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Resumo:
Este artigo trata das reformas eclesiásticas ocorridas na Itália do século IX ao XI. A
partir da análise de uma série de casos, acessados através de revisão bibliográfica, ele
levanta a seguinte problemática: de quem foram as iniciativas reformistas dos
organismos clericais no recorte espaço-temporal indicado? Quais foram as suas
motivações e intenções? De que maneira elas foram processadas? Quais foram as suas
consequências, impactos e efeitos? O objetivo da revisão é mapear os casos estudados,
explicitando não apenas os pontos comuns, mas também a heterogeneidade dos
processos reformistas. Por meio da abordagem casuística, o paper se alinha à tese de
que as reformas medievais foram plurais, com movimentos “de baixo para cima”,
sem, necessariamente, orientar-se por direcionamentos pontifícios.
Palavras-chave:
Reforma; Comunhão; Clero.
Abstract:
This article deals with the ecclesiastical reforms that took place in Italy from the 9th
to the 11th century. Based on the analysis of a series of cases, accessed through a
literature review, it raises the following issues: whose reform initiatives were taken by
the clerical bodies in the space-time frame indicated? What were your motivations and
intentions? How were they processed? What were its consequences, impacts and
effects? The objective of the review is to describe the cases studied, mapping them,
and making explicit not only their common points, but also the heterogeneity of the
medieval reforms. Through a casuistic approach, the paper is aligned with the thesis
that medieval reforms were plural and followed “bottom-up” dynamics, not the
direction of authoritative projects formulated by the Papacy.
Keywords:
Reform; Common life; Clergy.
1 Doutor em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor
Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro do
Laboratório de Estudos Medievais (LEME). Currículo: http://lattes.cnpq.br/5461158925668835. E-mail:
felipe.far@ufpe.br.
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Ribeiro, Felipe Augusto
As reformas da vida eclesiástica italiana e o “projeto gregoriano” (816-1099):
revisão bibliográfica e estudos de caso
www.revistarodadafortuna.com
1. Introdução
O segundo intento deste trabalho é articular cada caso de reforma que encontrei
na literatura com vistas à construção de um sistema, isto é, de uma perspectiva
analítica que compreenda o fenômeno de maneira holística e dinâmica, com as
circulações de pessoas, ideias e linguagens, com seus padrões, semelhanças e
diferenças. Neste ponto, verticalizarei a análise para o espaço italiano, por brevidade
(e porque é o espaço que mais conheço), e dependerei, sobretudo, de uma ata
(miscellanea) publicada em 1962 pelo Centro di Studi Medioevali (CSM), com os textos
das comunicações de vários estudiosos reunidos em um congresso promovido pela
Centro. Quando se emprega uma metodologia casuística, o que se percebe é o
contrário do que normalmente se encontra proposto nos estudos sobre o tema: ao
invés de uma suposta capilaridade dos projetos reformistas papais, o que temos é a
emergência de iniciativas locais que, em algum momento, recorrem ao Papado como
uma instância confirmadora de cada projeto particular.
comum. Nessa perspectiva, a Santa Sé não teria atuado tanto como a promotora,
iniciadora ou mesmo idealizadora das reformas eclesiásticas, mas sim como a sua
defensora em última instância, a patrocinadora de programas cujo estopim ou gatilho
funcionou de baixo para cima, e não de cima para baixo.
tentou-se evitar que a exigência de expansão dos cargos e serviços eclesiásticos fosse
acompanhada pela expansão do direito canonical2.
2 As reformas excluíram o baixo clero dos processos eleitorais diocesanos (Millet, 2006: 94). Exceções foram
os grandes centros como Florença, Milão e Pádua, onde o crescimento demográfico foi muito mais vertiginoso
e implicou o adensamento profundo da própria urbe, causando pressões que conseguiram redimensionar os
colégios canonicais (Ronzani, 1986: 102). Em Aquileia, dada a função de centro regional que o patriarcado
exercia, os bispados sufragâneos conquistaram lugar no colégio do patriarca e exerceram o seu direito através
de vigários que delegavam para representá-los na capital (Spiazzi, 1962: 133).
3O autor diz que, ali, o arcipreste é quem cuidava da caridade e o arcediácono é quem se encarregava da liturgia;
ou seja, inverteram-se os encargos que a igreja primitiva atribuía a um e a outro, conforme apresenta
Poggiaspalla (1968). O cabido local ainda possuía um preboste, que o chefiava, como um todo – mas nisso
creio que se deva ver a figura do prior (isto é: o primeiro dentre os cônegos, o seu porta-voz diante do bispo e
o responsável pela vida comum dos clérigos) conforme propunha o costume agostiniano, que já estava bastante
difundido entre os cônegos da região naquela época.
4A proeminência do arcediácono aretino foi confirmada na reforma promovida pelo bispo Elmperto em 1009,
quando o cargo foi tornado magister et rectore do cabido, dando à instituição um caráter de magisterium et regimen –
que já havia sido proposto no século X, quando o arquidiácono era somente o mestre o e reitor era o
arquipresbítero. Elemperto juntou, portanto, as duas funções numa só, como era usual na época.
