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ARQUEOLOGIA, patriménio material e legislacdo _ Apresentacao ‘A arqueologia — ciéncia que estuda o passado humano por meio da cultura material produzida pelos diversos grupos humanos em dife- entes periodos de tempo € localizagdes no globo ~ consiste em um conjunto te6rico, metodolégico ¢ legal que nos permite entender e debater nosso passado, para que incongruéncias nas narrativas his- tOricas sejam corrigidas. Permite ainda que processos de exclusaio de determinados grupos ou géneros sejam revistos e devidamente eluct- ‘dados, a fim de que possamos compreender esses fendmenos sociais. Entender como a arqueologia se formou como ciéncia, como ela atua e quais so as legislagdes brasileiras que tratam dessa area é 0 foco deste livro. Esses pontos sio centrais para a compreens’o no apenas de como se organiza essa ciéncia do pasado, mas para se ‘entender também que se trata de uma ciéncia multidisciplinar, ali- cergada na atuagao de uma gama enorme de outros pesquisadores que trabalham com 0 arqueélogo. £ importante frisarmos que a arqueologia, assim como as demais ciéncias sociais e humanas (como a antropologia, a geografia, a his- ‘t6ria, a ciéncia politica ¢ a sociologia, entre outras), tem capacidade reflexiva sobre pontos de nossa historia ¢ de nossa cultura, O estudo da materialidade humana é um grande ferramental analitico em uma rea em que textos escritos ou outras fontes tendem a ser omissos ‘ou tendenciosos. Assim, a ciéncia do passado pode contribuir, junto 4s demais ciéncias, para a reelaboracao de fatos histdricos e cultu- rais que, em alguns casos, foram omitidos ou trabalhados de forma inadequada. Encontramos um bom exemplo dessa discusso na obra do arque6logo Lufs Cléudio Symanski, que tem defendido a visibilidade da cultura afro-brasileira na arqueologia como forma de restituigo da meméria desse grupo escravizado até o século XIX, bem como a premente necessidade de estudo de uma cultura rica em significa- dos e que nao se perdeu com o processo de trabalho forcado a que ‘© grupo foi submetido. Objetivamos, com esta obra, apresentar ao leitor o campo da arqueologia, de forma que nfo apenas compreenda como ela surgiu ‘© como se organiza, mas, sobretudo, reconhega o potencial que tem ‘para uma critica do nosso passado e de como as narrativas sobre ele foram, em muitos casos, construfdas de forma preconceituosa ou sob © ponto de vista de grupos dominantes. Esperamos ainda demonstrar ‘que essa ciéncia nao coincide com as imagens produzidas pelo cinema, ‘em que 0 arquedlogo é um aventureiro viajante em busca de riquezas Ao nos debrucarmos sobre a cultura material pelo viés arqueo- légico, conseguimos observar ¢ analisar a interlocugéo entre o que pensado, o que € realizado no plano material e 0 que é expresso em documentos, em entrevistas e em imagens sobre © local estu- dado. Isso permite ainda a andilise de significados construidos pelos ‘grupos ao longo dos processos de manutencio de suas vidas, de sua ‘organizagao espacial € mitico-religiosa ¢, sobretudo, de como esse CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS ‘espago € negociado entre os membros desses grupos pretéritos, a fim de expressarem no s6 uma ideia geral ou modelo de etnia, grupo ‘ou “civilizago”, mas também uma apropria¢do e uma intencionali- dade nao previstas em modelos ideais pelos que ali transitam como constituintes desses agrupamentos, Assim, a arqueologia permite ‘entender os mecanismos de agéncia, bem como as expresses de sensorialidade na construgao da paisagem fisica e cultural humana, seja h4 100 anos, seja h4 10 ou 20 anos antes de nés. Para tanto, no Capitulo 1, entramos em contato com os princi- pais conceitos de arqueologia, as origens destes em contextos como ‘0s Estados Unidos da América e a Europa e as principais vertentes arqueolégicas; ou seja, vamos analisar como o pensamento nessa cigncia se organiza em um conjunto de paradigmas e postulados bem diferencidveis entre si, Por fim, demonstramos como a arqueclogia se divide em duas grandes reas, que denominamos histérica (quando hé documnentagao ou fontes que permitem um acesso a dados para a pesquisa) e pré-histérica (quando hi auséncia dessas fontes ¢ apenas ‘temos 0 contexto da escavacdo como dado). No Capitulo 2, analisamos como a cultura material, base do ‘estudo arqueologico, € conceituada ao longo do desenvolvimento dessa ciéncia, Destacamos as trés principais vertentes que se ligam as correntes epistemol6gicas mais notdveis da ciéncia do pasado. ‘Nesse capitulo, vocé poder acompanhar como a materialidade da cultura tendeu a modificar-se a0 mesmo tempo em que novas visdes ‘sobre.a arqueologia se desenvolviam. Em especial, destacamos como a capacidade de mudanga da tealidade ou a capacidade humana em alteré-la (0 que podemos entender como capacidade agencial) so de Rodrigo Pereira ‘extrema importancia para a compreensao das relagdes sociais esta- belecidas com base na cultura material. No Capitulo 3, analisamos as denominadas escolas ou vertentes do pensamento arqueolégico, destacando as trés grandes possibilidades de construgtio do conhecimento arqueol6gico: 0 histérico-cultu- yalismo, 0 processualismo e o pés-processualismo. Nesse capitulo, ‘procuramos demonstrar como a arqueologia, assim como as demais ciéncias sociais, esteve atrelada a influéncia positivista e como esse postulado foi revisto ao longo da formagao dessa ciéncia, dando lugar a formas de compreensio dos comportamentos passados da ‘hhumanidade com base em outras vertentes do pensamento social — ‘em especial quando a arqueologia se voltou para a teoria marxista ‘ou para o estruturalismo francés, No Capitulo 4, enfocamos as legislagées brasileiras que concei- tuam e protegem o patriménio arqueolégico e, em especial, as for- mas de se pesquisar esse bem nacional, o que s6 é permitido com ‘uma autorizagio do érgao superior do patriménio, @ Instituto do Patriménio Hist6rico e Artistico Nacional (Iphan). Nesse capitulo, ‘esclarecemas como deve ser elaborada a solicitagao dessa autorizagao, que, assim como a execugio, cabe apenas ao arquedlogo, juntamente ‘com uma equipe multidisciplinar. Observamos ainda como 0 Brasil ‘tem traduzido orientagdes internacionais sobre a protecao ao patri- miénio arqueolégico em forma de leis nacionais que inserem esas ‘orientagdes no conjunto do léxico nacional, ndo apenas colocando 0 Brasil como signatario de recomendagdes da Organizasao das Nayoes ‘Unidas para a Educacdo, a Ciéneia e a Cultura (Unesco), mas propi- ciando também uma efetivagdo dos acordos internacionais de que ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGAO; CONCEITOS, APLICACOES B PERSPECTIVAS (20) somos signatarios. Ao final do capitulo, procuramos esclarecer como se configuram os crimes contra a arqueologia e suas penalidades. No Capitulo 5, descrevemos como trabalham o arquedlogo e sua ‘equipe nas trés fases em que comumente dividimos a pesquisa nessa ‘rea: a de campo, a de laboratério e a de gabinete. E possivel, ainda, -compreender as principais metodologias de cada fase, com énfasenas ‘técnicas de escavacao, mas também a conceito e a aplicagao do que a legislagdo brasileira denomina educagdo patrimonial, aquele momento ‘em que a pesquisa retorna a populagao todo o conhecimento gerado com 0s projetos em arqueologia e, a0 mesmo tempo, visa subsidiar meios para que o passado, a meméria e a cultura sejam apropriados por