TEMÁTICA: NOVOS CONCEITOS E ''NOVOS'' PATRIMÔNIOS.

AUTOR: Fábio Macêdo Velame.

Titulação: Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFBA e Professor Adjunto I do Departamento I


da FAUFBA - Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.

RESUMO:
O presente ensaio busca compreender o papel da arquitetura na construção da territorialidade das
comunidades quilombolas do sertão baiano. Têm como recorte as 22 comunidades remanescentes de
quilombos localizados na zona rural do Município de Campo Formoso na Microrregião de Senhor do Bonfim,
no sertão baiano, e como objeto de estudo de caso a ''Casa Odum Rondu'' de Dona Josefa, localizada na
comunidade quilombola de Barrocas na rede de quilombos de Laje dos Negros. Busca-se entender como
uma casa e sua arquitetura constrói relações de territorialidades entre diversas comunidades quilombolas e
como ela tece uma rede que abrange toda a região através de práticas, rituais, atividades e funções nela
existentes. Para tanto três conceitos são fundamentais para a análise: território, etnicidade e cultura.

PALAVRAS CHAVES: Quilombos, Territórios e Arquitetura.

RESUMEN:
Este ensayo trata de comprender el papel de la arquitectura en la construcción de la territorialidad de las
comunidades de cimarrones del interior de Bahía. Cortan como las 22 comunidades quilombolas ubicadas
en el municipio rural de Campo Formoso en Microregión Senhor do Bonfim, en Bahía backcountry, y como
el objeto de estudio de caso'' House'' Odum Rondu doña Josefa, que se encuentra en barroco en la
comunidad maroon de quilombos red de losa de Negros. Buscamos entender cómo una casa y su
arquitectura se construyen las relaciones entre las diversas comunidades maroon territorialidades y cómo
se teje una red que cubre toda la región a través de prácticas, rituales, actividades y funciones dentro de la
misma. Tanto para tres conceptos son fundamentales para el análisis: el territorio, la etnia y la cultura.

PALABLAS-CLAVE: Quilombos, Territorios y Arquitectura.


ABSTRACT:
This essay seeks to understand the role of architecture in the construction of territoriality of maroon
communities of the interior of Bahia. They cut as the 22 quilombola communities located in rural municipality
of Campo Formoso in Microregion Senhor do Bonfim in Bahia backcountry, and as the object of the case
study'' House'' Odum Rondu Dona Josefa, located in Baroque in maroon community of network quilombos of
Slab of Negros. We seek to understand how a house and its architecture builds relationships between
diverse communities territorialities maroon and how she weaves a network that covers the entire region
through practices, rituals, activities and functions within it. For both three concepts are fundamental to the
analysis: territory, ethnicity and culture.

Keyword: Quilombos, Territories and Architecture.


TERRITORIALIDADES QUILOMBOLAS
Centro Odum Rondu e a tessitura da rede de comunidades quilombolas em Laje
dos Negros.

O presente ensaio busca compreender o papel da arquitetura na construção da territorialidade das


comunidades quilombolas do sertão baiano. Têm como recorte as 22 comunidades
remanescentes de quilombos localizados na zona rural do Município de Campo Formoso na
Microrregião de Senhor do Bonfim, no sertão baiano, e como objeto de estudo de caso a ''Casa
Odum Rondu'' de Dona Josefa, localizada na comunidade quilombola de Barrocas na rede de
quilombos de Laje dos Negros.

Busca-se entender como uma casa e sua arquitetura constrói relações de territorialidades entre
diversas comunidades quilombolas? Como ela tece uma rede que abrange toda a região? Quais
os valores, práticas, rituais, atividades e funções nela existente capaz de agregar diversas
comunidades quilombolas, mantendo-as coesas? Para tanto três conceitos são fundamentais para
a análise: território, etnicidade e cultura.

