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O Currículo de Artes Visuais do Colégio de Aplicação da UFRJ: seus discursos, valores

e orientação ética.

Relatório Acadêmico Científico de Projeto de


Pesquisa

Auxílio: FAPERJ Instalação


Processo: E-26/111.927/2011
Outorgada: Andrea Penteado De Menezes
Faculdade de Educação da UFRJ
Grupo de Pesquisa sobre Ética na Educação
(GPEE/PPGE)

Colaboradores:
Thaís Spínola Afonseca – Lic. em Artes Plásticas – Bolsista PIBC CNPq/UFRJ
Flavia Hargreaves - Egressa – Licenciada em Artes Plásticas
Mariana Cunha Nobre - Lic. em Artes Plásticas
Isabelle Ribeiro Coutinho - Lic. em Artes Plásticas
Isis de Souza Rodrigues- Lic. em Artes Plásticas

Rio de Janeiro, 2013.


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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 03
2. SOBRE A TEORIA QUE ALIMENTOU NOSSA CURIOSIDADE ........................... 06
3. DA CURIOSIDADE INTELECTUAL À INTERLOCUÇÃO COM O CAMPO E
OUTROS AUTORES: JUSTIFICATIVAS PARA ALGUNS PRESSUPOSTOS .......... 12
4. A CURIOSIDADE EM AÇÃO: A PESQUISA GERA MÉTODO E
CONHECIMENTO ............................................................................................................... 18
5. PRIMEIRAS IMPRESSÕES: GRUPO FOCAL E AJUSTE DE PESQUISA ............ 28
6. O CURRÍCULO DE ARTES VISUAIS DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRJ:
SEUS DISCURSOS, VALORES E ORIENTAÇÃO ÉTICA: ANÁLISE DE DADOS .. 36
6.1 Dados numéricos gerados na pesquisa e premissas gerais ........................................... 36
6.1.1 Segundo ano do ensino fundamental ........................................................................... 37
6.1.2 Segundo ano do ensino medio ....................................................................................... 41
6.1.3 Professores A e B ........................................................................................................... 44
7. O CURRÍCULO DE ARTES VISUAIS DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRJ:
SEUS DISCURSOS, VALORES E ORIENTAÇÃO ÉTICA: ANÁLISE DE
ARGUMENTOS ..................................................................................................................... 47
7.1 Muro de Berlim................................................................................................................. 47
7.2 Sagrada Família, de Michelângelo .................................................................................. 55
7.3 Doze Meses, de Cadu ........................................................................................................ 61
7.4 Imagem da Festa Junina em uma Escola ....................................................................... 68
7.5 A Fonte, de Marcel Duchamp .......................................................................................... 75
7.6 Imagem de Desenho Infantil ............................................................................................ 81
7.7 Imagem de Tatuagem ....................................................................................................... 87
7.8 Imagem da Natureza ........................................................................................................ 92
7.9 Imagem de intervenção com pichação, de Augustaitz................................................... 96
7.10 Imagem Grupo de Maracatu, de Sueli do Caruaru .................................................. 105
8. CONCLUSÃO: NOVOS ACORDOS PROVISÓRIOS PARA A DISCUSSÃO DO
CURRÍCULO ESCOLAR ................................................................................................... 113
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 120
ANEXO I – Instrumento de pesquisa utilizado em 2005-2009 ......................................... 122
ANEXO II – Instrumento de coleta de dados da atual pesquisa (imagens utilizadas)... 124
ANEXO III – Relatório de produtividade .......................................................................... 136
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1. INTRODUÇÃO
Essa pesquisa deu continuidade à tese de doutoramento intitulada "O Argumento do
Auditório: o que dizem os alunos sobre o ensino de arte em suas escolas?" (PENTEADO,
2009) e teve como objetivo analisar e compreender discursos de alunos de ensino básico a
respeito do objeto de estudos das artes visuais, analisando seus juízos de valor sobre esse
campo das artes. Observamos também as aproximações e distanciamentos de suas teses em
relação aos discursos de seus professores com vistas a pensar a possibilidade de incorporar ao
currículo da escola as contribuições trazidas pelos estudantes. Além disto, buscamos
investigar estratégias metodológicas de aproximação com os discursos de alunos com idades
menores e/ou mesmo não dominantes da lectoescritura.
Na tese de doutoramento foi possível avaliar que os alunos trazem contribuições de
conteúdos a serem inseridos nos currículos que, em muitos casos, partem do precedente; ou
seja, de experiências que já tiverem no próprio ambiente escolar. Observamos, por exemplo,
que ao serem indagados sobre quais conteúdos gostariam estudar em artes e o porquê da
sugestão, parte das respostas significativas remetiam a experiências escolares realizadas, tais
como na resposta de um aluno de sexto ano de uma escola Municipal do Rio de Janeiro: "eu
sugeriria que tivesse aulas de pintura e queria que tivesse os ângulos, porque uma das escolas
que eu estudava (sic), falava muito sobre ângulos (sic)" (PENTEADO, 2009, pg 199). Em um
primeiro momento isso nos chamou a atenção em direção às formulações de Bourdieu (In
NOGUEIRA & CATÂNI, org., 2004) quando defende o ensino integral pelo viés da
possibilidade de submersão dos alunos de classes sociais desfavorecidas em uma ambiência
cultural característica das classes dominantes, sugerindo que a escola seria a instituição
privilegiada para esse processo de aculturamento. Entretanto, deparamos com um movimento
oposto (e paradoxal, se admitíssemos sem maior problematização a premissa bourdieuana)
que foi encontrar, justamente nas respostas dos alunos mais velhos, de oitavo ano, que estão
inseridos há mais tempo no ambiente escolar, sugestões que se distanciavam dos conteúdos
que vinham sendo aplicados em suas escolas, como podemos observar nas seguintes falas
(PENTEADO, 2009, pg 210 et seq.): "(sugiro) todos os que eu citei, e se houvesse condições
financeiras, cinema e fotografia também seria (sic) legal", que parte de um aluno que estudava
em uma escola que não inseria cinema nos conteúdos de arte. E: "eu já sugeri muitas vezes,
mas acho que não irá acontecer, pois tem grandes chances de resultar em problemas. Algo
ligado a grafitti, ou um (sic) aula sobre photoshop", que nos aponta o distanciamento entre os
conhecimentos do aluno e a pauta de estudos presente na escola.
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Entretanto a pesquisa foi inconclusiva e denunciou suas limitações pela insuficiência


do uso de questionários como ferramenta de coleta para os discursos estudantis. Em primeira
instância porque simplesmente não atingia às crianças mais jovens, iniciantes na
lectoescritura, ou mesmo ainda não alfabetizadas.
No momento de nossa investigação de doutoramento mantivemos o recorte nos alunos
que cursavam o sexto ano do ensino fundamental em diante. Principalmente, porque, sendo a
arte uma disciplina obrigatória no currículo escolar, com professor especialista, a partir deste
ano, em tese garantiríamos estar investigando estudantes que já teriam tido contato com a
disciplina. Entretanto, a lacuna deixada em tal estudo era incontornável: como pensar a
possibilidade de trabalhar a constituição curricular da disciplina junto com os alunos sem
recorrer à escrita e, mais importante, tal estudo obteria resultado com os alunos mais jovens?
Em que medida as crianças já compõem uma bagagem argumentativa que lhes permita
inserção no debate?
Essa questão já foi desenvolvida em outro trabalho (PENTEADO, 2011, pgs 111-112),
quando questionamos o pressuposto perelmaniano de que o modelo de autoridade que serve à
infância é aquele proposto, "naturalmente", como continuidade da autoridade parental, por sua
vez fundada no modelo Deus/homem. Perelman (2005, pg 331-332) coloca que "em nenhum
caso" se pode pensar em igualdade entre os sujeitos da relação pais/filhos, professor/aluno, e
que, "com efeito, cada educação, mesmo cada introdução, em qualquer área que seja, começa
com um período de iniciação, no qual é absurdo admitir a igualdade entre o iniciador e o
iniciado." Portanto, a criança, iniciando-se nos conhecimentos escolarizados, não estaria em
condições de participar consciente e discursivamente de um debate com o adulto e "o
problema real é saber em que momento e de que maneira a relação de autoridade deve ser
progressivamente substituída por uma relação de colaboração crítica".
Ora, contrargumentamos, lembrando que "a criança é, ainda que não nos interessemos
por seu estado de ser, (deste modo) o processo de escolarização, na contramão de suas
pretensões, promove a socialização destes menores entre si, levando-os ao fortalecimento de
suas próprias representações e identidades, tornando-os, enfim, como salienta Sacristán
(2005), agentes sociais". Ademais, não admitimos a hipótese de que a argumentação se dê,
necessariamente entre iguais, principalmente quando pensamos nas aprendizagens possíveis
que se estabelecem entre sujeitos. Neste caso, tanto os sujeitos quanto os saberes são de
qualidades distintas e se hibridizam na formulação de uma nova forma de saber, no nosso
caso, aquele saber escolarizado. Retomando a proposição de Sacristán que nos reaviva a
condição infantil como condição de sujeitos que são agentes sociais, nossa intuição apontava
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para o fato da criança estar inserida em uma sociedade antes mesmo de encontrar-se, mais ou
menos, inserida na escola. Portanto, ao ser perpassada por sua cultura particular, ela já forma
uma bagagem e não nos interessa, aqui, julgar tal conhecimento a partir do binômio
igualdade/diferença e, muito menos, em termos de evolução, como desenvolveremos adiante;
mas, sim, como possibilidade de intercâmbio entre diferentes perspectivas que possam vir a
constituir a amalgama a partir da qual novos conhecimentos surgem nas relações escolares.
Notoriamente, fica-nos impossível problematizar as possibilidades de diálogo e debate
com os alunos a partir da visão evolutiva proposta por Perelman ao reduzir a questão ao
reconhecimento do momento no qual "a relação de autoridade deve ser progressivamente
substituída por uma relação de colaboração crítica".
Em segundo, os resultados da investigação nos apontaram as restrições da ferramenta
de questionário, mesmo quando aplicado aos alunos mais velhos, que, embora comportassem
solicitações do tipo "explique", "dê exemplos", etc, condenaram muitas das respostas a textos
descritivos e não argumentativos.
Em terceiro, no geral, a amplitude e variedade das respostas apontavam mais para um
"sem número" de categorias de possibilidades relativas a conteúdos específicos das artes
visuais, a serem catalogadas, do que a uma problematização entorno da questão da arte e à
possibilidade de pensarmos a disciplina a partir de uma fundamentação significante, senão
que como uma prática de fazeres para a qual não estava colocada uma justificativa.
Claramente, compreendemos isto como decorrente do tipo de questão que levantávamos, que
remetia às práticas artísticas realizadas por esses alunos no ambiente escolar1.
Deste modo, na atual pesquisa, que contou com apoio FAPERJ INST e bolsa PIBIC
CNPq-UFRJ, buscamos aprofundar essas questões, dando continuidade ao problema central
de nossos estudos nos últimos anos que visa pensar as relações de poder entre os sujeitos
escolares e, mais especificamente, as possibilidades de empoderamento dos alunos através de
sua participação nas propostas norteadoras dos currículos das disciplinas.
No texto que segue retomaremos brevemente alguns princípios filosóficos e formais
da teoria da Nova Retórica que tem nos despertado questões no campo da educação. A seguir
apresentaremos, mais detalhadamente, alguns pressupostos que orientam nosso olhar e nossas
análises e que, entendemos, nos ajudam a justificar o empreendimento desta investigação.
Depois apresentaremos a delimitação deste estudo, bem como as questões metodológicas

1O questionário utilizado na pesquisa "O Argumento do Auditório: o que dizem os alunos sobre o ensino de arte
em suas escolas?" encontra-se no Anexo I deste relatório.
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enfrentadas e a forma como foram encaminhadas. Por fim, apresentamos as teses dos alunos e
professores pesquisados e nossas conclusões até o presente.

2. SOBRE A TEORIA QUE ALIMENTOU NOSSA CURIOSIDADE


É a partir de princípios democratizantes para a organização social que Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2002) propõem sua retórica, entendendo que o debate regulamentado é
uma forma de ser democrática que leva os sujeitos à condição de negociação de valores e
normas. Para que haja argumentação é necessário que tenhamos um orador que busca a
adesão do auditório para sua tese, nunca se impondo de modo coercivo, mas, buscando por
meio do debate, novos acordos. Há o auditório, comumente a projeção daqueles sujeitos que o
orador quer influenciar. Há teses admitidas pelo auditório que normatizam os valores e ações
em relação à determinada sociedade ou condição social específica e outras que se diferenciam
total ou parcialmente das teses admitidas e que são propostas pelo orador. E há o próprio
processo de argumentação, através do qual o orador procurará obter adesão do auditório para
suas teses. Grosso modo, a retórica2 se compõe de um ethos (orador), um pathos (auditório) e
um logos (o discurso). Estes são os ingredientes que motivarão o debate e ao conhecê-los
tanto podemos lograr maior êxito na construção de nossos discursos, quanto teremos mais
ferramentas para analisarmos argumentos alheios.
O orador tem consigo valores e premissas que influenciarão e fundamentarão seus
argumentos; é o seu ethos que não pode ser desvinculado do discurso feito e que influenciará
também o auditório. O auditório, por sua vez, também não é tábula rasa e supõe-se que tenha
opiniões formadas sobre o assunto em questão; o espírito que anima o auditório é que se
nomeia pathos.
Imaginemos o orador como um professor que organiza o currículo da disciplina para
aplicá-lo no ambiente escolar. Além da ampla formação cultural e mesmo específica em
determinado assunto que esse professor traz, seu temperamento e humores serão
determinantes nessa organização. Além disso, sua pessoa, modo de apresentar-se, de colocar-
se e de ser influenciarão, não apenas a concepção do currículo, mas também a do auditório,
seus alunos. Um bom currículo escolar não se resumirá ao desempenho mais ou menos
primoroso, mais ou menos “correto” do professor, mas envolverá aspectos subjetivos –
valores, história de vida, etc - que podem influir positivamente ou não na aproximação com os
alunos. Do mesmo modo, estes alunos trazem valores, pressupostos, objetivos para si próprios

2Estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes
apresentam para o assentimento. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 4)
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e expectativas em relação àquela disciplina e a seu currículo. Na Teoria da Argumentação,


caberia um processo de debate pelo qual as distâncias entre as teses de ambos, orador e
auditório, fossem reduzidas, democraticamente, através de uma verdade provisória.
Para tanto, o orador deve buscar conhecer o auditório, suas crenças, valores e opiniões
já aceitas sobre o assunto em questão, buscando o caminho possível entre suas próprias teses e
as opiniões do auditório. Como colocam Perelman e Olbrechts-Tyteca, "é em função do
auditório que qualquer argumentação se desenvolve" (2002, p. 6), uma vez que não há porque
o orador argumentar junto ao auditório se não houver divergência entre ambos. Se o objetivo
da argumentação é a persuasão, a própria tese adquire menor valor do que a importância de
respeitar e conhecer as posições daqueles a quem se dirige, pois o objetivo desloca-se do
objeto de discussão em si para os sujeitos que lidam com este objeto.
Por fim, o logos é a argumentação propriamente dita, o modo como o orador estrutura
seus argumentos e o modo como pode conhecer a força das opiniões sustentadas por seu
auditório. Como na retórica operamos com a dialética (no sentido aristotélico, de uma lógica
que parte de opiniões normalmente aceitas, e não uma lógica formal e demonstrativa), é
possível observar a infinita possibilidade de se organizar uma argumentação de acordo com as
escolhas do orador.
De maneira breve, os principais pontos e categorias desenvolvidos por Perelman e
Olbrechts-Tyteca em seu Tratado da Argumentação (2002) envolvem os gêneros do discurso;
os acordos dos auditórios e as técnicas argumentativas.
Quanto ao gênero, um discurso pode ser deliberativo, quando busca a tomada de
decisões, visando o útil; judiciário, quando julga questões de valor, visando o justo; ou
epidíctico, quando se argumenta sobre uma questão sobre a qual não há conflito, usando-se o
discurso para informar ou reforçar opiniões já aceitas. Os autores consideraram este último
gênero como próprio do discurso educativo, por sua natureza incontroversa que visa à
conservação de valores e à maior adesão dos sujeitos a teses já admitidas. Entretanto, nesta
perspectiva, embora considerem que
"seria possível compreender o discurso epidíctico como discurso de valor
apenas literário e estilístico, no qual conhecer bem a matéria sobre a qual se fala e
falar bem sobre esta matéria garantiria o mérito e êxito do orador, observam,
valorizando este estilo, que isto só é possível se compreendermos este gênero de
maneira reduzida, onde tudo que está em jogo é convencer o ouvinte e proporcionar
notoriedade ao orador. Porém não é este o entendimento da teoria da Nova Retórica
sobre esta questão.
Os autores compreendem o gênero epidíctico como gênero central de toda
filosofia prática porque neste discurso se busca a adesão não necessariamente para
uma ação imediata – como seria no gênero deliberativo ou judiciário -, mas no sentido
de criar uma disposição nos sujeitos que lhes permita promover ações em médio e
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longo prazos (PERELMAN, 1999, p. 39). Embora sob um primeiro olhar possa
parecer que eles entendam o discurso educativo como discurso puramente oratório e
estilístico, além de apenas expositivo, por resgatar sua ligação com o gênero
epidíctico, é importante lembrar que compreender este gênero como mais ligado à
literatura do que à argumentação, desagregando-o da filosofia, resulta de sua
comparação à sofística e aos discursos educativos de Górgias, historicamente
criticados em nossa cultura (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 53-
57) e que destoam da interpretação de nossos autores.
Considero uma importante contribuição pensar o discurso educativo com uma
finalidade não imediata, mas cujo objetivo seja o de desenvolver predisposições para
uma ação almejada que vise à construção do bem comum. Porém, é inevitável
considerar que o gênero epidíctico pressupõe primeiramente que o orador já saiba de
antemão quais valores, noções e teses merecerão adesão; em segundo que se discurse
de modo expositivo sobre o assunto, presumindo que já há um acordo entre orador e
auditório. Embora Perelman coloque que a finalidade do discurso não deva ser a
exaltação do próprio orador, é possível imaginar, na prática das salas de aula, o
distanciamento deste professor em relação a seus alunos, visto que os temas estão
decididos e a apresentação destes centra-se no docente. Porém, por mais discursivo
que seja, o gênero epidíctico não deveria necessariamente desdenhar as opiniões
vindas do auditório, mas sim buscar acordos, ainda que seu exercício não pressuponha
a interlocução com o outro, pois é razoável antever situações em que venha a se tornar
um discurso para ninguém.
O objetivo da educação ao invés de ser o de inculcar valores e normas nos
espíritos dos alunos, poderia ser o de debater, dialogar, deliberar, enfrentar e construir
esses valores. Sugiro, portanto, que a educação contemporânea utilize os três gêneros
argumentativos em diferentes situações. Se é possível imaginar que o professor
prepare um tema de seu interesse e o exponha aos alunos, no desejo de reforçar sua
adesão prévia (gênero epidíctico), é possível igualmente antever situações em que os
alunos se manifestem abertamente quanto às noções e valores colocados, julgando-os
apropriados ou inapropriados (gênero judiciário) e também que deliberem sobre esses
valores e normatizações, propondo, muitas vezes, outros encaminhamentos para o
tema ou mesmo para um curso inteiro (gênero deliberativo)" (PENTEADO, 2009, p
72-74) .