quem é de direito. No Capitulo 6, fazemos um percurso de explanagao a respeito do desenvolvimento do homem como espécie que evolui no pla- neta Terra h4 aproximadamente 180 a 190 mil anos. Analisamos o mecanismo de evolucio das espécies tendo 0 Homo sapiens sapiens ‘como foco ¢ observamos como o desenvolvimento da cultura foi © fator decisivo para 0 sucesso do homem na conquista de todos ‘9s continentes da Terra e como ele tende a modificar o meio fisico ‘¢ ambiental em seu beneficio, tendo sempre em consideragao que ‘essas alteragGes sao culturalmente definidas pelos grupos humanos a0 longo do tempo-espago de sua existéncia. No fim da obra, as “Consideragées finais” sio uma reflexdo nao apenas sobre o que é a arqueologia, mas, especialmente sobre a capa- cidade que essa ciéncia tem de promover uma forma de nos apro- priarmos, na atualidade, da meméria e do passado—ndio de maneira ‘excludente em relagdo a determinados grupos ou considerando haver apenas uma historia oficial. A arqueologia nos traz a possibilidade de Rodrigo Pereira Ca) ‘entender o passado ¢ de reescrevé-lo sob as necessidades de igualdade, de respeito a diversidade e as concepgdes multiculturais, temas hoje tao caros 4 nossa sociedade. Enfim, a arqueologia nos traz um meio de refletir e construir saberes nfio apenas sobre 0 que fomos no passado, mas também sobre o que desejamos ser no presente e 0 que devemos repassar as geragdes futuras. ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGKO! CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS Introdu¢ao Para muitos de nés, a arqueologia é representada por um viajante e ‘pesquisador que perpassa varios continentes em busca de riquezas ‘¢ fama. O arquelogo tem sido representado nos cinemas como um aventureiro. Contud, sera essa uma representacao verdadeira do que € ser um arquedlogo e do que faz a arqueologia? Longe dessa imagem deturpada, a ciéncia do passado (archeo, do grego, antigo, ¢ logia, da mesma lingua, conhecimento) constitui, desde o século XIX, um ramo das ciéncias sociais preocupado em compreender como eram os comportamentos humanos no passado e de que forma nés, como espécie, nos desenvolvemos sobre a Terra. Desde seus primérdios, a arqueologia preocupa-se em entender como ‘08 grupos humanos, em muitos casos ja extintos, viveram e deram significado as suas vidas - elaborando complexos religiosos, edifica- ‘Ges civis e rituais, cultivando géneros alimenticios e conceituando a divisdo de géneros. Assim, a ciéncia do pasado, hoje um ramo de pesquisa maduro e ciente de suas criticas ¢ limitag6es, permite-nos a compreensio da ‘humanidade em sua diversidade de culturas e de formas de signi- ficar a vida. Esse entendimento, via de regra, tende a dar-se pela compreensio da cultura material, ou seja, de tudo aquilo que foi cons- ‘truido ou alterado pelo homem. Destacamos este segundo ponto, pois ‘ele é de extrema valia para esta finalidade da arqueologia: ohomem altera o meio a sua volta e este tende a se tornar cultura material. Para além de cerimicas, tecidos, elementos ligados a mumificagdes ‘ea outros elementos materials, a materialidade da cultura também se expressa nas formas como os grupos humanos intervieram na selecdo de espécies vegetais que foram domesticadas, animais que passaram pelo mesmo processo, e como, em outros casos, florestas, jazidas de minérios, acidentes geograficos, lagos e mares foram signi- ficados culturalmente. Assim, mesmo mantendo-se onde estilo, sio considerados cultura material pela intervencao do homem. ‘Tencionamos, nesta obra, apresentar como é criado o campo da arqueologia e como 0s elementos inerentes a ela podem ser estuda- dos, Para tanto, devemos compreender que, como qualquer ciéncia, a arqueologia se divide em escolas ou vertentes de pensamento, e cada uma delas tem reflexo direto na forma de compreender a mate- rialidade, ao mesmo tempo em que coloca o arque6logo nao apenas como um pesquisador do passado humano, mas também como um agente que pode transformar o presente e ampliar a reflexdo para a construcdo dos saberes das geragdes futuras, Necessitamos, assim, para além de conceituagdes e definigoes, compreender como 0 trabalho do arquedlogo se dé de forma con- junta a outros profissionais ~ fator que sempre deu a arqueologia um tom interdisciplinar, Assim, precisamos ter em mente a fungao social dessa area do conhecimento: trazer a baila as discuss6es ¢ a possi lidade de refletir sobre 0 passado e o que foi feito nele. Ao abordar ‘temas que foram, infelizmente, muitas vezes trabalhados de forma preconceituosa ou monofocal, com leituras multiculturais - que se CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS constituem das varias vozes do passado -, caladas por preconceitos ‘ou perseguipdes, a arqueclogia permite tanto uma desconstrugio do passado quanto sua reconstrugao de forma que a variedade dos grupos, dos géneros, das idades e dos individuos se expressem pelos ‘estudos arqueolégicos. Essa tarefa nem sempre é facil ¢ deve ser realizada com todo o instrumental disponivel. Porém, nao podemos nos esquecer da his- téria, da pedagogia, da geografia, do direito e de tantas outras areas que compGem o campo das ciéncias e que tém contribufdo para que a arqueologia desvele esse passado de forma clara e permita, em muitos casos, elucidar conflitos e repensar fatos ou pessoas como eventos ‘histéricos socialmente constituidos com determinada finalidade. ‘Nesse sentido, Lima (2011, p. 21) nos alerta: Accultura material ¢ produzida para desempenhar um papel ativo, éusada tanto para afirmar identidades quanto para dissiomulé-las, para promover mudanga social, marcar diferencas sociats, reforgar a dominagii e reafir- ‘mar resistencias, negociar pasigbes, demarcar fronteiras sociais e assim por dante, Assim, cabe a nés, que transitamos pela arqueologia, permitir que ‘essas vozes do passado sejam compreendidas nao apenas no pretérito. ‘em que foram elaboradas, mas em consonancia com 6 momento da atualidade em que sio interpretadas. A ciéncia do passado, portanto, ndo constréi saberes sobre os comportamentos pretéritos, mas os reconstréi com base no presente, permitindo o entendimento do que ‘ocorteu e do que ficou marcado no registro arqueolégico. ‘A arqueologia nao é formada por aventureiros em busca de tesou- +408, muito menos pela escavagdo de dinossauros (como muitos acre- ditam); ela € uma ciéncia que nos permite o acesso, a reflexio ¢ 0 Rodrigo Pereira (23 conhecimento sobre o passado, mas pautada no presente levando ‘em conta temas tanto politicos quanto sociais na elaboracao dese saber, ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL # LEGISLAGKO: ‘CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS. (28) ‘Neste capitulo, abordaremos a formacao da arqueologia como ciéncia autdnoma, com métodos € pressupostos tedricos, e seus principais autores. Observaremos come ela passou de mero colecionismo da cultura humana para uma ciéncia que reflete as tenses humanas pretéritas em relagio construcio de seu passado por meio da ané- lise da cultura material. Ao tratar das principais vertentes ou escolas arqueoldgicas, obje- tivamos proporcionar uma leitura do desenvolvimento dessa ciéncia no que tange as formas de percep¢ao des comportamentos humanos pretéritos e de como isso levou a uma constante inquietagio de seus teéricos para o aprimoramento do corpo conceitual dessa ci¢ncia. Adotaremos, para essa finalidade, o desenvolvimento