No campo do território serão utilizados as seguintes teorias e autores: territorialidade multiescalar


– territórios contínuos, territórios descontínuos, territórios-rede (Marcelo Souza); território-teia
(Robert Sack); territórios extrovertidos e introvertidos (Rogério Haesbaert); territórios da errância
(Joel Bonnemaison). No campo da etnicidade serão tratados os seguintes autores e teorias:
etnicidade primordial (Marx Weber e Cliffort Geertz), etnicidade relacional (Fredrick Barths), e a
etnicidade situacional (Abner Cohen). E, por fim, no campo da cultura será utilizada a noção de
cultura oriunda da Antropologia Hermenêutica ou Antropologia Interpretativa de Cliffort Geertz.

O termo território surgiu da etologia, ramo da biologia (zoologia), que estuda o comportamento
dos animais e suas acomodações ao meio ambiente e suas relações com o espaço. O termo
território foi empregado pela primeira vez na geografia na segunda metade do século XIX, por
Friedrich Ratzel em sua obra Geografia Política1. Foi o geógrafo alemão que criou o conceito de
espaço vital (Lebensraum).

1
Ver também a obra Antropogeografia de Friedrich Ratzel.
Para Ratzel o território seria uma parte da superfície terrestre apropriado e utilizado por um grupo
humano. A adaptação do homem ao meio ambiente se daria pela utilização de recursos naturais
(fontes de energia), para a reprodução dos aspectos materiais de uma dada cultura.

Ratzel estabelece a noção de território como um elemento inerente ao Estado Moderno cuja
riqueza estaria vinculada a aquisição de novos territórios fornecedores de fontes de energia,
matérias-primas e mercados consumidores. O autor defende a idéia de que quantos mais
territórios conquistados mais rica seria uma determinada nação.

Em seguida, os geógrafos franceses Elisée Reclus (1894), em sua obra Nova Geografia
Universal: a terra e os homens, e Camille Vallaux (1914), em seu trabalho Geografia Social – O
solo e o estado, aprofundaram as questões relativas a política e economia a problemática do
território, vinculando-os as questões do Estado-Nação. Elisée Reclus vinculou o território com as
relações entre as classes sociais, tratando-o como um espaço de domínio e disputas entre as
classes. Camille Vallaux tratou o território como um espaço de domínio político sob a égide de um
Estado que realiza a soberania de um determinado povo.

O geógrafo suíço Claude Raffestin (1993), em sua obra Por uma Geografia do Poder, trabalha o
território a partir das formulações e reflexões de Foucault sobre o saber e o poder. Trata a relação
poder e espaço, separando e distinguindo as noções de espaço e território, tratando-os como
coisas distintas. O espaço seria anterior ao território, algo pré-existente, e o território o fruto da
ação humana, um espaço onde se projetou um trabalho e informação, desvelando relações de
poder. Raffestin parte das relações sociais e históricas estabelecidas, considerando o território
como um fruto de um determinado conhecimento e uma prática sobre um substrato material e
social.

Marcelo Lopes de Souza, geógrafo brasileiro, em seu trabalho Sobre o espaço: Território
Autonomia e Desenvolvimento2, também sob a luz do pensamento de Foucault, irá questionar o
vínculo das relações de poder com o substrato social e material tratado por Raffestin. O autor
trata o território como um campo de forças3 projetado no espaço:

2
SOUZA, Marcelo Lopes. de. Sobre o espaço: Território Autonomia e Desenvolvimento. In CASTRO, I.E. de;
GOMES, P. C. C; CORRÊA, R. L. (orgs.) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 77-116,
1995.
O território não é o substrato social em si, mas sim um campo de forças, as
relações de poder espacialmente delimitadas e operando, destarte sobre um
substrato referencial. […] Sem sobra de dúvida pode o exercício do poder
depender muito diretamente da organização espacial, das formas espaciais; mais
ai falamos dos trunfos espaciais da defesa do território, e não do conceito de
território em si. […] O território será um campo de forças, uma teia ou rede de
relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define ao mesmo tempo
um limite, uma alteridade: a diferença entre 'nós' (insiders) e os 'outros' (outsiders).
(SOUZA, 1995, p. 98)

