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DOI: https://doi.org/10.19130/medievalia.2021.53.1.25628
Resumo
Este texto trata da representação de elementos considerados “medievais” no mundo dos video-
games. Abordando a série Crusader Kings, ele investiga como os desenvolvedores do jogo opera-
ram alguns conceitos caros à História Medieval, como dinastia (ou família), vassalagem e Esta-
do, a fim de propor desafios capazes de entreter os jogadores. A problematização lançada sobre a
obra passa por algumas perguntas: como o game retrata a dinastia ou a família medieval? Como
ele compreende a vassalagem? Que conceitos tem de poder, feudalismo e Estado? Em vista
delas, o trabalho objetiva fazer uma análise introdutória ao título, mediante o emprego de um
método descritivo que observa, parte a parte, os elementos centrais do jogo. Partindo da premis-
sa de que os videogames, enquanto obras da cultura neomedievalista, assumem e reconstroem
visões particulares da História, a reflexão esboça uma hipótese: a de que, para dar significado aos
desafios que deseja propor aos jogadores, o game veicularia uma verdadeira teoria digital do que
teria sido a Idade Média, com o seu feudalismo supostamente intrínseco.
Abstract
This paper deals with the representation of elements considered “medieval” in the world of
videogames. Approaching the Crusader Kings series, it investigates how the game’s developers
operated some important concepts in Medieval History, such as dynasty (or family), vassala-
ge and State. The problematization involves some questions: how does the game portray a dy-
nasty or a medieval family? How does it understand vassalage? What concepts it has of power,
feudalism and State? With such questions, the work aims to make an introductory analysis to
the game, using a descriptive method that observe, part by part, its basic elements. Based on
191
Uma teoria digital do feudalismo
the premise that videogames, as works of neo-medievalist culture, assume and reconstruct
visions of History, the paper outlines a hypothesis: in order to give meaning to the challenges
that it poses to players, the game would convey a true “digital theory” of what the Middle Ages
would have been, with its supposedly intrinsic feudalism.
1
A Paradox é tanto a desenvolvedora do game, por meio da Paradox Development, quan-
to a sua distribuidora, por meio da Paradox Interactive. Para o lançamento, ela montou um
hotsite exclusivo que concentra todas as informações sobre o título, inclusive seu trailer (dis-
ponível em: https://www.crusaderkings.com/en. Acesso em: 29 set 2020).
2
As classificações dos games são bastante fluidas: não há, para eles, um catálogo universal
e definitivo. A tipificação depende da perspectiva de cada analista. Aqui, optei por aceitar a
classificação feita pela própria produtora —aceita também por alguns críticos— e anunciada
em seu site (Paradox, Crusader Kings III), mas outros rótulos podem ser encontrados pela in-
ternet, como o de dynasty simulator (Wikipedia, Crusader Kings II) e mesmo o de role-playing
game (Hall, Crusader Kings 3 is one; Borsili, “Crusader Kings III Review”). Uma definição sobre
os grand strategy games pode ser encontrada na própria Wikipedia (Grand Strategy Wargame).
3
Crusader Kings II já gozava de ótima reputação entre os gamers, mas tem havido consenso
em concluir que ele tinha alguns defeitos de jogabilidade, os quais a terceira versão da série co-
rrige. A recepção do lançamento no exterior pode ser vista em sites como o Metacritic (Crusader
Kings III) e o NME (Oloman, Crusader Kings 3 Review). Em seu preview para o portal IGN, Ha-
fer (Crusader Kings 3 Review) saudou a chegada do título de modo entusiástico: “vida longa ao
novo rei da estratégia histórica”. No PC Gamer, Fraser Brown (Crusader Kings 3 Review) acolheu-o
do mesmo modo, afirmando que havia chegado um “novo Rei Cruzado ao trono”. Outros adje-
tivos usados pelos críticos foram “majestoso”, “soberbo” e “épico”. No Brasil a recepção tem sido
similar (Moura, “Análise”; Murilo, “Análise”; Seixas, “Crítica”); no portal Gamerview, Stábile
(“Crusader Kings III”) chegou a afirmar que o jogo já “mora sozinho em um Olimpo só seu”.
4
Embora Moura (“Análise”) tenha cogitado: “ninguém de fato termina uma partida de
um jogo da Paradox”, dada a sua tradição de produzir games complicados e longos (consagra-
da no próprio nome da empresa). Como o título da série denuncia, ela tem um forte cunho
“cruzadista”, que foi reforçado na expansão “Deus vult”, lançada em 2007 para a primeira ver-
são do jogo, que data de 2004. Por privilegiar contextos de conquista, a ambientação padrão
de Crusader Kings começa em 1066, ano da Batalha de Hastings. Na segunda edição, data-
da de 2012, o ponto de início do jogo foi diversificado por meio do lançamento de diversos
downloadable contents (DLCs) que permitem ao jogador começar a sua saga no período ca-
rolíngio ou na “era viking”, por exemplo. Já na terceira edição uma parte desse conteúdo foi
incorporada ao jogo-base, que dá ao jogador duas opções de início: 867 ou 1066. O percurso
de modificações da série está sumarizado nos verbetes da Wikipedia (Crusader Kings III; Cru-
sader Kings II; Crusader Kings).