temporal da disciplina, uma das formas mais didaticas de sua compreensao, Por meio da linha do tempo que tragamos, observaremos como. a ciéncia do passado lidou com criticas e refutagGes em seu corpo conceitual, aprimorando-se para dar conta, sobretudo, do individuo nas pesquisas. Existem outras formas de explanar os desdobramentos da arqueo- Jogia, como o desenvolvimento do conceito de cultura material, mas ‘este é inserido de forma acesséria e complementar em capitulos subse- quentes (em especial no Capitulo 2), o que nao gera prejuizo algum A percepgao da emergéncia da arqueologia no contexto das ciéncias ‘humanas na Europa e nos Estados Unidos. (1D CONCEITO DE ARQUEOLOGIA A arqueologia 6, muitas vezes, representada pela figura de um aventu- reiro em busca de riquezas de civilizagtes extintas em locais distantes Rodrigo Pereira ( 31) das cidades da Buropa ou dos Estados Unidos. Porém, longe de repre- sentar esse modelo, a arqueologia consiste na ciéncia que estuda 0 antigo ~ archeo, do grego, “antigo”, e logia, da mesma lingua, “conhe- cimento” -, em especial as atividades ou comportamentos humanos pretéritos que podem ser estudados por meio da cultura material, Em outras palavras, a arqueologia ¢ a ciéncia que estuda o homem no tempo e espago pretéritos por meio de elementos remanescentes da cultura material ~ vasos ceramicos, pontas de flechas, restos de fogueiras, edificagSes, enterramentos humanos, entre outros. Esses ‘elementos permitem inferéncias sobre como determinados grupos humanos se organizavam e concebiam sua vida em sociedade. Podemos nos perguntar: Que passado é esse? f aquele de 2,3 mil anos antes de Cristo, quando os egipcios construiram as primeiras piramides em forma de degraus (E1-Nadoury, 2010) ou aquele da con- vengio do ano zero que se refere ao nascimento de Cristo? Ou, ento, € aquele deixado por nossos avés ha 50 ou 60 anos? O arquedlogo ‘¢ professor Pedro Paulo Funari (2003), sobre essa questo do tempo, firma que a arqueologia ¢ uma ciéncia que se debruga sobre o estudo da materialidade elaborada pelas sociedades humanas como um dos aspectos de sua cultura, sem limitar-se ao caréter cronol6gico'. Assim, desde que os objetos que estamos estudando tenham sido utilizados por um grupo em qualquer tempo anterior ao nosso € permitam inferir dados sobre comportamento, géneto, politica e 1 Sobre esse debate, é interessante observar 0 que o anqueélogo norte.americano Michael Schiffer (1972) nos indica: desde que algumm materiat hurnano tenia saido de uso da sociedade (0 que ete define coma contexto sistémico} € tena sido descartado de sua titicagao (o que afirma ser o contexto arqueolGgico), toda a cultura material é, em si, ‘material arqucoldsic desde que passe por essa transformagao, Nas palavnas do proprio pesquisador: Yo padro espacial dos vestigios arqueolégicos reflete o pad espacial das atividades passadas” (Schiffer, 1972, p. 186, traducio nossa). ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGKO! ‘CONCEITOS, APLICAGOES F PERSPECTIVAS, (32) estratificago social, todo esse conjunto material sera considerado arqueol6gico. Assim, a arqueologia pode e deve se debrugar sobre ‘estudos.a respeito de populagdes pré-histricas (tema que abordamos mais adiante neste livro) ou mesmo sobre as populagSes que forma- ram nossa cidade ou bairro hé $0 ou 100 anos. Para a arqueologia, interessa observar como a cultura material humana foi utilizada e como representa as formas de pensar, de agit e de conceber 0 mundo. Mas o que € cultura material? O pes- quisador James Deetz (1977) indica que esse termo corresponde a qualquer segmento do meio fisico modificado por comportamentos culturalmente determinados. Assim, nfo apenas os objetos produ- zidos por um grupo sao cultura material, mas até mesmo as plantas cultivadas por um grupo na Pré-Histéria ou os animais domesticados pelos homens ao longo da trajet6ria humana séo expresses dessa materialidade. Resumidamente, podemos entender que tudo 0 que o homem toca e tudo aquilo em que interfere torna-se cultura material, (1.2) ORIGENS DA ARQUEOLOGIA: po sécuLo XIX ao XX1 A arqueologia é uma ciéncia relativamente recente. Apesar de o ‘homem sempre ter tido 0 habito de colecionar objetos do passado como uma forma de rememorar € conhecer quem veio antes de si, 0 estudo sistematico desse passado por meio de métodos e técnicas de compreensdo da cultura material € algo que remonta ao século XVII, no contexto do que.a histéria chama de Perfodo das Revolugbes. Rodrigo Pereira (3) Essa fase historica caracteriza-se na Europa e na América do Norte por processos de quebra da estrutura politica e social vigente?, Para o arque6logo canadense Bruce Graham Trigger, em sua clas- sica obra Histéria do pensamento arqueoldgico (2004), hé uma relagtio entre a emergéncia da arqueologia e a burguesia. Como esta, em meio as revolugdes que assolavam a Europa, nao tinha signos de legitimidade - como brasdes, escudos ou titulos de nobreza -, mui- ‘tos homens ricos decidiram se legitimar pelos simbolos que existiam antes da formacao da nobreza europeia. Assim, 0 perfodo hist6rico ‘greco-romano foi considerado ideal para a busca por esses elementos, Acestética, as artes, os padres ¢ as formas desse amplo e impreciso periodo hist6rico fizeram com que muitos estudos fossem empreendi- dos no intuito nao apenas de legitimar a presenca da burguesia, mas também de oferecer elementos imagéticos para a construgio de suas identidades. Contudo, como veremos a seguir, a arqueologia demora- ria mais cem anos para efetivar-se como ciéncia, ou seja, com objeto ‘¢ métodos proprios, distanciando-se da historia ou da antropologia ‘¢ definindo-se como campo auténomo do conhecimento. Essa definigao de arqueoiogia deu-se, conforme o arquedlogo portugués Nuno Ferreira Bicho (2012), pela definigio do homem 2 Sobre esse period, ¢ interessante observar como 0 historiador Eric Hobsbawm o define em sua obra A era das RevolugBes ~ 1789-1848: como o perfodo em que a Revolugdo Francesa ¢ a Reveludo Industrial transformaram 0 cenério mural ao quebrarrn as ‘estruturas poitcas ¢econémicas vigentes até entdo. ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGAO: CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS. (34) W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * no tempo: a constatacio: da existéncia da Pré-Histéria humana (aquela sem escrita e ligada aos primérdios dos grupos humanos, ‘como cacadores-coletores-pescadores) e 0 surgimento da escrita, da agricultura eda sedentarizagao, do perioddo histérico do Homo sapiens ‘Aa mesmo tempo, aelaboracao de técnicas de estudo arqueoligico ~ ‘como as seriaches temporals ¢ de materiais, as tipologias de pecas ¢ a construgdo de padres de cultura, por exemplo— deu o tom cien- tifico & arqueologia (1.3) PRINCIPAIS ESCOLAS ARQUEOLOGICAS: COLECIONISMO, HISTORICO-CULTURALISMO, PROCESSUALISMO E. POS-PROCESSUALISMO Aarqueologia, come outras citncias socials, pode ser compreendida [por meio de escolas, ou seja, por um conjunto de postulados cienti- ficos ¢ metodalégicos que vigararam em determinado periodo. Esse agrupamento nao: apenas facilita 0 entendimento da evolugso da disciplina da ciéncia, mas também permite-nos observar como a lencia do-antigo fol, ¢ ainda é, influenciada pela sociedade ¢ pelos sdebatese fatos que nela ocorrem. Assim, é interessante observarmos a Aivisdo proposta por arquedlogos como Trigger (2004) ¢ Bicho (2012). AA Figura 