Quanto ao acordo cabe-nos ressaltar que ele é o ponto de partida da argumentação,


aquilo sobre o que tanto orador quanto auditório tem opiniões comuns. Pode basear-se em
uma estrutura do real (fatos, verdades e presunções), ou fundamentar-se na preferência por
determinados valores, hierarquias, ou lugares comuns. Compete ao orador, uma vez que é de
seu interesse defender uma nova tese perante seu auditório, encontrar os pontos em comum
entre suas premissas sobre o assunto debatido e as premissas desse auditório, negociando e
fazendo escolhas sobre o assunto em questão que devem ser respeitadas ao longo do processo
argumentativo, afinal, "do princípio ao fim, a análise da argumentação versa sobre o que é
presumidamente admitido pelos ouvintes" de modo que "o orador, utilizando as premissas que
servirão de fundamento à sua construção, conta com a adesão de seus ouvintes às proposições
iniciais" (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p 73).
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Deste modo, o acordo, mais do que simples ponto de partida para um debate, é o
dispositivo em si que assegura a necessidade de interlocução com o auditório desde escolha
inicial dos dados que compõem as premissas e que são, então, comungados.
Essa escolha dos dados que servirão à argumentação é fruto de uma seleção que o
orador realiza em um universo de possibilidades que envolve, além dos próprios dados, o uso
de noções e conceitos que também respondem a seus interesses. É necessário que essa escolha
e que a interpretação dada às noções e conceitos fiquem claros para o auditório para que o
orador não arrisque defender uma tese sem, nem mesmo, ser compreendido em suas
argumentações. Também caberá ao orador organizar o tempo utilizado no uso de seus
argumentos para que tenha atenção do auditório, apresentar e reforçar a presença das
premissas e as noções utilizadas, demonstrar sua intenção argumentativa pela eleição das
formas verbais e do modo pelo qual fará a exposição de seu pensamento.
Quanto ao logos, parte mais extensa da teoria perelmaniana, representa o uso
específico das técnicas argumentativas. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002),
podem-se identificar, quanto à forma, alguns tipos distintos de argumentos que delineiam uma
ampla possibilidade argumentativa: a) os argumentos quase-lógicos que, embora não
apresentem uma estrutura lógico-formal, têm como força persuasiva a aproximação ora com o
raciocínio formal (relações entre conceitos de contradição/incompatibilidade,
identidade/definição, analiticidade, análise e tautologia) ora com as relações matemáticas
(argumentação em prol da reciprocidade, da transitividade, das relações parte/todo, da
comparação, das probabilidades, etc); b) os argumentos baseados na estrutura do real que
utilizam o real como modelo para garantir sua força persuasiva, seja por ligações de sucessão
que dão justificativa à argumentação (vínculos de causalidade, meio/fim, fato/consequência,
direção, etc), seja por ligações de coexistência (relações entre pessoa/ato, ruptura de
coexistências aceitas, relações entre grupo/membros, etc); c) os argumentos que promovem
ligações que fundam a estrutura do real, ao utilizarem o caso particular, a analogia e figuras
como a metáfora como fundamentação para o real; d) a dissociação de noções para
estabelecer novos modelos possíveis para o assunto em debate e e) os argumentos que têm
como recurso a própria interação dos argumentos, organizando-os por convergência,
estabelecendo ordenação que lhes garanta força, amplificando-os, etc.
Os estudos sobre as técnicas utilizadas na argumentação mostram que essas técnicas
argumentativas podem ser agrupadas em dois blocos: 1) argumentos de ligação que se
baseiam em processos que aproximam (ligam) elementos distintos para permitir que eles
sejam valorizados positiva ou negativamente uns em relação aos outros, de acordo com seu
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interesse; 2) argumentos com apoio em processos de dissociação que separam elementos de


um todo, permitindo reconceituá-los e recontextualizá-los, modificando noções admitidas
como acordos em relação ao assunto debatido.
O que nos importa chamar atenção, nesta brevíssima explanação das técnicas
argumentativas e dos tipos de argumentos, é para a importância das escolhas do orador em
qualquer que seja a estrutura na qual os argumentos dialéticos apoiam-se. Embora esses
raciocínios possam manter uma coerência interna, obedecendo a um sistema filosófico, são
sempre fruto de opções tanto no modo de pensar-se uma questão, quanto no de encaminhá-la.
É em função dessa característica que o estudo dos argumentos ganha justificativa e
significação, uma vez que todo assunto debatido por raciocínio dialético presume que uma
verdade absoluta não esteja presente e que, portanto, a verdade estabelecida ao final de um
debate é uma verdade construída argumentativamente, dentro de um referencial teórico cuja
coerência é interna e subjetiva, pois se organiza a partir de preferências do orador (e não
demonstrativa). Desse modo as verdades provisórias estabelecidas para todo objeto que não
pode ser defendido demonstrativamente são carregadas de valores, premissas e presunções,
resultantes de escolhas que têm uma determinação histórica e política. Se for assim, a revisão
dessas verdades provisórias, quando necessária, por já não atenderem às demandas sociais,
implica a análise do ideário que envolve a argumentação pela qual elas foram estabelecidas
para que possam ser contra-argumentadas.
Ao pensarmos o estabelecimento das verdades provisórias tendo por função a
normatização das práticas sociais, adentramos o campo da ética. Na Teoria da Argumentação,
não há distinção entre ética e moral já que, admitindo que ambas se ocupam das regulações do
convívio social entre os homens, admite-se igualmente que são objetos do raciocínio dialético,
irmanando-as. Nessa perspectiva a discussão ética ganha uma dimensão democrática, já que
as normas sociais serão, por excelência do objeto, histórica e socialmente determinadas e
negociadas segundo valores vigentes, afastando-se do entendimento kantiano, comumente
aceito, sobre a ética. Para Kant a ética é regida a partir de Leis Universais (imperativos
categóricos, como, por exemplo, “não matar”) estabelecidas por uma Razão Prática. Em sua
proposição, se a ética estiver subjugada à vontade humana não depurada dos interesses
contingentes, será egotista, uma vez que atenderá ao desejo pessoal e não ao bem comum e
universal. Desse modo, a condição de sujeito ético só será possível se as ações estiverem
conformadas à lei moral, determinada pela razão e liberta das paixões. A razão prática, da
qual todos os homens são dotados, estabelece, em um sistema racional lógico e formal, a lei
moral primeira (ou princípio universal) que guia a ética humana: "Age de tal forma que a
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máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal".
Kant compreende, portanto, um princípio formal que seria capaz de regular toda a ação ética,
servindo-lhe, simultaneamente, de norma prescritiva. O estabelecimento de tais formas de
agir, resultantes da coincidência da vontade com o que estabelece a razão prática, configuraria
as regras éticas e morais válidas para todos os homens em todos os tempos e espaços.
Perelman vai se contrapor ao imperativo kantiano uma vez que compreende que toda a razão é
por si mesma permeada de valores sociais e históricos que orientam as teses defendidas. A
coerência interna que um sistema filosófico racional encerra não garante a universalização dos
valores oriundos de tal sistema, ainda que lhes confira legitimação, já que tais valores só
seriam válidos admitindo-se, incondicionalmente, suas premissas. Desse modo, ao pensarmos
um sistema racional como um sistema dialético, cuja validade depende da coerência interna
de seus termos, admitir a universalidade de tal sistema é incidir em uma petição de princípio3.
Portanto, se fosse possível estipular qual a vontade que pode ser universalizada pela razão,
teríamos de concordar que as normatizações sociais deveriam ser imutáveis. Uma vez que a
experiência da humanidade nos aponta para as diferenças dos códigos éticos/morais entre as
diversas sociedades, em seus diferentes tempos, só nos resta pensá-los como fruto de
processos argumentativos e retóricos:

Uma razão prática, que não se pretende apodíctica, mas simplesmente razoável, deve,
para não parecer despótica, abrir-se à discussão e ao diálogo. Assim como o regime
monárquico convém melhor para realizar as concepções de uma razão segura de suas
evidências, desprezando as opiniões daqueles que não se beneficiam dessas intuições
privilegiadas, o regime democrático da livre expressão de opiniões, da discussão de
todas as teses confrontadas, é o concomitante indispensável do uso da razão prática
simplesmente razoável (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 350).

Colocado isto, entendemos nesse estudo que os currículos são construções


argumentativas, discursivas e carregadas de subjetividades que fazem parte das normatizações
escolares e que os sistemas normativos são frutos de debates localizados historicamente e
compõem as regulações éticas/morais das sociedades a partir da argumentação, portanto,
assim sendo, tais currículos adquirem tanto uma dimensão ética e prática (o que ensinar,
como, que normas estabelecer para o bom funcionamento do sistema escolar, etc), quanto
ética e política (a que interesses respondem tais currículos) e, portanto, é possível serem
democráticos (todos os interessados têm garantido o direito de participar de suas

3A petição de princípio ocorre quando uma tese que se pretende provar é tomada como princípio que a legitima.
No caso da ética kantiana tomam-se as próprias regras de conduta moral, fruto de uma elaboração racional, como
princípios que justificam a universalidade de tais regras.
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formulações?) ou autoritários (alguns grupos determinam as normas para outros grupos, ainda
que tais normas se pretendam universais?).
É deste modo, propondo estabelecer a argumentação como processo de construção das
verdades provisórias que regulam as normas de convívio social, que nesse estudo particular,
referindo-nos às normas que estabelecem o currículo da escola, em qualquer âmbito e/ou
dimensão, o currículo torna-se uma maneira legítima de um ser democrático, e não de apenas
de um falar em democracia, desde que haja a garantia de acesso ao debate por todos os
envolvidos.

3. DA CURIOSIDADE INTELECTUAL À INTERLOCUÇÃO COM O CAMPO E


OUTROS AUTORES: JUSTIFICATIVAS PARA ALGUNS PRESSUPOSTOS
Dentre as discussões curriculares sobre o ensino das artes visuais que mobilizam a
realidade escolar, investimos na hipótese de que a maneira como organizamos o currículo
pode promover sua democratização e a resignificação de seus objetivos, conteúdos e práticas,
contribuindo, inclusive, para novas organizações entre sujeitos de poder. Nessa concepção
compreendemos o currículo como construção sócio-histórica, “exemplo perfeito de invenção
de tradição” (GOODSON, 1995, p. 27) e que, portanto, não pode ser plenamente
compreendido se tomado como verdade absoluta e, justamente por sua historicidade inventada
na tradição, apresenta-se como verdade provisória (PERELMAN & OLBRECHTS-
TYTECA, 2002) que se estabelece para determinados auditórios4, através de debates que
visam confrontar diferentes teses circulantes, envolvendo escolhas políticas dos debatedores.
Nesse sentido, salientamos que temos nos ocupado das construções discursivas que ocorrem
no campo – "o que se pensa ou se acredita" (SACRISTÁN, 2005, p 102) -, e ainda que
busquemos outras fontes desses discursos nas práticas cotidianas, nessa pesquisa não nos
dedicamos a um entrecruzamento das análises das ações na prática com as teorias forjadas nas
práticas, na forma do discurso. Corroboramos a colocação de Sacristán, considerando que
notoriamente o discurso racionalizado é parcial, relativo e contextual, mas que, de qualquer
modo, traz sua contribuição ao entendimento se o tomarmos de maneira não linear, tampouco
referente a uma verdade verdadeira, mas apontando "os rastros e pistas que deixam nas
mentalidades, que permanecem como dispositivos das ações individuais e coletivas" (Ibdem,

4 Perelman e Olbrechts-Tyteca compreendem como auditório o conjunto de pessoas ao qual se apresenta uma
tese para assentimento. Por sua vez, a tese é a proposição de uma verdade, ou solução, possível e provisória, que
envolve um conjunto de argumentos para resolver um conhecimento que não é demonstrativo, mas dialético,
distinguindo-se da concepção acadêmica de tese em stricto sensu.
13

p 103). Nestes termos, as duas questões aqui levantadas – democratização e resignificação do


currículo – implicam abertura para o debate e a escuta dos discursos.
Além disso, somos inclinados a pensar, sob o mesmo viés de Lopes e Macedo, que "o
currículo é, como muitas outras, uma prática de atribuir significados, um discurso que
constrói sentidos. Ele é, portanto, uma prática cultural" (LOPES e MACEDO, 2011, pg 203).
Deste modo, ainda na fala das autoras, "o currículo age como cultura e a cultura é a própria
produção de sentidos dentro de um sistema de significações" (Idem, pg 207. Grifo nosso).
O currículo não representa uma forma de cultura, ele é um tipo de sistema cultural que
nos possibilita a autoria da própria cultura que empreendemos em nossas salas de aula. Assim,
essa pesquisa, além das outras questões já indicadas e que podem ter aprofundamento futuro,
em relação a uma perspectiva cultural, indaga as possibilidades de que tal autoria venha a se
constituir coletivamente envolvendo professores da disciplina de artes visuais e também seus
alunos.
Tem-se denunciado, de um lado, uma horizontalização do currículo que se forma a
partir mecanismos artificiais, uma vez que é resultante de planos de políticas públicas que se
formulam fora do ambiente escolar e, por vezes, desconsiderando suas necessidades ao
mesmo tempo em que almejam uma pretensa unidade nacional e internacional. Tais
mecanismos desconsideram que os significados gerados na produção da cultura não têm seu
sentido em uma espécie de metafísica simbólica, mas a partir dos usos reais e cotidianos que
os sujeitos fazem dos símbolos e signos, sendo, portanto, inevitável remetermo-nos às culturas
particulares para a elaboração de um conceito de cultura mais amplo e geral e que não será
nunca suficiente (GEERTZ, 1997). Assim, nossa defesa neste texto, não é uma defesa ingênua
em prol de culturas específicas ou puras, sejam essas da infância, ou da juventude - em
pretensa oposição a uma cultura adulta, ou erudita, ou instituída- e que esperam um lugar ao
sol, mas é o questionamento vigoroso sobre a impossibilidade de se admitir um geral que não
seja um particular e vice-versa, bem como a in-significância de se propor práticas forjadas
externamente às próprias práticas.
De outro lado, positivamente, observamos investigações sobre possibilidades
metodológicas para o ensino das artes que visam maior significação desta disciplina para os
alunos de ensino básico. Tais estudos têm sido de grande colaboração para as práticas
escolares como vemos, por exemplo, em Hernandez (2000); Martins & Tourinho (2009 e
2010) e Icle (2010).
Tendo colocado essas considerações, em nosso trabalho tentamos contribuir para tais
reflexões dedicando-nos a pensar não práticas didáticas, mas os pressupostos filosóficos que
14

justificam teses sobre a elaboração de currículos para o ensino das artes visuais dentro de uma
discussão que buscou investigar a cultura de poderes e de sujeitos de poder que legitimam tais
currículos, a partir da Teoria da Argumentação de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002).
Ao observar o estudo do currículo no campo de estudos da retórica e da ética - aqui
definidos, partindo de uma acepção aristotélica-, a atitude ética será compreendida como
conjunto de regras sócio-históricas que cada sociedade discute e admite provisoriamente para
sua regulação, promovendo a adesão de todos os envolvidos, sem o que teríamos a imposição
de alguns sobre o silêncio de outros.
Ao propormos essa análise à luz do campo teórico da retórica e da argumentação
dialética de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, em especial no Tratado da
Argumentação (2002), entendemos que dialética não é um princípio organizador de
macroestruturas que compreende o diálogo como uma ação apaziguadora e remissiva dos
sujeitos a verdades verdadeiras e metafísicas, como, por exemplo, aconteceria em uma
perspectiva platônica. O conceito de dialética do qual nos apropriamos admite o discurso
como prática criadora de significados que podem legitimar-se como reguladores sociais.
Refere-se aos processos de construção de conhecimentos que não são pautados em raciocínios
demonstrativos, nem no apoio a princípios primeiros e/ou naturais, e que, por isso, se formam
através da argumentação debatedora entre diferentes teses, o que é definido por Aristóteles
como raciocínio retórico.
Adotando o modelo do embate jurídico, nossos autores investigam modos pelos quais
os debates não se condenem a um continuum de opiniões justapostas, sobre as quais não é
possível deliberar. Neste sentido, dado o próprio modelo do qual partem, não apenas visam
uma interpretação significativa dos discursos, mas a compreensão das próprias possibilidades,
mais ou menos eficientes, de que a prática discursiva, uma vez em confronto, avance em suas
formulações. Na Teoria da Argumentação os autores defenderão que o debate, a partir de uma
filosofia prática, visa à adesão dos espíritos a uma tese consensual que contemple e busque
soluções provisórias – nunca serão absolutas, por seu caráter discursivo, mas se estabelecerão
pela necessidade de encaminhamento prático social, gerando instantaneamente novos debates
– para as questões que se apresentam na contemporaneidade.
No âmbito das práticas escolares, tal proposição nos impeliu a investigar
possibilidades concretas de inserir os discursos e interesses dos estudantes na construção das
normas escolares como condição essencial à democratização, bem como exercício legítimo de
cidadania que ultrapassa as fronteiras do ensinar eticamente, tocando as formas de ser ético.
15

Dentre as críticas, já manifestadas em relação a trabalhos anteriores, que tal proposta


tem sofrido é mais reincidente a que destaca a diferença hierárquica entre alunos e
professores, salientando a diferença quantitativa de saberes, ou seja: o aluno não sabe o
bastante sobre o objeto para poder sugerir conteúdos, práticas, etc. O que averiguamos em
nossos estudos teóricos foi a inclinação que se mantém – apesar dos questionamentos
contemporâneos e pós-estruturalistas - em nossa cultura pedagógica para entender o objeto do
conhecimento como ente estático, fixado, delimitado, passível de ser reduzido a um elenco de
conteúdos previamente estabelecidos que, de um modo ou de outro, têm de ser alinhados ao
longo dos anos escolares, ainda que se considere pensar de maneira crítica sua seleção, tal
como propõe Forquin (1992).
Porém, a filosofia da Argumentação nos sugere alguns conceitos centrais, que se
apresentaram no andamento desta pesquisa, e que foram essenciais à compreensão filosófica
das possibilidades de se repensar o conhecimento e sua matéria, bem como da possibilidade
de argumentar com os alunos o currículo e as práticas escolares.
Destacaremos o conceito de acordo. Perelman coloca a necessidade de que as teses
entre debatedores partam de acordos comumente aceitos, uma vez que o acordo é a matéria
para o debate – normalmente, a tese em vigor. O acordo constitui o que é ou não aceito em
consenso (teses, premissas, valores) entre sujeitos debatedores e é ponto de partida para a
argumentação. Reconhecer um acordo é destacar os pontos em comum entre aqueles que
sustentam um objetivo conjunto e, simultaneamente, apontar os lugares de conflito, nos quais
surgem as novas e diferentes teses que precisam ser negociadas. Em sua extensão observa-se
que o acordo nada mais é que uma verdade provisória já estabelecida em determinado arranjo
social e os conflitos e novas teses a serem debatidos nada mais são que acordos que já não se
sustentam para esse mesmo grupo. O que um processo argumentativo conduz é à busca de
novos acordos.
Isso nos dá pistas para reflexão. De um lado, oferece grandiosidade à importância de
conhecermos aquilo que é aceito em um grupo. Parte-se do acordo para o debate e argumenta-
se pela persuasão a favor de uma tese; porém, sendo o acordo a base sobre a qual se
argumenta, a própria tese adquire menor valor do que a importância de conhecer as posições
daqueles aos quais nos dirigimos, pois o objetivo desloca-se da tese defendida pelo orador
para os sujeitos que esse orador visa persuadir: o professor visa persuadir5 seus alunos ou

5 O conceito de persuasão para Perelman é mais amplo que o conceito de convencimento. Para o autor, o
convencimento é possível em uma dimensão lógica racional, de modo que o convencido pode render-se á lógica
do discurso, mas isso não implica, necessariamente, a predisposição de seu espírito à adesão da tese de modo a
16

apenas defender sua verdade verdadeira sobre um conhecimento? Assim, reconhecer que o
objetivo da argumentação se renda à necessidade de aproximação com o auditório através da
apropriação de seus acordos, nos alerta para a necessidade da busca de um equilíbrio na
hierarquização gerada pelo binômio objeto do conhecimento/sujeito cognoscente, na qual,
normalmente, o sujeito tem menos valor do que o objeto de conhecimento. Além disto, ao
considerar que na contemporaneidade cada vez mais averiguamos que os objetos de
conhecimento, com exceção àqueles relativos aos conhecimentos formais e demonstrativos,
são construções discursivas e, assim, relativas, temos de convir que o próprio objeto de
conhecimento já é um acordo estabelecido a partir de uma verdade provisória, não fazendo
sentido defendê-lo como tese absoluta, sobretudo se sua defesa sobrepujar os questionamentos
sobre seu status e, consequentemente, o reconhecimento do acordo comum que deve envolver
todos aqueles que investigam o saber.
Defender a tese sobre um objeto de conhecimento como se ela (a tese) ou ele (o
objeto) representassem uma verdade verdadeira, não só seria uma tautologia, como poderia
gerar a falta de significado que tantos alunos do ensino básico reconhecem nas disciplinas que
estudam. Afinal, a resposta tautológica – "isto é importante porque isto é importante" – é um
argumento desprovido de significado razoável, pois se funda em uma premissa primeira (é
porque é) e não na busca do significado que se constrói nos usos do cotidiano. Equivale em
nossa área a dizer que é importante estudar a teoria das cores porque temos de conhecê-la,
ou, o que vemos mais amiúde, porque no futuro precisaremos saber isso. Na verdade, a
defesa tautológica, nesses casos pode estar camuflando a perda de significado de determinado
referente para o próprio professor, o que ocorre quando um acordo se mantém na sociedade
por força da inércia que se pauta no antecedente: sempre foi assim, então é assim. Neste caso,
o estudo da teoria das cores se justifica porque, simplesmente, ele faz parte de um corpo
teórico de saberes relacionado às disciplinas visuais que se mantém por anos como necessário
às artes e foi estudado pelo professor, constituindo-se em um discurso acadêmico
independentemente de estar, ou não, alijado de uma prática imediata cotidiana. A perda do
contato com a origem da formação de seu significado – que com certeza foi construído em
usos necessários a artistas – leva ao esvaziamento do significante e gera um signo (as cores)
cujo significado é desafetado6 e nos aparece como arbitrário. A remitificação do significado,
nos parece, dependeria de que mergulhássemos, novamente, nos seus usos significativos

modificar sua prática. Já a persuasão, mesmo que não promova uma modificação prática imediata, é uma
aderência do espírito à nova tese e predispõe o sujeito a uma nova prática.
6 Desprovido da possibilidade de evocar nossa afetividade, ou seja, uma experiência estética.
17

(DURAND, 1988. pgs 12 e 94). Como professores essa constituição de significados novos
deveria privilegiar uma experiência compartilhada com nossos alunos uma vez que a arte e a
experiência estética, mais do que serem um retrato visível dos valores de uma sociedade,
materializam e constituem as formas de viver, configurando-se em um modelo específico de
ser e pensar o mundo dos objetos (GEERTZ, 1997, pg 150). Pensamos que tal semiótica
compartilhada poderia beneficiar-se de conhecermos e compartilharmos os acordos de nossos
alunos a respeito das artes visuais.
De outra monta, não é possível saber quais valores e significados (acordos) o outro
tece sobre um objeto qualquer, a não ser que escutemos e reconheçamos o acordo de aonde
ele parte. Estabelecer acordos que envolvam os alunos expressa o compromisso de ouvir suas
premissas significativamente e admitir que elas apresentam um significado, sem que isso
exclua as premissas trazidas por nós professores que compomos o debate, possibilitando a
formulação de novos acordos que sejam significativos para todos. O objetivo do currículo
passa a ser o de debater, dialogar, deliberar, enfrentar e construir novos acordos sobre os
saberes e valores. Neste aspecto, Lopes e Macedo (2001) já nos indicam um caminho possível
ao proporem o currículo como uma cultura que tem suas especificidades. Adiantamo-nos aqui
a pensar também o currículo como formalização discursiva "autoral" criada pelo coletivo do
professor com seus alunos, o que nos obriga a uma oposição em relação a qualquer tipo de
currículo que exclua os membros que estão na sala de aula de sua confecção. Ao admitirmos o
currículo como cultura, somos impelidos a admitir o currículo como currículo autoral
coletivo e cuja autoria, por ser coletiva, remete à necessidade do estabelecimento de acordos
entre seus autores.
A segunda observação que temos enfrentado retoma as críticas ao psicologismo
escolar excessivo de meados do século XX, que denunciava o esvaziamento da razão
pedagógica da escola e o risco do ambiente escolar ser subjugado a uma espécie de tirania
infantojuvenil. Ora, quando propomos pensar, como categoria docente, a possibilidade de
construirmos, diretamente com nossos alunos, os currículos escolares, intencionamos o debate
que busca acordos para grupos (a turma e o professor) que norteiem um trabalho de equipe.
Gostaríamos, a título pensarmos a partir de uma imagem, de resgatar o termo regência para
lembrar que, não apenas o professor é parte da equipe, como é seu regente de modo que seu
lugar de autoridade não seja abalado pela abertura à argumentação. Se esta se propõe ao
debate e à deliberação, "é indispensável confiar a uma pessoa ou a um corpo constituído o
poder de tomar uma decisão reconhecida" (Perelman, 2005, p 335). Tenho argumentado a
favor da autoridade docente lembrando que essa se constitui de uma autoridade cujo modelo
18

pode ser o jurídico, ou seja, aquele no qual há um sujeito que organiza o debate e, a partir das
teses colocadas, julga e delibera para que o trabalho tenha continuidade; assim, "o aluno, por
sua vez, é sujeito concreto, que é no presente, imbuído das capacidades racionais comuns aos
homens de razão e valorizadas nos processos democráticos, e, portanto, pode participar dos
debates que confrontam as diferentes ideologias a fim de autorizar as autoridades docentes"
(PENTEADO, 2011, pg 121) sem configurar para essas uma ameaça. A continuidade que
pode ser garantida através dos processos jurídicos será, justamente, o estabelecimento dos
acordos que passam a vigorar depois de ouvidas todas as partes interessadas em determinada
questão.