5
Há, ainda, os baronatos, as menores unidades sociopolíticas do jogo sejam, porém não é
possível jogar como um barão.
6
Um dos consultores da Paradox é Robert Houghton (“It’s What you do with it Thats
Counts”), que descreveu como se procedia à consultoria: “esse grupo [os beta-testers do pro-
duto] compreende acadêmicos interessados [em games], historiadores amadores, estudantes
e jogadores que apoiam a pesquisa por trás do jogo. A sua base de dados é compilada a partir
de notas de aula e pesquisa, consulta a livros e sites e, ocasionalmente, pesquisas originais em
fontes históricas”. A função da consultoria é, basicamente, colaborar para a precisão das repre-
sentações genealógicas, feudovassálicas e territoriais. O autor frisou: “mas este é um jogo, não
um projeto de pesquisa acadêmica”, por isso a acurácia da mecânica que se deseja implantar
é mais importante do que a precisão histórica; esta reforça aquela, e não o contrário. O limite
da acurácia é a jogabilidade.
7
STEAM. Crusader Kings III. Bellevue (Washington): Valve, 2020. Disponível em: https:
//store.steampowered.com/agecheck/app/1158310/. Acesso em: 30 set 2020. CK2 está,
atualmente, disponível de forma gratuita na plataforma, mas os seus inúmeros DLCs ainda são
pagos: STEAM. Crusader Kings II. Bellevue (Washington): Valve, 2020. Disponível em: https:
//store.steampowered.com/app/203770/Crusader_Kings_II/. Acesso em: 30 set 2020.
8
O trailer de CK3 anuncia-o como o mais novo herdeiro da série —vide o lema da pro-
paganda do produto: “an heir is born!”— ao mesmo em que convoca o jogador, representado
por um bebê recém-nascido, a assumir o lugar do irmão, assassinado pela conspiração de seus
inimigos. Assim, ele se apresenta como uma estória de vingança familiar, em que os perigos e a
violência medieval forjam um homem forte, resistente e corajoso. O vídeo também apresenta
cenas de combate, casamento e administração, e arremata o seu texto, declamado por um na-
rrador, com um aforisma: “o primeiro passo para evitar uma armadilha é saber que ela existe”.
A frase enfatiza o aspecto que a nova versão da série optou por privilegiar: a construção da rede
de informações que embasa a tessitura de intrigas e do conhecimento que sustenta a estratégia.
9
Uma das dicas de CK2 é: “todos os seus filhos reclamarão os seus títulos”, que serve
para alertar o jogador sobre a importância de gerir cautelosamente as sucessões dinásticas.
Outra dica instrui o jogador sobre quais recursos ele deve dispender para agradar nobres e
clérigos: prestígio e piedade, respectivamente (acrescentando que só existe um recurso capaz
de satisfazer, igualmente, a todos: o dinheiro). Esta tip é interessante porque diferencia os
vassalos por classes, definindo-os por meio de categorias distintas de interesses, o simbólico e
o religioso —poderíamos, aqui, pensar tais recursos com o conceito de capital segundo Pierre
Bourdieu, que formulou diferentes formas para ele (para tanto, ver as discussões feitas no
glossário organizado por Catani et al. (Vocabulário Bourdieu)— mas termina sacramentando
a visão tradicional de que o recurso supremo, que se impõe a todos os outros na definição
dos interesses dos indivíduos, é o material. Nessa perspectiva, as classes medievais seriam, a
princípio, em uma camada superficial, definidas pelo seu interesse em acumular modalidades
diferentes de capital, mas todas se submeteriam, no final das contas, ao interesse pela acumu-
lação da forma “primordial” do capital: a material.
196
10
Fonte: BRITGAMER. Crusader Kings II / Crusader Kings III. Disponível em: https: //
www.britgamer.co.uk/game/6908/crusader-kings-ii e https://www.britgamer.co.uk/game/
6931/crusader-kings-iii. Acesso em: 30 set 2020. Na primeira figura, um cavaleiro e seu cas-
telo; na segunda, um rei com a sua esposa e conselheira (segurando um livro, símbolo do
conhecimento), à esquerda, e seu espião, à direita (segurando uma serpente, símbolo da insídia).