1.1 apresenta as principais divisoes da arqueologia, tendo ‘como mattiz de compreensie sua temporalidade, W Perlodo Arcaion > ¥ (J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Fgura 1.1 ~ Principals excolas ou vertentes arqueoldgicas 1980 até a mualldade Processualisma Fim do séenio Xike 1960488 4 Inicio do atualldade século XX Do Renascimen. to até a Revolu- so Francesa ‘Colecionismo Gabinetes de ‘curiosidades Mistériea-culeu- Poe Processus salismo ‘ism. ‘Quando classificamos, estamos operando uma repartigao em “um conjunto de objetos (quaisquer que sejam) em classes coordenadas ‘ou subordinadas, utilizando critérios oportunamente escolhidos” (Abbagnano, 2003, p. 147) — ou seja, tornamos légico um conjunto de saberes para seu estudo. Essas classificagfies nes permite gerar ‘sonhecimentos teéricos ¢ préticos (metodologias) para a instrumen- talizacio em determinada drea (em nosso caso, a arqueologia). Tal conhecimento consiste em uma “técnica de verlficagao [em que] sdeve-se entender qualquer procedimento que possibilite a descri 80, 0 célculo ou a previsto controlivel de um objeto” (Abbagnano, 2003, p. 174), Para o fildsofo Karl R. Popper (1902-1994), em sua obra A Kieica da pesquisa clentifica, o objetivo da ciénela — ¢, por consequéncia, do conhecimento e de sua organizacio — "é alcangar teorias sem- pre mais verossimeis, sempre mais proximas da verdade” (Popper, citado por Reale; Antiseri, 1991, p, 1027). Para o filésofo, a verdade ‘€ um ideal regulador em que os erros passados sao substituidos por novos postulados, mais adequados aos fatos estudados. Aqui niio ha ‘um ideal de progresso linear do saber, pols Popper acreditava que a cigncia poderia estagnar-se ou mesmo cair em erro. Assim, conhecer as vertentes arqueolégicas é, sobretudo, conhecer esse movimento intrinseco ao saber humano (Reale; Antiseri, 1991) J4 para Thomas S. Kuhn (1922-1996), em sua obra A estrutura das revolugbes cientificas (1962), a ciéncia se organiza em paradigmas que ‘operam em determinado perfodo de tempo com a fungao de expli- car a realidade por meio de modelos de problemas e solugdes aceita- veis pela academia. Caso esse paradigma encontre algum problema, haveré uma “revolugio" no interior do campo académico que o levara a ser refutado ou adequado a nova realidade, em que € chamado a responder sobre como conhecer a realidade (Reale; Antiseri, 1991). Para nosso conhecimento em arqueologia, € interessante entender- mos que, em certos casos, houve revolugdes cientificas que levaram determinados paradigmas a serem contestados, deixados de lado ou mesmo adaptados as novas perspectivas de pesquisa da ciéncia do pasado. Como veremos no Capitulo 3, essas escolas ou vertentes s80 as responsiveis pelas diversas leituras do material arqueolégico na atua- lidade. Mas, afinal, por que agrupé-las em perspectivas te6ricas e ‘temporais? A organizagao nao apenas torna mais facil a compreenstio da evolugio de conceitos e do surgimento de autores, mas também ‘€ essencial para a compreensao da forma como a arqueologia, como ciéncia social, é influenciada pela sociedade em sua constituigao. Rodrigo Pereira ( 37 ) ‘Conforme defende o professor e arquedlogo Pedro Paulo Funari (2011, p-84): “a arqueologia [surgiu] como uma maneira de se disponibilizar as fontes escritas sobre o pasado e de complementar as informagdes -existentes com evidéncias materiais sem escrita”, Portanto, conhecer as vertentes arqueolégicas em suas diferentes formas 6 compreender ‘como essa disponibilizagao tem se organizado ao longo do desenvol- ‘viento da ciéncia do passado. Assim, enquanto o histérico-culturalismo utilizava-se do que ‘Trigger (2004) denominava efeito Pompeia ~ quando se acreditava que o simples limpar da pega informaria todo o significado dela na sociedade em que foi produzida -, 0 processualismo tentou criar Jeis gerais em que essa mesma cultura material fosse uma resposta adaptativa do grupo ao meio. Por fim, a escola pés-processualista indicou que esse mesmo objeto era, na verdade, um texto a ser lide em uma relacdo dialética entre o constituido e 0 constituinte do ‘objeto. Assim, por exemplo, quando a arqueologia se debruga sobre ‘0 legado material da escravidao, faz isso nao apenas pelo interesse no conhecimente dos africanos ¢ seus descendentes come escravos no Brasil, mas também respondendo a uma demanda da sociedade por empoderamento e legitimago das politicas culturais e sociais de um grupo diante de processos de intolerdincia ou racismo. Entender as escolas em suas diferentes expressdes ¢ compreen- der a propria dinamica da relacao entre a academia e a sociedade e © modo como uma pode influenciar a outra. Da mesma forma, nos situa nos postulados que veremos no Capitulo 3, em especial porque alguns foram fortemente utilizados para a legitimagio da ciéncia do passado, enquanto outros, em diferentes contextos socials e tempo- rais do século XX, foram deixados de lado devido a novos anseios da academia e da propria sociedade. ARQUEOLOGIA, FATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGHO: CONCEITOS, APLICACOES F PERSPECTIVAS (38) (1.4) ARQUEOLOGIA PRE-HISTORICA E HISTORICA Se toda reminiscéncia material humana € arqueolégica, por que costumamos dividir a arqueologia em pré-histérica ¢ hist6rica? Indubitavelmente, a questao cronol6gica € 0 grande marco divisor dos dois campos desse saber: o primeizo refere-se a um perfodo sem ‘escrita, em que © proprio contexto arqueologico é a fonte de dados para a pesquisa; ¢ 0 segundo, jé contando com fontes escritas ¢ ima- -géticas (mapas, fotos e outros), utiliza tais acervos para auxiliar na construcdo do conhecimento acerca do passado. Contudo, ¢ vital aprofundarmos esse debate, j4 que ciéncias como a histéria, a antropologia, a sociologia e a geografia utilizam-se des- ses termos. Quais so 0s limites por que os utilizamos? Debatemos ‘esses pontos nesta seco. A arqueologia pré-hist6rica caracteriza-se, basicamente, pelo estudo de Muitas formas culturais [desaparecidas} completamente, mas as cultwras por eles criadas ainda podlens ser reconstituidas pelos estudas cientificas conduzidos dos elementos remanescentes — construgbes, equipamentos variados, utensflios, armas, diferentes modaltdades de expressao artfstica, adornos, priticas funerdrias — preservados no terreno em quase todas as partes do mundo, (Faria, 2000, p. 196) © antropélogo Castro Faria da A Pré-Histéria o tom de “desa- Pparecimento”; assim, a arqueologia pré-historica seria 0 campo de ‘estudo do pasado de grupos que nao mais existem no planeta, mas deixaram sua presenga registrada por sua cultura material. Se tomar- mos como exemplo as populagdes sambaquieitas que habitaram a Rodrigo Pereira ( 39) costa brasileira entre 8 mil e 2 mil anos antes do presente (Souza; Lima; Silva, 2011), 0 termo arqueologia pré-histérica esté corretamente aplicado. Para as dataces realizadas por meio da anilise do C14, sabemos que o “presente” se refere a década de 1950, periodo em que a técnica conseguiu criar parametros confidveis para a contabilizacao desse is6- ‘topo de carbono em materiais que o continham. Assim, a expresso antes do presente (AP) no se refere aos termos antes de Cristo (a.C.) e depois de Cristo (4.C.). De forma semelhante, 0 arquedlogo Lewis Binford (1983a, p. 20, ‘traclugdo nossa) nos apresenta o seguinte quadro interpretativo sobre a arqueologia pré-histdrica: O desafio que a arqueotogia oferece, entito, é tornar observacbes.contem- pordneas de objetos materials estéticos «, literalmente, traduzi-los em afirmacées sobre a dindmica das formas de vida anteriores e sobre as condigbes nas quals as coisas que sobreviveram do passado sobreviveram ‘para serem vistas por n6s [..]