4. A CURIOSIDADE EM AÇÃO: A PESQUISA GERA MÉTODO E


CONHECIMENTO

Para darmos continuidade nos estudos iniciados em 2005 e apresentados em 2009


(PENTEADO, 2009), partimos, como já colocamos à introdução deste trabalho, de questões
que não foram suficientemente respondidas e de outras que partiram das conclusões.
Deste modo, neste estudo, concentramo-nos mais em investigar o próprio
entendimento dos sujeitos pesquisados acerca do objeto de conhecimento das artes visuais,
visando os pressupostos que poderiam fundamentar essa disciplina na escola, do que investir
em sugestões de conteúdos para o currículo o que é, de antemão, excessivamente técnico,
formal e destituído de intencionalidade conscientemente política se não compreendermos os
propósitos que servem a tais conteúdos.
Optamos por estudar o Colégio de Aplicação da UFRJ, pois tem sido locus
privilegiado de formação de nossos alunos de graduação em Licenciatura em Educação
Artística da UFRJ, de modo que, pela parceria estabelecida entre a Faculdade de Educação e o
Colégio de Aplicação, o retorno de tal pesquisa contribuiria para a reflexão das práticas
formativas que ocorrem nas duas instituições. Por parte da disciplina Prática de Ensino e
Estágio Supervisionado em Artes Visuais, ministrada pela Faculdade, salientamos a
possibilidade de envolver os alunos em período de estágio na investigação e reflexão sobre os
discursos de professores e alunos do colégio sobre a disciplina; e, por parte do Colégio de
Aplicação, destacamos a possibilidade de mobilizarmos uma reflexão conjunta sobre o
currículo escolar de artes visuais.
Ainda considerando a formação de nossos licenciados, faz-se necessário mais um
breve comentário sobre nossa escolha pelo CAp como espaço de estágio e de pesquisa. Isso
19

porque identificamos uma tese que permeia o campo educacional que sustenta que os colégios
de aplicação configuram-se como "ilhas de excelência" no cenário da educação básica
brasileira e não seriam, portanto, espaços adequados à formação inicial dos professores, pois
os lançaria em um "modelo" que não corresponde à realidade brasileira.
Opomos-nos a essa perspectiva na medida em que nos opomos à concepção mesma de
que a aprendizagem se beneficie do "modelo" como forma sobressaída de construção de
conhecimentos. Ainda que reconheçamos que o uso do modelo por parte daqueles que
formam seus conhecimentos seja uma das metodologias possíveis para a formação de
referências, destacamos os riscos desse método, uma vez que o modelo ao fundar-se se
reconhece a si próprio como legítimo e desejável. Um modelo é um absoluto perfeito que
pretende perpetuar-se, ou não haveria sentido em colocar-se como modelo. Em termos
metodológicos, por melhor que seja a reapropriação e/ou resignificação do modelo por parte
do sujeito cognoscente, é uma aprendizagem que se baseia no princípio da imitação, não da
construção autoral e crítica. Efetivamente, a educação pelo modelo não se adequa aos
pressupostos da educação que vimos defendendo. Ao elegermos o Colégio de Aplicação da
UFRJ, tanto para formação de nossos futuros professores, quanto para nosso campo de
pesquisa, intencionamos privilegiar o debate e a hibridização de conhecimentos diversos
como base desta formação inicial; não apenas no que confere valor à própria qualidade do
conhecimento construído, como no que valoriza o debate como forma. E neste sentido, o
simples reconhecimento da parceria interinstitucional que se dá entre a Faculdade de
Educação e o Colégio – que envolve interlocuções entre professores dos dois institutos, entre
pesquisas, extensão, e outras práticas formativas - já possibilita um debate formativo que nos
parece mais enriquecedor do que o que atingiríamos se nossos licenciados estivessem em
simples exercícios docentes em instituições outras (municipais ou estaduais) que depois
seriam relatados em momentos furtivos de supervisão e julgados sob nossa égide acadêmica e
universitária. Com isso não queremos colocar que nossos alunos não estagiem nas escolas
regulares de estado e município. Consideramos que a riqueza do estágio esteja na inserção do
estagiário nessas diversas culturalidades, mas cremos que as formas de construção de
conhecimentos sejam distintas nas diferentes realidades. Ademais, não podemos deixar de
apontar o risco, não necessário, mas possível, de que julguemos as escolas que são externas à
Universidade a partir do valor do nosso próprio modelo acadêmico, o que equivaleria dizer, a
partir de uma crítica discursiva colonizadora. Como colocam Perelman e Olbrechts-Tyteca
(2002, pg 415), se, por um lado "o modelo indica a conduta a seguir" e, por outro, "deve
vigiar sua conduta, pois o menor dos deslizes justificará milhares de outros"; quando uma tese
20

sustenta que os Colégios de Aplicação são "ilhas de excelência" está, paradoxalmente,


assumindo a crítica – talvez colonizadora – à escola pública e, simultaneamente, sugerindo
um modelo para o estagiário que não é o desejável.
Gostaríamos, ainda, de ressaltar o que nos parece uma dose de ingenuidade que
permeia essa tese, já que, independente de referirmo-nos a uma escola municipal, estadual,
federal ou de aplicação, identificamos no interior desses lugares idênticas metas de excelência
na busca de seus resultados. Assim, embora tais resultados não sejam uniformes, não
acreditamos que possamos avaliar isso partindo da premissa de que algumas instituições
escolares são excelentes, ao passo que outras, simplesmente, não o são.
Era um desafio nosso, nessa etapa de nossos estudos trabalharmos com alunos do
ensino fundamental I, mas também não abrir mão de pesquisar também alunos mais velhos
para podermos observar as teses perpassando diferentes faixas etárias. Além disso,
solicitamos ao colégio que os professores também fossem pesquisados, justamente no intuito
de podermos analisar a viabilidade de alunos e professores trabalharem juntos na formulação
curricular, a partir da análise dos distanciamentos e aproximações de seus discursos em
relação ao objeto de estudo das artes visuais. Deste modo, o piloto desta pesquisa foi realizado
com alunos de uma turma de 2º ano do ensino fundamental e sua continuidade se deu com
uma turma de 3º ano do mesmo nível de ensino e uma turma de 2º ano do ensino médio. Além
disso, quatro se propuseram professores a participar deste projeto na qualidade de
pesquisados.
Inicialmente, o modelo que adotamos ao iniciarmos, em 2005, estudos sobre o
discurso de alunos, era fundado na utilização de questionários com perguntas curtas e diretas e
que fossem ao ponto que discutíamos. Entretanto, além das questões que já adiantamos na
introdução deste texto, este tipo de coleta não permite o debate, central na Teoria da
Argumentação. Percebemos a partir dos estudos empreendidos em 2005 (PENTEADO, 2009),
que o discurso de foro íntimo que acontece na escrita não nos dá a conhecer o confronto das
diferentes teses que permeia um coletivo e que era um de nossos interesses ao pensarmos as
possibilidades de formalizarmos o debate na escola.
Assim, nos deparamos com a seguinte questão: qual seria a metodologia que servia a
nossos objetivos e com a qual iríamos substituir o uso dos questionários?
Optamos por uma coleta de dados de forma que os alunos pudessem expressar suas
teses, confrontando-as, e usamos a proposta de Rosaline Barbour (2009) que visa à criação de
grupos focais onde os membros debatem entre si as questões lançadas pelo orador.
Consideramos, como coloca Wilkison (apud, BARBOUR, 2009, pg 49), que durante as
21

discussões do grupo focal "um senso coletivo é estabelecido, os significados são negociados,
e as identidades elaboradas pelos processos de interação social entre as pessoas", o que nos
remeteu ao conceito por nós buscado de acordo, a partir da suposição de negociações
possíveis.
Além disto, como as turmas do CAp-UFRJ são reduzidas, com no máximo 15 alunos,
durante as aulas de artes visuais, não necessitaríamos eleger um grupo de alunos
exclusivamente para participar dos grupos e sua aplicação poderia ser realizada em horário
normal de aulas.
O segundo desafio configurou-se em torno dos conceitos, temas ou palavras geradoras
a serem propostos para debate, já que esse se daria em torno do currículo da disciplina de
artes visuais, e a linguagem oral nos parecia restritiva em relação às estimulações possíveis
que poderíamos provocar, recorrendo à linguagem visual. Acolhemos, então, a sugestão de
Gaskell (In BAUER & GASKELL, 2008, pg 64-89) e optamos por utilizar imagens
previamente pesquisadas e debatidas pelo grupo de pesquisa como elemento desencadeador
dos debates.
Configurou-se, então, para a equipe, a mais importante questão metodológica que
enfrentamos: a definição das imagens a serem usadas. Uma vez que defendemos que o objeto
de conhecimento não é uma verdade a priori, mas uma construção sócio-histórica, foi
necessário definirmos, conceitualmente, aquilo que nosso grupo considerava arte e justificar
nossa definição. É interessante salientar que o acordo a respeito da experiência estética
artística não foi facilmente construído, mesmo no grupo de pesquisadores com objetivos e
algumas premissas comuns. Após um debate extenso que ocupou alguns encontros,
formulamos a seguinte definição provisória que buscou contemplar as diferenças entre os
envolvidos: É arte aquilo que é construção humana cuja principal função é de caráter
subjetivo e simbólico e cuja aproximação se dá privilegiando a percepção e experiência
estética (PEREIRA, 2010), ainda que tais construções possam ter uma função
objetiva/pragmática. Além disso, não é arte tudo que advém do mundo natural.

Essa definição partiu de categorias com discussões bem distintas entre si que nos
foram necessárias para que elegêssemos critérios que norteassem a seleção das imagens a
serem utilizadas. Em alguns momentos essas categorias refletiam nossos próprios valores ao
tentarmos definir um contorno para as artes visuais; em outros, foram reflexos de nosso
contato com o ambiente escolar e evocavam tensões que pareciam marcar os ambientes de
sala de aula e que gostaríamos de confirmar. Foram eleitas as seguintes categorias: 1) a arte
22

acadêmica e/ou aquela legitimada/consagrada (fosse pela legitimação histórico-acadêmica ou


pelo mercado das artes); 2) o cinema; 3) as artes não consagradas e oriundas dos artistas que
se encontram fora do mercado artístico consagrado, os chamados artistas populares; 4) a
natureza, como representante, por excelência, daquilo que não é arte; 5) a arte escolar como
produção particular e específica de uma produção artística; 6) o design industrial, também
representante de uma visualidade específica; 7) a moda; idem; 8) as artes urbanas e no corpo,
da contemporaneidade, exclusivamente o grafitti, a pichação e a tatuagem7; 9) e uma categoria
que se refere ao ideário de que tudo aquilo que é bem feito, tecnicamente, é arte (arte do
futebol, da culinária, etc) fundada na associação clássica da arte com sua etimologia grega
techné.
Evidentemente, não era nosso intuito considerar essa definição como correta,
tampouco utilizá-la como balizadora para avaliar "acertos" em relação a ela; apenas
salientamos a necessidade que se apresentou de reafirmamos um acordo coletivo, inerente à
nossa equipe, a partir do qual poderíamos selecionar as imagens a serem utilizadas e ouvir o
acordo dos alunos em relação à arte. Com essa definição, selecionamos trinta e oito imagens8
a serem utilizadas nos grupos focais e que deveriam ser apresentadas por um dos
pesquisadores, lançando a seguinte questão: Isso é arte ou não é arte, e por quê? O objetivo da
questão única era privilegiar um maior tempo de debate sobre cada imagem e averiguar que
pressupostos norteavam as definições que os sujeitos investigados tinham a cerca do objeto de
estudo justamente para avaliarmos em que medida estabeleceriam, ou não, acordos possíveis
de nortear a concepção curricular da disciplina.
Para a primeira categoria, elegemos uma imagem de arte rupestre do Parque Nacional
da Serra da Capivara, Piauí, (figura 1), considerando sua legitimação como representação da
arte através dos discursos tecidos por historiadores e, também, por sua ambiguidade que
poderia remeter os alunos de algumas faixas etárias a uma identificação com o estilo
esquemático do desenho. Em seguida, a obra A Sagrada Família, de Michelângelo (figura 2),
do Museu Ufizzi, em Florença, como modelo de arte canônica e representante apurada da
técnica acadêmica que busca a perfeição da representação naturalista. A figura três é a
imagem de uma gravura, de Debret, estudo do cotidiano brasileiro colonial, que nos sugeriu a

7 Como professores oriundos do ensino básico e em interlocução contínua com a escola, em função de
trabalharmos, na Universidade, com a formação de professores; investimos na hipótese informal, fundada em
nossa com-vivência escolar, de que essas manifestações artísticas são controversas nesses espaços e optamos por
investigar a confirmação, ou não, de nossas intuições.
8 As imagens são apresentadas com suas fontes no Anexo II.
23

mesma discussão da legitimidade da arte pelo discurso histórico, evocada na imagem de


Michelangelo.
A seguir temos uma série de produções de arte conceitual modernistas e
contemporâneas, ainda na categoria das artes consagradas pela história ou pelo mercado de
arte e que, entretanto, poderiam ser também ambíguas para os alunos, dado um possível
estranhamento em relação aos suportes, técnicas e propostas conceituais. A primeira é a
imagem da obra Mesa de apreensão # 1, constituída de blocos de concreto empilhados sobre
uma mesa, de Matheus Rocha Pitta (figura 4) do catálogo da exposição Nova arte Nova
realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em 2009. Outra, apresenta tijolos
unidos por uma fita amarela na obra Seção Diagonal, de Marcius Galan (figura 5) da mesma
exposição. A seguir, A Fonte, de Marcel Duchamp (figura 6), que juntamente às outras duas
nos traz a discussão sobre a legitimação da obra e de seus autores, através do reconhecimento
de suas intencionalidades conceituais e discursivas, bem como de suas trajetórias no mercado
oficial da arte. Ainda na mesma categoria, temos Depois da morte, uma chuva de rosas de
Cristina Oiticica (figura 7), onde vislumbramos a possibilidade de discutirmos o domínio
técnico de uma execução manual do trabalho artístico, já que a colagem não revindica uma
habilidade manual e ótica para a mímese da natureza em sua realização, uma vez que opera
com imagens previamente criadas. E, por fim, o trabalho Doze Meses, de Cadu, também da
exposição Nova arte Nova (figura 8), que à primeira vista aparenta uma conta de luz, objeto
funcional, mas que, sob minuciosa inspeção, denuncia um trabalho elaborado do artista que
calculou seu consumo mensal de energia ao longo de um ano para criar no gráfico de
consumo o desenho de um arco quase perfeito.
Na segunda categoria tratamos do cinema. Houve um consenso entre os pesquisadores
que cinema é uma representação característica das artes visuais e debateu-se se caberia à
primeira categoria, ou não; porém como a evolução nas tecnologias aplicadas no cinema foi
muito grande, incluindo aí as animações, e considerando que não há unanimidade absoluta
sobre o reconhecimento desta linguagem como sendo do campo das artes, julgamos válido
apresentar o tema para o debate com os alunos, isolando-o em uma categoria própria. Assim
sendo, escolhemos uma imagem do cinema clássico, mas, talvez, desconhecida de alguns
alunos, o cartaz de divulgação do filme King Kong, na versão de 1933 (figura 9), e um
exemplo de cinema que críamos fazer parte do convívio dos alunos, trazendo à baila a
animação: Os Incríveis (figura 10).
A terceira categoria, das artes não consagradas e oriundas dos artistas que se
encontram fora do mercado artístico consagrado, foi a mais complexa e também extensa de
24

trabalharmos. Começamos com o embate entre grafitti e pichação, do qual trouxemos a


imagem de um grafitti num prédio abandonado em Berlim (figura 11), e uma foto do Muro de
Berlim (figura 12), onde a temática dos trabalhos gira em torno das questões políticas e
sociais que envolveram a Alemanha pós Segunda Guerra. Trazemos também a foto do
trabalho de conclusão de curso de Augustaitz, aluno da Escola de Belas Artes de São Paulo,
no qual cinquenta pichadores foram convidados, por seu autor, a invadir e intervir nas paredes
da faculdade (figura 13), e por fim uma imagem de Cripta Djan, pichando a parede da
Fundação Cartier, em Paris, onde foi convidado a expor seu trabalho, quando o preparava, em
2009 (figura 14). A discussão almejada nessas imagens era referente à proximidade possível
entre as duas práticas e à recente apropriação de alguns estilos de trabalhos urbanos pelo
universo da arte legitimada e consagrada no mercado, opondo-se à discussão sobre os limites
entre arte e vandalismo.
Incluímos, também, em nossa seleção a discussão contemporânea sobre a body art. A
primeira imagem traz uma pintura corporal de Kim Joon (figura 15), a segunda uma tatuagem
vintage, de 1907, realizada nos Estados Unidos (figura 16), e a terceira uma tatuagem
contemporânea realizada em pessoa conhecida do grupo de pesquisadores (figura 17). Com
esse conjunto de imagens pretendíamos observar o debate em torno da possibilidade, ou não,
dos alunos considerarem como arte aquelas representações que utilizam o corpo como
suporte, bem como a discussão sobre a legalidade desse tipo de expressão, debate que também
perpassava a seleção de imagens de grafittis e pichações.
Arte pode ser utilitária? Pode ser coletiva ou a autoria individual, tal como proposta a
partir do Renascimento, é fundamental? Uma produção seriada e feita para a comercialização
popular pode ser considerada arte? A próxima sequência de imagens buscava trazer essa
discussão: arte em oposição às categorizações de artesanato e de folclore. Para levantar o
debate sobre esse tema selecionamos como imagens, retiradas da exposição Antes: histórias
da pré-história, realizada no CCBB, em 2005, uma tigela cerimonial, em cerâmica
policromada, da ilha de Marajó (figura 18) e um conjunto de cestos indígenas (figura 19).
Outras imagens retratam uma toalha de renda de bilro da Casa das Culturas Indígenas (figura
20); uma xilogravura realizada para o cartaz de divulgação da Exposição Ariano Suassuna 80
- A Terra, o Altar, o Sonho, realizada em 2007, no Arte SESC, Rio de Janeiro (figura 21),
uma figura de um souvenir do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, entalhado em madeira,
acervo do grupo de pesquisa (figura 22), a fotografia do trabalho Grupo de Maracatu, em
cerâmica policromada, da artista Sueli, de Caruaru (figura 23) e, por fim, uma foto
25

publicitária, de um Projeto Social, de uma jovem trabalhando em um torno cerâmico (figura


24).
Dentro da discussão do campo da história das disciplinas que problematiza a
especificidade dos conhecimentos escolares (MONTEIRO, 2003) também nos interessava
investigar as teses dos alunos a respeito da especificidade da produção artística escolar e
infantil. Por isso, escolhemos uma imagem de uma Festa Junina escolar (figura 25) e um
desenho feito por uma criança de nove anos, ambas do arquivo do grupo de pesquisa (figura
26). Vale dizer, que a imagem da Festa Junina poderia tanto provocar a discussão sobre os
saberes escolares, quanto sobre as artes não consagradas e populares, expressas na forma do
chamado folclore.
Para discutir o campo de design industrial e observar em que medida os jovens o
consideram como subcampo, ou não, da arte; trouxemos, retiradas de uma coleção de imagens
recortadas de revistas várias pertencente a um dos membros do grupo de pesquisa, uma
imagem arquitetônica (figura 27), e uma joia em forma de serpentes entrelaçadas (figura 28).
Também compôs esta coleção uma imagem de divulgação do I Dog, cão robô e brinquedo da
Sega Toys Co., lançado com sucesso em 2006 (figura 29).
Para debater a inserção, ou não, da moda no campo da arte, foi escolhida uma
fotografia de Fábio Bartelt da modelo Luana Teifke, realizada em 2009 (figura 30), além de
uma foto de pés femininos da já citada coleção de imagens de revistas de membro do grupo de
pesquisa (figura 31).
Observando a definição de arte elaborada em consenso pelo grupo de pesquisa e que
seria premissa para a seleção de imagens, na qual o que fosse do campo da natureza não se
configuraria como arte, já que não seria produção humana, selecionamos uma fotografia de
um cão, pertencente a um dos membros do grupo de pesquisa (figura 32); uma imagem de um
cavalo junto a um ganso, editada na Revista Caras e também pertencente à coleção de
imagens de revistas já citada (figura 33); o retrato da escritora Louise Stone, realizado por
Richard Avedon (figura 34) que propunha discutir não a fotografia como forma de arte, mas o
próprio ser humano; uma fotografia tirada descompromissadamente por um membro do
grupo, da Floresta da Tijuca (figura 35) e uma imagem de satélite do delta do Rio Lena, na
Rússia, a 4.400km de altura, do acervo de imagens da NASA (figura 36).
Por fim, para trabalharmos com a noção de techné, ligada à arte, selecionamos duas
imagens: uma imagem publicitária desenvolvida para o canal Sportv, na Copa de 2006, que
remete a um time de futebol sem que, entretanto, seja, de fato, o registro de um time
específico - o que poderia levar os pesquisados a considerarem a imagem por seu caráter
26

documental e não imagético- (figura 37) e capa do Compacto Vinil, Coletânea Preferência
Nacional, da década de 1970, acervo de imagens de um dos pesquisadores, que retrata uma
baiana preparando acarajés (figura 38), com o que chamávamos a atenção para as expressões
de consenso "a arte de...", no caso: a arte do futebol; a arte da culinária, etc.
Deste modo, foram escolhidas as 38 primeiras imagens a serem submetidas a um
grupo focal piloto que foi composto por doze crianças de terceiro ano do ensino fundamental.
Após a aplicação piloto, constatamos o empecilho prático que as 38 pranchas nos
apresentaram: imagens em demasia para serem discutidas nos 60 minutos máximos propostos
para o debate, forçando um aligeiramento das discussões e provocando um prolongamento da
atividade que culminou em distração e cansaço progressivos por parte do grupo, após
quarenta minutos. Entretanto, a iniciativa de trabalhar com o grupo focal e com o uso de
imagens mostrou-se acertada. A filmagem da sessão registra o envolvimento das crianças e o
detalhamento de seus olhares, bem como o esforço em chegarem até o final da análise de
todas elas.
Diante disso, o grupo ponderou a redução das imagens para um máximo de dez, uma
vez que consideramos que a qualidade do debate, inclusive por conta da teoria com a qual
trabalhamos, era mais importante para nosso estudo do que a quantidade de debates propostos.
Quanto a essa questão, consideramos que os debates que não fossem contemplados em função
da diminuição das imagens poderiam ser retomados em pesquisas posteriores. Resgatamos as
categorias iniciais para rediscutir seus objetos e fenômenos sensíveis, buscando aqueles cujo
pertencimento à arte fomentaria maiores polêmicas e argumentações, ao mesmo tempo em
que selecionamos as imagens que pareceram produzir maiores debates e envolvimento dos
pesquisados durante o piloto.
Nessa redução necessária, descartamos rapidamente as mais ambíguas em relação ao
objeto fotografado e à fotografia como linguagem artístico-visual, já que queríamos ater-nos
ao conteúdo e à referência dos objetos que, por razão logística, só poderíamos trazer para
discussão a partir de seus registros fotográficos, nos distanciando do possível debate da
própria fotografia como uma arte, o que colocaria em cheque todas as imagens e fugiria aos
nossos objetivos. Nessa discussão percebemos que uma limitação da metodologia escolhida
seria, justamente, não podermos trazer a própria fotografia como campo de arte a ser
investigado com os alunos e decidimos que na aplicação da pesquisa, entre as orientações
iniciais junto ao grupo focal, os pesquisados deveriam ser informados que, ao responderem à
questão de pesquisa, deveriam desconsiderar a fotografia e remeterem-se ao conteúdo da
imagem.
27