A mudança na imagem publicitária prenuncia uma mudança na ênfase do jogo: da guerra
(mais presente em CK2, porém simplificada em CK3) para a estratégia. Como se pode ver
na primeira capa, CK tem classificações etárias que proíbem a venda do jogo a crianças, pois
retrata violência, nudez e atos sexuais.
197
11
Neste quesito o game se assemelha à série Total war: medieval (do estúdio Creative Assem-
bly, 2002, com reedição em 2006) e se diferencia de Civilizations (do MicroProse, com várias
edições desde 1991), seus congêneres, aos quais é frequentemente comparado; neste as pausas
são obrigatórias, não há como desfazer o sistema de turnos, enquanto naquele elas são opcionais.
12
Em ambas as versões, o jogador pode controlar o ritmo do jogo, alterando a sua velo-
cidade. CK3 trouxe, ainda, uma dimensão de avanço tecnológico que depende da evolução
histórica: algumas “invenções” —armas de cerco aceleram assédios— só ficam disponíveis
com o passar do tempo, ao passo que na segunda versão todo o desenvolvimento depende das
pesquisas que o jogador manda seus conselheiros fazerem. Em ambos os casos, contudo, as
“descobertas” dependem da área do conhecimento na qual o jogador escolhe investir: costu-
mes, armas, entre outras.
13
O governante cuja situação inicial é considerada a de menor dificuldade é Afonso VI de
Leão (que inicia sua jornada em 1066), que integra o tutorial de CK2.
14
Entre CK2 e CK3, a aproximação com a série televisiva Game of Thrones (HBO, 2011-
2019) é notável, desde a estética dos personagens (roupas, adornos, trejeitos) até o drama
(Borsili, “Crusader Kings III Review”; Brown, Crusader Kings 3 Review).
Tema e sistema
Com o foco na dinastia, o papel da linhagem, da ancestralidade, da árvore genea-
lógica, da heráldica e da hierarquia nobiliárquica e militar, em CK, é premente. O
game, nas duas versões aqui tratadas, é pródigo em representá-las (imagem abaixo).
Além delas, cada personagem conta com um elenco enorme de outros laços so-
ciais: além de seus familiares (consanguíneos ou adotivos, em diversos graus: 199
avôs, tios, primos, irmãos, filhos etc. Há, pois, uma dimensão de família amplia-
da, artificial, que se une à natural de modo bastante orgânico, ainda que adoções e
a ilegitimidade de filhos bastardos possam, eventualmente, gerar conflitos), cada
personagem se relaciona com a sua corte, seus vassalos —diretos e indiretos—
seu clero, aliados, inimigos, embaixadores e vários outros tipos de personagens.15
15
Para uma análise de como a família medieval excedia, em muito, o parentesco “natural”
—carnal, sanguíneo ou genético— e abarcava relações de fidelidade, compromisso e trabalho,
além de laços espirituais (firmados no batismo e na ordenação eclesial, por exemplo), ver Bovo
(“Os caminhos da sociabilidade feudal”).
16
Em CK2 essas telas possuem um botão (no alto, ao lado do nome da Duquesa Matilde da
Toscana) que direciona o jogador para verbetes da Wikipedia em língua inglesa, mostrando a
Dentro da imensa rede de laços sociais que o jogo constrói, a vida subje-
tiva dos personagens também é decisiva. Cada um deles é descrito mediante
uma série de atributos e qualidades nominais que mediam a sua relação com
o mundo. Visto que se trata de um programa computacional, que funciona
através de cálculos matemáticos e de probabilidades, toda característica é, de
algum modo, quantitativa ou qualitativamente, mensurada e transformada
em estatística: os atributos são medidos de 0 a 100 e, além deles, a cada per-
sonagem são atribuídos vários “traços” (traits), como “guloso” e “diligente”;
tais rótulos modificam contingencialmente os atributos do personagem ao
lhe impor vantagens ou penalidades no relacionamento com os outros e na
execução de tarefas. Outros fatores também influenciam os atributos do per-
sonagem, como a sua herança genética (ele herda qualidades e defeitos dos
200 ancestrais), a educação que ele recebe enquanto infante, sua religião e sua
saúde, que pode ser afetada por ferimentos durante as batalhas, por doenças e
pela idade.17 Essa conjunção de fatores transforma tanto os personagens que
os seus portraits mudam ao longo do jogo: eles vestem e desvestem armadu-
ras quando vão à guerra —ou trajes religiosos, quando consagram suas vidas
(no caso de freiras e monges) ou são eleitos a sés (no caso de bispos)— em-
punham signos do poder (coroas, cetros etc.) de acordo com as posições que
ocupam e ficam obesos, doentes e grisalhos.18
a aparência de seu avatar, trocando suas roupas e adornos; o jogo também permite, agora,
que ele escolha o nome de seus filhos; em CK2 essas duas features eram aleatórias, definidas
exclusivamente pelo computador.