. Assim, podemos entender que a arquealogia pré-historica se ocupa da anilise e da descrigo das aces e dos comportamentos humanos ‘conhecidos por meios no escritos, ou seja, em contextos deposicio- nais de material arqueolégico sem registros escritos, como crdnicas, ‘poemas, bibliogzafias ou artigos cientificos, £ importante salientar que o modelo e as teorias sobre a Pré-Histéria desenvolvidos na Europa nao consideravam grupos fora do contexto do povoamento do continente europeu (como a Asia, a Africa e as Américas). Dessa forma, se tentarmos aplicar os ‘conceitos a realidade brasileira, por exemplo, o que consideraremos ‘como pré-histérico? Apenas o que veio antes do elemento colonizador ARQUEOLOGIA, PATRIMONIO MATERIAL E LEGISLAGAO; CONCEITOS, APLICACOES B PERSPECTIVAS (40) W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * ‘europeu? Para 0 caso de nosso pais, é importante ressaltar que esses modelos sofreram adaptag0es, pois sua utillzagio literal nao com- preendia a dinimica da ocupagio do territdrio. Assim, a Pré-HistGria brasileira inicia-se coma ocupagaio de te: t6rio por meio de migragbes de populagdes advindas da transposica0 do Estreito de Bering, em torno de 10-mil anos AP (Funarl; Noell, 2012). 0 paleoindio brasileiro ocupou.os territérios da América do Sul de uma forma muito répida no sentido norte-sul do continente ‘e em todo seu litoral. Como testemunho dessa ocupagao, temos um ‘ctinlo descoberto no municipio de Lagoa Santa (MG), denominado Luzia (por se tratar de uma mulher) ¢ que tem a datagiode, aproxi- madamente, 11.680 anos AP (Funari; Noelli, 2012). As pinturas rupestres ds Serra da Capivara ¢ 05 monticulos de ‘conchas utilizados como forma de demarcagSo de espago e local de sepultamento, que denominamos sambaguls, so exemplos dessas populagdes pré-histéricas no Brasil} A vertente da arqueologia hist6rica, quanto a adogio da que ela ‘caracteriza como materiais, analisa “os dominios nos quais 0 regis- tro documental ¢ falho ou extremamente tendencioso” (Gheno; Machado, 2013, p. 166). Essa fol parcialmente a posiglo que 4 Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) expressou em duas minu- tas entre as décadas de 1990 2000, Contudo, no houve publicagao ‘nem mesmo uma unanimidade quanto ao que era a arqueologia histérica ¢ o material arqueoldgico desse cunho. Para wma ecura mais aprofndadia sobre o tna, idicaracs a obra de Pore Paulo Punarie Francisco Siva Noel, Pré-Mst6rla do Mra, publicada em 2012 consid tuo eat de refertmcla para ests Irate tema a Pa. W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Se adotarmos duas perspectivasteéricas de forma conjunta, pode- vemos ter uma caracterizagao para o que seja a cultura material em contextos de arqueologia histérica: Ema relagdo as fetes tizatas na Argueclogia Histérica, Orser fr. (1992) problematiza-as com maior énfase © em maior mimero. Segundo este anqueslogo, na Arqueologla Histérlea& comm o estado de artfitos, estrus tures, documentos escrites, mapas, péntaras,desenhos, fos, histéria € testemaenbes ons, alien das transformnayics ra isageen decorventes dias ‘aces dos grupos fuumanas. (Geno; Machado, 2013, p. 166) A cultara material ¢ prodsida para desempenas wm papel ative, &usada tanto pana afiraridentidades quanto para dissimuld-las, para promover ‘mudanca social, marcas diferengas socials, reforcar a slominacioe reat ‘mar resistencias, negociar posicdes, emarcar fronteiras soclas ¢ axsime pordiante, (Lima, 2011, p. Se, portanto, adotarmos que a arqueclogia historica caracteriza-se [pelo registro da materiatidade que os grupos deixaram associados a fontes escritas ¢ arais, ao mesmo tempo em que esse registra tende a ser lide ma pauta politica em que a arqueologia esté Inserida, chega- mos conclusdo, conforme Funari (2003), de que esta se caracteriza ‘como uma citncia que se debruga sobre o estudo da materlalidade slaborada pelas sociedades humanas como um dos aspectos de sua ‘cultura ~ seja ela material, seja imaterial -, sem limitarse ao caréter cronologico. Assim, pouco importa se os materiais analisados sfo recentes (com pouco mais de $0 anos) ou mats antigos (com mais de cem anos). © material deve sair do contexto sisttmico para. contexto arqueol6gico, ou seja, sair do seio da sociedade ¢ transformar-se em W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * resquicio arquealigica; dessa forma, todo ¢ qualquer objeto que [poss promover Inferéncia sobre comportamentos pretézitos pode ser considerado material anqueol6gico (Schiffer, 1972). Sintese Ap6s aleitura deste capitulo, o.que pademos concluit? Inicialmente devemos fixar que, como qualquer ciéncia social e humana, aarqueo- logia desenvolveu-se sempre atrelada sos grandes debates sobre o hhomem como objeto clentifico e, sobretudo, ds maneiras de ver seu ppassado ¢ de compreendé-lo independentemente de postulados reli sglosos = esta ciéncia jamais ultrapassou os limites éticos de respeito, Conforme observamos, fol necessérla a elaboragdo de conceltos ‘como 0 da arqueologia historica e pré-historica para que se pudesse pensar 0 pasado humano como mais alargado do que aquele que se tinha como base nos séculos XVIIL-e XIX. Esse fato € 0 principal onto aser destacado: a arqueologia precisou ser pensada como uma clencla que constantemente refletia sobre o passado humano esobre as maneiras de analisé+lo, As “revolugées" pelas quals 0 concelto de arqueologla passou, ‘como vimos ao observar Popper e Kulin, nos dao a ideia de que era ing a0s primeiros cientistas que se debrugaram sobre © pas- sado humano descobrir as formas de acessi-lo ¢ reconstitul-lo a luz dda cléncia de sua época. Assim, a arqueologia earacteriza.se, na atualidade e em sua matu- ridade cientifica, comoa ciéncia que estuda o passado humano tendo ‘como eixos os conceitos de tempo € espayo, entendendo que ess tempo pode ser muito recuado quanto se referir ao dia de ontem. Uma cigncia que se define como responsivel pelo passade material Eee eee € G@ © uninter.bv3.digitalpages.com.br. wv Se Cultura material: a base de trabalho do arquedlogo W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * impossivel, na arqueologia, no trabalharmos com a materialidade da cultura, Esse ponto, alls, € 0 que a diferencia de outras clén- clas ~ come a antropologia, que tende a observar a cultura pelos seus aspectos simbélicos, A materialidade pretérita dos grupos humanos, sem a qual nao é possivel pensar em uma pesquisa arqueolégica’, é ‘objeto central da ciéncia do passado, Antes de entendermos 0 con- cceito de cultura material, ¢ valido fazer uma reflexio introdutdria: Iboa parte dos aspects socials — se no todos eles - estd representada ‘ou materiatizada em objetos ou na arquitetura. O campo ideacional ‘encontra neles uma forma de a sociedade exprimir-se permitir que .geragdes futuras tenham acesso.s formas de pensamento de grupos anteriores a nds. Um bom exemplo que podemos dar sio os cemitérios. Até meados. do século XIX, as pessoas eram enterradas dentro das igrejas = nos altares, nas laterals ou mesmo alocando as ossadas em nichos nas paredes. Com as leis sanitaristas do século XIX, aideia de doenga ¢ ‘contaminagdo levou a formagdo de cennitérios para