5 No diploma em que o bispo restituiu os direitos canonicais, em 1154, o arcipreste aparece nomeado apenas
como “R.” (Codice, 1884: 20); na bula com a qual Adriano IV confirmou tais direitos, em 1156, o representante
é “Rocco preposito” (ibid.: 23); creio serem a mesma pessoa, pois, àquela altura era comum que os líderes do cabido
acumulassem títulos como o de arcipreste e o de preposto. No pacto de fidelidade que a comuna firmou com
o papa no ano seguinte, 1157, o mesmo Rocco volta a aparecer, desta vez, contudo, nomeado prior (ibid.: 26).
6 De fato, a cidade possuía, por volta dos anos 889-898, uma canonica cantori morando numa casa junto ao
episcopado, doada pelo arcebispo Domingos (Vasina, 1962: 202), que também doara a moradia dos cantores
do bispado sufragâneo de Cesena (ibid.: 203). Para Vasina, as inúmeras doações que o arcebispado ravenate fez
à ordem dos cantores mostra o quanto a liturgia era valorizada na cidade e, por conseguinte, o quanto a ordem
era prestigiada. Ela era chefiada por um preboste, ao passo que a outra ordem do clero local, a ordem dos
cardeais, era chefiada por um arcediácono (ibid.: 200). Três edições documentais às quais o autor recorre estão
disponíveis para consulta pública: as Sagre memorie di Ravenna antica
(https://archive.org/details/LeSagreMemorieDiRavennaAntica), o In antistutum ravvenatum chronotaxim
(https://goo.gl/c74JhH) e o Historiarum ravennatum libri decem (https://goo.gl/goe31t).
7 O autor vale-se, dentre outras fontes, do Codice diplomatico padovano, disponível online:
https://archive.org/details/codicediplomati00glorgoog.
8Uma edição documental da qual o autor se valeu também está disponível online: a Dissertatio historica de
Cathedralis Ecclesiae Neapolitanae (https://goo.gl/rNKdnx).
9 Para Poggiaspalla (1968: 84), “[...] todo o clero citadino tinha frequentes encontros fraternos [em torno da
mesa] que alimentavam a união entre os membros e entre eles e o bispo, estendendo o máximo possível as
vantagens a quem participava da vida comum”; tal prática frequentemente excluía, porém, segmentos
eclesiásticos considerados menores, dentro e fora das urbes, até pelas dificuldades que ele tinha de abandonar
suas igrejas e seus deveres e se deslocar para encontrar o bispo em suas respectivas cidades.
para que todos [os clérigos] desejem comer, beber e dormir em conjunto,
segundo a autoridade canônica, e para que não queiram se dividir em celas
ou pequenos hospitais próprios; para que, ao contrário, temendo Deus,
sob a custódia do preposto por Ele indicado, tomem em comunhão os
alimentos e as roupas, com a ação das graças, segundo a constituição ou a
distribuição prevista nas santas regras12.
Como se percebe nesse trecho, entendia-se que os clérigos precisavam ter uma
só vontade, que a comunhão fosse voluntariamente adotada e aceita como a melhor
maneira de ordenar (constituire ou instituire) a comunidade. A mesma disposição
apareceu na reforma do cabido de Albi, em 1040, quando um agente desconhecido
procedeu à reconstituição da mensa dos cônegos locais, confirmando que ela era
indispensável à subsistência do clero, mas que só podia ter acesso a ela quem
devidamente aceitasse a comunhão, regulamentada pelo episcopado (Dereine, 1946:
371). O fato de que algumas reformas tenham possuído iniciadores desconhecidos
sugere que nem sempre eram os bispos a promovê-las: em Lucca, por exemplo, o
primeiro diploma citado (1048) menciona que o bispo doou uma terra para a
construção da Igreja de Saint-Martin, erguida junto à catedral, e da moradia canonical,
mas o emprego do verbo no plural (volumus) demonstra que o seu desejo era
10 Verti para
o português somente os nomes de personagens históricos já conhecidos; os demais nomes próprios
eu mantive conforme estão nos idiomas dos textos referenciados (sobretudo francês e italiano).
11 “constituit plures canonicos et clericos qui laicorum more seculariter habitabant, praeposito oboedire et communiter in
congregatione vivere docuit” (Pedro Damião apud Dereine, 1946: 368). O tom incisivo de Pedro repetiu-se na
exortação aos cônegos de Fano e de Velletri, em 1060, para que vivessem “regularmente em vida canonical” (in
vita canonica regulariter vivere), abominassem “a posse de dinheiro” (peculii abominanda proprietas) e adotassem a
“instituição da disciplina apostólica” (institutio apostolicae disciplinae) (ibid.: 373).
12 “[...] ut simul manducandi et bibendi et etiam dormiendi secundum canonicam auctoritatem voluntatem habeant; neque divisi
per cellulas aut hospitiola propriam voluntatem sectentur, sed, sub praepositi Deum timentis custodia, quidquid Deus dederit, sive
in victu sive in vestitu, secundum sanctae regulae constitutionem vel distributionem, cum gratiarum actione communiter capiant”
(Dereine, 1946: 370).
compartilhado pelo clero catedralício, que também aceitava a comunhão, era solidário
à estabilidade dos demais sacerdotes e acompanhou o prelado na cerimônia (Dereine,
1946: 371). Em outras fontes13, percebemos que os próprios cônegos podiam tomar
a iniciativa de reformar a própria vida: em Altino, 1056, eles, influenciados pelo bispo
Leone, foram até a domo Domini (ou seja: a catedral), cum consensu, e, humildemente,
aceitaram a vida segundo o costume dos Antiquorum Patrum (Dereine, 1946: 371)14.