19
O novo título tenta impor ao jogador, de fato, uma interpretação de papel, por meio
do mecanismo de “estresse”: um personagem fica estressado quando o jogador o força a agir
contra o que os seus traços dizem (quando um homem generoso toma uma ação egoísta, por
exemplo) e esse desgaste prejudica a sua saúde, colocando-o em risco. Assim, se o jogador
quer sobreviver e preservar a sua família, deve se comportar de acordo com o script do per-
sonagem e evitar contrariá-lo. Os limites e papéis da agência humana nos videogames são
discutidos por Carvalho (“History and Human Agency”).
que o jogador teça alianças e cesse conflitos com outras famílias —ou dentro da
própria família, pois relações incestuosas e adúlteras são possíveis—. Ele pode,
inclusive, providenciar o noivado de menores de idade (meninos e meninas até
os quinze anos), até com adultos, mas os casamentos só são consumados após
a maioridade deles. O matrimônio é crucial porque pode dar ao personagem
—homem ou mulher, pois o ato pode ter base matrilinear— uma descendên-
cia legítima, imprescindível para a sobrevivência da linhagem;20 o jogador pode
gerar filhos bastardos e pode até legitimá-los após o nascimento, mas isso pode
escandalizar sua corte e despertar a fúria do seu ou da sua cônjuge. A aceitação
de uma proposta de casamento depende da estirpe e do status do proponente e
pode ser negociada em função dos interesses de cada parte. Não há troca de do-
tes, mas a celebração da aliança diplomática é garantida, e os cônjuges ganham
202 prestígio se casando com parceiros de boa linhagem e reputação. O casamento
pode abrir ao personagem a possibilidade de herdar o Estado do parceiro ou
parceira. Por fim, é possível pedir divórcio, mas não se pode repudiar o cônjuge;
se um parceiro ou parceira quer dissolver seu matrimônio, precisa que seu líder
religioso permita, mediante a apresentação de uma justificativa plausível (como
a infidelidade do cônjuge) ou até de um suborno.
CK tem outros dispositivos micro relacionais. Um jogador que quer se di-
vorciar, mas não consegue, pode pedir a seus vassalos que armem um esquema
para assassinar o cônjuge. Os assassinatos estão entre as principais maneiras que
o jogador tem para eliminar opositores e rivais sem precisar da guerra. Alterna-
tivas são a prisão, o suborno, a troca de presentes (em dinheiro), a conversão re-
ligiosa e a excomunhão.21Visto que o conflito depende basicamente da opinião
que um personagem tem sobre o outro —medida de -100 (opinião negativa)
a +100 (opinião positiva) — podem-se, ainda, organizar torneios, justas, ban-
quetes e festivais, que melhoram a opinião pública, de maneira geral.22
20
A educação dos filhos também pode ensejar relações diplomáticas, porque eles podem
ser entregues à tutela de guardiões. Além da herança genética, a educação também determina
os atributos e traços que as crianças desenvolvem até a idade adulta; elas tendem a ter as quali-
dades e defeitos parecidos com os dos tutores, sejam eles seus pais ou não. Assim, se o jogador
quer demonstrar boa-fé para um personagem e fazer com que o seu herdeiro fortaleça uma ou
outra característica, pode entregar seu filho à tutela de um aliado potencial.
21
Se o jogador tenta aprisionar um personagem e falha, ele foge do país e se exila; do exílio
ele pode articular uma conspiração contra o jogador. Uma vez preso, porém, um personagem
pode ser perdoado, executado ou libertado mediante pagamento de fiança.
22
Os conflitos também dependem de uma noção de direito: um personagem que, por
herança, julgue ter direito ao Estado (a terra, com o seu respectivo título) de outrem pode
impetrar um casu belli, ainda que tenha opinião positiva sobre ele.
203
23
Fonte do primeiro mapa: STEAM COMMUNITY. Typus Orbis Terrarum full for CK2.
Disponível em: https://steamcommunity.com/sharedfiles/filedetails/?id=555140251. Acesso
em: 2 out 2020. Os assentamentos e a qualidade do terreno ficam visíveis quando se aproxima
o zoom.
24
Os diferentes terrenos afetam, em primeiro lugar, a guerra, pois diferentes tipos de tro-
pas e de comandantes combatem melhor ou pior em determinadas superfícies; em segundo,
eles afetam os recursos, pois, geralmente, terrenos acidentados são mais fáceis de defender,
porém mais pobres; planícies tendem a ser mais férteis e ricas, porém mais fáceis de atacar.