Para Marcelo Lopes de Souza o espaço físico pode permanecer o mesmo, entretanto, as relações
de poder criam territorialidades diversas num determinado espaço, que podem ser duráveis ou
efêmeros, lineares ou cíclicas, longos ou curtos, estáveis ou instáveis, podendo configurar-se
como territórios contínuos e descontínuos. Marcelo Lopes de Souza conceitua os territórios
contínuos como uma extensão limitada da superfície; e, territórios descontínuos como uma rede a
articular dois ou mais territórios contínuos. Os territórios descontínuos são ao mesmo tempo
pontos da rede, e territórios contínuos, ou seja, uma extensão limitada de superfície, e não
apenas um nó na concepção clássica de rede, ele é um nó, mas também, superfície delimitada.
Da noção de territórios descontínuos, a partir de uma análise multiescalar, Marcelo Lopes Souza
deriva o seu conceito de territórios-rede, onde as redes e os territórios (superfícies) coexistem
simultaneamente em escalas diferentes. A noção de território desvinculado de um substrato
material, mas sim entendido enquanto relações de poder que se projetam no espaço é ampliado
por Robert Sack (1986), em sua obra Human Territoriality que problematiza o território sob três
aspectos: 1 - diferencia a territorialidade animal (regida pelos instintos), e humana (interesses,
estratégias, e táticas de ação no espaço); 2 - os territórios não possuem uma dimensão estática,
fixa, podendo, inclusive, mudar de lugar, sendo móveis e, também, durar um determinado período
de tempo, ou seja, o território é dinâmico; 3 - o território pode ser composto por várias parcelas de
espaços conectados por um mesmo agente, constituindo-se em rede, uma teia4.

3
O conceito de Poder enquanto uma correlação de forças é tratado pelo filósofo francês Michel Foucault em
Microfísica do Poder, e, Vigiar e Punir. Para o autor o poder passa a ser um campo de forças em diversas escalas e
presente em todas as relações sociais, rompendo com as noções clássicas de poder como uma coisa que possui
uma substância, e, portanto, que pode ser possuído por alguém, o poder não se têm, se exerce sempre em uma
relação com o outro; o poder não é algo, uma coisa, uma meta, um fim a ser atingido por uma pessoa, grupo ou
classe social, mas sempre relações e correlações de forças; e, por fim, o poder não habita em um lugar, o Estado,
mas está presente de forma difusa em todo o corpo social.
4
Ver também BRITO, Cristóvão. Revisando o conceito de território. Revista de Desenvolvimento Econômico.
Salvador: ano IV, nº6, p.12-20. Julho de 2002.
Essa teia além de constituir essas relações de poder, um campo de forças que se espacializa em
temporalidades distintas, é também uma rede de significações. A cultura através de suas
dimensões simbólicas caracteriza essas relações de poder, dão uma cara, uma face ao campo de
força, qualifica expressivamente o território. As dimensões simbólicas também delimitam o espaço
criando o território, demarcam simbolicamente o substrato material. O antropólogo americano
Clifford Geertz em sua obra A Interpretação das Culturas nos traz o conceito de Cultura enquanto
uma teia de significações, um sistema de concepções herdadas e expressadas em símbolos:

Acreditamos, como Max Weber, que o homem, é um animal amarrado a teias de


significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a
sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa, à procura do significado [...] De qualquer forma, o
conceito de cultura ao qual eu me atenho não possui referentes múltiplos nem
qualquer ambiguidade fora do comum, segundo me parece: um padrão de
significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos, um sistema
de concepção herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os
homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atividades em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p.4)

O geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2004), em sua obra O mito da desterritorialização: do


fim dos territórios à multiterritorialidade, apresenta três formas de abordagem do território:
econômica; jurídica-política; e, a cultural. A econômica trata o território em sua perspectiva
material, como uma consequência espacial das tensões, disputas e embates entre as classes
sociais inerente nas relações entra o capital-trabalho na sociedade capitalista. A jurídica-política
problematiza o território como um espaço delimitado, definido, controlado sob a tutela do Estado
que exerce o seu poder. A cultural foca o caráter simbólico do território, através do vivido, do
experimentado, uma apropriação subjetiva do espaço que se dá pelo imaginário e afetividade. As
três vertentes sobrepõem-se, relacionam-se. Rogério Haesbaert irá defender, ainda, a proposição
de que não existe território sem algum tipo de caracterização, qualificação e valorização simbólica
seja ela positiva ou negativa dos espaços pelos seus usuários, pelas pessoas que vivenciam e
experimentam os espaços. Nessa perspectiva, o território edifica-se a partir de relações de poder,
campos e correlações de forças, que se espacializam através de processos de demarcação e
delimitação simbólica5.