Dois anos depois, em 1058, na Colegiada de Saint-Jean-Baptiste, em Florença, outro
documento diz que os cônegos espontaneamente voltaram a imitar, como antes (in
antea), a “comunhão da igreja primitiva” (primitivae ecclesiae communiter), segundo a
“regra dos Santos Padres” (regulam Sanctorum Patrum, Dereine, 1946: 373).
Alguns artigos das atas desenvolvem argumentos lançados por Dereine, como
o caráter coletivo e jurídico dos estabelecimentos canonicais. O padre Luigi Nanni
(1962: 255), por exemplo, esmiuçou o caso de Siena: ali, a despeito da existência de
um cabido desde 945, a vida comum só foi adotada pelo clero em 1056, quando o
bispo Giovanni concedeu alguns bens aos seus cônegos e os chamou de fratelli.
Naquele ato, uma das testemunhas foi um prior scholae e o estabelecimento dos cônegos
foi finalmente chamado de canonica – o que, para o autor, significa mais que uma
morada: indica um estilo de vida. As dotações feitas para aquela instituição só
começaram em 1069; antes disso os cônegos só aparecem na documentação
recebendo bens e encargos na condição de indivíduos particulares; a reforma os
reuniu, portanto, em uma única persona jurídica, dotada de direitos próprios,
pertencentes a toda a coletividade, ainda que uma casa comum para eles só tenha sido
construída em 1071. O autor sugere que, conquanto a comunhão só tenha sido
adotada pelos cônegos no episcopado de Giovanni, é provável que os clérigos mais
pobres, distantes da catedral, tivessem aderido à comunhão muito antes, porque
precisavam dela para ter se manterem, necessidade que não se abatia sobre os clérigos
mais nobres, reunidos em torno da catedral. Nanni sustentou, ainda, que o mesmo
aconteceu em Lucca.
Podemos coletar outros casos de reformas além das atas do CSM. Tommaso di
Carpegna Falconieri, por exemplo, oferece-nos dois estudos de caso: o primeiro sobre
Rimini (que o autor diz ser similar aos casos de Fano e de Cesena), onde a Vita Arduini
presbyteri Arimini, obra anônima escrita em data indefinida entre os anos vinte e
cinquenta do século XI, relata ter o cônego Arduino (m. 1009), desejando fugir da
corrupção do clero, abandonou ao cabido da diocese (cujo prelado ele acusara de
simonia) e fundou uma colegiada “monaquizada” na igreja de S. Colomba, com
doações feitas por Otão III (996-1002) – que havia recuperado bens usurpados da Sé
pelo conde Rodolfo – sob a condição de que o grupo de Arduino vivesse em
comunhão (Falconieri, 2011: 67-70). O autor interpretou que os atos do rei e do
cônego foram motivados pela ideia de que a comunhão era o melhor instrumento de
combate à corrupção do clero e indicou que, para normatizá-la, a congregação adotou
uma consuetudo que misturava trechos da regra de Aachen, da regra de Bento de Núrsia
(480-547) e da obra de Chrodegang de Metz (c. 712-766) (Falconieri, 2011: 71).
Falconieri ainda informa que o movimento de Arduino fez sucesso imediato, a ponto
de mudar o ocupante da Sé de Rimini e impulsionar a reforma do cabido, com o apoio
O segundo caso tratado por Falconieri foi o de Roma. Ali, para ele, aconteceu
como nos demais grandes centros itálicos: o que deveria ser o cabido, ao longo do
século XI, tornou-se uma instituição segmentada em diversas ordines. De acordo com
o autor, até o século VIII o clero romano exercia funções quase exclusivamente
internas à cidade, a despeito de sua hierarquia. Já no século XII, sobretudo em virtude
da intensa paroquialização da cidade18, contudo, esse mesmo clero já quase não se
ocupava mais da cidade, mas tão-somente de funções no exterior; a cúria episcopal
havia se tornado a cúria papal, uma embaixada itinerante profundamente envolvida
em negócios internacionais. A cura animarum citadina ficou, então, para o baixo clero,
que passou a ser chamado, nas fontes, de clero urbis (Falconieri, 1999: 85), apelativo
que marcava a sua distinção, funcional e dignitária, em respeito ao clero cardinalício,
que deixou de se ocupar das plebes para trabalhar exclusivamente na cúria. Os cardeais
deixaram de ser arciprestes, embora ainda detivessem os titula das igrejas-matrizes, e
os prestes foram elevados ao seu posto (Falconieri, 1999: 86). A história da
emergência do próprio papado é, portanto, a história da reforma do clero romano: do
mesmo modo que o cabido se cindiu em Milão, Rimini, Aquileia e Ravena (cidades
16 Curiosamente, o imperador Henrique IV também apoiou a reforma local, adotando o patronato sobre a
cidade, durante o episcopado de Opizo (1069-1107). Isso mostra que a cooptação dos cabidos não foi estratégia
empregada somente pelo “partido gregoriano”; para Rimini, a vantagem do patrocínio imperial foi a
possibilidade de se desvencilhar da influência ravenate e se projetar no cenário regional, rivalizando tanto com
a Sé milanesa quanto com a romana – vide que Opizo passou a chamar seus cônegos de “cardeais” e a se
intitular servus servorum dei, tal como os papas. Com a morte de Henrique IV e o advento do papado de Pasqual
II (p. 1099-1118), porém, Opizo e seu legado sofreram uma damnatio memoriae, porque o bispo, fiel a Henrique,
havia aceitado o anti-papado de Clemente III (Falconieri, 2011: 85).