receberem esses ‘corpos mortos, pois eles poderiam expor a populagto a doengas Segundo autores como Tania Andrade Lima (1994) ¢ Antonio Matta (2009), as diferenciagbes soctais dos vivos eram replicadas no mundo dos mortos. Fanemat urn resale nete pono pars Mfrenctar a arqucograia da anqusslogla A prea #maera desig fo material anqurogica, em acrid de cmbecimentos mals aprofundadss sabre o passed, A arqueclora, por va vez, cunsists no apenas tna descrip, mas ma anise e na ria de hips salve a cult vmaterkal pret ite os grupos que a offlsaraum, Exist ala “psrwdoextnkis” unpuroléicos que, sescrevendo as paras, moo faze de forma satisatia on por metos gue cheque & uma desrigo que camemple os comportamentorpassadas dos grupos, Alertames aot reesaadliremtarto¢ a culado gue se deve tet ao realizar ure pegs W Periodo Arceica YG uninterbvdigi: x "EP AVAUNIVIRTUS € CG © uninterbv3.digitalpages.com.br/ sip te Outro exemplo que podemos dar é a ideia de que, para os mor- tos, @ tempo fol encerrado ou ocorreu a finitude do tempo da vida, Esses simbolos sio-visivels, por exemplo, em ampulhetas aladas que representam essa ideia, A Figura 2.1 apresenta uma dessas ampulhe- tas presente no Cemitério Sao Joao Batista, no bairro. de Botafogo, mo Rio de Jancira, Figura 2.1 ~ Amputheta em lipide no Cemitério S60 Jodo Batista Pela aniilise da materialidade que o proprio entalhe apresenta, percebemos como a ideia de finitude era um tema que preocupava a sociedade carloca oltacentista, © estudo desse “medo”, como |é afirmou Jean Delumeau em sua obra Histéria clo: medo no Ocidente 1300-1800: uma cidaute sitiada (2009), permite-nos realizar boas int réncias sobre aspectos ideacionats do medo e, de forma muito espe- cffica interessante, do medo da morte. Contud, a cultura material, ‘como a lépide ma Figuea 2.1, comprova fisicamente sua expresso ou representacio pela sociedade. AMIEOLOGIA, PATRIMOMIO MATERIAL B LEUESLACAO: « 30) le W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Podemos pereeber, pela Figura 2.1, uma situacéo que deve ser ‘lara 4 nossa mente: nao é apenas a arqueologla que realiza estudos sde cultura material (Milles, 1987). A antropologia, a histéria e mesmo ‘outras eifneias socials e humanas tém na materialidade uma fonte de objetos de estudo, como a obra de Bill Bryson, Em casa: uma breve ‘historia da vida doméstica (2011), em que o autor aborda a casa como ‘cultura material e realiza um estuclo dos cOmodos e de seus objetos 40 longo da histéria da Europa € da América do Norte. Contudo, conforme ja discutimos, ¢ na arqueologia que ela ganha centralidade, devido & propria formagto da ciéncia do passado. Mas como definir 0 que é cultura material? Para Meneses (1983, p. 112), um dos autores cléssicos do tema no Brasil: Por euttura material poderiamas entender aquelesegrnento do meio isco que ¢soctalmente apropeiade pete horsem. Por apropriagao saci comm pressupor que o home intervém, made, dé forma a elementos do meio Fsico, segundo propésitos e normas culturais. Essa aco, portant, no 4 aleatéria, casual, Individual, mas se allnha conforme padres, entre (0 quats se incluem os objetivos e projetos. Assim, o concelto pode tito ranger arteptes,estratinas, modificaoes da peisagem, come coikas anima (um sebe, um animal dornéstico), e, tamibém, 0 priprio corp, ‘ra maida em que ele passivel desse tipo de manipulucde (deformasées, metitagbes, salutes) ou, ainda, a seus arranjosespactats (um desfile ‘illita, uma cerimdnia ltigica) Essa aproprlagao que o homem faz do melo é um conceito recor: rente, pois esta presente também em Deets. (1977), que atribui esse tom ao seu concelto de cultura material. Segundo esce autor, longe de ser um conjunto de objetos sem relacto com a humanidade, a cultura material guarda em si a eapacidade de “biografrar” a vida W Perlodo Arcaion > ¥ (J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * de determinado objeto, permitindo assim seu estudo pela ciéncia Essa perspectiva, por exemplo, advém dos estudos antropologicas de Arjun Appadurai (2008) e demonstra o que acabamos de afirmar. Nesse sentido, qual ¢ a relagio entre a arqueologia © 0 estudo da cultura material? A anise [Ja cultura matertal pelo vide anquealigleo[..] permite urna Ieitwra da tnterlocucaa entre o que é pensade, 0 que é realizado no plano material €0 que € expresso em documentos, entrevistas ¢ imagens sobre aquete local fou sociedad ou conjunto material). Permite ainda @ anise de significados destes lugares |_.J construidos pelas grupos ao lego das processas de manutenso [Je sobretude, de como esta matertalidade megociada entre os membros [u[, no intito de que expressem mais ia geal ow modetoj..], mas tamisém uma apropriagao e Jntenconalidade nao prevsta em models ideals peles que a transtaam enguanta memoros. Permite entender as mecanismos de agencia, bem camo as expresses de sensorial dade na constraao cla paisageme fica e ‘udeural, (Peretea, 2015b, p31) Agora passamos as segties em que vamos analisar como a cultura material pode ser estudada e entendida sob diferentes leituras dentro das vertentes arqueolégicas que jé observamos no Capitulo 1 ¢ nas ‘quais nos aprofundaremos no Capttulo 3. W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * py CULTURA MATERIAL COMO REFLEXO (HISTORICO-CULTURALISMO) Muito influenciada pela tencéncia histérico-culturalista, essa ver tente de leitura tem como pressuposto a cultura material como reflexo passive da sociedade ou do grupo estudado, Entender uma pega [por meio de um conjunto de outras da mesma espécie (conceito de serlacao de tipologia, come veremos no Capitulo 3), & entender a cultura como um todo. Assim, se a cultura material sofre wariagoes, ‘estas indicam que hd a presenca de diferentes culturas, Nessa leitura, ‘0 migracionismo ¢ o difusionismo associados as anilises permite ‘compreender as diferentes formas como as sociedades elaboram sua ‘cultura material. © primeiro terme refere-se ao movimento de powos sobre a terra ¢, com isso, ao trdnsito de cultura material nfo apenas do ‘grupo, mas entre grupos — ou sefa, um grupo poderia aprender com ‘outroa elaborar ou utilizar um aspectoda cultura material. Quando lusamos este segundo ponto, referimo-nos ao que seja @ difusionismne. Para 0 arqueélogo inglés Gordon Childe (1962), era possivel determinar uma ordenago A cultura material dentro das socieda- des passadas, o que permitia a determinagao.do que ele denominou culturas anqueolégicas. Cada wma delas apresentava tragos definidores caracteristicas que as diferenclavam entre si. € desse modelo que ‘conhecemos, por exemplo, a definigde hoje muito criticada de uma ‘altura tup-guaron, na qual se insere toda uma varledade de povos pré-colombianos ¢ jf em contato com europeus quanto determina- sdos padides de sepultamento (em uenas, por exemplo). Essa defini- ‘slo estabelecia a nao existéncia de diferencas entre as varias etnias Ibrasileiras quanto ao trate-e & elaboracdo da cultura material, W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Se os artefatos so mero refiexo da cultura, basta limpé-los ¢, reti- rando “a poeira do tempo" (Lima, 2011, p. 13), realizar a interpretag30 da cultura material. No campo arquealégico, costuma-sedenominar fesse processo de eftito Pompeia, numa referencia as escavagbes feitas ‘durante 0 século XIX, na cidade romana destruida pelo Vestivio (em 79 A.C), Nesse viés, havia maior interesse pelas pecas do que pelo ‘conhecimento acerca do grupo