25
Por outro lado, a nova edição detalhou melhor os assentamentos populacionais no
mapa, mostrando igrejas, castelos, cidades e vilas que não apareciam e só ficavam subentendi-
dos em CK2. E inseriu um novo mecanismo: o nível de controle dos territórios, medido em
porcentagem, que afeta o recolhimento das rendas por parte do jogador.
26
Uma vez o domínio reúne em si tanto o poder público quanto o privado, os poderes
econômico, social, religioso e político, neste ensaio o estou tratando como o próprio Estado,
em sua feição de aparato dominador e enquanto instituição de governo da sociedade. A de-
mesne foi estudada por Verhulst (The Carolingian Economy).
Análise
27
A iqta também era uma terra pública concedida a entre privados (Estévez, “Las comu-
nidades campesinas en al-Andalus”, 79).
28
Trata-se de uma representação da Idade Média consagrada, bastante difundida, sobre-
tudo através das célebres obras de Bloch (A sociedade feudal) e Ganshof (Feudalism), que
constituem bases para a composição dos currículos escolares e formaram gerações inteiras de
estudantes —historiadores e medievalistas ou não—.
29
Além do tempo, a cultura também determina que conjunto de inovações técnicas e
culturais estão disponíveis para as pesquisas que o jogador pode empreender: católicos têm à
sua disposição invenções que os pagãos, por exemplo, não têm.
30
Em CK2 os conselhos são compostos por um mordomo, um marechal, um espião, um
diplomata e um capelão; CK3 substitui este prelado por um arcebispo (nas culturas católicas
o capelão podia ser nomeado pelo papa ou pelo governante – que podia abrir uma “querela
de investidura” contra o pontífice, caso os dois discordassem da indicação – mas o arcebispo
só pode ser nomeado por Roma). O novo jogo também atribuiu um papel de corregência ao
cônjuge, que integra o conselho como assessor do parceiro ou parceira. E ainda acrescentou
uma nova função: a de médico (physician) da corte.
31
Um bom termômetro sobre o consumo do jogo é o relatório da Steam, que compi-
la os dados de milhões de usuários, por todo o planeta, e pode ser consultado diariamente:
STEAM. Estatísticas de jogos. Bellevue (Washington): Valve, 2020. Disponível em: https://
store.steampowered.com/stats/?l=portuguese. Acesso em: 1 out 2020. Atualmente CK3 é o
jogo mais jogado entre os seus concorrentes, mas isso pode ser efeito da novidade, em que
mesmo aqueles que não são adeptos da série querem experimentar o lançamento; tempos
após a sua publicação, CK2 sequer aparecia na lista dos cem títulos mais jogados da platafor-
ma. Se CK3 seguir a mesma tendência, seu índice de consumo deve cair nos próximos anos.
32
Deste ponto de vista, a simplificação da jogabilidade em CK3 parece pretender tornar
o jogo mais acessível para iniciantes e mais transparente e compreensível para os jogadores
veteranos (Borsili, “Crusader Kings III Review”), ainda que, para tanto, ele precise bombar-
dear o jogador com caixas de texto cheias de instruções e dicas. Uma crítica à série que não foi
resolvida pelo recente lançamento é a de que alguns eventos (como revoltas) continuam in-
compreensíveis, aparentemente aleatórios, e a nova versão retirou uma importante feature que
CK2 possuía: ao final de uma partida o jogo gerava um documento que era a crônica familiar,
registrando a sucessão de eventos que marcou a história da dinastia. Sem ela, o percurso me-
morial do jogador se perde e ele, inundado pelas incessantes crises que marcam toda partida,
não consegue dar significado ao terrível fluxo informacional decorrente.
33
Não à toa, as áreas mais populosas do mapa —geralmente urbanas— de jogo são as que
fornecem mais soldados para o seu senhor, ainda que as relações entre ele e o jogador, bem
como a fidelidade dos vassalos responsáveis por chefiar as tropas, possa afetar esse número. As
pesquisas tecnológicas permitem aperfeiçoar o treinamento das levas, profissionalizando-as.
CK3 modificou a realização da guerra de duas formas: inseriu nas levas a figura dos cavaleiros,
nobres integrantes da corte e campeões que aumentam o poder das tropas; e retirou os barcos,
que em CK2 o jogador também precisava recrutar, mas os fãs reclamavam que eles eram difí-
ceis de manusear. Agora basta que o jogador movimente as suas tropas e tenha algum dinheiro
para que elas, ao atravessar um mar, paguem pelo transporte. Ali a guerra é só um entre outros
fatores, tanto que ela é inteiramente resolvida pelo computador, baseado em estatísticas; o
jogador só move as hostes (Alcázar, “El arte de la guerra medieval”, 534). Ela não é vista, é
só insinuada, de longe, mas o contexto ainda é escolhido para ser o mais belicoso possível.