5
Ver também o trabalho HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. in CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z.
Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 49-58, 1999.
O simbólico estabelece a diferença, traça a relação entre o nosso território e o território deles, do
''outro'', do diferente. O simbólico ao estabelecer a diferença, imprime tensão ao campo de forças.
Tensão de relações de poder que estigmatizam, hierarquizam, valoriza uns (cultura dominante da
sociedade mais ampla), e depreciam outros (subculturas6 das minorias), estabelecendo valores de
juízo, definindo o que é bom e mau, belo e feio, o agradável e desagradável, transformando o
outro que é diferente de mim em marginal, vadio, alguém perigoso.

O território é, segundo a perspectiva de Haesbaert, o espaço apropriado, organizado, conectado e


articulado por um determinado grupo cultural através de processos simbólicos e afetivos que lhes
são próprios e particulares. Rogério Haesbaert7 trata os territórios culturais em uma configuração
em rede, ele traça duas modalidades de redes: as extrovertidas; e, as introvertidas. As redes
extrovertidas são aquelas cujos fluxos destroem territórios, chamadas também de
desterritorializantes. E, as introvertidas, que criam novos territórios, chamadas de territorializantes
que operam laços de cooperação, amizade e ajuda mútua, de companheirismo e solidariedade
operando linhas de fuga e reterritorializações8.

Joel Bonnemaison (2002), geografo francês, inserido na vertente da Nova Geografia Cultural, ou
Geocultura, em seu trabalho Viagem em torno do território9, propõe um caminho de análise do
espaço e dos territórios através da cultura. Defende que é pela existência de uma determinada
cultura que se cria um território, e é através de um território que se desenvolve, fortalece, e se
exprime a relação simbólica existente entre espaço e cultura. O autor concebe os territórios em
uma perspectiva espacial de rede que ele chama de territórios da errância. Bonnemaison
considera territórios da errância, sobretudo das comunidades tradicionais, a rede composta de
espaços especiais, expressivos, chamados de pontos fortes ou lugares significativos, e os
itinerários, que são os percursos, caminhos, trajetos, rotas reconhecidas que ligam e conectam os
lugares significativos (BONNEMAISON, 2002, p.98).

6
Subcultura não é aqui tratada como uma cultura inferior, subalterna, mas como a cultura das minorias, as culturas de
resistência à cultura dominante da sociedade mais ampla.
7
Ver HAESBAERT, Rogério. Hibridismo, Mobilidade e Multiterritorialidade numa Perspectiva Geográfico-Cultural
Integradora. In: SERPA, Angelo. Espaços Culturais. Vivencias, imaginações e representações. Salvador: EDUFBA, p.
393-419. 2008.
8 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. São Paulo: Ed. 34, 1997.

9
BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORREA, R L. & ROSENDHAL, Z. (Orgs.). Geografia
cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EDUERJ, p. 83-131, 2002.
Território da errância: lugares significativos e os itinerários propiciam o espaço experimentado,
vivido, percorrido, do desejo, da vontade, e da afetividade. Uma rede cujos nós (pontos), são
lugares significativos que em uma escala reduzida também constituem territórios, e cujas linhas
são os percursos, itinerários, rotas que conectam ''pontos fortes'', tornando-se territórios em
movimento, em fluxo, nômades. O ato de percorrer é ele próprio um território nômade traçado pelo
corpo do itinerante. Segundo Joel Bonnemaison:

''[…] espaço e território não podem ser dissociados: o espaço é errância, o


território é enraizamento. O território têm necessidade de espaço para adquirir o
peso e a extensão, sem os quais eles não podem existir; o espaço têm
necessidade de território para se tornar humano''. (BONNEMAISON, 1981, p.
262).

O uno dilui-se, fragmenta-se, em uma totalidade de outra natureza, uma totalidade fragmentária.
Uma rede, territórios descontínuos, territórios introvertidos, territórios itinerantes, lugares do
sagrado que dão sustentação ao fluxo da vida, que levam fortunas e venturas aos desvalidos do
sertão baiano.