Após tal ressalva, eliminamos duas categorias que não pareceram criar grandes
comoções e cujo acordo tendia à unanimidade, não suscitando polêmica que nos levasse a
privilegiá-las. Foram as categorias do cinema e aquela referente à noção de techné.
Em seguida, considerando a repetição de obras dentro de uma mesma categoria que,
apesar de distintas entre si, investigavam as mesmas proposições, retiramos as imagens que
provocaram menor debate entre os pesquisados e decidimos que só poderíamos ter uma
imagem para cada categoria. Esses cortes foram sucessivos e necessitaram mais de um
encontro do grupo de pesquisa para chegarmos a um consenso. Decidimos por isolar da
pesquisa, também, nossas referências sobre moda, design e arquitetura, já que nos
mantínhamos seguros da necessidade de trabalharmos com o máximo de dez imagens e
observávamos que necessitaríamos reconfigurar os motes de debate para restringirmo-nos a
essa quantidade. Enfim, debruçamo-nos sobre o total de dez pranchas.
Mantivemos a imagem da A Fonte, de Marcel Duchamp (figura 6), que agregava tanto
a discussão sobre a arte conceitual quanto a que remetia à legitimação da arte através de um
discurso construído historicamente. Pelo mesmo caminho conceitual e acrescentando a
questão da contemporaneidade, cuja legitimação histórica ainda não se configurou, elegemos
o trabalho de Cadu, Doze Meses (figura 8), obra que brinca sutilmente com um objeto de
nosso cotidiano, legitimada pelo circuito artístico atual, mas ainda desconhecida do grande
público e modelo, dentre todas as outras obras contemporâneas que trazíamos, mais polêmico
talvez pela quase imperceptível intervenção do artista.
Para destacar a questão das artes não consagradas, escolhemos o Grupo de Maracatu,
de Suely, de Caruaru (figura 23) porque sua imagem suscitou nos alunos da aplicação piloto
uma aproximação maior com a discussão da produção seriada popular, já que a cerâmica
marajoara e as cestarias, expostas no CCBB, foram aceitas por alguns pesquisados como
legítimas obras de "arte dos índios", demonstrando que já incorporam uma legitimação
histórica. Outro binômio que nos foi impossível ignorar, dadas as discussões acaloradas, foi
aquele evocado pelo debate entre pichação e grafitti. Como modelo de pichação, mantivemos
a obra de Augustaitz (figura 13) que, apesar de possuir um contexto autorizado, sancionado
pela instituição em que a ação se deu, insinua um ambiente descrito popularmente como
depredado ou “vandalizado”. Na opção do grafitti, elegemos a imagem do Muro de Berlim
(figura 12), pois a imagem do pequeno prédio berlinense não tinha boa definição e grafittis e
pichações estavam presentes.
Para estimular o debate sobre a arte escolar e as artes populares, na forma do folclore,
retemos o registro fotográfico do desenho infantil (figura 26) e da Festa Junina escolar (figura
28

25). Representando outra esfera chancelada pela história da arte, a arte clássica com seus
cânones, elegemos a imagem da A Sagrada Família, de Michelangelo (figura 2).
Em resgate a embates do próprio meio artístico, mantivemos a questão da body art, do
corpo como suporte ou própria obra de arte, através da imagem da tatuagem contemporânea,
do acervo do grupo de pesquisa (figura 17). Para coroar a natureza como objeto de debate,
porque aparentemente seria o mais imparcial, uma vez que não evocava a empatia que
observamos no grupo focal, pelo reino animal, escolhemos a foto aleatória de plantas da
Floresta da Tijuca (figura 35).

5. PRIMEIRAS IMPRESSÕES: GRUPO FOCAL E AJUSTE DE PESQUISA


O grupo focal piloto foi aplicado em novembro de 2011 para uma turma de terceiro
ano composta por doze alunos: cinco meninas (aqui nomeadas A, B, C, D e E) e sete meninos
(nomeados F, G, H, I, J, K e L) e teve duração de uma hora e sete minutos. Aos últimos
quinze minutos, as crianças apresentaram sinais de cansaço, sendo que as imagens finais
foram debatidas de modo aligeirado. Nossa expectativa inicial era que o grupo debatesse por
cerca de quarenta minutos, o que nos levou a reduzir, para dez, o número de imagens que
foram aplicadas no decorrer.
De modo geral, a proposta foi bem aceita pelas crianças que debateram, argumentando
com seriedade e reflexão a favor de suas justificativas. Tecnicamente, averiguamos que nossa
proposta inicial para a apresentação dos temas de debate teria de ser revista. Ao organizarmos
a metodologia, nossa ideia era a de colocar o grupo de imagens nas mãos dos alunos para que
eles debatessem uma a uma a questão trazida. Notoriamente, a expectativa gerada pela
discussão da imagem posterior tumultuava a discussão presente e promovia discussões em
paralelo. Deste modo, a partir do piloto, além da redução de imagens, optamos por apresentá-
las uma a uma, passando para a imagem seguinte apenas quando a anterior estivesse esgotada.
Para evitar que imprimíssemos uma narrativa involuntária à sequência de imagens, essas eram
embaralhadas aleatoriamente antes do início de cada aplicação posterior.
Quanto à análise dos temas debatidos, é necessário também considerar,
metodologicamente, que, dado o forte rasgo qualitativo do campo de investigações retóricas,
esse viés teórico carrega considerável subjetividade trazida pelo olhar(s) do(s) pesquisador(s),
uma vez que buscamos os fundamentos filosóficos que sustentam algumas teses e não uma
classificação axiomática de termos linguísticos. Deste modo, mesmo que inicialmente
classifiquemos todos os argumentos, sempre procedemos a uma seleção dos debates – ou
trechos dos debates – que nos pareceram mais significativos após a aplicação para dedicarmo-
29

nos a uma interpretação mais aprofundada. No caso de nossa equipe tivemos como critérios
para seleção dos trechos analisados em primeiro, a maior incidência de classe argumentativa
apresentada pelos grupos para cada imagem discutida; em segundo, os debates que foram
mais calorosos entre os pesquisados; em terceiro, aqueles em que o acordo foi mais
dificilmente conquistado, ou não chegou a sê-lo; por último aqueles que, mesmo não sendo os
mais polêmicos entre os pesquisados, eram polêmicos para o grupo de pesquisadores, de
modo que sentíamos necessidade de analisá-los mais profundamente.
No grupo focal, notou-se que, de modo geral, as discussões apresentaram debates
acerca de temas considerados clássicos no campo, tais como, a natureza da criação, da ação
do homem, dos materiais, etc; entretanto, dentre as diversas questões trazidas daremos ênfase,
neste relatório, a um debate que nos chamou a atenção pelo aspecto ético e judicativo que
envolve e que está afinado com uma das questões contemporâneas empreendidas no campo: o
debate sobre a criminalidade ou não do ato artístico, a partir da prática da pichação.
Foram apresentadas as duas imagens referentes à pichação escolhidas na primeira fase
de seleção de imagens: uma do trabalho do pichador Cripta Djan, apresentado em Paris, em
2009, a convite da Fundação Cartier e outra, do trabalho de conclusão de curso em Artes
Visuais de Rafael Augustaitiz, que coordenou a invasão e intervenção da Faculdade de Belas
Artes de São Paulo por um grupo de 50 pichadores.
Inicialmente, ao apresentarmos a imagem de Cripta Djan, não houve acordo a respeito
de se seria arte, ou não, dividindo a turma. Ao mediarmos a conversa, apresentou-se o
seguinte debate.
G: Não é arte porque é pichação e pichação não é legal a menos que você peça
pro9 dono do muro.
L: Aí não é pichação.
J: Não, aí é grafitti.
D: É arte porque eles inventaram isso.
C: De qualquer jeito é uma arte, só que é fora da lei...
L: Não existe uma arte fora da lei.

Pelo fato de não chegarem a um acordo, a turma decidiu abrir uma terceira categoria
para as imagens sobre as quais não havia chegaram à unanimidade. Quanto à argumentação,
observamos que G inicia o debate afirmando que o trabalho de Cripta não é arte porque
pichação não é legal (no sentido jurídico). Ele usa uma argumentação ad rem ao desqualificar

9 Respeitaremos nas transcrições os modos coloquiais da fala dos pesquisados.


30

o objeto. Para isso apoia-se em um acordo pertencente ao preferível10 já que sua justificativa
baseia-se em um julgamento de valor (a recriminação da ilegalidade) apoiado em um lugar
comum, e não em fatos, dando-nos indícios de que os valores comuns formados em seu
contexto social contribuem para a formulação de sua tese. A criminalização da pichação não é
resultante de um fato inconteste, mas de uma negociação construída socialmente e que não se
apresenta encerrada. Em face disto, defender, sem justificativa, a criminalidade da pichação
seria uma tautologia, além termos de considerar a relativização do argumento, pelo próprio
orador, ao considerar a exceção de criminalização do ato de pichar já estabelecida socialmente
através da concessão do ato, desde que autorizado. G representa o lugar de aonde discursa, ao
relativizar sua fala inicial, considerando que o trabalho de Cripta pode vir a ser arte, desde que
tenha sido autorizado pelo proprietário do espaço físico.
Entretanto, os colegas L e J para garantir o status de ilegalidade à pichação recorrem à
dissociação de noções11, ponderando que, se fosse autorizado, já não seria pichação, mas
grafitti. Poderíamos refutar esse argumento destacando a necessidade de nova definição para
ambas as noções, já que podem não ser, necessariamente, contraditórias ou antagônicas. L
encerra a questão, colocando de modo axiomático que "não existe uma arte fora da lei". Sua
colocação aparenta autoritarismo, já que os axiomas não são verdades necessárias e absolutas,
porém sua colocação não é contestada pelos colegas. Observamos que os alunos, durante essa
discussão, não adentram o debate sobre o objeto artístico em si, ou seja, sobre as qualidades
da imagem e seus significados simbólicos e/ou estéticos inerentes, mas julgam o objeto em
função de sua relação com a sociedade e de suas consequências.
De modo amplo, as argumentações sugerem acordos pertencentes ao preferível, e, no
caso, a favor de um valor abstrato (a Justiça). Em função de sua generalidade, tais valores
tendem a ser universalmente aceitos e, portanto, apresentam-se como não controversos. Para
contrargumentá-los seria necessário especificá-los em suas particularidades, denunciar as
incompatibilidades que geram ao serem discutidos no caso particular. Como esse julgamento
funda-se na construção de um par filosófico que contrapõe e hierarquiza o termo arte a partir
de uma presunção de legalidade, poderíamos contestá-lo ao admitir que a existência de uma
arte ilegal exigiria a definição de um termo absoluto: a arte legal balizadora da ilegalidade,
bem como a definição da noção de legalidade. Desmembrar o par e seus termos nos permitiria
discutir a função da arte em relação com a sociedade, pensando se ela é ou não do domínio

10 Acordo que justifica escolhas que não se pretendem universais, mas que se apoiam em valores, hierarquias ou
lugares comuns.
11 Nos processos de dissociação, dissociam-se elementos de um todo, permitindo reconceituá-los e

recontextualizá-los, modificando noções mestras.


31

jurídico, quando e por que; investigando outras possíveis ligações que não a criminal. Se
introduzíssemos no debate as discussões que os auditórios especializados em arte têm
realizado (artistas, colecionadores, marchands, etc), observaríamos que vem se estabelecendo
um acordo de que a pichação é arte e tem-se defendido sua descriminalização, argumentando-
se com base na noção de estética e de significação estética e não a partir de uma noção
jurídica. Além disso, pode-se constatar, utilizando a noção de indústria cultural, a absorção e
disciplinarização da pichação pelo mercado capitalista.
Algumas imagens adiante, apresentamos o trabalho de Rafael Augustaitiz que
promoveu o seguinte debate:

L: Eu acho que é e não é, porque assim como a primeira, é feita com tinta e
coisa e tal, sprays, né? Mas não é, já vou avisando, eu não sei diferenciar entre o
grafitti e a pichação, mas é mais ou menos porque é uma arte feita fora da lei,
porque eu acho que isso é pichação.
A: Eu acho que é arte. Porque por exemplo, a pessoa inventou, ela desenhou,
tudo que está ali, ela desenhou, ela pintou. Por exemplo, a cadeira, a cadeira é
tipo como se fosse uma escultura, é a casa..., a gente senta, feito de plástico e
dos outros materiais (refere-se às cadeiras que aparecem no ambiente).
K: Eu acho mais ou menos porque é uma arte, mas é uma arte fora da lei. É arte
mais ou menos, mas esta arte só não é fora da lei quando pede permissão pros
donos do muro, é lógico.
L: Aí não é mais pichação, quantas vezes a gente deve dizer isso?
A: Eu já falei, mas eu quero falar outra coisa, depois que eu percebi. Isso aqui
está dentro de uma sala. Não quer dizer que tá fora da lei, porque tá dentro de
uma sala. Se for a sala da pessoa não tá fora da lei, tá dentro da casa da pessoa
se a pessoa gostar ela pode desenhar. É arte...
J: Eu acho que é arte. Porque é um desenho, foi criado então tem que ser arte,
entendeu?
B: Eu acho que tem que ir pro bolo do mais ou menos porque para mim eu acho
que isso é uma arte.
I: Para mim, é a mesma coisa que para A, é dentro de uma sala, só se fosse fora,
aí já era proibido, aí teria que pedir a permissão, mas já que é dentro da sua
casa, não precisa a permissão, eu acho que é arte.
C: Em primeiro lugar, eu não achei que era arte porque tá pichado, pichado não
é uma arte, pichar é uma coisa terrível porque é contra a lei, pichar parede –
você pode pintar – Isso é pintar, arte. Só que pichar é horrível e não é arte
G: Isto é ato contralei. Está escrito algo assim "abras os olhos e ver... inventável
marca na história. Lol". Isso está escrito assim. Uma coisa, eu não sou cego e eu
sei ver! (em tom de recriminação ao texto que sugere "abrir os olhos para ver").
H: Eu tô no mais ou menos... Não. É arte. Sabe por que é arte? Primeiro, dá pra
perceber que é dentro de uma sala de aula, ou essa sala de aula é abandonada e
ela não vai ser fora da lei, porque o cara pode ter comprado, pode ter arranjado
essa sala abandonada ou uma pessoa deixou ele fazer isso e o que está escrito
aqui, "abras os olhos e ver... inventável marca na história. Lol" e..., e..., pelo que
eu consigo ver, tem um buraco aqui. Isso só pode ser abandonado.
32

Conforme o grupo focal evolui, notamos que os alunos ficam mais à vontade e menos
econômicos para argumentar. L, que inicialmente havia sido axiomático, assume uma figura
de linguagem, lítotes, que exprime uma falsa modéstia – "já vou avisando, eu não sei
diferenciar entre o grafitti e a pichação, mas..." -, recurso normalmente utilizado pelo orador
quando necessita fazer-se simpático para sua plateia, angariando adesão prévia e deste modo,
relativiza seu ethos12 inicial. Modifica sua primeira argumentação na qual a pichação não é
arte, já que defendera que "não existe uma arte fora da lei", para a posição de "é e não é".
Inaugura uma nova proposição que inclui em sua justificativa elementos relativos à
manufatura do objeto – "porque assim como a primeira, é feita com tinta e coisa e tal, sprays,
né?"-, modificando a direção da discussão anterior que limitou as justificativas à relação
jurídica do objeto com o entorno social. Aqui, ele usa um argumento de ligação que funda a
estrutura do real13, tendo por base o recurso ao modelo e antimodelo. Ao retomar a discussão
anterior, funda o modelo do que pode ser arte – o uso de materiais específicos para a
manufatura de criação da obra estabelece uma ligação entre o objeto e sua essência - e
reafirma o antimodelo: pichação não é arte. Na continuidade dessa discussão e utilizando o
mesmo recurso de aproveitar o modelo dado no real para fundar uma regra, A reforça a
adesão à proposta de que arte é algo ligado ao uso dos materiais e acrescenta a característica
do ato criador ao objeto artístico: "porque, por exemplo, a pessoa inventou, ela desenhou, tudo
que está ali, ela desenhou, ela pintou", também na busca de um argumento que estabeleça uma
ligação de coexistência entre o objeto e as características que, supostamente, estabelecem sua
essência.
A proposta de que a pichação, embora executada ao exemplo de outras produções que
são consideradas arte, não o é, em função de sua ilegalidade, é contrargumentada por K. A
aluna reutiliza a técnica de ruptura, dissociando a noção de arte em arte legal/arte ilegal.
Novamente, L contrargumenta, reafirmando que não há categoria arte ilegal, portanto
pichação não é arte. Em função disto A retoma a palavra e recorre a uma técnica de
refreamento: dada a inviabilidade de saber, a partir da imagem, se houve, ou não, apropriação
indevida de espaço privado, lança a hipótese de que não houve ilegalidade e evoca nova
discussão comum às artes: a defesa, através de um argumento de ligação de coexistência 14, de
uma suposta relação entre o gosto, tomado como essência, e a arte, tida como manifestação

12 Espírito que anima o orador.


13 Argumento que busca "a partir do caso particular, a lei ou estrutura que este revela” (PERELMAN, 1999, p.
119).
14 Argumentos que "que unem uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele fazem parte e, em

geral, uma essência a suas manifestações” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 299).
33

que comporta características essenciais. Seu argumento ganha adesão de I e de H, quem


encerra a discussão.
Nos entremeios, J, seguindo na direção do refreamento, apela para o argumento de
ruptura definitiva com o argumento jurídico e também busca reafirmar uma essência ao
argumentar a favor do ato de criação para a execução do trabalho como resultante da essência
que caracteriza a arte. B se coloca a favor desse argumento, mas relativiza seu
posicionamento frente ao grupo, colocando que para ela é arte, mas deveria inserir o grupo de
mais ou menos; ou seja, aceita que para outros colegas a pichação não é uma forma de arte.
C endossa o posicionamento de ruptura de L, se colocando a favor da tese de que a
pichação não é arte porque é contra a lei e acrescenta que é horrível, mas, aqui, não nos foi
possível identificar se tal desqualificação refere-se ao gosto, ou à criminalidade.
G demonstra sua irritabilidade em relação à própria proposta conceitual do trabalho e
desqualifica-o por entender que seu conteúdo desmerece o espectador.
Por fim, a imagem do trabalho de Augustaitz, assim como a imagem de Cripta Djan,
seguem para o bolo de "mais ou menos", ou seja daquelas imagens sobre as quais não há um
acordo para toda a turma.
A partir desse primeiro debate significativo que partiu do grupo piloto, retomamos o
que colocamos ao início deste artigo ao propormos compreender o currículo como uma
verdade provisória que se estabelece socio-historicamente através da argumentação entre
diversas teses que se pretendem aceitas. Cabe aqui, salientar que no contexto de nossos
estudos compreendemos o argumento como algo que pode ser construído em diversas
linguagens15, tanto pela manifestação da língua natural (nas falas, discursos orais, escritos,
documentos, etc) quanto das linguagens simbólicas (corporais, artísticas, etc). Portanto, aqui,
uma vez que neste estudo apresentamos a investigação apenas de manifestações da língua
natural, cabe-nos acrescentar uma discussão que é aquela que versa sobre o currículo prescrito
(o documento que projeta nossas intenções para um período letivo) e o currículo em ação
(aquilo que realizamos, efetivamente, ao longo de tal período). Trataremos aqui, do currículo
prescrito, ressaltando, como já observou Goodson (1995), que seu aspecto prescritivo,
contraposto à ação executada na docência, não deve levar-nos a subestimá-lo, já que esse
imprime uma marca de valores e fundamenta a direção pela qual se pode conduzir a educação.
Portanto, na síntese dessas ponderações propomos pensar o currículo prescrito como o acordo

15 Ressaltamos que Perelman, pela própria natureza de seu campo de atuação, que era o campo jurídico, estudou
a língua natural.
34

prévio que norteia e deflagra valores envolvidos nas escolhas docentes durante a ação escolar,
ajudando-nos a compreender a prática cotidiana (que une teoria e ação) nas escolas.
Deste modo, chegamos às premissas a partir das quais ensaiamos as primeiras
conclusões desta pesquisa e que foram norteadoras de sua aplicação no ano de 2012. De modo
algum, pretendemos fundar regras, mas, como é dos princípios de um debate que se pretende
ético, é necessário que nosso interlocutores conheçam o acordo de onde partimos para pensar
o aproveitamento do debate das crianças na constituição do currículo. Tomaremos, por ponto
de partida, para esboçarmos primeiras conclusões relativas à aplicação piloto, um
arrazoamento trazido por Victório Filho (2008, s/n de pg) acerca da prática do ensino de arte
nas escolas periferizadas do Rio de Janeiro:

Raramente encontramos o questionamento, um pouco mais visceral, dos


conteúdos a serem ensinados. Dos seus sentidos macros e de seus efeitos
cotidianos. Nunca é discutida a quem interessa as emblemáticas ‘obras de arte’,
quem as elegeu como tal e as selecionou para compor os acervos públicos.
Jamais são aventados os valores estéticos, ideológicos e culturais que as obras e
suas coleções veiculam e se ligam. A arte, quase sempre sob um ingênuo e
edulcorado discurso, é tratada como um sistema de verdades para além do bem
e do mal.