17 Falconieri (2011: 81) atribui o fracasso da continuidade entre o carisma do fundador e o de seus sucessores
– processo que David Foote (2004: 5) entende, à moda weberiana, como “institucionalização do carisma” – ao
rigor “duramente pauperista” que as propostas iniciais reformistas adotavam durante os embates contra
bispados tidos por simoníacos.
18Roma, ao contrário de cidades pequenas, tinha espaço urbano grande o suficiente para organizar paróquias
não só no campo, mas também dentro do espaço urbano (Wickham, 2015, passim).
que também tiveram grandes territórios e sedes sufragâneas para governar), em Roma
a parte mais alta e nobre dele se tornou a cúria pontifícia, encarregada da diplomacia
e da administração regional que o Patrimônio de São Pedro demandava, enquanto a
parte baixa se emancipou e se tornou a encarregada do apostolado local.
Em Módena, onde, de acordo com Giuseppe Pistoni (1962: 181), desde 887 os
cônegos já tinham um preposto e um vicedominus e o cabido foi mencionado pela
primeira vez num diploma do imperador Guido III de Espoleto (r. 891-894), em 891,
como congregatio canonicorum – a menção a uma “congregação de cônegos” atesta, para
o autor, a comunhão da comunidade local. Depois, em 933, diplomas imperiais
confirmaram doações feitas pelos bispos Geminiano e Leodoino para que seu clero
pudesse continuar a viver em comunhão, ministrando o culto e rezando pelo bem não
somente dos fiéis, mas também dos próprios doadores e de seus patronos régios
(Pistoni, 1962: 182). O autor frisou, entretanto, que não se pode precisar o grau de
comunhão que o clero praticava, se eles realmente vivam e comiam juntos ou se
apenas se reuniam nas ocasiões deliberativas e litúrgicas20.
20 Similarmente, Gianfranco Spiazzi (1962: 129-130) observou que, em Aquileia, é provável que a comunhão
remontasse ao ano de 792, quando o Cabido local foi, pela primeira vez, mencionado, no diploma com o qual
Carlos Magno confirmou ao patriarca Paulino a liberdade de eleição para a sua Sé. Todavia, ali ela se resumia
ao encontro dos cônegos em torno da mesa: fora isso, eles não moravam juntos e podiam ter tanto casa quanto
outros bens privados. Em Nápoles, Fonseca (1962: 280-281) também observou que, colegiadas distintas, os
clérigos podiam coabitar em uma (ou várias) domus, cella ou habitatio ou conviver somente na hora da refeição;
havia, pois, gradações de comunhão. O autor defende, enfim, que a existência de uma mensa não necessariamente
indica uma vida comum plena e que essa só se disseminou no fim do século XII.
21 “liberam... potestatem de omnibus quae illis iuste et legaliter visa sunt aut visa fuerint inibi inter se – ut consuetudo fuit –
dividendi” (Barzon, 1962: 139).
A análise de Gina Fasoli (1962: 193) sobre o Cabido Bolonhês vai na mesma
direção. Para ela, desde o início do século X os cônegos locais vinham conquistando,
com o apoio papal – através de duas confirmações: uma dada por Leão V (903), em
uma bula desaparecida cuja cópia ficou preservada na confirmação posterior, de João
XIII (965-972), em 967 – não só a imunidade dos bens do cabido como também a de
cada cônego em particular. Além dos pontífices, os imperadores também concederam
o seu patronato à instituição local: em 962 Otão I já havia emitido diploma
confirmando os bens coletivos e individuais dos cônegos e em 1014, usando a mesma
fórmula que empregara para em sua intervenção em Volterra, Henrique II deu a
entender que os cônegos eram vassalos régios e por isso nenhuma outra autoridade
além dos imperadores podia agir sobre o cabido.
22A confirmação imperial não foi à toa: naquele mesmo ano a instituição havia alcançado a marca de quarenta
cônegos, organizados em uma hierarquia completa, com tutor, arcediácono, preposto, primicério, cantor. E o
próprio bispo local é que havia pedido a confirmação ao imperador (Cristiani, 1962: 242).
23A autora (Fasoli, 1962: 195) foi incisiva em afirmar que a cidade, que no começo do século XI devia ter o
tamanho espacial de cerca de 30 a 35 hectares, já não comportava mais o crescente número de clérigos.
24 A autora (1962: 232) argui que nas dioceses milanesa e florentina o monasticismo, já bastante arraigado,
estava alinhado com os bispos e formava uma aristocracia que deixava o baixo clero na margem da política e
da economia local, o que teria levado os cônegos, inclusive os segmentos inferiores dos cabidos, a aderir ao
patarismo como discurso de enfrentamento do poder episcopal e de reclame por melhores condições para os
seus estabelecimentos. Para uma ampla compreensão do patarismo, do catarismo e de outros movimentos
heréticos na Lombardia e na Toscana, cf. Violante, 1972; Teunis, 1979; Paolini, 2004; Varanini, 2005; Taylor,
2013.
25 Também em Volterra João foi chamado para reformar o cabido. Porém, como a pataria não era forte na
cidade, ali ele respondeu a um convite do próprio bispo para comparecer a um sínodo reformista, ao contrário
de Milão e Florença, cujos bispos foram os adversários do reformador (Cristiani, 1962: 242).