O território é um conceito chave no entendimento das problemáticas e da vida quilombola por


diversos motivos: constitui o substrato espacial do desenvolvimento da micro economia local,
geralmente de base familiar onde se desenvolvem práticas diversas de subsistência arraigadas na
terra; pela relação com a natureza (marés, estações do ano, ciclo lunar, etc...), que regem a vida e
a produção; pelas relações de parentescos que ali se estabelecem; pelos lugares sagrados e
simbólicos que agregam a comunidade; e pelas relações de ancestralidade personificadas na
terra, o território assume para o quilombola uma relação ontológica.

A Bahia é atualmente o segundo estado em número de quilombos certificados pela Fundação


Cultural Palmares (FCP), são 462 quilombos, perdendo apenas para o Maranhão com 632
quilombos. Do universo de quilombos da Bahia os que apresentam os piores índices de
desenvolvimento humano IDH, segundo diagnósticos da SEDES-Secretária da Pobreza e
Desenvolvimento Social da Bahia, são os localizados no semi-árido baiano, notadamente, os da
região do sisal, e dentre esses, o mais notório é o quilombo de Lajes dos Negros por constitui uma
rede que agrega cerca de 22 comunidades quilombolas.
A rede de comunidades remanescentes de quilombos de Laje dos Negros fica a duas horas de
estrada de terra de Campo Formoso, em meio a plantações de sisal. O sisal constituiu a base
econômica da região e, notadamente, das comunidades quilombolas locais, que trabalham tanto
nas plantações, quanto no processamento do sisal.

Todavia, sob a égide do sisal essas comunidades vivem em sub empregos próximo ao trabalho
escravo, sobrevivem no limite da pobreza com ajuda dos programas sociais do governo federal,
principalmente o Bolsa Família, sendo que, para algumas famílias esse benefício constitui a única
fonte de renda.

A rede de quilombos de Laje dos Negros perfaz uma população de 12.700 pessoas, distribuídas
da seguinte forma, por números de famílias: Laje dos Negros (700); Laje de Cima I (130); Laje de
Cima II (124); Barroca (52); Sangrador I (32); Sangrador II (36); Sangrador III (29); Mulumgu (84);
Alagadiços (96); Casa Nova (48); Amaro (66); Ferreira (42); Pato I (74); Pato II (33); Pato III (34);
Pedra (68); Paqui (150); Saquinho (55); Bêbedo (66); Poço Pedra (38); Lagoa Branca (80); Buraco
(48).

A rede de quilombos de Laje dos Negros surgiu, conforme Florência Costa Nascimento, de 85
anos, neta de um escravo chamado Miguel da Costa a partir da ação de um negro, escravo,
chamado Luizinho. Segundo Dona Florência, Luizinho veio fugido e encontrou essa localidade
protegida por uma cadeia de morros, estratégica para fugas e para instalação de uma
comunidade quilombola, e lá casou e constitui família, dando o nome do lugar de Laje, mais tarde
a população do quilombo, acrescentou o termo Negros, dando a nomenclatura atual de Laje dos
Negros.

Uma outra versão dada por Dona Josefa Florentina Sales Celestino, 56 anos de idade, e líder da
comunidade quilombola de Barrocas (Fig.01), dona da ''Casa Odum Rondu'', e que desenvolve os
ofícios de parteira, curandeira e rezadeira o nome Laje dos Negros é oriundo de um riacho
próximo a comunidade constituída de pedras e lajes e, em uma ocasião de fuga, dois negros,
escravos, pularam e sumiram no rio, daí o termo Laje dos Negros.
Fig 01:Quilombo Barrocas.
Fonte: VELAME, Fábio, Campo Formoso-Ba, 2010.