A partir desta reflexão pensaremos que o currículo, mesmo o prescrito, poderia ter
como proposta a discussão dos conteúdos a serem ensinados, dos valores vinculados aos
saberes ensinados, da desconstrução dos sistemas de verdade estratificados. Ou seja, o
currículo se configuraria pela busca da construção de um acordo entre os sujeitos docentes e
aprendizes em torno do objeto de conhecimento.
Ora, no caso de nossa pesquisa, que foca o ensino das artes visuais, retomamos o
questionamento, já apresentado, que nos tem sido feito e que vimos estudando: o problema da
diferença hierárquica entre os saberes docente e discente como impeditivo para o
compartilhamento da elaboração do currículo. O que pudemos observar já no grupo focal é
que o saber da arte – e, imaginamos, os demais saberes especializados – não é privilégio do
ambiente escolar. Notoriamente, ele perpassa a sociedade em diversas dimensões, aplicações,
entendimentos, e chega aos alunos. Desse modo, todos traziam uma concepção sobre esse
objeto e a partir de seus valores argumentaram em prol de sua definição. Ao mesmo tempo, os
debates empreendidos corroboraram a premissa de que o conhecimento não é estanque e não
apresenta uma significação unívoca. Tal discussão não é distante das discussões que se têm
empreendido no campo da arte extramuros escolares: há alguma essência que garanta à coisa
o estatuto de arte? Pichação é arte? Arte pode ser um ato criminoso? O ato artístico está na
35

manipulação de determinados materiais, ou reside na intencionalidade do artista ou na obra,


ou na recepção do espectador, ou integra essas dimensões e outras mais? É possível haver
acordo unânime sobre o significado das expressões, há unanimidade sobre o que é artístico,
estético? Qual a relação do gosto com a arte? Ora, haverá a epistemologia de um
conhecimento não demonstrável? No caso da arte, há uma fronteira epistemológica segura que
auxilie o professor a definir conteúdos que, como coloca Victório, não têm sido questionados
em profundidade? Caberia ao professor de arte, assim como temos observado em outras
dimensões sociais, correr o risco de lidar com as rupturas de fronteiras dos saberes
contemporâneos e retomar o objeto de conhecimento, junto a seus alunos, como objeto de
questionamentos, gerador de atitude curiosa e investigativa de si próprio?
Tomando como recorte apenas duas das trinta e oito imagens discutidas com os alunos
de terceiro ano, não teríamos conseguido acordar diversos tópicos a serem estudados em um
ano curricular? Tais como, a relação arte/sociedade (e sua suposta criminalidade); a
essencialidade ou não de uma materialidade e/ou de uma prática manual para a definição do
objeto arte; a questão do gosto, etc. Para tal, necessitaríamos questionar de modo "um pouco
mais visceral, os conteúdos a serem ensinados", as práticas que temos mantido, por inércia,
desde a academização da arte e de sua inserção, no século XIX, no ensino para as massas,
avaliando qual é o acordo pertinente à apropriação deste conhecimento em sua configuração
social mais atualizada.
Essa foi a primeira direção que a análise da aplicação piloto nos deu. Anteriormente
(PENTEADO, 2009), pensamos a possibilidade de investigar um elenco de sugestões de
alunos do ensino básico para a construção do currículo e notamos a fragilidade de
concebermos tal currículo como resumo de seleção conteudística. Lopes e Macedo (2011) nos
auxiliaram a pensar o currículo não como técnica organizacional, mas como produção cultural
o que nos levou a concebê-lo como obra significativa de autor e, seguindo nossa intuição, de
uma autoria que poderia ser coletiva entre professor/aluno. Dada a riqueza da coleta de dados
deste grupo piloto, notamos que um caminho possível seria não o de chegarmos, pelo debate,
a conteúdos formais a serem trabalhados, mas aos próprios acordos e fundamentações que
poderiam nortear o currículo a partir de um coletivo em tensão. Foi na direção de pensarmos o
currículo como acordo prévio e coletivo negociado entre professores/alunos que demos
continuidade a nossa pesquisa.
36

6. O CURRÍCULO DE ARTES VISUAIS DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRJ:


SEUS DISCURSOS, VALORES E ORIENTAÇÃO ÉTICA: ANÁLISE DE DADOS.

Essa pesquisa foi aplicada em abril de 2012 no Colégio de Aplicação da UFRJ, em


uma turma de segundo ano do ensino fundamental, composta por nove alunos, sendo cinco
meninas – aqui nomeadas Af, Bf, Cf, Df e Ef - e quatro meninos – nomeados Ff, Gf, Hf e If;
em uma turma de segundo ano de ensino médio, também composta por nove alunos, dos
quais, seis meninas – nomeadas Bm, Cm, Dm, Em, Hm e Im – e três meninos: Am, Fm e
Gm; e a dois professores da disciplina de artes visuais, aqui nomeados PA e PB.
Como é de nosso interesse apresentar um estudo comparativo das teses defendidas
pelos diferentes sujeitos e coletivos a respeito da exibição das imagens apresentadas, no
intuito de classificá-las e justificá-las como arte ou não, optamos por apresentar os resultados
da coleta de dados em relação a cada imagem apresentada. Entretanto, apresentamos alguns
dados significativos que aparecem na coleta, relativos aos grupos específicos pesquisados,
bem como aos professores.

6.1 Dados numéricos gerados na pesquisa e premissas gerais


Preliminarmente a uma análise mais aprofundada dos debates e teses defendidos pelos
pesquisados neste trabalho, apresentaremos as classes de argumentos utilizadas por cada
turma de alunos e pelos professores, bem como o posicionamento dos alunos em relação à
classificação das imagens apresentadas quanto à sua representatividade como arte, ou não.
Essa segunda informação não coube ao grupo de professores que, como mostraremos na
análise dos argumentos utilizados na justificativa de suas respostas, mostraram-se mais
flexíveis.
A começarmos pelos alunos de segundo ano de ensino fundamental, observa-se que no
todo do debate, relativo às dez imagens apresentadas, foram utilizadas 12 classes de
argumentos. Em comparação ao ensino médio, menos da metade de recursos argumentativos
observados para os mais velhos (25 classes de argumentos utilizadas). A um primeiro olhar
isso poderia indicar que os alunos menores têm, de fato, menos recursos, ao argumentar; o
que é possível demonstrar em alguns momentos do debate. Entretanto, o recurso a um número
menor de classes argumentativas não significará, necessariamente, uma menor qualidade de
debate. Quando observamos os argumentos utilizados pelos professores, nota-se que PA
utilizou apenas 15 classes argumentativas e PB, 17. Portanto, a quantidade de argumentos
empreendidos pode ser uma demonstração de amadurecimento, uma vez que "os acordos de
37

que dispõe o orador, nos quais pode apoiar-se para argumentar, constituem um dado" de modo
que "o fato de selecionar certos elementos e apresentá-los ao auditório já implica a
importância e a pertinência deles no debate" (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002,
pg 131-132); ou seja, a ter para si mesmo um acordo mais esclarecido sobre o tema em debate
e sobre sua importância, o orador experiente escolhe os lugares mais importantes que irá
defender.
Acreditamos, como desenvolveremos a seguir, que ambas as situações apresentaram-
se na pesquisa: de um lado, alunos menores demonstraram recursos mais frágeis no sentido de
que, para algumas das imagens vistas, parecia que se indagavam pela primeira vez em relação
a elas e, de outro lado, em oposição a essa percepção, notava-se que os professores antes de
responder reservavam-se alguns minutos para refletir sobre as imagens e escolher suas
argumentações. Essa atitude de reflexão que antecedia o debate também foi notada no grupo
de ensino médio, entretanto, seus acordos pareceram mais flexíveis e passíveis de
revisibilidade quando contrapostos aos de seus colegas, o que os levava a reformularem suas
teses iniciais.

6.1.1 Segundo ano do ensino fundamental

Calsses de Argumentos - 2º ano do Ensino Fundamental - Percentuais


para 103 respostas dadas
30% 28,16%
25,24%
25%

20%

15,53%
15%
10,68% 10,68%
10%

5%
1,94% 1,94% 1,94%
0,97% 0,97% 0,97% 0,97%
0%
Pares Filosóficos
Comparação
Atitude Prática

Inclusão da Parte no Todo

Tautologia
Definição Descritiva

Uso de Ironia
Desqualificação Ad Rem
Ruptura de Ligação
Ligação à Essência
A Pessoa e seus Atos

Oposição à Interação da Pessoa e seus Atos


38

Os alunos de ensino fundamental recorreram majoritariamente a argumentos que


promovem uma ligação de coexistência16 pelo reconhecimento de uma essência que no caso
visa unir uma manifestação àquilo que a define essencialmente. Tomando o acordo que
estipulamos para nosso próprio grupo de pesquisa, ao determinar um elemento essencial que
caracterizaria uma manifestação artística17, reconhecemos a inevitável rigidez da classificação
pela essência, já que esta reporta acontecimentos variáveis a uma estrutura estável e trata a
variação como acidente, porém, compreendemos que todo acordo fixa circunstancialmente
definições e proposições que nos permitam dar continuidade aos debates que levarão a novas
formulações a respeito de algo. O que nos chamou a atenção nas respostas dadas por estes
alunos foi que o elemento essencial para definir a arte era inerente à própria arte, atendendo a
uma análise formal da imagem apresentada: normalmente a presença de algum suporte,
técnica ou elemento da linguagem visual; ao contrário das argumentações, por exemplo, do
ensino médio, que se pautaram na maioria no vínculo causal18, focando a intencionalidade do
artista e tornando-se mais abertas e flexíveis a certo questionamento, ainda que visassem uma
definição.
A segunda classe de argumentos mais utilizada por esses alunos é da categoria dos
argumentos quase-lógicos19, e utiliza as definições descritivas que buscam conferir um
sentido específico ao que está dado. Do ponto de vista filosófico, na retórica, essa definição
apresenta-se como um silogismo, pois não há como deduzir do dado apresentado uma
definição por dedução, deste modo trata-se a definição dada como correspondente direta
daquilo que se quer definir. No caso de uma definição no campo de uma linguagem formal,
ela apresenta-se exata porque é inerente às premissas da linguagem formal, podendo ser, por
isso mesmo, inclusive, arbitrária. Tomemos por exemplo a definição normativa de triângulo
equilátero, dada por Euclides no Livro I de seus elementos20:

16 Ligações de coexistência são aquelas “que unem uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele
fazem parte e, em geral, uma essência a suas manifestações” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p.
299).
17 Aquela realizada pelo homem e cuja construção de significados se dá a partir de uma percepção que privilegia

os meios sensitivos.
18 Aquele argumento que busca determinar uma causa que explique um acontecimento dado. No caso os alunos

justificavam que a imagem seria ou não arte desde que se conhecesse a intenção do artista
19 Têm aparência demonstrativa, porém realizam operações de redução que permitem inserir dados e valores nos

argumentos (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p 219-221)


20 Disponível em: http:<//www.mat.uc.pt/~jaimecs/euclid/1parte.html>. Acessado em 10/12/2012.
39

DEFINIÇÕES
XIV. Entre as figuras trilateras o triangulo equilatero é o que tem os tres lados eguaes
(Fig. 7).

Fig. 7

A definição é correta, pois é premissa de uma linguagem formal apresentada por


Euclides. No caso das definições propostas para noções formadas na linguagem natural não se
pode negligenciar o estado de inércia ou a tradição dos valores já formados para tal noção,
deste modo tal definição se pretende perfeita, mas é a reprodução, quase tautológica daquilo
que já está dado: tudo que é pintura é arte e é arte porque tem uma pintura. Ou, seja, o
definido e o definidor se intercambiam.
A partir daí, deduzimos que esses alunos, perante algumas imagens, não conseguiram
tecer teses próprias que justificassem suas classificações e reproduziram lugares comuns que
de, algum modo, aprenderam em seus ambientes culturais.
A terceira classe de argumentos mais utilizada foi a da ruptura de ligação, um tipo de
argumento que rompe com qualquer ligação possível entre duas proposições, que podemos
ilustrar pela clássica formulação: "Dai a César o que é de Cesar e a Deus as coisas do Reino
de Deus".
Quanto à classificação, em si, das imagens quanto a serem ou não representantes da
arte, esse grupo de alunos apresentou as seguintes respostas:

Muro de Berlim - 2º ano do Ensino Sagrada Família - 2º ano do Ensino


Fundamental Fundamental
90% 100%
80%
70% 80%
60%
50% 60%
40%
40%
30%
20% 20%
10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei
40

Doze Meses - 2º ano do Ensino Festa Junina - 2º ano do Ensino


Fundamental Fundamental
120% 120%
100% 100%
80% 80%
60% 60%
40% 40%
20% 20%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

A Fonte - 2º ano do Ensino Desenho Infantil - 2º ano do Ensino


Fundamental Fundamental
120% 120%
100% 100%
80% 80%
60% 60%
40% 40%
20% 20%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

Tatuagem - 2º ano do Ensino Natureza - 2º ano do Ensino


Fundamental Fundamental
120% 60%
100% 50%
80% 40%
60% 30%
40% 20%
20% 10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

Trabalho de Pichação - 2º ano do Grupo de Maracatu em cerâmica - 2º


Ensino Fundamental ano do Ensino Fundamental
90% 120%
80%
100%
70%
60% 80%
50%
60%
40%
30% 40%
20%
20%
10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

Discutiremos as justificativas relativas a essas classificações no capítulo em que


analisaremos os argumentos comparativamente.
41

6.1.2 Segundo ano do ensino medio

Classes de Argumentos - 2º ano do Ensino Medio -


Percentuais para 124 respostas dadas
25%

20%

15%

10%

5%

0%
Argumento de Autoridade
Atitude Lógica

Analogia
Vínculo Causal

Pares Filosóficos
Argumento de Superação

Dissociação de Noções
Argumento de Sacrifício

Uso de Ironia
Definição Normativa

O fato e as consequências

Tautologia
Divisão das Partes no Todo

Técnica de Ruptura e Refreamento

Ligação à Essência

Exemplo
O Grupo e seus Membros

Ruptura de Ligação
Definição Descritiva

Petição de Princípio
A Pessoa e seus Atos

Os Fins e os meios

Denúncia de Contradição
Oposição à Interação da Pessoa e seus Atos

Desqualificação Ad Rem

O argumento mais utilizado pelos alunos de ensino médio foi o argumento de ligação
de sucessão apoiado no vínculo causal. Este tipo de argumentação baseia-se em estruturas que
são percebidas na realidade21, estabelecendo uma solidariedade entre juízos admitidos e
aqueles que se procura promover. Tal solidariedade pode acontecer através de ligações de
coexistência – como no tipo de argumentação utilizada pelos alunos do ensino fundamental,
que vincula a existência de uma essência a um objeto, em relação de simultaneidade-; ou de
ligações de sucessão - “que unem um fenômeno a suas consequências ou às suas causas"
(PRERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 298), como é o caso com os alunos de
ensino medio ao defenderem para maioria das imagens apresentadas que a afirmação de se

21 Argumentos baseados na estrutura do real.


42

eram, ou não, do campo da arte, dependia de que soubessem a causa que levou à sua
realização, ou seja, a intenção do artista. Deste modo, o posicionamento desses alunos é
menos dogmático e absoluto do que o encontrado nas argumentações vindas dos alunos
menores.
Além de ser a argumentação mais utilizada, o recurso ao vínculo causal sobressai-se,
pois atinge 22% das respostas dadas, seguido do argumento, também de ligação, que se apoia
na coexistência entre uma pessoa e seus atos em 12% das respostas. No caso, esse argumento
também aparece colocando uma condição para a assunção da imagem apresentada à categoria
de arte: será arte se aquele que realizou a obra for uma artista.
Em seguida teremos 8% de argumentações de ligação de sucessão entre os fins e os
meios e 8% de ligações de coexistência entre o grupo e seus membros. No primeiro caso, sob
um viés expressionista, observa-se a valorização do status de arte às produções que servem de
meios para a finalidade da expressão humana; ou seja, o objeto é considerado arte, pois serviu
para que alguém se expressasse. Perelman e Olbrechts-Tyteca salientam o fundo essencialista
deste tipo de argumentação já que o fim é admitido como tal. Embora essa argumentação seja
muito próxima àquela utilizada pelo argumento de vínculo causal, nosso grupo distinguiu
duas estratégias de justificação diferentes entre os alunos: na primeira, de vínculo causal, o
artista tem uma intenção e é essa intenção (a causa) que legitima o objeto como arte; na
segunda, que recorre à justificativa dos meios em função do fim, não há, necessariamente,
uma intenção prévia do artista, mas suas emoções acabam por ser expressas através da
produção da obra, de modo que esta é meio (veículo) das emoções, a presença de tais
emoções seria, então, um elemento essencial à definição de arte.
A argumentação a favor do grupo e seus membros apoiou-se na justificativa, também
condicionadora, de que a imagem seria representante da arte se se considerasse o contexto
social (o grupo) em que o artista (membro) produziu aquilo e se o grupo identificou, em seu
contexto de origem, a obra como obra de arte e o membro como artista.
Em linhas gerais, numa primeira leitura observa-se que não apenas os alunos mais
velhos recorrem a uma maior gama de possibilidades argumentativas, mas ocupam também
um posicionamento menos rígido que aquele utilizado pelas crianças na definição descritiva
da arte e na fixação de sua essência.
O resultado da classificação das imagens quanto a serem ou não representantes da arte
para esse grupo apresentou as seguintes respostas:
43

Doze Meses - 2º ano do Ensino Médio Desenho Infantil - 2º ano do Ensino


60% Médio
50% 120,00%
100,00%
40%
80,00%
30%
60,00%
20%
40,00%
10% 20,00%
0% 0,00%
sim não não sei sim não não sei

A Fonte - 2º ano do Ensino Medio Natureza - 2 ano do Ensino Medio


60% 100%
90%
50% 80%
40% 70%
60%
30% 50%
40%
20% 30%
10% 20%
10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

Festa Junina - 2º ano do Ensino Grupo de Maracatu em cerâmica - 2º


Medio ano do Ensino Medio
80% 60%
70%
50%
60%
50% 40%
40% 30%
30%
20%
20%
10% 10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

A Sagrada Família - 2º ano do Ensino Trabalho de Pichação - 2º ano do


Medio Ensino Medio
80% 50%
70%
40%
60%
50% 30%
40%
30% 20%
20%
10%
10%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei
44

Tatuagem - 2º ano do Ensino Medio Muro de Berlim - 2º ano do Ensino


70% Medio
60% 120%
50% 100%
40% 80%
30% 60%
20% 40%
10% 20%
0% 0%
sim não não sei sim não não sei

6.1.3 Professores A e B

Classes de Argumentos - Professor A - Percentuais


para 53 respostas dadas
18% 16,98%

16%

14% 13,21%

12% 11,32%

10% 9,43%

8% 7,55% 7,55%

5,66% 5,66% 5,66%


6%
3,77% 3,77% 3,77%
4%
1,89% 1,89% 1,89%
2%

0%
Argumento de Autoridade
Definição Descritiva

Tautologia
Vínculo Causal

Exemplo
Divisão das Partes no Todo
Atitude Lógica

Inclusão da Parte no Todo


Definição Complexa

Ligação à Essência

Os Fins e os meios

Uso de Ironia
Dissociação de Noções
Ruptura de Ligação
Técnica de Ruptura e Refreamento
45

Classes de Argumentos - Professor B - Percentuais para 50


respostas dadas
30%

26,00%
25%

20%

16,00%
15%
12,00%
10,00%
10%

6,00% 6,00%
5% 4,00%
2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00% 2,00%

0%

Argumento Pragmático
Definição Normativa

Argumento de Autoridade

Vínculo Causal

Analogia
Definição Descritiva

Técnica de Ruptura e Refreamento


Divisão das Partes no Todo

Desqualificação Ad Persona
Argumento de Direção
Ligação à Essência

Dissociação de Noções
A Pessoa e seus Atos

Desqualificação Ad Rem
Ruptura de Ligação
Inclusão da Parte no Todo

Os Fins e os meios

A investigação com os professores assumiu caráter distinto, já que eles foram


pesquisados individualmente e não em um grupo focal. Para cada professor, separadamente,
nossa equipe apresentou as imagens e solicitou, como nos grupos focais de alunos, que eles
classificassem aquelas que consideravam arte e as que não, justificando suas respostas.
Deste modo, esses professores não debateram com um auditório particular ou de
especialistas (no caso, com outros professores), mas, como observamos na Teoria da
Argumentação, aqui utilizada, ao exporem suas justificativas, procedem à deliberação de foro
íntimo que não é desprovida dos elementos do debate, já que "o sujeito que delibera é
considerado em geral uma encarnação do auditório universal" (PERELMAN &
OLBRECHTS-TYTECA, 2002, pg 45). Ou seja, ao refletir sobre um posicionamento pessoal
o defende para si próprio na busca de reforçar sua tese, e imagina mentalmente o auditório
universal22, assim, colocam nossos autores (Idem, pg 49):
Nossa tese, de um lado, uma crença, uma vez estabelecida, sempre pode ser
intensificada e de que, de outro, a argumentação depende do auditório a que se dirige.
Por conseguinte, é legítimo que quem adquiriu uma certa convicção se empenhe em
consolidá-la perante si mesmo, sobretudo perante ataques que podem vir do exterior; é

22 Auditório abstrato que é construção do orador ao pressupor a totalidade dos sujeitos com os quais argumenta.
46

normal que ele considere todos os argumentos suscetíveis de reforçá-la. Essas novas
convicções podem intensificar a convicção, protegê-la contra certos ataques nos quais
não se pensara desde o início, precisar-lhe o alcance.

Além disto, não podemos deixar de considerar a própria presença dos pesquisadores,
em silêncio, como encarnação materializada, representativa e visual do auditório universal
que leva com que o discurso destes professores se caracterize como argumentativo.
Os distanciamentos e aproximações entre as classes de argumentos utilizadas por
ambos os professores ao serem pesquisados, nos aponta para a riqueza e pluralidade de
discursos que são tecidos dentro de um mesmo universo escolar e nos ajuda a descaracterizar
o objeto de conhecimento como objeto de contornos fixados, mas observando-o como
constituído pelos discursos que se tecem sobre tal.
Ao mesmo tempo, como já colocamos, o uso restrito, em certa medida, a alguns tipos
de argumentos, nos aponta, neste caso, à capacidade de escolha das noções e fundamentos que
serão utilizados por esses oradores. Está claro que a escolha nos dá a ver os valores e lugares
políticos que esses sujeitos ocupam e, na medida, em que representam para nós um auditório
particular de "especialistas em ensino das artes visuais", interessa-nos, também, essa
observação.
PA distribui os tipos de argumentos escolhidos de forma equitativa (17% de
argumentação fundada em dissociação de noções; 13% de utilização do argumento de
autoridade; 11,5% de recurso às técnicas de refreamento e ruptura e 9,5% de uso de
argumentos de ligação de sucessão de vínculo causal, seguidos de outros argumentos menos
representativos quanto à presentificação, mas também equitativamente distribuídos) e nos dá
indícios de que suas primeiras teses sobre a constituição do que é, ou não, arte, gozam de uma
gama de princípios mais ou menos diversificados. Já PB, assim como no caso dos alunos de
ensino medio, apresenta uma forte predileção pelo argumento de ruptura de ligação (26%),
concorrendo apenas com o recurso à dissociação de noções (16%), mas que pode ser
considerada portadora de uma fundamentação muito próxima à ruptura, com atenuantes.
No caso da análise das respostas destes professores, não consideramos apresentar
dados relativos às categorias: sim, é arte; não, não é arte e não sei; posto que, possivelmente
pela própria característica da deliberação de foro íntimo, suas argumentações foram mais
circulares, gerando muitos momentos de revisibilidade de suas teses iniciais, de modo que a
própria classificação dura tornou-se irrelevante frente à qualidade dos discursos apresentados.
47

Tendo, pois, colocado essa abertura inicial e genérica, apresentamos agora a análise
dos argumentos que defenderam ou se opuseram à categorização de cada imagem apresentada
como arte ou não arte.