Para contemplar um maior número de fatores, procede-se a uma simplificação geral - ou, pelo
menos, dos fatores que não são julgados centrais.
34
Essa é uma característica geral dos games de gerenciamento; eles tendem a converter
tudo em recurso à disposição do jogador, colocado na posição de um agente autocrático. Po-
rém o lugar do povo em CK é ainda mais precário do que em outros títulos: ele não aparece
nem sequer na figura do camponês que trabalha, como em Age of Empires II (Ensemble, com
várias reedições desde 1999), nem como o fiel seguidor de um lorde, como em Stronghold
(Firefly, 2001), nem como o citadino que se revolta no já mencionado Total War.
35
Para uma proposição do caráter colegiado das monarquias medievais, cf. Reynolds
(“Government and Community”). Sobre a construção do conceito medieval de soberania,
ver Kritsch (“Fundamentos históricos e teóricos da noção de soberania”).
36
Exemplo: a margem de sucesso de um complô é definida pelo valor de intriga do con-
selho, que é a soma dos valores individuais de intriga do jogador e de seu conselheiro enca-
rregado desse assunto (o espião). Em CK3 o espião ganhou maior importância, pois ele pode
descobrir segredos de outros personagens e permitir que o jogador os use para chantageá-los.
37
O jogador que centraliza o poder aumenta o controle de sua família sobre o Estado e,
por conseguinte, as suas chances de se perpetuar; ele também diminui a margem de ação de
possíveis rivais, coíbe dissidências e reduz os custos do governo, evitando que os recursos do
Estado sejam desviados pelos funcionários.
38
As cortes, em CK, também são estratificadas e, eventualmente, podem abarcar indiví-
duos de origem não nobre, sem que eles sejam, contudo, commoners, porque mesmo sem es-
tirpe eles possuem algum título e propriedade; este é, afinal, o verdadeiro critério para integrar
o governo, no escopo do game.
39
Brown (Crusader Kings 3 Review), contudo, registrou uma visão diferente sobre a dinâ-
mica feudovassálica do jogo: ao distribuir títulos “você não está sacrificando o poder; está
dividindo responsabilidades”, pois é inviável governar Estados imensos sozinho.
40
Trata-se, pois, de uma formulação moderna de Estado, conforme a vislumbrou Foucault
(Segurança, território, população).
41
Há uma pequena quantidade de títulos que não implicam concessão de propriedade;
eles são meramente honoríficos (como eunuco e senescal), mas também satisfazem os vassa-
los porque são remunerados com o tesouro público.
42
CK3 detalhou ainda mais os contratos vassálicos, cujas cláusulas agora podem ser nego-
ciadas diretamente com cada fiel, tornando a relação ainda mais pessoal.
43
A própria dinastia também pode se partir, caso um herdeiro se separe da linhagem prin-
cipal, funde a própria casa e declare a sua independência. Os blocos culturais e religiosos
também podem ser alterados, mediante conversões e assimilações —às vezes permeadas por
resistências e conflitos—.
44
Não é casualidade que a Paradox tenha dado à engine empregada em CK (e em outro
game do gênero, Europa Universalis, produzido pela mesma empresa desde 2000) o nome de
Clausewitz, homenageando o famoso general prussiano, autor da célebre frase: “a guerra é a
continuação da política por outros meios”.
ele seja falso, porque o jogador pode pedir que seu diplomata “fabrique” um
claim—. Sem o casu belli, a declaração de guerra está desabilitada para o joga-
dor.45 Em CK, portanto, não pode haver guerra desenfreada; só pode existir
guerra “justa”.46
210
45
Uma crítica dos jogadores a CK2 é que era mais fácil fabricar claims do que realizar uma
conquista por meio de intriga, casamento e pacto, por exemplo. Ou seja: pela maneira como foi
programado, o game os induzia a preferir a guerra como método de expansão. A proeminência da
guerra, ali, decorre tanto de uma imaginação —partilhada por produtores e por jogadores— sobre
o caráter supostamente belicoso da Idade Média, quanto de uma questão informática, que CK3
parece ter tentado corrigir, alterando os algoritmos por meio dos quais o script do jogo é proces-
sado. A interface de execução das guerras foi simplificada, mas o funcionamento das intrigas tam-
bém foi. Em suma, devemos lembrar que os games são, antes de tudo, programas computacionais,
portanto a representação histórica que eles são capazes de fazer sempre estará sujeita à codificação
matemática (Bello & Vasconcellos, “O videogame como mídia de representação histórica”).