O Quilombo de Barrocas, que têm como padroeiro Santo Antônio, constitui a comunidade
quilombola da região mais precária e pobre. As casas não possuem cisternas e fossas sépticas.
A comunidade não possui sistema de abastecimento de água da EMBASA, é abastecido por um
tanque existente na comunidade quilombola de Mulungu, tendo, portanto, graves problemas de
abastecimento de água, notadamente, durante o verão com as secas recorrentes. O atendimento
médico é precário, não possuem posto de saúde e o médico vai a comunidade três vezes ao mês.
A comunidade têm um alto índice de óbitos de mulheres provenientes de complicações na hora do
parto devido a distância ao posto de saúde e hospital em Campo Formoso, a própria Dona Josefa
teve 17 filhos dos quais apenas 6 filhos encontram-se vivos, os demais, morreram no parto. Não
possui escola municipal, essa encontra-se no quilombo de Laje dos Negros, todavia, atualmente
está desativada.

Todavia, embora seja a comunidade mais precária e desprovida de serviços urbanos dentre os
quilombos de Laje dos Negros a comunidade quilombola de Barrocas possui a principal
construção da região: ‘’Centro Odum Rondu’’ (Fig. 02), que é a casa de Dona Josefa Florentina de
Sales Celestino, também conhecida de Dona Josefa, a ''casa da esperança no sertão baiano''.
O ''Centro Odum Rondu'' é uma Casa de Cabloco onde acontecem práticas afro-brasileiras
mescladas com práticas oriundas do catolicismo popular do alto sertão baiano. As principais
manifestações culturais da comunidade são as festas oriundas do catolicismo popular do sertão
baiano mesclado com práticas de origem africanas, ou seja, novenas seguidas com rodas de
Samba - Rodas de São Gonçalo -, a saber: festa de São João; festa de Santo Antônio; Caruru de
São Cosme e São Damião; Santa Bárbara; e, a festa de São Gonçalo.

As duas principais festas da comunidade são a festa de Santo Antônio e São Gonçalo, sempre
seguida da aparição do Cabloco Odum Rondu, que dança, cura e aconselha os desvalidos do
sertão baiano, segundo Dona Josefa:

O Meu Santo Antônio de Luz


ele é dono da Maré, ô
meu Santo Antônio de Luz,
ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz,

O Meu Santo Antônio de Luz


ele é dono da Maré, ô
meu Santo Antônio de Luz,
ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz,

O Meu Santo Antônio de Luz


ele é dono da Maré, ô
meu Santo Antônio de Luz,
ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz.

O Meu Santo Antônio de Luz


ele é dono da Maré, ô
meu Santo Antônio de Luz,
ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz.

O Meu Santo Antônio de Luz


ele é dono da Maré, ô
meu Santo Antônio de Luz,
ele é luz, é luz, ô
meu Santo Antônio de Luz.
E, ainda temos a de São Gonçalo, ainda, segundo Dona Josefa:

São Gonçalo não é como os outros santos,


como os outros santos,
São Gonçalo quer que cante, quer que cante,

São Gonçalo não é como os outros santos,


como os outros santos,
São Gonçalo quer que cante, quer que cante,

São Gonçalo não é como os outros santos,


como os outros santos,
São Gonçalo quer que cante, quer que cante.

O termo Odum Rondu é uma corruptela do termo Ogum de Ronda, que é uma entidade
respeitada e reverenciada em Terreiros de Candomblé da Nação Angola e muito recorrente em
templos de matrizes africanos no interior do estado. Dona Josefa tinha uns ‘’calundus’’ quando era
criança e, com 12 anos começou a ‘’cair’’, depois começou a trabalhar rezando e tratando as
pessoas, como ela nos diz: ‘’passei a fazer sentença de rezar as pessoa’’, usando sempre o
raminho vassourinha, arruda, manjericão pra ‘’rezar o povo’’. Odum Rondu, dá o nome a casa,
porque é o cabloco que mais se manifesta em Dona Josefa, ele é o responsável pela ''saúde'' do
povo e conselheiros dos desvalidos.

Fig 02: Casa Odum Rondu.


Fonte: VELAME, Fábio, Quilombo Barrocas, 2010.
O ‘’Centro Odum Rondu’’ é composta pela casa de Dona Josefa, com características residenciais,
somada por um salão lateral, um ‘’barracão’’, assemelhando-se aos barracões dos terreiros de
candomblé. Esse ‘’barracão’’ (Fig. 03) é constituído por dois espaços: o salão, onde se realizam
as festas da comunidade com as possessões das entidades (cablocos, boiadeiros, vaqueiros ver
Fig. 04), com a marcação no piso (itoto ver Fig.05) e no teto do centro do salão (com conchas e
fitas), em volta do qual se dão as festas, onde dança o Cabloco Odum Rondu, constituindo o axi
mundi da casa e, ainda, uma salinha onde vestem as entidades; e, um nicho, ao fundo do salão
onde está um altar católico, com diversas imagens de santos e santas católicos (Fig.06).