7. O CURRÍCULO DE ARTES VISUAIS DO COLÉGIO DE APLICAÇÃO DA UFRJ:


SEUS DISCURSOS, VALORES E ORIENTAÇÃO ÉTICA: ANÁLISE DE
ARGUMENTOS.

7.1 Muro de Berlim

No total do universo investigado, a imagem que retrata uma parte do Muro de Berlim
foi considerada como forma de arte por 93% dos investigados, contra 7% que não a
consideraram. Entretanto as argumentações que defenderam essa classificação foram distintas
nos diferentes grupos (para cada uma das turmas de alunos e para cada professor) o que nos
demonstrou que a aparente notoriedade, ou o aparente acordo, sobre a condição de arte do
grafitti, ao ser aprofundado no debate, constata um conflito de teses que merece ser
observado.
Conforme apresentamos nos gráficos abaixo, um total de onze classes de argumentos
foram utilizadas na elaboração de justificativas para defender, ou não, o grafitti como
expressão artística. Destas, a definição descritiva é majoritária, principalmente por sua
utilização pelos alunos de 2º ano do ensino fundamental, seguida do uso do argumento de
ligação pelo vínculo causal fortemente empregado pelos alunos de ensino médio. Já os
professores, argumentaram em defesa do grafitti como arte, a partir de diferentes
argumentações. PA apoia-se basicamente na dissociação de noções e PB no argumento de
autoridade.
0%
5%
20%
40%

10%
15%
25%
30%
35%
45%
50%
15%

10%
20%
25%
30%

0%
5%
Definição Descritiva
24,00%
Definição Descritiva

45%
Inclusão da Parte no Todo

12,00%
O Grupo e seus Membros

4,00%
Argumento de Autoridade
4,00%

Inclusão da Parte no Todo

27%
Ligação à Essência
12,00%

Vínculo Causal
20,00%
investigado

Argumento de Direção
4,00%

Ligação à Essência

18%
Argumento de Sacrifício
4,00%

Dissociação de Noções
4,00%

Tautologia Desqualificação Ad Rem

9%
4,00%

Muro de Berlim - 2º ano do ensino fundamental


Muro de Berlim - Classes de Argumentos no universo

Tautologia
8,00%
48
49

Muro de Berlim - 2º ano do ensino medio


60% 50%
50%
40%
30%
20% 10% 10% 10% 10% 10%
10%
0% Série1

Vínculo Causal

Argumento de

Tautologia
Desqualificação Ad
Ligação à Essência
O Grupo e seus

Sacrifício
Membros

Rem
Destacaremos aqui, alguns argumentos mais bem elaborados e demonstrativos dos
debates a título de podermos examinar mais profundamente os valores e significados neles
expressos.
Uma primeira questão que se apresenta e faz-se notar ao longo da apresentação das
dez imagens selecionadas é o movimento de contaminação que a apresentação dos
argumentos iniciais, na turma de 2º ano do ensino fundamental, gera entre os alunos da turma.
Notamos como, ao considerar que suas proposições a respeito do tema e das imagens
apresentadas não são fortemente fundamentadas, algumas lideranças se destacam e, ao
apresentarem suas teses, influenciam as falas dos demais. Isso é bastante notório na imagem
relativa ao Muro de Berlim, visto que Af ao iniciar o debate e apresentar sua justificativa à
imagem: "deixa eu ver... Eu acho que isso é arte porque está cheio de desenhos", é
imediatamente seguido, em coro, pelos demais alunos. Gf acrescenta à descrição inicial um
julgamento quanto à qualidade naturalista da imagem retratada no muro: "eu acho que isso é
uma arte. Parece que é 3D23, é uma arte porque o carro parece 3D".
A característica de observar a imagem a partir da descrição das formas representadas é
imperativa na turma, ainda que apresente nuances como na própria fala de Af que, ao dizer
que a imagem é arte porque tem desenhos, não só a descreve, como estabelece uma norma:
quando há desenhos há arte, apontando não apenas para a descrição, mas, especificamente,
para uma descrição normativa. Isso difere, por exemplo, da fala de Gf que descreve a

23 Refere-se ao domínio do artista em relação à perspectiva cônica que produz um efeito de representação
naturalista na imagem.
50

qualidade da perspectiva no desenho, mas não a estabelece como necessária à consideração de


tal como forma de arte.
Como já frisamos (PENTEADO, 2009):
Maria Helena Rossi, em recente estudo sobre a leitura de imagens realizada entre
estudantes de diferentes faixas etárias do ensino básico (2003, p. 36-37), cita atuais
estudos de Parsons sobre o processo do desenvolvimento estético no ser humano e
salienta três etapas de concepção acerca da compreensão da imagem artística pelos
alunos, considerando tais etapas como evolutivas:
A primeira é uma concepção realística de beleza, normalmente presente nas
crianças, quando consideram “o mundo” (o tema) como a fonte da beleza da
obra;
Posteriormente aparece, na visão dos adolescentes, a concepção que valoriza o
papel do “artista” na definição da qualidade da obra;
Por fim, na adolescência tardia, há a possibilidade de surgir a consciência do
papel ativo do leitor.
A autora continua e relaciona esses estudos aos de Freedman e Sanger que
compreendem que essas etapas dizem respeito à maturidade pela qual se apreende a
intencionalidade forjada em uma imagem. Para ela, então, uma imagem:

 é sobre algo;
 é sobre a atitude do artista em relação a esse algo;
 dirige-se a um leitor.

Observamos nestes alunos do ensino fundamental as características acima descritas,


entretanto consideramos que elas não sejam inerentes a um processo de aquisição cognitiva
por parte dos sujeitos humanos da apreensão e significação da imagem estética, senão que
fruto de um processo cultural. Será possível detectar ao longo de uma análise comparada das
falas de alunos e professores da escola que a construção dos argumentos, por parte dos alunos,
origina-se em um lugar comum social – por exemplo a associação de que qualquer imagem,
ou, mais ainda, de que a imagem desenhada ou pintada, é, por essência, arte-, e acumula, no
ensino medio, teses muito próximas às de seus professores o que nos dá indício de que tais
dimensões de percepção da imagem são culturais e aprendidas.
O discurso cultural adjacente, ou já embutido na construção de discursos sobre arte e
imagem, tem sua importância garantida tanto no que diz respeito ao entendimento de que
conhecimentos culturais e artísticos estabelecem-se a partir de acordos comuns que vigoram
em sistemas particulares de cultura (GEERTZ, 1997), quanto para lembrar-nos que a
produção de discursos novos e, portanto, a geração de conhecimento, não se pauta na
assunção das premissas verdadeiras relativas ao objeto a ser conhecido – como se dá em uma
perspectiva dialógica platônica que disponibiliza o diálogo na intencionalidade de resgatar as
reminiscências -, mas se enriqueceria pela problematização das limitações impostas pelos
discursos e sua subsequente e interminável necessidade de refazeção.
51

Por isso, embora muitas vezes os discursos sustentados pelos alunos de menor
escolaridade possa nos parecer insignificante, na medida em que apresentam lugares comuns
relativos a um discurso mais amplo que circula no senso comum social de suas convivências,
parecem-nos imprescindíveis no re-conhecimento de suas teses de partida (as únicas que nos
valem problematizar) e nos ajudam a escapar da presunção de conhecimento de nosso
auditório.
Como não poderia deixar de ser, presumir que já saibamos os acordos de partida de
nossos alunos, julgá-los não necessários, inadequados, substituíveis seria o mesmo que julgar
a favor de uma certa inadequação de nossa localidade cultural inteira, desqualificando-a a
priori. Em termos da ideologia que a presunção implica Perelman e Olbrechts-Tyteca
observam que ela “é admitida enquanto e na medida em que não tivermos motivos para
desconfiar” (2002, p 79). Assim, se não pudermos argumentar, dando claras demonstrações de
que o lugar comum designado nos acordos dos quais partem nossos alunos deveriam ser
substituídos, ou que não são representativos de importância, corremos o risco de cometer uma
petição de princípio, ou seja, impor, ao outro, uma premissa como se fosse verdadeira.
Em nossa análise, propomos que o ponto de partida estabelecido pelo recurso à
definição descritiva que estabelece que é arte toda a imagem criada por um ser humano, tem
lugar garantido em nossa tradição cultural e merece ser reconhecido como verdadeiro e é
passível de ser problematizado criticamente, gerando possibilidades curriculares.
Já os alunos do 2º ano do ensino médio recorrem prioritariamente ao argumento de
ligação de sucessão de vínculo causal. Como dissemos inicialmente, os argumentos de ligação
baseiam-se na estrutura do real (o dado) e buscam estabelecer uma ligação que justifique a
coisa dada sobre a qual se argumenta. No caso, em muitas das imagens apresentadas, não
apenas em relação ao Muro de Berlim, usaram a ligação entre causa e consequência no
sentido de colocar que se a imagem representava algo que foi intencionalmente pensado ou
proposto por alguém (causa), seria, sim, arte (consequência). Em outras palavras a regra re-
conhecida no dado é: é arte a produção humana que é resultante de uma intencionalidade de
alguém (o artista) de expressar algo. Deste modo corroboram, novamente, o que foi
apresentado por Rossi: "aparece, na visão dos adolescentes, a concepção que valoriza o papel
do ‘artista’ na definição da qualidade da obra" (Cf., pg 49).
Vejamos alguns dos argumentos utilizados:
Cm: Eu acho que ele quis causar um impacto em quem estava assistindo e tal e por
isso e eu acho que é arte.
52

Bm: Eu também acho que arte. Ele tinha uma ideia, ele até escreveu umas coisas um
texto. Eu acho que, assim como a pichação, ele também teve essa ideia de mostrar
alguma coisa.

Am: Até mesmo, assim, a coisa do carro entrando na parede, pode até ter acontecido
de um carro ter batido e ter causado o acidente nesse muro, é como se fosse um grafitti
que uma bola tivesse entrado na parede. Você vê, na quadra: sempre que as pessoas
chutam a bola com muita força na parede fica a marca, e aí ele representa isso: a bola
com a marca na parede, a força que alguém botou nessa bola, então, eu acho que é arte
porque tem, talvez, uma grande significação para ele pessoalmente...

As falas dos alunos nos mostram com transparência que consideram o objeto da arte
como indissolúvel de sua relação com o sujeito que produziu a obra, o artista. O aluno Am
nos auxilia a perceber o quanto essa premissa é fundada nas relações culturais já dadas na
sociedade em que está inserido, na medida em que exemplifica os argumentos anteriores
através de sua própria experiência no colégio. Ao colocar que "eu acho que é arte porque tem,
talvez, uma grande significação para ele pessoalmente...", insinua também que essa
qualificação nem mesmo passa, necessariamente, pelo pela identificação do espectador com a
intencionalidade significante do artista, basta reconhecer que, para esse artista, a significação
esteve previamente presente à execução da obra, justificando fazê-la.
Entretanto, apesar da supremacia do argumento de vínculo causal na argumentação em
relação ao Muro de Berlim, Cm aponta que a imagem também pode ser entendida como arte a
partir de seus elementos visuais que atuam como representantes daquilo que é essencial ao
reconhecimento do objeto de arte. Assim, referindo-se à terceira imagem pintada no Muro (à
direita, na imagem global) como imagem "abstrata", salienta o uso da cor e, em seguida, a
representação coerente da forma, apontando que não haveria sentido inerente naquela
imagem, se fosse, por exemplo, executada em uma mesa, já que a própria representação do
muro se partindo (imagem do carro) recorria à pintura de formas inerentes ao muro, ou seja,
as pedras voando:
Cm: Não, mas eu acho que tem fatores, fatores, do tipo, cor... Ele quis retratar... Nesse
caso, ele foi abstrato, mas tem a questão do muro como arte, também, né? Como se o
cara tivesse entrado no muro, se ele tivesse feito isso numa mesa, não faria sentido, ele
até pintou pedra, né?

Deste modo Cm, com o uso de um argumento de ligação do objeto a sua essência, traz
ao cenário de debate uma concepção menos sígnica e discursiva da compreensão da arte,
reportando-se a uma abordagem formalista que preconiza a boa utilização dos elementos
visuais como essencial daquilo que a qualifica.
O professor PA analisa essa imagem na seguinte fala:
53

PA: Bom, grafitti, não é uma arte culta, é uma arte de rua, eu considero como arte,
sim, principalmente na comunidade, né? É uma arte de rua, inserida nesse espaço
público, levando um pouco para... Saindo da galeria. Eu considero como arte.

Na impossibilidade de admitir, de modo absoluto, o Muro como forma de arte, PA


recorre à dissociação de noções, pela qual arte se subdivide em subartes: arte culta/arte de rua,
gerando um binômio. Os binômios, ou pares filosóficos (aparente(termo I)/real(termo II);
parte(termo I)/todo(termo II); etc) para respeitarmos a nomenclatura da filosofia retórica, se
fundam em hierarquias, uma vez que o termo II corresponde a um critério perante o qual
explica-se e normatiza-se o termo I, de modo que termo II é dado como absoluto e aceito e o
termo I é parcial e justificável apenas perante a aceitação do termo II. Parece-nos inevitável
pensar que, de uma perspectiva filosófica, recorre-se a uma tautologia ao pretender que o
termo II, no caso desta fala a "arte culta", seja um conceito incontestavelmente aceito. Em
uma análise crítica e pós-estruturalista, essa tautologia parece defender um lugar de essência à
arte, como se "arte culta" fosse uma coisa válida e não um conceito social, histórica e
politicamente construído.
É perceptível também a hierarquização dos termos na fala: "(é uma arte de rua)
principalmente na comunidade, né?". A própria imagem que elegemos para essa pesquisa,
como representante do grafitti, pode abalar essa tese, já que é resultado de um trabalho
realizado majoritariamente por uma sociedade de classe média, em Berlim, cujo significado
de apropriação pode ser muito distante das apropriações que observamos nos espaços públicos
das favelas cariocas, apontando riscos quando tentamos uma generalização das intenções que
movem essas criações24.
O professor PB argumentou o seguinte:
PB: Ah, arte sim, bem... Intervenções urbanas, né? Ah, sim, é arte... Que também é a
mesma história: há dez anos atrás e eu escutei uma palestra, de uma historiadora,
Aracy Amaral, lá da sua terra25... Que teve um surto com um aluno de mestrado lá da
EBA26, dizendo que o grafitti não era arte, que aquilo era uma heresia. Há dez anos
atrás, quando a coisa aconteceu. Em dez anos... Que lugar que essa turma aqui ocupou
em dez anos? De ter, em São Paulo, galeria dos caras fazerem só grafitti. Tem uma
galeria lá em São Paulo, não sei o nome, que eles pintam tudo, mudam tudo só para a
galera fotografar e eles vendem. Teve fotografia de um deles lá, o Alexandre, do
grafitti dele, está numa galeria lá na Oscar Freire: dezessete, dezoito mil reais a foto do

24 Observe-se que, aqui, o termo "comunidades" é utilizado como sinônimo para "favelas". Esse processo de
eufemização das condições de desigualdade social deflagradas nos bairros da cidade do Rio de Janeiro vem se
configurando, paulatinamente, desde a década de 1990. Não nos cabe, neste texto, esse debate e, embora não
recorramos usualmente ao termo "comunidade" como substituto de "favela", aqui respeitaremos os significados e
usos dados pelos pesquisados.
25 O pesquisador que aplicou a coleta para esse professor é natural de São Paulo.
26 EBA: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
54

grafitti dele. É o capitalismo aí que se apropriou, o capitalismo se apropria de tudo,


né? Não tem jeito...

Ao ser indagado sobre o que significava dizer: "o capitalismo se apropria de tudo, né?
Não tem jeito..."; respondeu:
PB: Isso, para mim, não é bom, isso é um pouco desumano, né? As formas como essas
relações acontecem, de apropriação, né? Porque na verdade, quando o capitalismo se
apropria de um trabalho, desse artista, ele não está se apropriando do artista, ele está se
apropriando do trabalho e esse dinheiro ele vai para o mercado. Eu acho que o
problema é que quando o capitalismo... Dessas apropriações... São as relações
desiguais que acontecem entre quem explora e quem é explorado. Porque se a relação
é igual, então vamos lá, né? Você vende por dezessete, eu ganho tanto... Mas, não,
essas relações são desiguais, então, eu acho que, nesse aspecto... Quando faz circular é
interessante, mas, nesse aspecto da exploração, da apropriação, eu acho que não é
legal.

Embora PB inicie sua argumentação pautando-se na dissociação de noções


(intervenção urbana), logo assume uma argumentação pela autoridade que ganha força em seu
discurso ao justificar que o grafitti se torna uma forma de arte, nos últimos dez anos, na
medida em que é apropriado pelo sistema geral do mercado de galerias de arte. Deste modo, o
mercado comercial das artes é que representa a autoridade que legitima ou não determinados
produtos: se for vendido como arte, será arte.
Para fortalecer sua argumentação recorre a um argumento de direção que considera a
continuidade de etapas já iniciadas em determinado rumo. Relata certa trajetória das galerias
de grafitti em São Paulo e utiliza, novamente, esse argumento como forma de argumento de
autoridade ao colocar que essas galerias culminam na produção de trabalhos que atingirão alto
valor de venda em ruas como a Oscar Freire27, no bairro dos Jardins; tornando o valor de
mercado um agente de autoridade que confere legitimidade à obra como sendo obra de arte.
Observamos, mais uma vez, a hierarquização adjacente à dissociação inicial e que é
reforçada com o recurso à autoridade. Ao utilizar uma referência econômica, PB ilustra de
maneira quase concreta que algumas produções valem mais e, possivelmente, outras devem
valer menos; mas a arte é aquela produção que vale mais.
Entretanto, critica os próprios valores utilizados em seu julgamento da imagem, pois
chama a atenção para a perversidade deste sistema de avaliação e qualificação. De qualquer
modo, não podemos deixar de considerar em nossa análise que o fato de criticar tal critério de
julgamento não foi o bastante para que abandonasse sua premissa, deixando transparecer certo

27 Rua de comércio de altíssimo padrão, em São Paulo.


55

tom de fatalidade em relação ao poder que o circuito comercial pode exercer sobre outros
valores.
Embora, longe de uma ingenuidade que pretenda atribuir superpoderes ao indivíduo
frente sua simbiose social, admitindo o poder ideológico das relações de mercado em um
sistema político-econômico como o capitalismo, não podemos deixar de contestar que o
embate ideológico se processa, entre outros territórios, também em seu próprio terreno: o da
ideologia. Assim, chamou-nos a atenção que, apesar de tecer críticas às relações de poder
instituídas socialmente no julgamento das obras de arte na contemporaneidade, PB tenha
recorrido aos mesmos juízos de valor ao tecer sua justificativa e não tenha buscado outras
possibilidades argumentativas.
É interessante observar que, em relação a essa imagem não há pontos de convergência
entre as teses defendidas por alunos e professores, o que consideramos um bom indício que
teríamos aí um campo para debates e constituições de saberes novos, a partir da confrontação
entre essas diferentes teses. É perceptível o caráter discursivo e, portanto cultural, do
estabelecimento daquilo que se pode, ou não, considerar arte, inclusive para fins de
organização dos conteúdos curriculares da escola. Começou a delinear-se para nós que a
própria discussão sobre a legitimação de um algo que possa vir a ser considerado arte já
configuraria um interessante conteúdo a ser trabalhado no currículo escolar.

7.2 Sagrada Família, de Michelângelo.

Como ocorrido em relação à imagem do Muro de Berlim, o fato de estarmos trazendo


uma obra de um artista reconhecido pela literatura acadêmica relativa às artes plásticas, bem
56

como pelo mercado comercial e museológico; não apontou para uma maior homogeneidade
de argumentação.
Os alunos do segundo ano fundamental mais uma vez recorreram prioritariamente à
definição descritiva para referirem-se à pintura, mas agregaram também, de modo
significativo, argumentos de ligação pela essência em seus discursos. Para nossa surpresa,
pois imaginávamos que haveria unanimidade frente uma imagem tradicional, um dos alunos
de ensino fundamental, pautado em um argumento de ruptura de ligação pelo qual se pode
estabelecer que a fixação de cada objeto em seu campo próprio não é intermutável, não
considerou a obra como sendo uma manifestação de arte. Assim, coloca Df: "isso não é uma
arte. Eu considero mais uma decoração da igreja e não é uma arte".
Os alunos do ensino médio, por sua vez, não utilizaram de modo tão presente a
argumentação pelo vínculo causal, mas destacou-se o argumento de ligação entre o grupo e
seus membros. Já os professores recorreram igualmente ao argumento de autoridade.
Apesar de, no geral, os debates apresentarem recurso a quinze classes de argumentos,
notadamente a incidência da definição descritiva, da ligação entre grupo e membros e da
autoridade é sobrepujante.