que all? residia. Conitudo, essa forma de interpretacio do material arqueolégicn tormou-se a base para 0 trabalho que todo pesquisacior da drea re liza até hole de tal forma que suas rotinas estabelecias enn laboratér acabarum por constitur o micico da pritica arqueolérica: desde a identificarto da ‘matéria-prima, sua origem ¢ propriedades: do mado coma so prouries cs artefares; da ua frngdes¢ dos usas a que eles forum submetidos, dand- lise des seus atibutos Fisica, design ¢ estilo, sua ondenaio em tiplegias, datacoes ¢, evertuatmente, dependend das motivarbex ¢ inctinagbex do pesqulsador,seriagdes. Os resultados desses procedimentos téenicos ¢ ‘meteioigicos so, em seat, direcionadox pasa a constoucio de categorias espae-temporals, conmofases «tii, € para & tribute dos bchas 4 grupos especificos. Em alguns casos, so inseridos em argumentos ¢ problemas mals amplos,visande alimmentay, com os novos stadus obtides, «a “ecomstrugies” do passada. (Lima, 2011, p. 14) Sobwe ese interesse a reset do pasado sem grandes desfobamentos interpretatios ( hnteressante obscrvar camo essa podticaera reazad, por exemple por Dom Pedra I sua eposa, a Tpersrie Teresa Cristina, Ela ture camsigo coms te pana seu case ‘mero ue série de pes reo-romanass que carapdernhojeo aerve do Museu Nacional da Cinta da Boa Vista ro Riad Jeeio. A obva da enrol ¢historiadore Lie W Schwarce, As barbas do Imperador: D, Pedro Ml, tim monares nos teSipios (1999), ‘mar wma cela ands vobne ese ft hist. W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Isso nos revela que, apesar de ultrapassada do ponto de vista tedrico, a visdo-da cultura material como um reflexo da sociedade pretérita associada ao histérico-culturalismo permitiu a elaboracio de metodologias de compreensio do material arqueoligico quanto forma, A fungio e aos tipos, o que até hoje ¢ essencial para os estu- das arqueolégicos, (2.2) CULTURA MATERIAL COMO RESPOSTA ADAPTATIVA (PROCESSUALISMQ) ‘Observar a cultura material com base em uma visio neoevolucionista, ‘em. que aquela ¢ vista como um meio de tornar os grupos humanos mais aptos 4 sobrevivéncla a0 meio, fol a contribuso do processua~ lismo aos estudos arqueolégicos da materialidade, Como veremos no préximo capitulo, essa matriz arquealégica norte-americana objeti- ‘vou atribuir maior clentificismno a arqueologia e, com ele, obviamente, ‘uma nova visto sobre a cultura material Sendo uma resposta ao meio, a cultura material expressa uma das formas de adaptagdo e de evolugo dos grupos humanos sobre 4 Terra. Nessa letura, ela € extrassomitica aos individuos, ou sefa, €um Indicio da adaptagso-da espécte humana as condigdes ambientais em que est inserida, Essa cultura encontra-se “fora” do individuo ¢ ¢ percebida na sociedade como ente superior as pessoas, Obviamente, sob essa perspectiva, os sujeitos “saem” da leitura, pois © que importa ¢ mais © grupo do que quem o forma. Assim, ¢ necessirio conhecer 0s elementos que compdema sistemstica social, pois qualquer alteracdo em um aspecto desta (seja aeconomia, seja a politica, por exemplo) vai se refletirem mucianga na cultura material W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Como resposta adaptativa, a cultura material concentra-se na anilise dos aspectos tecnologicos e econdmicos e descarta a poss lidade da leitura de fragdes do campo kdeacianal da peca. Poderiamos ‘entender que so os aspectos teenolégicos que fazem a cultura mate- tial modificarse e ter usos sociais. Assim, poderfamos fazer uma analogia para a compreensio: se tivermos um computador em for- mato de notebook com uma meméria de $0 MB € um computador de mesa com meméria de SOD TB que oeupe boa parte de seu eseri- que € mais interessante: © design do notebook ow o enorme PC? Pela leltura processual, 0s aspectos da “beleza", por exemplo, seriam desconsiderados, pois sio ideacionais em demasiado para a ‘compreensilo. Contudo, o aspecto tecnoligico do PC de mesa seria ‘sconsiderado evolutivamente mals apto-as nossas necessidades como pesquisadores. Assim, fica claro que, no processualismo aplicado & ‘cultura material, o que a faz evoluir€ ser utilizada pelos grupos nao a beleza, mas a funcionalibilidade da pega. Por essa leltura, no cabem mais ao migracionismo ¢ ao difu- sionismo os vetotes de mudanga nos padres da cultura material, mas sim ao meio ambiente ¢ & sua influéneia sobre o grupo. Se a cultura muda, Isso ¢ resultado de uma adaptago ou de uma evolu. ‘sfo do grupo em relagio ao ecossistema. Por esse motivo é que seus aspectos ideacionais foram deixados de lado, pols seria imposs(vel pprecisar como o meio teria influenciado as formas de pensar os obje- tos, cabendo apenas entendé-los (sem analisé-los) nesse contextode imter-relagso, Assim, € sua fungo € a perpetuacio de sua utilidade que fazem ‘com que determinado elemento da cultura material eja reproduzido e tena uma longa existéncia temporal dentro do grupo. Essa existén- la nos leva a conseguir estabelecer “padroes de cultura’, conforme W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * pastula Binford (1983a). Posto dessa maneica, o registro arquelégico seria, entao, as padronizagbes da cultura por sua funcionalidade Para Lima (2011, p. 15-16): [No 86 a decisdo de fgnorar aspactos Hdeacionals e simbéices maitilos a cultura, esithacada em subsistema, com ¢foco ma econcmia,subsistincia etecnolegha obscurecendlo 0s demas, como a tentatlva de explanar a comm plexidade do comportamento kuamano por racio de modelos matematices no foram suficientemente convincentes* autora chama a atencio para a visio estdtica que cultura mate. tal teve nessa perspectiva e para o fato de que “essa perspectiva reduziuo individuo a um autémato, controlado pelo sistema” (Lima, 2011, p. 16), Surgla, dessa forma, a necessidade de se reinserir 0 individuo ¢ suas ages nos estudos da cultura material. Tornava-se premente trazer a agéncia humana para a relago com a materialidade e, obvia- mente, adequar @ foce analitico, deslocando-o da sociedade para os sujettos. Ao mesmo tempo, era necessirio trazer de volta o campo ideacional, jf que este exprime no apenas a forma coma pensavam ‘0s grupos pretéritos, mas também a maneira como suas ideias e seus simbolismos eram representados por sua cultura (2.3) CULTURA MATERIAL COMO TEXTO (POS-PROCESSUALISMO) ‘Com 0 abjetivo de nae negar a fungio adaptativa da cultura material .