26Bonizo de Sutri havia atestado, de modo laudatório, entre 1063 e 1064, a vida coabitada em Milão (Palestra,
1962: 142). Ali, contudo, ela não esteve isenta de tensões tão ríspidas que os vallombrosanos tiveram que ser
chamados para ajudar a reformar o clero e a impor uma comunhão absoluta para o cabido. Ademais, ele também
defendeu que, nos grandes centros urbanos itálicos, era mais fácil reformar colegiadas, sobretudo as rurais, do
que os cabidos, porque quanto mais poderosos eram os cônegos (isto é: quanto mais forte era a nobreza local)
mais resistentes às mudanças eles eram.
dentro das hierarquias eclesiástica e monástica. Por isso, defendeu a autora, João teria
recrutado, em suas campanhas contra os bispos florentino e milanês, os noviços das
casas canonicais, além de ter ordenado muitos de seus monges ao sacerdócio e
recebido patarinos em seu mosteiro. A instrução era clara: portadores da vida ideal,
os monges não deviam se limitar os mosteiros. Porém, Kathleen Cushing (2005)
mostrou, conforme pontuei, que a atuação de João, um outsider dentro do quadro das
diversas iniciativas reformistas, não foi bem recebida nem sequer pelos reformadores
da cúria romana que pertenciam à mesma geração de João, como Pedro Damião, que
condenou os monges vallombrosanos por saírem de seus mosteiros e se imiscuírem
na vida cívica que cabia ao clero27. Aliás, Fasoli (1962: 197) demonstrou que o mesmo
aconteceu no caso bolonhês: historiadores antigos arguiram, com base no discurso
enfático dos diplomas emitidos pelo bispo Adalfredo, que as reformas por ele
empreendidas teriam constituído radicalizações e que elas seguiram o programa de
reformadores como Pedro. A autora afirma, porém, que o próprio Pedro condenou
também o projeto de Adalfredo, assim como fez com João.
27Enquanto Boesch diz que João exortou seus monges a adotarem o sacerdócio para poderem participar da
vida cívica florentina, Cushing diz que o reformador conclamou os seus seguidores a pregar na cidade, não a se
tornarem sacerdotes – e a pregação monástica é que justificou a condenação por parte de Pedro Damião.
28A ordem canonical, surgida na metade do século XI, constituiu, junto com a ordem monástica – e,
posteriormente, a mendicante – os principais segmentos da Igreja medieval (Zinn, 1995: 218).
29Ovidio Capitani (1962) lembrou que os ataques sofridos pelos cônegos, tanto da parte dos “hereges” quanto
da parte dos monges, seguiram até o século XII, a ponto de motivar a escrita de uma obra conhecida como
Scutum canonicorum (ou Liber de ordine canonicorum), de autoria do cônego bávaro Arnone da Reichersberg (c. 1100-
1175), que visava precisamente a defender a ordus vetus mediante o revigoramento da ordenação canonical.
mais radical, tal renovação passava pela monaquização do clero; não pela sua simples
instrução conciliar, mas pela sua completa conversão de vida.
30Evidentemente, “peculato” é uma tipificação criminal moderna que não consta nas fontes; uso-a aqui com o
simples sentido de desvio e apropriação indevida do patrimônio público por particulares.
Identifica-se a mesma perspectiva na proposta de Boesch, que viu nas cisões dos
cabidos milaneses e florentino a oposição entre um “alto” e um “baixo clero”, que
apelou ao patarismo para assegurar a sobrevivência de uma comunhão que o alto
clero, simoníaco e nicolaísta, não tinha a menor intenção de praticar. Igualmente, para
Fasoli, as repetidas propostas reformistas em Bolonha evidenciariam que, além de
fatores externos (como incêndios, pestes e outros), a própria vontade individual de
cada clérigo impedia o sucesso das reformas e a plena adoção da vida comum. Na
visão da autora, novas doações eram sempre necessárias justamente porque o próprio
clero dilapidava a igreja e dissolvia a comunhão, na qual jamais esteve verdadeiramente
interessado. Em vista disso é que os bispos, genuínos zeladores da vida eclesiástica
(porque investidos de uma parcela da autoridade pública imperial), teriam feito os
cabidos comportarem escolas, consideradas meios para fornecer aos clérigos a
educação cívica e convencê-los da necessidade da comunhão e da moralidade para a
administração e a preservação eclesial: o métier das reformas, para ela, assim como para
Boesch, era formar uma nova cultura clerical (Fasoli, 1962: 197).
Para Fonseca, o problema em Nápoles era igual. Ele apontou que um dos fatores
de empobrecimento das plebes era a participação laica na administração eclesial e a
possibilidade de que os leigos também usufruíssem dos benefícios da vida comum
(Fonseca, 1962: 273). E acrescentou que nas plebes periféricas, mais distantes do
centro do poder público que era a Sé, havia dispositivos que reservavam aos nobiliores
(os líderes laicos de cada comunidade) o direito de interferir até na nomeação de seu
administrador eclesiástico; isso, para o autor, era um signo claro dos abusos que o
laicato podia cometer nas igrejas. Tal quadro, enfim, derivaria do enfraquecimento do
poder ducal na região, durante o século XI, o que teria permitido aos nobres governar
suas localidades, ainda que a roupagem jurídica desse governo fosse eclesiástica
(Fonseca, 1962: 275).