Sagrada Família - Classes de Argumentos no universo


investigado
20%
17,86% 17,86%
18%
16%
14%
12% 10,71%
10%
8% 7,14% 7,14% 7,14%
6%
3,57% 3,57% 3,57% 3,57% 3,57% 3,57% 3,57% 3,57% 3,57%
4%
2%
0%
Tautologia
Definição Normativa

Argumento de Autoridade

Ligação à Essência
Definição Descritiva

A Pessoa e seus Atos

Vínculo Causal

Pares Filosóficos

Petição de Princípio
Argumento de Sacrifício
Oposição à Interação da Pessoa e seus Atos

Uso de Ironia
O Grupo e seus Membros

Ruptura de Ligação

Dissociação de Noções
57

Sagrada Família - 2º ano do ensino fundamental


45% 40%
40%
35%
30%
25% 20%
20%
15% 10% 10% 10% 10%
10%
5%
0%
Definição Descritiva

Ligação à Essência

Pares Filosóficos
A Pessoa e seus Atos

Oposição à Interação da Pessoa

Ruptura de Ligação
e seus Atos

Sagrada Família - 2º ano do ensino medio


35% 33%

30%

25%

20%

15% 13% 13%

10%
7% 7% 7%
5%

0%
Argumento de Sacrifício
Definição Normativa

Argumento de Autoridade

Ligação à Essência
O Grupo e seus Membros

Vínculo Causal

No registro do argumento de ligação que define uma essência para conferir a


determinadas produções o estatuto de arte, observamos aqui duas falas de alunos do ensino
fundamental. Para Bf "isso é uma arte porque está bem pintada" e para Af "é uma obra de arte
e também tem muita tinta amarela, rosa, verde e preta, tem muitas tintas aqui". A
58

problematização do uso de um elemento para a definição de uma identidade, ao olhar retórico,


é o caráter metafísico que se manifesta como um a priori insustentável, uma vez que não pode
ser comprovado demonstrativamente.
Está claro que, pelo caráter da questão que exige uma definição dos pesquisados a
respeito da arte, todas as respostas podem ser compreendidas grosso modo como uma busca
daquilo que essencialmente caracteriza essa produção, entretanto o recurso à ligação pela
essência garante a essa definição, ou ao elemento primordial, rigidez na medida em que
concretiza elementos formais necessários à compreensão do objeto e que são compreendidos
como inerentes a esse objeto. É neste sentido que a argumentação retórica por nós utilizada
distingue o recurso à essência de outros recursos utilizados nas definições.
De um lado, a essência pode ser contrargumentada pelo exemplo oposto à definição
que se pretende. Por exemplo, ao lembrarmos que nem todo objeto de arte recorre ao uso da
cor e da tinta como elemento. Deste modo, a ligação à essência parece-nos tão mais
facilmente contrargumentável quanto mais definitiva e inerente se pretende. Por esse motivo,
de outro lado, ainda que consideremos que qualquer dos argumentos utilizados pelos
pesquisados nessa investigação possam ser referidos a uma busca de essência é inevitável
observarmos o contraste, por exemplo, com o argumento utilizado por Am:
Am: Ah, eu acho que o que ele está falando (refere-se ao colega Fm que já se
colocou) é aquilo que eu já tinha comentado antes, de acordo com a sociedade que a
gente vive, a maioria das coisas que tem moldura, ainda mais, assim, moldura bem
detalhada, e tal, a gente vai considerar como arte. Então, foi como ele falou: você faz
um rabisco, e dentro um pingo, e aí se considera como arte.

Em sua argumentação Am irá refletir, recorrendo a um argumento de ligação não pela


essência, mas pelo vínculo que há entre um membro e o grupo ao qual pertence28, sobre a
impossibilidade de se definir sobre o status do objeto sem ter em consideração aquilo que em
determinado contesto sociocultural será considerado como arte. Ainda que apresente
elementos formais em uma definição normativa: "tem moldura, ainda mais, assim, moldura
bem detalhada, e tal, a gente vai considerar como arte"; relativiza o impacto desse "elemento
essencial" ao condicioná-lo a um contexto exterior à própria arte, o contexto definido por
tradição dentro de um determinado grupo.
Consideramos em nossa análise que a ligação do membro ao grupo é muito mais
flexível do que o argumento pela essência, uma vez que não define o algo essencial, em si,
mas a condição que estabelece a definição. Ao recorrer a uma condição, tal argumento torna-

28 Argumento de Ligação de Coexistência entre o grupo e seus membros.


59

se automaticamente condicionável não portando o universalismo proposto pelos argumentos


de ligação à essência.
Im também recorrerá ao mesmo tipo de argumentação anterior carregando com ironia
seu discurso:
Im: Ah, isso aqui todo mundo considera arte, sabia? Porque é bonitinho (ironia), tá
bem desenhado... Tem várias cores: está considerado arte. Parece de antigamente... É,
porque todo mundo considera, porque para mim... (dá de ombros)

Deste modo, ao mesmo tempo em que insinua dizer que não consideraria a pintura
como arte ao dar de ombros fisicamente, afirma que é arte, pois está em um contexto em que
"todo mundo considera (arte)" tal objeto.
Por fim, Cm coroa a tese de que a definição sobre a arte é dependente da análise do
contexto sociocultural no qual a definimos, apresentando um argumento que funda a estrutura
do real por analogia de oposição: "eu acho que, se um indígena observasse aquilo, poderia não
considerar arte...". Essa classe de argumentos procura “a partir do caso particular, a lei ou
estrutura que este revela” (PERELMAN, 1999, p. 119), deste modo, para conferir uma
justificativa válida à tese de que a arte só pode ser definida em relação ao seu contexto,
compara por analogia de oposição o binômio ser/não-ser inferindo que aquilo que é arte em
nossa sociedade pode ser não-arte em outras.
Apesar de usarem alguns tipos variados de argumentação que examinaremos a seguir,
os professores pesquisados deram ênfase ao argumento de autoridade. Como a entrevista com
esses participantes era individual e não havia o debate, apenas a colocação por cada um de sua
própria tese e justificativa para tal, as respostas foram rápidas e afirmativas, pois o recurso à
autoridade não requer provas uma vez que esta já está constituída pela autoridade invocada. O
modo de sustentar um debate frente a esse recurso seria o questionamento sobre o valor da
autoridade o que não poderia ocorrer no cenário de nossa investigação.
PA colocou que:
PA: Não reconheço o artista... Não tem nenhuma identificação, mas é uma arte
clássica, feita nos padrões clássicos renascentistas ou barrocos. Tem essa moldura, faz
parte? É que eu pensei que poderia ser uma aplicação... Essa aqui, inclusive, é
considerada como arte (faz sinal de "aspas" com os dedos) dentro dos padrões
acadêmicos.

Inicia, então, sua fala dissociando a noção de arte entre "arte clássica" e outras
deduzíveis que não são definidas verbalmente e afirma que essas artes clássicas são artes, por
assim dizer, no termo da palavra, ao utilizar o sinal de "aspas" com as mãos, ao legitimar a
obra. Reforça também a ideia de que a pintura é arte quando elege a palavra "inclusive" para
60

evocar a autoridade – os cânones acadêmicos – que lhe confere esse status. No caso, o recurso
à autoridade, assim como ocorreu no uso da essência pelos alunos do ensino fundamental,
remete a um ideário universalizante a respeito da arte, um certo a priori que é atemporal e não
espacial, que faz com que o status de arte do objeto não possa ser relativizado nem
compreendido em uma dimensão mais notoriamente sócio-política, como preferiram os alunos
do ensino médio.
PB afirma seguramente a qualidade de arte à pintura e não vê a necessidade de
justificar sua colocação o que nos permite inferir que questionar tal estatuto está fora de caso,
ou seja, a pintura torna-se inerentemente arte: "sim, é arte. É uma louça? Ou é parte de uma
igreja? Não..., não faria diferença. Nesse contexto aqui, não, não faria. Ainda que fosse uma
coisa atual, não é? Uma cerâmica atual... Esse desenho é arte".
De modo geral, em relação a essa imagem, confirmou-se nossa premissa de que ela
geraria uma quase unanimidade quanto a seu estatuto de arte. Ao elegermos Michelângelo
pretendíamos justamente averiguar, entre outras questões que se apresentassem, o poder de
impacto da autoridade acadêmica – discursos de críticos e de pesquisadores do campo das
artes visuais, e teorias já legitimadas sobre o objeto de estudo da arte -, que críamos funda
uma tradição quase universalista que se perpetua por inércia e por precedente, dificilmente
contestável.
O resultado nos leva a observar que a rendição ao tipo de autoridade que supúnhamos
norteadora dos juízos de valor sobre a pintura de Michelângelo se aplicou apenas aos
professores o que nos leva a observar que tal autoridade - da crítica, acadêmica ou literária –
não se perpetua por tradição inerte, mas sim pela apropriação formal de tais conhecimentos o
que se dará, provavelmente, através dos estudos especializados. Esse juízo de valor, portanto,
será característico de um auditório de especialistas e parece não atingir auditórios mais
universais, nem mesmo dentro de um ambiente de estudos como é a escola. O que pareceu
imperar como justificativa que se forma na tradição das culturas para o reconhecimento desta
pintura a partir de parâmetros mais ou menos universais e rígidos foi o reconhecimento de
elementos essenciais e formais que seriam inerentes às artes visuais.
Uma questão pertinente à essência é que admiti-la implica na aceitação das estruturas e
normas que a definem, assim o pensamento que se pauta no lugar da essência tende a ser
normativo. Seria possível imaginar, que esses alunos, ou parte deles, só viessem a aceitar que
uma aula trata de arte se utilizar os recursos materiais que eles definem como inerentes à arte.
Pareceu-nos sugestivo que justamente os alunos de ensino medio tenham sido o grupo
que mais relativizou o status da pintura de Michelângelo. Poderíamos supor que dada sua
61

idade avançada, em relação às crianças do ensino fundamental, usufruem de maior patrimônio


e bagagem culturais o que lhes permitiu argumentar saindo de seus próprios lugares essenciais
e experimentando outras possibilidades de olhar, em um movimento de hipotetização de
alteridade, como foi o caso de Cm ao tentar imaginar qual seria a percepção de um índio em
relação àquela imagem. Outrossim, não são velhos o bastante, como seus professores, nem
tampouco especialistas para terem mergulhado de maneira dogmática na autoridade
acadêmica. Deste modo, observaram a imagem a partir de uma semiótica de abordagem
estética, como propõe Geertz (1997, pg 178-179):
O artista trabalha com a capacidade de seu público – capacidade de ver, de ouvir, de
tocar, às vezes até de sentir gosto e de cheirar, com uma certa compreensão. E embora
alguns elementos destas capacidades possam ser realmente inatos – normalmente é
uma vantagem não ser daltônico – elas são ativadas e passam a existir
verdadeiramente com a experiência de uma vida que se passa entre determinados tipos
de coisas para serem olhadas, ouvidas, tocadas, administradas, e sobre as quais se
possa pensar, ou às quais se possa reagir; variedades específicas de repolhos, tipos
individuais de reis. A arte e os instrumentos para entendê-la são feitos na mesma
fábrica.
Esta visão sugere que, para que uma abordagem da estética possa ser chamada de
semiótica (...) teremos de nos dedicar a uma espécie de história natural de indicadores
e símbolos, uma etnografia dos veículos que transmitem significados. Tais indicadores
e símbolos, tais transmissores de significado, desempenham um papel na vida de uma
sociedade, e é isso que lhes permite existir. Neste caso significado também é uso, ou
para ser mais preciso, surge graças ao uso.

De modo geral, nossa premissa confirmada, de que a maioria dos pesquisados aceitaria
unanimemente tal imagem como arte, não invalida o debate e a questão polêmica de se buscar
uma definição para a arte nas culturas, vista a pluralidade de lugares e justificativas utilizadas
nas argumentações.

7.3 Doze Meses, de Cadu


62

O debate acerca da imagem do trabalho de Cadu, Doze Meses, gerou 16 classes de


argumentos o que demonstra a polêmica proporcionada. Cadu é um artista carioca
contemporâneo em cuja pesquisa no campo das artes visuais apropria-se de diferentes
sistemas encontrados na sociedade para serem utilizados em criações estéticas. No caso do
trabalho Doze Meses, no ano de 2005, o autor controlou seu consumo residencial de energia
de modo a ter, ao final deste período, o desenho de um arco que podemos observar no gráfico
de consumo (na imagem, à esquerda).
No universo de pesquisados, mesmo considerando as 16 classes argumentativas,
prevaleceu, com 26% de incidência, o argumento de ruptura de ligação de coexistência, pelo
qual se defendeu que uma "conta de luz" não é do campo das artes e que, portanto, a imagem
não se referia a uma obra de arte (no total 71% dos entrevistados não considerou a imagem
como sendo uma manifestação de arte). Em seguida, cerca de 17% dos respondentes recorreu,
em oposição à ruptura, ao argumento de ligação entre a pessoa e seus atos, ou seja,
defenderam que talvez a imagem fosse uma produção do campo das artes visuais, mas que
seria necessário conhecer o autor, pois sua intencionalidade de apropriar-se daquela conta
para utilizá-la como produção artística é que lhe garantiria tal status. No total do universo
entrevistado 23,5% considerou que a imagem referia-se às artes e cerca de 6% não soube
afirmar nenhuma das posições anteriores.
Os alunos do ensino fundamental continuaram em grande medida recorrendo às
definições descritivas (45%), porém, agora, utilizaram em igual proporção o argumento de
ruptura de ligação (45%). Na mesma perspectiva se manifestaram os professores
entrevistados, sendo que PB recorreu a outras classes de argumentos para justificar e reforçar
a ruptura tais como o argumento de autoridade, a desqualificação ad persona e o lugar da
qualidade pela defesa da produção do trabalho único, como trabalho autoral, em relação ao
trabalho realizado em escala de massas ou industrial. Já os alunos de ensino médio, tendem a
posicionamentos mais moderados recorrendo majoritariamente aos argumentos de ligação que
terminam por impor condicionalidade à classificação da imagem, ora pela ligação dos fins
com os meios (44%), ora pela coexistência entre a pessoa e seus atos (28%).
10%
20%

15%
25%
30%

0%
5%

10%
20%
30%
40%
50%

0%
Definição Descritiva

11,90%
Comparação

Inclusão da Parte no Todo

2,38% 2,38%
Definição

45%
Descritiva Divisão das Partes no Todo

4,76%
A Pessoa e seus Atos
16,67%

Argumento de Autoridade 2,38%

Técnica de Ruptura e Refreamento


4,76%

Oposição à Interação da Pessoa e seus Atos

Comparação

9%
Vínculo Causal

Argumento de Superação

fundamental
2,38% 2,38% 2,38%

Os Fins e os meios
9,52%

Analogia
2,38%

Ruptura de Ligação

Doze Meses - 2º ano do ensino


26,19%

Ruptura de

45%
Ligação Pares Filosóficos
4,76%
Doze Meses - Classes de Argumentos no universo investigado

Desqualificação Ad Persona

Uso de Ironia
2,38% 2,38%
63
64

Doze Meses - 2º ano do ensino medio


50%
44%
45%
40%
35%
30% 28%
25%
20%
15% 11%
10% 6% 6% 6%
5%
0%
Oposição à Interação da Pessoa

Pares Filosóficos
Ligação à Essência

Ruptura de Ligação
A Pessoa e seus Atos

Os Fins e os meios
e seus Atos

Podemos observar que na integralidade das respostas dos alunos de ensino


fundamental, ainda que em alguns casos note-se a continuidade das descrições, elas vêm
acrescidas de argumento de ruptura de ligação que garante à arte um determinado status que
não se confunde com aquele reservado a uma conta de luz, como na fala de Cf:
Cf: Isso não é uma obra de arte e isso é uma conta de luz e da light. Isso com certeza
não é uma obra de arte é uma conta de luz e de trabalho e de banheiro...

Entretanto cabe salientar, também, que, no caso destes alunos, a ruptura não anuncia
uma hierarquização entre os diferentes como comumente pode ocorrer. Ao contrário, na fala
de um dos alunos que identifica a conta com o trabalho de seu pai, nada na ruptura a
desqualifica, apenas diferencia:
Gf: Isso completamente não é uma arte porque isso é uma conta de trabalho que é
igual a do meu pai, que ele ganha muita grana com isso.

Os alunos do ensino médio, em sua maioria (apenas um aluno respondeu


categoricamente que a imagem não se referia uma forma de arte), voltaram a relativizar e
65

condicionar a classificação da imagem. Recorreram a argumentos de ligação de coexistência


“que unem uma pessoa a seus atos, um grupo aos indivíduos que dele fazem parte e, em geral,
uma essência a suas manifestações” (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2002, pg
299), ora pautados na ligação entre a finalidade que se propõe a um acontecimento e a sua
consequência, ora na ligação que existe entre a pessoa e o ato resultante de sua ação.
Observa-se na fala de Bm o recurso à ligação entre fins e meios, ao ponderar que o
objeto retratado na imagem poderá ser considerado arte, desde que alguém tenha tido essa
intenção; ou seja, desde que tenha sido concebido com essa finalidade. Ao mesmo tempo
indica que apenas o contato com a imagem, sem a possibilidade de identificar a causa de sua
concepção, não lhe possibilita considerá-la como representante de uma manifestação artística:
Bm: Eu acho que sim, praticamente tudo pode ser considerado arte. Desde que o cara
diga o que vai fazer disto, desse papel, dessa conta de luz, é arte. Aí ele pega, passa,
bota em um outro formato que seja arte, Mas, assim, pegar a conta da light, olhar e
dizer que é arte, eu acho que não: tipo essa. Se ela estivesse em outro formato, em
outro aspecto, de repente, em uma exposição, seria arte. Mas não nesse caso.

Já Hm, argumentando a favor da ligação de coexistência entre o ato e a pessoa (por


exemplo, se a pessoa é artista, então o objeto será de arte), traz para a discussão não apenas o
sujeito artista, mas o espectador que, em sua apreciação, também será determinante, em seu
ponto do vista, para classificar a imagem como sendo de arte ou não. Também admite a
hipótese da imagem ser e não ser representativa de uma manifestação de arte, sem render-se à
dicotomia imposta pela questão formulada ao grupo. Além disso, ao recorrer ao uso do
"talvez" reafirma a marca de condicionalidade que o debate no ensino medio adquire:
Hm: Tem talvez? Porque, sei lá, depende de quem vê. Uma pessoa pode ver e tirar mil
conclusões de uma conta da light e também pode ter uma pessoa que olhe e, sei lá, é
só uma conta... E tem outra que pode ficar na dúvida se é assim ou não.

Fm posiciona-se na mesma direção de Hm e, além de reforçar o argumento de ligação


entre pessoa e ato, usa uma técnica de refreamento às argumentações que se apoiam na defesa
de alguma essência determinante da classificação daquilo que venha a ser arte:
Fm: É, e depende de quem vê. Exatamente, é a gente que faz a alternativa, não
depende da arte. Não, tem quem produz, mas tem quem vê a arte (grifo nosso em
destaque ao refreamento do elemento de essência).

A ligação de uma definição à sua essência tem sido um recurso comumente pensado
no estudo da arte. Geertz ressalta em seus estudos esse formalismo estético estabelecido por
tradição nas sociedades, em especial nas ocidentais, que se apoia sobremaneira nas qualidades
artesanais das linguagens artísticas:
Em quase todo o mundo, fala-se da arte em termos que poderíamos chamar de
artesanais – progressões de tonalidades, relações entre cores, ou formas prosódicas.
66

Esta tradição é ainda mais comum no Ocidente, onde temas como harmonia ou
composição pictórica desenvolveram-se de tal forma que passaram a ser considerados
como ciências menores e onde o movimento moderno, orientado para um formalismo
estético cujo melhor representante no momento seria o estruturalismo, ou para os
vários tipos de semiótica que buscam seguir-lhe os passos, não são senão uma
tentativa de generalizar esta maneira de ver a arte, tornando-a mais abrangente, e
elaborando uma linguagem técnica capaz de expressar relações internas entre mitos,
poemas, danças ou melodias em termos abstratos e permutáveis (GEERTZ, 1997, pg
144).

Sem a pretensão de desqualificar esse viés, mas dimensionando-o às limitações de sua


intencionalidade e proposição, o autor sugere que o entendimento da arte como um sistema
que integra diferentes sociedades, grupos e sujeitos sócio-históricos está em relação aos
objetivos humanos que a configuram:
Discursos sobre arte que não sejam meramente técnicos ou espiritualizações do
técnico – ou pelo menos a maioria deles – têm, como uma de suas funções principais,
buscar um lugar para a arte no contexto das demais expressões dos objetivos humanos,
e dos modelos de vida a que essas expressões, em seu conjunto, dão sustentação.
(Idem, pg 145)

A maioria dos alunos de ensino medio vai ao encontro das concepções do antropólogo.
Entretanto, encontramos no grupo, ainda que em minoria, alunos que pensam a arte a partir de
seu formalismo concreto e do ideário de um pensamento que parte do par filosófico que a
entende como relação entre forma/conteúdo. Observamos o seguinte pesquisado que ao
primeiro contato com a imagem coloca que:
Am: Ah, sei lá, eu acho que pode ser considerada arte porque o formato, assim, como
foi elaborado, talvez... Mas, tipo, por outra parte, acho que a informação que tem na
imagem, não seja tanto da arte. Eu penso mais assim...

Após as argumentações de seus colegas, pautadas nas ligações que condicionam a


classificação, relativiza seu posicionamento, porém sem abandonar a polarização
forma/conteúdo:
Am: É que eu também concordo porque eu acho que aí a informação vai poder ter
sentido (se se souber a intenção de quem produziu o objeto. Nota nossa). Então,
talvez, dependendo da interferência que ocorra pode ser que... Pode ser que eu
considere até mais arte, aí eu acho que a informação vai valer, porque antes, só essa
imagem, como foi feita, eu considero que foi uma arte, mas a informação que ela traz
não. Mas, se eu fizer a interferência, dependendo da interferência que eu faça, até a
informação pode resultar em uma arte.

Os professores pesquisados não consideraram que a imagem fosse relativa a uma


manifestação artística e se apoiaram quase exclusivamente no argumento de ruptura de
ligação em suas justificativas, recorrendo a outros argumentos apenas para reforçar a tese de
ruptura.
67

PA: Um boleto! De luz...? Isso, para mim, é triste, no final do mês... Olha, se a gente
pensar... Deixa eu pensar no boleto da luz... Nas possibilidades... O boleto em si? Ou a
utilização do boleto? É isso aqui que você está me mostrando (gesticula com a mão ao
redor da imagem indicando que se refere à imagem inteira). É, se você pensar que teve
um pensamento, um pensamento de um designer, se houve, de fato, né? Porque não é
muito agradável para mim essa seleção de cores, mas, se houve o pensamento de um
designer aqui por trás da... (a cena afirmativamente com a cabeça), dentro dessa gama
de produção, do pensamento da arte... Mas não o boleto em si: e eu não consideraria
arte. Mas o trabalho de alguém que pensou na estrutura de como apresentar isso daqui.
Agora, se o boleto for utilizado em outra proposta... Fazer uma a... Uma escultura de
boleto de...

PA inicia sua argumentação paulatinamente e recorre ao mesmo par filosófico que


orientou as argumentações do estudante Am, forma/conteúdo. Em sua análise formalista, se
for considerar apenas a forma e não o uso (conteúdo), associando esse princípio à
argumentação que liga os fins e dos meios, admite haver uma intenção estética por parte do
designer gráfico que criou o modelo da conta: "é, se você pensar que teve um pensamento, um
pensamento de um designer, se houve, de fato, né?" Segue uma sutil dissociação de noção do
conceito de arte: "dentro dessa gama de produção, do pensamento da arte..." e mais adiante;
"o trabalho de alguém que pensou na estrutura de como apresentar isso daqui" (seria arte) e,
por fim, a ruptura, que carrega a força de seu discurso, apesar de manifestado apenas ao final
da fala: "mas não o boleto em si: e eu não consideraria arte".
A mesma linha argumentativa é apresentada inicialmente por PB que utiliza a
dissociação de noções para primeiro delimitar o tipo de produção apresentada na imagem e
posteriormente seguir com sua análise na qual, mesmo com a dissociação, ao final apresenta a
ruptura ao afirmar que, mesmo relativizando o olhar, o objeto não é de arte:
PB: É, a diagramação aqui, né? Que foi feita por um profissional que trabalha com as
formas. Mas, aí, o designer ele está muito nesse lugar dos campos que fazem fronteira,
né? Porque o designer tanto ele pode fazer fronteira com a engenharia de produção,
com a logística, como pode fazer fronteira com a comunicação, com arte popular, com
artesanato, com a educação, tem interfaces, né? Então, o campo do designer, ele é
muito generoso nesse aspecto, então, assim, tem uma diagramação aqui que foi
pensada, que foi estudada por um profissional. Agora, não é arte, mas existe um
trabalho aqui, uma noção de projeto, de criação.