46
Posto que CK contempla blocos culturais distintos, o casu belli só vale para os conflitos
dentro da mesma unidade religiosa; para guerras a “infiéis”, isto é, a sociedades de outra matriz
religiosa, o jogo propõe outro dispositivo: o da Cruzada (Pitruzzelo, “Systematizing Culture
in Medievalism”, 46).
47
Esse número é definido pelo computador, como uma porcentagem, em função de va-
riáveis como o tamanho inicial da tropa, a sua moral e as capacidades de seus comandan-
tes. Os sobreviventes que se rendem podem, também em função das habilidades do rival,
ser aprisionados, e os fugitivos podem ser perseguidos pelo atacante, até ser completamente
exterminado.
48
Os problemas da representação das guerras nos games de estratégia são discutidos por
Fedorenko (“The Portrayal of Medieval Warfare”).
49
A captura de reféns era outra estratégia bastante adotada dentro dos conflitos medie-
vais, e até em situações de paz (lembre-se que hostage pode ser “hóspede”, cf. Kosto, “Hosta-
ges During the First Century of the Crusades”; “Hostages in the Carolingian World”; Lavelle,
“The Use and Abuse of Hostages”; Olsson, The Hostages of the Northmen).
50
Nos cercos, o patamar de desenvolvimento tecnológico de cada combatente também
conta, na medida em que ele pode dispor de armas como aríetes e catapultas, que facilitam
ou dificultam o assédio.
Medievalismo ou neomedievalismo?
As manifestações culturais neomedievalistas, bem como o próprio conceito
de (neo)medievalismo, têm sido alvo de muitas discussões. Não é meu in-
tento aqui repassá-las, mas creio uma análise de CK pode servir ao debate de
alguns pontos.
Uma das discussões que se fazem versa sobre as possíveis diferenças en-
tre o medievalismo e o neomedievalismo. Para esse argumento, o game pode
ser um objeto bastante elucidativo. Como entender que CK conceba seu
cenário e seus personagens de modo detalhista, com lastro científico, reco-
rrendo à instrução dos historiadores, mas, ao mesmo tempo, permita que os
jogadores subvertam, de todo jeito, a história, recontando-a a cada vez que o
jogo é executado e as numerosas probabilidades registradas em seu script são
212 testadas?51 A verdade é que os jogos alargam a noção de realidade, submeten-
do-a ao ato de jogar, que é contingente. O jogo é um experimento quase infi-
nitamente repetível, que pode gerar resultados diferentes a cada repetição.52
Essa talvez seja uma das características distintivas do neomedievalismo, em
relação ao medievalismo: enquanto este almeja alguma verdade histórica,
aquele entende que tal verdade é construída no próprio ato de contar a histó-
ria —neste caso, de jogá-la—. Se o medievalismo procura reconstruir, de al-
guma maneira, o passado medieval, o neomedievalismo se contenta com uma
apropriação que dá significado às suas ações no presente mais imediato.53 Sua
51
Simulando pessoas ao invés de coisas, cruzando, equilibradamente, aleatoriedade e
agência, CK permite que uma estória inédita seja contada a cada nova partida – que pode,
diga-se de passagem, durar dezenas de horas. Com efeito, Hall (Crusader Kings 3 is One) afir-
mou: “o resultado é um storytelling elástico que lança luz sobre os tipos de conflitos pessoais
que tornam tão fascinante o estudo da história real”. Alguns críticos consideram que o game é
como um “romance histórico”, cujo manuseio criativo e instigante da história é eficaz porque
desperta o fascínio dos jogadores, inclusive pela História científica.
52
Para Kline (“Participatory Medievalism”, 76), os “jogos não são representações deste
mundo. Eles são alegorias de um mundo construído sobre o gamespace. Eles codificam os prin-
cípios abstratos sobre os quais as decisões acerca da realidade deste ou daquele mundo serão
tomadas”. Eles configuram um efetivo “medievalismo experimental”, em cujo exercício se criam
“mundos medievais com diferentes graus de imersão que produzem um sentido de participação
e até mesmo de habitação nesse mundo medieval ficcional”, daí que se fale em “medievalismo
participativo” nos videogames, que são, afinal, mídias diferenciadas pelo seu caráter interativo.
53
Segundo Kaufman (“Medieval Unmoored”, 1-2), o neomedievalismo afasta-se da his-
tória sem, porém, abandoná-la. Ele é, por isso, uma expressão das concepções pós-modernas
de história, oscilando entre o a-histórico e o histórico. Se o medievalismo é cônscio do afas-
tamento temporal que o separa do Medievo e inviabiliza um contato livre de refrações, o neo
ignora qualquer distância e restabelece uma identidade direta com ele.
relação com o passado não acontece de modo direto; ela é mediada (Kauf-
man, “Medieval Unmoored”, 4)54 e se realiza na forma de um simulacro, “a
cópia da cópia de um original que nunca existiu, que nunca teve uma existên-
cia tangível, um fogo-fátuo póstumo [posited will-o-the-wisp]” (Toswell, “The
Simulacrum of Neomedievalism”, 45).