Montecchio levou tal interpretação mais longe: para ele, a segunda metade do
século XI foi marcada pela articulação de uma grande rede entre os bispos toscanos:
além de Mântua, Siena, Florença, Lucca e Volterra foram mobilizados e se arvoraram
no poder dos papas e dos marqueses para constituir um grande partido de resistência
aos imperadores. Nesse arranjo, os cônegos, representando a média e a baixa
aristocracia, teriam sido recrutados como base de apoio. Prova disso seria a
condecoração, em 1077, recebida pelo arcipreste e pelo arcediácono mantovanos das
mãos do papa Gregório VII, o que mostraria a estima de que o clero passou a gozar
junto aos romanos. Ademais, membros do cabido local, como o arcediácono Ubaldo
(que se tornou bispo entre 1082 e 1092), eram de famílias clientes dos marqueses e,
em nome deles, exerceram funções como a de vicedomini ecclesiae, ou seja, de reitores de
igrejas menores (Montecchio, 1962: 171)31. Esse teria sido, pois, um momento
marcado pela coalisão entre as autoridades episcopais, a marquesana e a pontifícia,
entre os poderes locais, os regionais e os universais. Nela, a emancipação dos cabidos
teria constituído uma estratégia para fazer frente às facções nobiliárquicas sediadas
nos castelos e nas grandes sedes, como a de Milão32. Toda a organização deveria fazer
frente ao reinado de Henrique IV (1053-1106), à sua ambição pelas investiduras e à
emergência de antipapas patrocinados pelos germânicos, como Cádalo de Parma (c.
1010-1072), que adotara o nome de Honório II (1061-1064).
31 De fato, Dereine (1946: 380) pontuou que na vita do bispo Anselmo de Lucca, escrita por volta de 1110,
afirma-se que, durante a vida de Matilde, ela fez várias dotações a colegiadas e mosteiros da diocese, para que
mantivessem a comunhão. Na mesma fonte, o hagiógrafo diz que o referido bispo chamou a atenção dos
cônegos do cabido local, que haviam se esquecido dos ensinamentos de Jerônimo e de Agostinho, bem como
dos favores dos papas Alexandre II e Leão IX, e se afastado da comunhão. Segundo o Anselmo, os santos
padres e papas ficariam envergonhados se vissem aquela situação.
32 Falconieri (2011: 72) concorda que nos anos 40 e 50 do século XI, tempo de Pedro Damião, apoiar as
reformas canonicais foi uma estratégia de construção da base de apoio do “partido gregoriano”.
Por outro lado, os demais autores que publicaram na coletânea do CSM sequer
levaram em conta esse paradigma para explicarem as transformações da vida comum
do clero de cada igreja. Como argui, creio que a divergência de interpretações tenha
várias causas, dentre elas a epistêmica, que julgo ser, na miscellanea, a preponderante.
Para os autores acima indicados, a explicação baseada na ruína carolíngia foi um
instrumento cognitivo que antecedeu aos próprios estudos de caso, ou seja, uma
premissa que condiciou a leitura documental. Além disso, a disponibilidade (ou
escolha) de fontes, assim como no caso orvietano, parece ter determinado a adesão
ou a dispensa do referido paradigma: leitores como Tabacco e Boesch valeram-se
muito mais de fontes oficiais33, das bulas papais e dos diplomas régios, porém outros
autores, como Fasoli, Fonseca e Montecchio, mesclando esses corpora documentais
com a diplomática local, apresentaram resultados que permitem relativizar a
conclusão a que eles próprios chegaram. Seus trabalhos mostraram como a
pluralidade interna de cada diocese colocava em coexistência colegiadas, sobretudo as
citadinas, em estreita conexão com as cortes pontifícia e imperial e colegiadas
completamente alheias à macropolítica.
Em suma, todos os artigos do CSM dão margem para que se colham inúmeros
casos em que as reformas aconteceram em função das demandas administrativas,
econômicas e políticas de cada comunidade. Insisto: tais demandas foram
consequências de um crescimento (o demográfico), não de uma crise, de uma falência
(a da dinastia carolíngia). As reformas promoveram sim reordenamentos (para usar
um termo frequente – riordinamento – nos textos de Tabacco) por todo o ocidente, mas
em face da multiplicação das plebes, das colegiadas, dos postos dentro da hierarquia
eclesiástica e da oferta de serviços por parte dos clérigos. É precisamente neste ponto
que entravam as legislações de Agostinho, dos reformadores como Chrodegang e
Bento de Aniane e de Aachen.
33 Nestes dois autores a escolha das fontes é flagrante: em Boesch porque ela escolheu abordar o tema pelas
suas “grandes linhas”, abordando os célebres reformadores; suas fontes foram as vitae escritas sobre João
Gualberto e a obra de Pedro Damião. Já Tabacco, que fixou o seu entendimento sobre o feudalismo itálico
antes de publicar seu estudo de caso sobre Arezzo, acabou explorando mais a documentação régia e papal,
conquanto tivesse à mão o códice diplomático aretino, editado em 1899 por Ubaldo Pasqui (e hoje disponível
online: https://archive.org/details/documentiperlast02pasq. Embora quase metade das notas de rodapé do
artigo de Tabacco remetam à edição de Pasqui, praticamente todos os diplomas que ele abordou eram as cópias
de registros imperiais e pontifícios reunidas nos arquivos aretinos e que o códice coletou. É sabido que, assim
como Boesch, Tabacco se preocupou com a macrohistória das reformas, com o seu maior nível, como mostram
os seus trabalhos coetâneos à miscellanea do CSM (cf. Mineo, 1995).
uma congregação canonical: o clérigo de origem rica, que podia usar a instituição
comum para preservar ou até engrandecer o seu prestígio e poder privado, e o clérigo
de origem pobre, que podia se aproveitar dela para praticar um “alpinismo social”. As
duas possibilidades não eram, frise-se, as únicas: a comunhão ainda podia ser
empregada pelos gestores eclesiásticos como mecanismo de distribuição de renda, na
medida em que o princípio da pobreza podia motivar os clérigos ricos a socializarem
seus bens e dar à instituição canonical os recursos necessários para prover a
subsistência aos pobres, fossem eles ordenados ou não.