Na continuidade de sua fala, recorre ao argumento que relaciona a pessoa e seus atos,
pois evoca a profissão do artista, na tentativa de definir esse sujeito, o que garantiria estatuto
de arte ao objeto. Na sequência, utiliza um lugar da qualidade ao defender que a produção do
único conotaria um status de arte ao objeto diferenciado do sentido de artístico conferido à
produção em escala industrial (no caso, gráfica) e rompe novamente a ligação entre artístico e
arte ao propor que o "estudante de design" pensa que será artista e não o será:
68

PB: Está trabalhando com gráfico, com imagens, com essa noção de projeto, de
construir, né? Por que o estudante de designer ele fica com essa ideia de que ele vai
entrar ali e que vai ser artista. Muitos ficam com essa ideia porque, ao mesmo tempo
em que tem os irmãos Campana que assinam uma peça quando o trabalho deveria ser
um trabalho único; tem o programador visual da light. O que difere ele (diagramador
da Light) dos Campana é a legitimação dentro desse campo porque é claro que esse
aqui está trabalhando em uma esfera menos autoral, digamos assim, é a questão da
assinatura... E, provavelmente, o profissional que fez isso ele foi para o campo da
comunicação visual. Agora, o Campana, por exemplo, ele vai trabalhar com essa coisa
de autor.

É possível também observar uma desqualificação ad persona quando a argumentação


evoca a ideia de que o trabalho de diagramação é menos autoral do que o trabalho dos irmãos
Campana. Embora tanto os Campana, quanto um diagramador da Light, sejam
profissionalmente considerados designers o fato do design da conta não ser assinado
desvaloriza o segundo em relação ao primeiro. Essa desqualificação, por sua vez, apoia-se em
um argumento de autoridade, a assinatura tradicionalmente fortalecida durante o período do
renascimento.
De modo geral, os debates empreendidos apontam para algumas das questões centrais
que se tem abordado nos estudos contemporâneos de arte que empreendem esforços para ir
além de entendimentos mais essencialistas e formalistas da manifestação artística cuja gênese
de modo mais genérico poderíamos reclamar ao ideário grego que pensa a arte como techné, e
resgatar a dimensão de produção de sentidos dada pelo objeto estético e artístico, sua poiesis.
A discussão apresentada é bastante atual, principalmente, pela busca, nos argumentos
empreendidos, de superação de uma essência inerente ou metafísica para a compreensão da
manifestação da arte e pela tentativa de religá-la às condições concretas, sócio-históricas, de
sua produção.

7.4 Imagem da Festa Junina em uma Escola


69

No caso da imagem da Festa Junina escolar, a definição descritiva foi a classe de


argumentos mais utilizada, porém, desta vez, não pelos alunos de ensino fundamental que
foram unânimes em não considerá-la uma forma de arte, argumentando pela ruptura de
ligação. A descrição foi um recurso amplamente utilizado pelos demais entrevistados, tanto
pelos alunos do ensino médio quanto pelos professores, e em grande parte dos casos serviu
como base para argumentações de divisão do todo em partes que fundamentaram dissociações
de noções para justificar, de modo geral, que, se não fosse possível considerar a festa como
uma manifestação da arte, ainda assim, seria possível reconhecer representações de arte em
suas partes: na música, na dança, etc.

Festa Junina - Classes de Argumentos no


universo investigado
25%
22,22%

20% 18,52% 18,52%

15%
11,11%
10%
7,41%

5% 3,70% 3,70% 3,70% 3,70% 3,70% 3,70%

0%
Divisão das Partes no Todo

Ruptura de Ligação
Atitude Prática

Definição Normativa

Tautologia

Uso de Ironia
Definição Descritiva

Os Fins e os meios

Dissociação de Noções
O fato e as consequências

Desqualificação Ad Rem
10%
15%
20%
25%
30%
35%

0%
5%

0%
5%
30%

10%
15%
20%
25%
35%
40%
45%

8%
Definição Normativa
Atitude Prática

8%
Definição Descritiva

15%
Definição Descritiva
25%

Divisão das Partes no Todo

38%

8%
O fato e as consequências
Ruptura de Ligação
33%

8%
Os Fins e os meios
fundamental

8%
Ruptura de Ligação Tautologia
8%
Festa Junina - 2º ano do ensino

8%
Dissociação de Noções
Festa Junina - 2º ano do ensino medio

Uso de Ironia
25%

8%
Desqualificação Ad Rem
70
71

Logo ao início do debate com os alunos do ensino fundamental Ef já afirma que a


imagem não se refere à arte justamente por representar uma festa junina, rompendo qualquer
possibilidade de ligação entre os dois eventos:
Ef: Isso não é uma obra de arte porque são várias crianças e adultos comemorando a
festa junina numa escola.

Vários colegas posicionam-se do mesmo modo. Notamos que a ruptura teve como
base uma compreensão formalista do que esses alunos entendem por arte, bem como a
circunscrição da arte ao campo das manifestações visuais. Deste modo, ao não identificarem
na imagem um desenho ou uma pintura, não relacionaram aquele acontecimento a um
acontecimento artístico, como observamos em algumas das falas:
Bf: Isso não é uma arte, uma obra de artes porque... Um... É... Tem coisa colorida, mas
não tem nada a haver com a arte.

Af: Não é arte. (E pouco tempo depois, continua, descrevendo a cena) Aqui está cheio
de cabaninhas e também tem algumas coisas que são difíceis de desenhar, tipo as
árvores um pouquinho abertas e também aquele monte de buraquinhos.

Df chega a cogitar a possibilidade de que a cena fosse, na verdade, uma representação


artística de um naturalismo quase perfeito o que a colocaria no status de arte e corroboraria
nossa impressão de que suas análises se fundamentaram em aspectos formais da representação
pictórica, porém, terminar por descartar tal hipótese:
Df: Isso pode ser uma arte porque alguém pode ter desenhado essa coisa bem
realística, mas eu ainda considero que não é uma arte.

Além dos argumentos de ruptura, os alunos mantiveram um diálogo descritivo das


cenas no qual utilizaram as definições para fortalecer suas teses, buscando demonstrar que
aquilo não era arte justamente por ser uma festa junina, como observamos na fala de Hf:
Hf: Isso é uma escola que está tendo uma festa junina e um monte de criancinhas e
adultos para ver as criancinhas da festa. As criancinhas da festa junina vão cantar para
os pais. Tem um montão de bandeirinha, um montão de cabaninha de comer e de
comprar e muitas músicas. Não é arte.

Já os alunos de ensino médio recorreram na maioria das vezes à divisão do todo em


suas partes e consideraram que, embora a festa em si não seja uma manifestação artística, suas
partes comportam manifestações de arte, tal como a música, a dança, etc. Notamos também
alguma argumentação de dissociação de noções (entre a arte e o folclore), um dos alunos que
utiliza um argumento ad rem ao comparar a tradição da festa à arte, outro que usa uma análise
formal para desconsiderar a manifestação como artística e um pesquisado que utiliza um
argumento de qualidade para desconsiderar a festa como forma de arte. Embora esses
72

argumentos não tenham sido reincidentes também os apresentaremos a seguir por


considerarmos sua relevância.
O início do debate se deu com Am que utiliza uma argumentação de divisão do todo
em suas partes, mas religa as partes ao todo e considera que a imagem retrata uma forma de
arte, recorrendo ao argumento de ligação de vínculo causal, já utilizado pela turma em outras
imagens. Deste modo, considera que na tradição da festa há uma intencionalidade que a
justifica sua classificação como arte:
Am: Ah... Sei lá. Eu, pelo menos, considero uma arte porque tudo que a gente vê aqui,
tipo as bandeirinhas, o sanfoneiro, o jeito que a pessoa está vestida, é. Acho que tudo
isso tem um sentido como uma festa. A gente percebe logo que é uma festa junina,
então, é uma coisa de tradição e tal, e aquilo é feito com um sentido.

Tendo em consideração a argumentação de Am, o pesquisado Gm retoma o


argumento de divisão do todo em suas artes, mas para considerar que as partes, sim, são
manifestações de arte, mas a festa como todo, não:
Gm: Eu concordo com Am. Eu acho que o ato de festejar, assim, não é uma arte, mas
tudo que está por trás, a música, seria uma arte, a maneira de se vestir, o que eles
querem, com a intenção que está por de trás...

Em Fm observamos a argumentação baseada em uma análise formalista para a


definição de uma essência que qualificaria a arte e o recurso à definição normativa para
justificar que a festa junina não é uma forma de arte:
Fm: Uma coisa que eu vejo, que tem as artes e que aí não tem, é tipo: qual é que é o
limite? Uma estátua tem limite, e aí eu não consigo encontrar o limite que tem... Tipo,
a moldura que determina: "aqui faz parte da obra e aqui não faz parte da obra". Eu não
consideraria arte, porque eu não consigo ver o fim que tem.

Im utiliza o lugar da qualidade para considerar que a festa não é uma forma de arte, já
que, ao repetir-se anualmente, não agrega a qualidade de originalidade reclamada às
manifestações artísticas. Podemos considerar que esse juízo também tem sua base em certo
formalismo canônico cuja tradição remonta ao renascimento:
Im: Eu pensei isso: se uma festa é arte e eu não sei... Senão arte seria uma coisa
repetitiva, como a festa junina, todo ano tem. Então, é a mesma arte todo ano.

No bojo da discussão que se deu entre os alunos que avaliavam em que medida
"tradição", "folclore" e "arte" são, ou não, intercambiáveis, Em apresenta um argumento ad
rem, ao utilizar o advérbio "só", que notoriamente desqualifica as manifestações estéticas que
se impõem por tradição de determinada cultura:
73

Em: Não. Ah, porque é só uma festa junina, é uma tradição, mas, se for olhar os
componentes nela, talvez seja...

Ambos os professores entrevistados recorrem por excelência à dissociação da noção


de arte para considerar que a festa junina é uma manifestação artística, como se pode ler
abaixo:
PA: Festa junina? Sim, assim como... (aponta uma imagem apresentada anteriormente
de cerâmica produzida por Sueli de Caruaru), É uma manifestação popular, sim.
Assim como todos os folguedos, folia de reis, etc, são manifestações artísticas mais
populares, sim, e... Eu estou pensando aqui tem como definir, né? A questão aqui, me
parece, é como definir como arte? Se você pensar em expressões, pessoais ou
coletivas, e em manifestação, sim. Eu acho que sim, porque a festa, na verdade, ela é
uma coisa grande que é uma mistura de coisas, que, inclusive, é tão antiga e tão
contemporânea porque você tem música, você tem dança, você tem a vestimenta, você
tem a decoração, ou seja, a ambientação, então, porque não seria?

Inicialmente, PA recorre à dissociação da noção de arte e classifica a festa como


"manifestação popular" e "artística". Em seguida, retoma circularmente a questão: "a questão
é como definir a arte?", e para responder a seu próprio questionamento abre mais uma
categoria, a das "expressões" e "manifestações" pessoais e/ou coletivas, para novamente
classificar essas subcategorias como manifestações artísticas. Por fim, utiliza a divisão do
todo em suas partes, a música, a vestimenta, a decoração, para também classificá-las como
arte.
PB utiliza os mesmos recursos argumentativos ao analisar a imagem e defendê-la
como um tipo específico de manifestação artística. Agrega em sua fala um memorial
descritivo da gênese da festa que serve como um argumento de autoridade que legitima seu
juízo anterior, ou seja, a carga histórica e a tradição que a festa evoca confere à festa junina
um lugar artístico. Isso vai ao encontro de teorias historicistas que legitimam a arte através da
construção discursiva que se tece a partir de seu acontecimento.
PB: É arte, uma manifestação cultural, uma festa popular, festa junina, né? Festa de
São João. Sim, é arte, que é uma festa popular, é uma manifestação cultural do nosso
país. Híbrida, né? Que vem da França e que chega aqui, da corte francesa e chega e vai
se manifestar, vai se modificar, vai se transformar para a cultura brasileira e da nossa
festa, em que a quadrilha dançada na corte francesa via virar essa quadrilha, com essa
música, do acordeão também, que é francês e se mistura e... Com a festa do milho que
é sagrado... Que realmente é sagrado e é manifestação cultural popular do nosso país.

Como vimos colocando ao longo desta análise, embora a dissociação de noções


comporte uma flexibilização que permite a inserção mais ampla de diversas manifestações
estéticas no campo da arte, simultaneamente hierarquiza as categorias derivadas, subjugando-
as ao modelo exemplar da categoria primeira, a arte. Quando, a título de exemplo, PA coloca
74

que "são manifestações artísticas mais populares" remete-nos à questão de classe, como se o
universo no qual habitam os artistas não fosse o universo do povo aonde habitam e como se o
próprio artista não fosse parte do povo, parte do "popular".
A esse respeito nos interessa trazer algumas contribuições que nos auxiliem a pensar
historicamente a profissionalização do artista a partir do modernismo à contemporaneidade,
de modo a elaborar criticamente a dissociação entre o artista "do povo" e o "Artista",
enquanto tal.
Em "Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970" Aracy
Amaral (1984, pg 04) coloca que
Antes da separação artista-artífice, aquele que se iniciava como aprendiz numa
corporação de ofício visava à sua profissionalização para um fim definido: ser pintor
real, retratista da burguesia, ourives, escultor de peças comemorativas de
personalidades ou eventos, produtor de vitrais, de mobiliário, encarnador de imagens,
tapeceiro para ambientes luxuosos, ilustrador de livros, decorador, etc. A partir do
século XIX (...) observamos uma alteração da função social da arte e vemos artistas
(...) que, embora objetivando a venda de sua produção para sua sobrevivência, pintam
em pura especulação. (...) O mercado, o reconhecimento por outros fora de seu círculo
imediato, é fenômeno posterior a seu trabalho, e independente dele. E esse
desligamento grave do artista da sociedade dentro da qual vive não deixou de ser uma
ruptura, consequência da postura romântica.

E a respeito da configuração do artista romântico, tanto Hauser (1982, pgs 817-880),


quanto Fischer (1981, pgs 63-79) irão colocar que é justamente no período de ascensão e
afirmação de uma classe burguesa que negocia suas formas políticas de fixação social com a
aristocracia que a classe de trabalhadores artistas, que até então compartilhava e comungava o
ideário burguês na expressão de seus próprios trabalhos, fará a crítica ao intenso sistema de
produção de mercadorias através da própria atitude romântica:
Para começar o romantismo foi uma revolta pequeno-burguesa contra o classicismo da
nobreza, contra as normas e os padrões, contra a forma aristocrática e contra um
conteúdo que excluía todas as soluções "comuns". (...) A subjetividade do artista e do
escritor, selada e voltada sobre si mesma, lutando pela vida, vendendo-se no mercado
e, no entanto, enfrentando o mundo burguês como "gênio", sonhava com a unidade
perdida e clamava por uma comunidade ideal, projetada pela imaginação, ora no
passado, ora no futuro (Fischer, 1981, pg 64-65).

É no anseio desta "unidade perdida" e desta "comunidade ideal" que os românticos


irão conceber o conceito de folk lore, rascunhando, segundo Fischer, a idealização de uma
"entidade homogênea, organicamente desenvolvida: o povo" (id, pg 74). E acrescenta (id,
ibdem):
Essa concepção romântica do povo visto como uma espécie de essência independente
da divisão da sociedade em classes, dotado de uma "alma popular" coletivamente
75

criadora, é fator que até hoje acarreta bastante confusão. (...) A arte do povo era, então,
contraposta a outras espécies de arte como fenômeno "natural", em oposição aos
fenômenos "manufaturados", sua "anonimidade" era considerada prova de ter sido
espontaneamente criada por uma misteriosa comunidade não-individualizada e sem
consciência. (...) Sem dúvida, a arte do povo expressa algo que é comum a muitos e
reflete, assim, as ideias da comunidade; porém isso é verdadeiro não só para a arte do
povo como para toda arte.

De um lado, a concepção de uma produção de arte que é indiferenciada e oriunda de


uma manifestação "natural", não elaborada, a desprofissionaliza e nega o reconhecimento
deste artista "do povo" como sujeito que constitui uma classe profissional; de outro lado,
propicia, igualmente, a sustentação da concepção do profissional artista como sujeito que está
além da classe profissional, está fora da sociedade e representa-a quase por genialidade.
Paradoxalmente, a genialidade do artista romântico que angaria "o reconhecimento por outros
fora de seu círculo imediato" em um "fenômeno posterior a seu trabalho, e independente
dele", apesar de mantê-lo alijado da necessidade de pertencimento à classe, o subtrai do
anonimato e é justamente sua individualização, seu reconhecimento como indivíduo, que lhe
garante um lugar no sistema capitalista e o privilegia na hierarquização artista/artista popular,
por mais que tentemos escapar de vieses acusados de "modernistas" ou "estruturalistas".
A estrutura argumentativa utilizada pelos professores ao legitimarem a festa junina
como arte é assentada na mesma estrutura utilizada pelos românticos ao tentarem realizar sua
crítica ao capitalismo: a dissociação de noções na criação de identidades. Notamos, portanto,
um movimento de inércia e um escopo retórico que denuncia, em sua própria forma, a
conservação do pensamento modernista.

7.5 A Fonte, de Marcel Duchamp

A escolha da imagem da obra A Fonte, de Marcel Duchamp, se baseou no fato de


considerarmos seu intenso potencial conceitual ao mesmo tempo em que estimamos que a
76

maioria dos pesquisados conheceria a obra, por sua ampla divulgação. Deste modo,
imaginamos que seria um bom referencial para que os pesquisados pudessem debater
justamente a intencionalidade no processo criativo, que nos parece um debate presente na
escola. Para nossa surpresa, apenas 50% dos pesquisados admitiu a obra como sendo
representação de arte (que nos pareceu um índice baixo), contra 28,5% de pesquisados que
disseram que não era arte (entre estes, efetivamente, 100% dos alunos do ensino fundamental)
e outros 21,5% que responderam talvez, alegando que reconheciam o objeto como arte, tento
em consideração a autoridade do saber instituído, mas que, se supusessem ignorar o contexto
da obra, não a considerariam arte.
Em um universo de dez classes de argumentos utilizados para o debate desta obra,
quatro se apresentaram com igual reincidência: o argumento de autoridade, a ligação à
essência, o vínculo causal e a ruptura de ligação, fosse em sua defesa como arte, ou como
não-arte.

A Fonte - Classes de Argumentos no universo


investigado
18%
15,79% 15,79% 15,79% 15,79%
16%
14%
12% 10,53%
10%
8%
6% 5,26% 5,26% 5,26% 5,26% 5,26%

4%
2%
0%
Argumento de Autoridade

Vínculo Causal

Exemplo
Atitude Lógica

Ligação à Essência

Uso de Ironia
A Pessoa e seus Atos

Os Fins e os meios

Ruptura de Ligação

Dissociação de Noções
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A Fonte - 2º ano do ensino fundamental


60% 50% 50%
50%
40%
30%
20%
10%
0%

Uso de Ironia
Ruptura de Ligação

A Fonte - 2º ano do ensino medio


30% 27%
25%
20% 18% 18%

15%
9% 9% 9% 9%
10%
5%
0%
Argumento de Autoridade

Vínculo Causal
Ligação à Essência

Ruptura de Ligação
Exemplo
A Pessoa e seus Atos

Os Fins e os meios

Os alunos do ensino fundamental, unanimemente, não consideraram a obra como arte.


A simples apresentação da imagem causou certo constrangimento e as crianças riam e se
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interrompiam ao falar. Gf inaugurou o debate e, após fazer sua argumentação, foi imitado
pelos demais;
Gf: Isso não parece um penico por que... E também não é uma obra de arte porque é
um penico que não tem... Não tem... Não tem... Descarga, (ajudado pelos amigos)
conforto para sentar e isso não é uma obra de arte por causa que ninguém desenhou
isso daqui. Parece que compraram, é, compraram em 1917, por causa que estava
escrito aqui e também estava escrito a rua, mas eu não vou dizer porque eu não quero.

É interessante notar que ele observou a assinatura "R. Mutt 1917", mas possivelmente
a letra "r" levou-o a significar aquela interferência como um endereço de loja e não como uma
assinatura. Deste modo, usou um argumento de ruptura de ligação apoiado, como ocorreu em
imagens anteriores, em uma análise que buscava elementos formais das artes plásticas (um
desenho, uma pintura, o traço, etc) e ao não encontrá-los rompeu com qualquer possibilidade
de ligação daquele objeto ao universo da arte.
As demais crianças também foram categóricas no uso do argumento de ruptura com a
mesma base e não houve debate acerca da imagem.
Já para os alunos de ensino medio a imagem revelou-se mais polêmica. A maioria
reconheceu o objeto como objeto de arte e em suas justificativas apoiaram-se no argumento
de vínculo causal, alegando que a qualificação da obra estava diretamente relacionada a uma
intenção que estava na causa de sua execução pelo artista.
Foi uma surpresa interessante saber, logo na fala do primeiro aluno que se manifestou
sobre a imagem, que alguns já tinham informação sobre a obra e que essa foi trazida pelo
professor da escola. Isso corroborou nossa hipótese para a escolha, de que haveria chance dos
pesquisados já terem tido contato com A Fonte. Entretanto, embora tenha assimilado o
conceito, ao final de sua fala Bm, referindo-se à imagem à sua frente, afirma que ali talvez
não seja o mesmo caso trazido pelo professor:
Bm: Tipo, eu não sei se é esse o caso, mas a professora já falou de um cara que pegou
um penico e botou no meio de uma exposição (risos da turma que corrigiu a palavra
"penico", substituindo-a por "mictório"). Sei lá, mictório, não sei. Eu não sei
exatamente o que ele botou, ele botou no meio de uma exposição para fazer uma
crítica, nesse ato, sim, eu acho que pode ser considerado arte, mas nesse caso eu não
sei...

A proposta de reflexão, já formulada pelo próprio artista, Duchamp, de que a


legitimidade da obra pod