Fig 03: ''Barracão'' Casa Odum Rondu.


Fonte: VELAME, Fábio, Quilombo Barrocas, 2010.
Fig 04: Cabloco Odum Rondu.
Fonte: VELAME, Fábio, Quilombo Barrocas, 2010

Fig 05: Itoto do ''barracão'' da Casa Odum Rondu.


Fonte: VELAME, Fábio, Quilombo Barrocas, 2010.
Fig 06: Altar Católico na Casa Odum Rondu.
Fonte: VELAME, Fábio, Quilombo Barrocas, 2010

O ‘’Centro Odum Rondu’’ desempenha várias funções dentro do quilombo, constitui o coração do
Quilombo de Barrocas, e, também, o centro da rede de quilombos de Laje dos Negros. A casa
tece o território-rede, o território extrovertido, o centro da errância e da itinerância das
comunidades quilombolas que a ele dirigem-se atrás de cuidados para seus infortúnios e fortunas,
desventuras e venturas, dando sustentação ao fluxo da vida. A casa possui diversas funções que
se justapõem dentro do quilombo:
1 - centro comunitário onde são realizadas as reuniões sobre problemas da comunidade;
2 - centro cultural, onde são realizadas as preparações das festas da comunidade;
3 - creche, onde as crianças ficam enquanto as mães vão trabalhar no sisal;
4 – centro de processamento do sisal e artesanato utilizando as fibras do sisal;
5 - escola, onde as crianças desenvolvem atividades de coordenação motora e aprendem as
primeiras letras com os próprios lideres quilombolas que viram professores improvisados;
6 - posto de saúde, onde são feitos os tratamentos e práticas medicinais alternativas e rezas por
Dona Josefa;
7 – posto de serviços sociais com a distribuição de cestas básicas;
8 – farmácia do povo onde distribuem-se os remédios da secretária municipal de saúde;
9 - centro religioso onde realiza-se as novenas católicas, missas, e o recebimento de entidades
para atendimento da comunidade.
E é justamente a religiosidade que torna a construção, o ’'Centro Odum Rondu’’ , o centro do
quilombo de Barrocas, torna-a a principal construção da rede de quilombo de Lajes dos Negros.
Ela é a mais importante porque a população local atribui o valor de ancestralidade ao cabloco
Odum Rondu, que pelas curas, tratamentos, realizações e acontecimentos feitos aos desvalidos
no alto sertão de Campo Formoso tornou-se um ancestral coletivo de toda a rede de quilombos de
Laje dos Negros.

A figura do Odum Rondu e a sua morada, sua casa, constrói a identidade da comunidade
quilombola de Laje dos Negros. O Centro Odum Rondu propicia, num primeiro momento, uma
identidade primordial, enquanto herança recebida da imagem de uma entidade coletiva cujo
prestigio se estende aos seus seguidores, cabloco que historicamente havia salvado seus pais,
avós e bisavós de grandes mazelas. Num segundo momento, uma identidade relacional, na
medida em que, distingue e diferencia os membros dos quilombos de Laje dos Negros das
populações dos demais quilombos da região, imprimindo um teor de prestigio por serem
protegidos por um cabloco forte e de grande poder. E, por fim, uma identidade situacional, em
momentos em que, essa população enfrenta grandes mazelas, em períodos de grandes secas,
quando o cabloco se faz mais presente trazendo fortuna e ventura aos desvalidos do sertão.

Todos os membros da Rede de Quilombos de Laje dos Negras se reportam para a Casa Odum
Rondu, para ouvi do Cabloco uma solução ou conselho sobre problemas pessoais de ordem
profissional, financeiros, saúde, de amor, e, também, coletivos em épocas de grandes secas.
BIBLIOGRAFIA:

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