34Ao contrário da regra beneditina, a agostiniana não traz detalhes sobre o aprovisionamento da vida
comunitária, conquanto seu texto seja repleto de conselhos sobre o assunto. Por isso cada comunidade precisou
desenvolver seu próprio ordenamento sobre o tema (Zinn, 1995: 219).
35O costume de Saint-Ruf de Avinhão, um dos mais antigos da Europa continental e exportado para diversas
outras localidades, é um “dossiê patrístico”, com pequenos trechos de várias proveniências (Misone, 1963: 473).
A conciliação do dossiê com a traditio local, para o autor, garantia a prática da legislação avinhonesa.
9)37. O autor informou que nos arquivos canonicais há mais manuscritos com a versão
da regra de Aachen adaptada pelo concílio de Latrão do que manuscritos com a sua
versão original. Os manuscritos também contêm, geralmente, trechos de Chrodegang
e de Agostinho, mas em todas as cópias há um padrão: seja qual for a fonte, as
cláusulas sobre a propriedade privada e o uso da despensa comum são as que mais
sofrem alterações e supressões em favor de consuetudines locais (Egger, 1962: 10)38, o
que indica que as comunidades registraram em suas compilações verdadeiras
sobreposições dos costumes às normas. No que mais importava e despertava
contendas, o que se tornava lei era o acordo local derivado da tradição, não as
disposições emanadas pelas cúrias dos imperadores e papas. As legislações universais
tiveram, portanto, pouca capacidade de alterar o statu quo em cada igreja e colegiada.
De maneira que se torna improdutivo sustentar, como indiquei, uma capilaridade dos
projetos reformistas universais: os costumes eram mais fortes que os cânones e cada
compilação de manuscritos mostra isso, segundo Egger. Mesmo quando as
compilações referenciam autoridades como Agostinho (o que, pontua o autor, não
era tão comum como se pensava39), geralmente as citações são, como frisei, balizas
ideais não necessariamente praticadas; elas indicam que a comunidade acreditava
forjar a sua própria legislação dentro do esquadro delineado pelo santo padre, não
necessariamente igual a ele (Egger, 1962: 11)40.
38Nem toda comunidade elaborou a sua própria consuetudo: havia grande circulação entre os cânones locais e a
mobilidade dos clérigos permitiu que igrejas menores simplesmente copiassem as compilações das igrejas
maiores (ibid.: 12). A própria regra revisada em Latrão serviu, antes de tudo, à reforma da própria Colegiada
Lateranense, mas teve grande circulação, incluindo sua consuetudo. Hildebrando de Soana, o futuro Gregório
VII, fazia parte dessa congregação (sendo, àquela altura, arcediácono) e, segundo Dereine (1946: 373), interveio
diretamente na elaboração do códice local, o que explica que a revisão lateranense tenha sobrepujado a regra
de Aachen precisamente sob o seu pontificado; o seu predecessor, Alexandre II, tinha preferido seguir a política
de confirmar e proteger as consuetudines locais, ao menos na Itália (ibid.: 376).
39O próprio Dereine (1946) já havia questionado a penetração da obra agostiniana nas compilações canonicais
e concluído que ela foi muito mais relativa e limitada do que se supunha.
40O autor segue a indicação de Dereine, de que cópias de textos agostinianos só são encontrados tardiamente
nas compilações canonicais (a partir de 1067, em Reims), mas Misone (1963: 474) a contesta: ele diz que a regula
agostiniana já consta na compilação de Narbona, de 1034, o que sustenta a tese de que a presença da regra de
Agostinho não se contrapunha à observância de uma consuetudo local, conforme defendeu Egger.
Cattaneo frisou que crônicas como a de Arnolfo devem ser consideradas com
reservas, pois elas procuraram celebrar a “tradição ambrosiana” e reafirmar os
privilégios dos ordinari, no contexto do movimento gregoriano que atentou contra as
prerrogativas nobiliárquicas (Cattaneo, 1974: 249). Assim, no início do nono século,
o arcebispo era o proprietário de todos os bens da igreja milanesa, mas algumas
décadas depois os mesmos bens estavam divididos entre o arcebispado e o cabido,
que administrava as igrejas e era remunerado em prebendas. Para o autor, essa divisão
indica como a administração episcopal vinha se ramificando em instituições menores,
regidas pelos presbíteros, dentro do corpo integral da igreja milanesa.
41 Milão dividia seu clero secular em dois grupos, às vezes rivais: a ordo maior (os ordinari) e a ordo minor – os
decumani, das demais plebes citadinas e rurais, chefiados pelos primicérios (Cattaneo, 1974: 248).