O jogo não pode ser 100% verossímil. Um jogo completamente fide-
digno não é jogável, porque prender o jogador ao que aconteceu, a como as
pessoas eram, ao que foi —e não ao que poderia ter sido— elimina qualquer
possibilidade de que ele aja. Jogar é agir, tomar decisões, executar comandos,
e isso só é possível em um cenário incerto, indefinido, maleável, inacabado,
móvel, em construção. Destarte, antes de responder à história, o jogo deve
responder ao jogador (e, em primeiro lugar, ele responde à vontade do seu
programador). A verossimilhança pode ser cara a séries como CK, mas ela 213
não é a sua primeira orientação; a direção primordial de um game de mercado
é o entretenimento.55 A acurácia literalmente acaba quando o jogo começa,
pois a agência do jogador conduz a história para rumos inesperados.
54
Mesmo que a Paradox tenha recorrido a historiadores para elaborar CK, devemos en-
tender que o jogo termina por reproduzir não os fatos e sujeitos históricos, mas as interpre-
tações que os consultores ofereceram sobre eles, que são, por sua vez, tecidas mediante con-
tatos indiretos com as fontes da pesquisa histórica, sejam os documentos primários, sejam as
referências bibliográficas que cristalizam paradigmas, teses, conceitos e premissas. Quanto a
isso, estou de acordo e acompanho a abordagem de Peterson, Miller & Fedorko (“The Same
River Twice”), para quem os games (CK incluso) podem servir de “simulação histórica” com-
putadorizada, uma útil ferramenta para a criação, teste e ensino de modelos explicativos.
55
Não à toa, para Grewell (“Neomedievalism: an Eleventh Little Middle Ages”, 26, 42), os
games são a “forma quintessencial do neomedievalismo” e funcionam como construtos his-
tóricos capazes de veicular narrativas aptas a competir ou a colaborar com aquelas propostas
pelos historiadores. No entanto, as entrevistas dos produtores de videogames costumam de-
nunciar certa tensão entre a vontade de fazer jogos historicamente verossímeis, culturalmente
edificantes, e a necessidade de entregar aos consumidores produtos minimamente jogáveis.
O manual do usuário vendido com o primeiro título de Crusader Kings, por exemplo, afirmava
que o período coberto pelo game “é uma era decisiva para a História [por ser a gênese dos
Estados nacionais], a qual, até então, nunca foi simulada em um videogame por causa de sua
complexidade e heterogeneidade, provavelmente”. Segundo Alcázar (“Videogames and the
Middle Ages”, 348), “tais palavras foram escritas por Philippe Thibaut, o criador do jogo – bem
como de Pax Romana e EU [Europa Universalis] – que sempre insiste na acurácia [de seus ga-
mes]”. Em um depoimento, Thibaut se reconhece não somente como um “grande fã de jogos de
estratégia”, mas também como um “aficionado por História”, afirmando: “eu sempre achei que
um jogo pode te trazer não apenas diversão, mas também alguma outra coisa que enriqueça a
sua ‘culture générale’, como dizemos na França. Então, para nós [da Paradox], vale a pena tentar
fazer qualquer game que possa oferecer um conteúdo cultural, além de uma boa jogabilidade”
(Alcázar, “Videogames and the Middle Ages”, 348).
Considerações finais
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O neomedievalismo é novo precisamente porque usa a tecnologia digital para manipu-
lar a história de novas maneiras. Ele depende, portanto, de “[…] certas mudanças filosóficas
e tecnológicas para existir” (Kaufman, “Medieval Unmoored”, 2).
Bibliografia
Alcázar, Juan Francisco Jiménez, “El arte de la guerra medieval: combates di-
gitales y experiencias de juego”, Roda da Fortuna, 3:1-1, 2014. Disponível em:
https://a615a5e5-c98d-48ce-95fc-4c6127dff938.filesusr.com/ugd/3fdd18_
b33627c6b64343b1baab05465788560e.pdf. Acesso em: 1 out 2020.
Alcázar, Juan Francisco Jiménez, “Videogames and the Middle Ages”, Imago Tem-
poris: Medium Aevum, III (2009). Disponível em: https://www.researchgate.
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Refiro-me, aqui, à tese de Viroli (From Politics to Reason of State), para quem os intelec-
tuais da geração de Maquiavel, atendendo aos anseios dos signori da Itália Renascentista, trans-
formaram a política (ou filosofia civil) em uma arte da manutenção do poder, não da república,
deslocando o estado do domínio comum para o domínio pessoal da família governante.