42 Desde o episcopado de Angilberto (m. 859), os milaneses haviam construído uma intensa hostilidade aos
governantes enviados pelos conquistadores francos; eles se opuseram tanto ao papa João VIII (p. 872-882)
quanto aos imperadores. A reconciliação do clero milanês com o império só veio posteriormente, sob Otão II
(r. 973-983), que apoiou o bispo local Landolfo II (m. 998), conforme narrou Arnolfo.
Ou seja, o autor converge com o que disseram Prosdocimi e Egger: nem mesmo
no grande concílio reformador carolíngio a severidade apostólica e patrística foi
mantida. Os conciliares, como os antigos padres, reinterpretaram as condições do
apostolado à luz de seu tempo. A esse respeito, Zinn asseverou:
882), de origem franca, nomeado para a sé pelos reis carolíngios e que chamou da
França o abade Liutgario e o monge Ildemaro para ajudá-lo a restaurar o cabido local
segundo a tradição iniciada por Ambrósio. Ou seja: em Milão, tanto quanto em
Orvieto e em outras várias cidades, foi preciso que os imperadores impusessem a
reforma enviando um bispo de sua cúria para ocupar a Sé. A diferença entre os dois
casos está no motivo da intervenção imperial: em Milão ele era conflituoso, em
Orvieto não: ali, como em Lucca e em Arezzo, a reforma não serviu para aplacar uma
resistência local ao governo estrangeiro, mas para trazer o clero local para a base de
apoio imperial, tornando-o, em troca do patronato, vassalo régio.
Reuni no mapa abaixo os casos colhidos na literatura a que tive acesso, a fim de
que se tenha uma visão espacial das reformas estudadas na península itálica. Mapeei
reformas que se concentraram nas planícies itálicas, tanto da Lombardia quanto da
Toscana. Quando se considera o conjunto dos casos analisados pela historiografia
aqui discutida, predominam as colegiadas, dentre as instituições reformadas. Nesse
recorte, a questão das reformas parece ligada à gestão dos recursos de cada igreja,
especialmente das terras eclesiais, cada vez mais habitadas. Dentro desses limites, as
únicas ocorrências de reforma nas montanhas apenínicas (Val di Castro e
Vallombrosa), ambas citadas por Dereine, enquadram-se no tipo que Boesch
delineou, de monaquização canonical, ocorrida em estabelecimentos propositalmente
fundados longe das cidades por reformadores que enxergaram na vida monástica o
modelo a ser seguido pelos cônegos. Esses parâmetros de reformas foram, contudo,
exceções. Observe-se também, por fim, a concentração de casos em volta de Florença
e do eixo Milão-Pádua, as regiões mais conflituosas da Itália no século XI.
5. Considerações finais
43 Mapa de minha autoria, construído no aplicativo My Maps do Google, a partir dos dados colhidos nas
referências discutidas: em vermelho estão marcadas as localidades constantes no levantamento de Dereine e
em azul as do CSM. Em preto está o caso discutido por Falconieri. A linha preta indica um trajeto hipotético
de circulação das reformas, do norte ao centro da Península. O polígono vermelho demarca a zona de atuação
dos reformistas vallombrosanos e o polígono azul estima a área de atuação dos reformistas avellanitas.
Neste texto tentei estabelecer uma abordagem que enfatiza a natureza das
reformas feitas sobre a vida do clero como dispositivos de governo quase sempre
acionados localmente, não pelos imperadores, pontífices e concílios, mas por bispos,
condes, diáconos. Eles foram destinados a alterar as formas e os direcionamentos do
exercício do poder, ou seja, de readequar a política feita na época a um panorama
novo que não se compunha só de um nível “alto” – o das mudanças dinásticas, com
consequentes deslocamentos dos centros de poder das casas francas para as
teutônicas e a emergência das “elites médias”, sediadas nos cabidos e colegiadas – mas
também do crescimento demográfico, do inchaço comunitário e da hipertrofia
eclesiástica. Deste ponto de vista, os inúmeros casos que se podem abordar – e com
os quais se pode vislumbrar um verdadeiro sistema explicativo – permitem destacar
que as reformas foram processos de base, locais, ainda que dinâmicos e circulares.
Para compreendê-las como um todo, a prosopografia é uma ferramenta analítica
importante, mas que não dá conta de todas as suas minúcias: nas cidades grandes e
bem documentadas se consegue, com ela, identificar redes clientelares, mas nas
cidades menores e mesmo nas igrejas periféricas e rurais das grandes dioceses se
desconhece a proveniência social dos clérigos, de modo que não se pode limitar o
estudo das reformas a um estudo das aristocracias44.
Referências
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44Nos cabidos e colegiadas, por todo o ocidente, o que agia não era a suposta voracidade político-econômica
das grandes aristocracias, pois nas igrejas anexas às catedrais e nas plebes suburbanas e rurais o que se
organizavam eram os pobres e o que Wickham (2015) chamou de “elites médias”, que só viriam a se tornar
uma “nova aristocracia” no decorrer do século XII. Giles Constable (1982) ofereceu uma boa análise acerca da
centralidade do valor da obediência no ambiente monástico; todavia, comparando a regra que prevaleceu nesse
ambiente, a beneditina, com aquela que predominou nos ambientes clericais e plebanos, a agostiniana, mostrei
que a obediência estava igualmente colocada para os segmentos mais baixos da população que se agremiava em
torno de uma comunidade monástica ou eclesial.
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