¢ suas relacdes com os sistemas sociais, os denominados pés-proces- sualistas, na década de 1980, deram uma guinada nos estudos acerca W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * ‘da materialidade. Conforme informa o arquedlogo Christopher Tilley (2008), a introduse dos pressupostos marxistas, da semiGtica e do estruturalismo de Claude Lévi-Strauss (mesmo este {4 estando deta: saclo em rela¢ioao panorama cientifico das ciéncias sociais) permitin a essa escola arqueolégica alterar a compreensio da materialidade humana passada. Esse navo aporte possibilitou & arqueologia obser- var os individuos como agentes € constatar que, se estes atuam na Sociedade, obviamente a cultura material legitima posicbes sociais, reforga conceitos de género e explicita situagOes politieas. Um bom exemplo para analisarmas esses postulados pode ser encontrado: no estucla dos arquedlagos brasileiros Luis Carlos Pereira Symanski e Marcos André Torres de Souza (2007): ao veri. ficarem © registro arqueolégico de escravos na regiso-da Chapada dos Gulmardes (MT), os pesquisadores observaram como esse grupo elaborava ages refletidas na cultura material que perpetuavam no apenas suas crengas, mas também a necessidade de conhecer e dar visibilidade & cultura material escrava. Nas palavras dos autores, ‘a questo da visibilidade dos grupos escravos no registro anquealé- gico vincula-se, {undamentalmente, & nossa habilidade em diagnos- ticar as evidenelas a eles ligados” (Symanski; Souza, 2007, p. 215) No exemplo, podemos observar outro postulado dessa visio da ‘cultura material: ela nio tem significado inerente, mas sim na inter pretacio ¢ na elaboracio da pesquisa do arquediogo, tendo em vista a agenda politica ¢ social da atualidade, Assim, a “visibilidade do registro arqueolOgico negro” (Symanskt; Souza, 2007) ecoa ndo como um estudo descontextualizado da situagio brasileira, mas inscre-se nna valorizagdo da cultura e religi3o afro-brasileira apregoada pela Lei, 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (Brasil, 2003). W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * A cultura material passa a ser interpretada como um texto a ser ldo no presente e pelo presente, Ela tem valor e mem@riadeempode- ramento ¢ de debate de politicas culturais na relagio que o patrim- niio arqueol6gico estabelece com os grupos atuals, senda ndo.apenas seu passado e identidade, mas também uma das formas de exercer a cidadania de determinade grupo”, ‘Se a materialidade ¢ um texto, obviamente haverd diversas inter. Dpretagses, o que abre o campo arqucol6gico para uma diversidade de pesquisas e estudos sobre um mesmo tema, mas com leituras ¢ vertentes interpretativas diferentes. Assim, como defende o filé- sofo Pepper (2001), a ciéneia do passado comega a desdlobrar-se ¢ reavaliar-se constantemente quanto a essa fungo social adquirida. Para Lima (2011, p. 19), estabelece-se uma relagto entre “objeto sujelto, constituido e constituinte [em que estes] esto associados indelevelmente em uma relagio dialética, sto parte um do outro, ‘do a mesma coisa, embora diferentes”. © que temos com essa rela- ‘slo € a constatagdo de que a cultura material nfo tem sentido por si ‘mesma (como defendia 0 hist6rico-culturalismo), mas encontra sua “ancia de interpretacio na relago que o arquedlago estabelece ‘com 0 passado que ¢ interpretado conforme as pautas politicas da atualidade. Assim, nfio existe uma “reconstrugio” do passado (como ‘quem o traz de volta), mas.a interpretago ¢ a elaboragio de uma lel- tura deste. Assim, o pasado é lido e interpretado, e nao reconstruido. Essa acdo basela-se na pauta politica da atualidade, que influencia © pesquisador a debrugar-se sobre determinado tema, Dessa forma, a materialidade analisada pela ciéncia do passado passa. ter significado ‘Un exemplo dessa acto afirmative da cultura material pad ser encontrado me artis "A privatizazao So patrbminie: on Siversosinerssessobve wom sia arguesligco em iterVRY* (Peri, 2018). W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * interpretativo, porque teve determinado use pretézito, mas sua rele- vancla reside na constatagio de que ela ¢ importante vetor de iden- tidade ou mesmo de visibilidade de determinados grupos socials. Um exemplo ¢ capaz de ilustrar essa ica: por mul- tos anos aftrmou-se a invisibilidade do registro arqueolégico negro (Symanski; Souza, 2007) e que este, por nia estar presente nas escava- ‘goes, nao era passivel de estudo. Contudo, no momento em que, por exemplo, o movimento negro de busca par direitos ganhou forga, as anque6logos foram compelidosa analisar essa auséncia negra. Assim, pesquisas como as reallzadas na regio portuéria do Rio de Janeiro (Lima, 2013; Lima; Souza; Sene, 2014), no cais do Valongo, ou em Salvador, em um terreizo de candomblé do século XIN (Gordenstein, 2015), demonstram que o registro arqueokigice dessa populacdo esti presente ¢ pode ser utilizado como meio de defesa da importincla Ihistérica e cultural dos affo-brasileiros para a cultura multissignis- cativa nacional. Quando esse grupo se apropria dos resultados das escavagbes, 0 sentimento de pertencimento a esse passado ¢ desenvolvido, incen- tivando a busca por efetivos meios de preservagio de sua meméria , 40 mesmo tempo, de reflexdo sobre a constituigdo de suas identi ddades. Os objetos escavados passam a relacionar-se dialeticamente com determinado grupo, mas também 4 in luenciar © arquedlogo, via pauta politica, a aprofundar-se em suas pesquisas para que essa visibilidade seja acrescida, Para 0 arquedlogo lan Hodder (1995), uma vez considerada essa relagio dialética, forma-se uma rede de assaciacBes. contrastes entre ‘© arquediogo e a materialidade pretérita, o que o levaa refletir sobre ‘como, por que € em que sentidos aqueles individuos utilizaram a ‘cultura material para expressar suas formas de pensar, suas idelas ¢ W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig GAVAUNIVIRTUS x Ls G@ © uninter.bv3.digitalpages.com.br. bg ie seus conceitos sobre o mundo e, sobretudo, coma isso pode ser lide 1na atualidade pelos viéses politico e social em que muitas pesquisas esto inseridas. Por fim, ¢ interessante observarmos o que Lima (2011, p.20) de: taca como produgio e percepgio da materialidade, que se d4 pelos sentidas e pelo corpo que a utiliza: {0} wniverso material [..] tornanse uma experiéncia da consciéncta, ercepytes © sensases configuram 0 modo como as pessoas sentem @ ‘rmundo, por meio da vivéncia pritica, cotidiana, individual. £ por meio do corpo ~ lugar da experiéncia ~ e das suas percepebes sensovials que vemos ¢ esfumos no mundo, Nossa selagdo com a materialidade passa, inecessariamente, por essas percepcaes ¢ scnsacics, de tal meade que nile ‘apenas a forma to valartanda peta anguenlogia mas também outros atributos senseriais = como car, textura, sorn, gusto, cheiro = precisam ser exarminaades, sempre que as citcunsticias permite. [Na perspectiva da sensortalidade ¢ da presenga do corpo humane ‘como cultura material, um exemplo nos esclarece esse ponto: pense que vor? estéiem uma sala ¢, de repente, entra no recinto um casal de indigenas nus. Como podemos verificar que hé cultura material neesse casal? Lembremos que eles esto sem roupa alguma e sem pin: turas no corpo, Num primeiro momento, pode-se pensar que “nao hhé:nada de cultura material neles®, mas, se observarmos seus cabelos, que sido cortados conforme 03 costumes da tribo de que eles fazem parte, veremos um exemplo de cultura material. Os cortes de cabelo, as pinturas, as formas com que determinadas partes de corpo so utilizadas 30 exemplificagdes da materialidade da cultura, no seu plano ideacional, expressas de forma concreta no ser humano. W Periods Arcaicn > ¥ J uninter.bv3.dig @ AVAUNIVIRTUS ec G@ © uninterbv3.digitalpages.com.br. * Sintese Pelo exposto até aqui, podemes perceber como a cultura material presenta uma miriade de formas de compreensio: desde um ponto de vista em que o objeto poderia falar sobre si e sobre a cultura ide que faz parte (como postularam os hist6rico-culturalistas) até a constatacdo de que © material arqueolégico € um texto a ser lido ¢, ‘como tal, € interpretado por seu autor (no caso, 0 arquedlogo) no ‘contexto em qué est Inserido, ou seja, a realidade atual da qual © pesquisador faz parte. Devemos coneluir que, apesar de alguns postulados jé terem sido superados endo serem mais utilizados, 0 corpo tedrico da cultura ‘material é como uma calxa de ferramentas: para cada ago que dese- jamos realizar, abrimos nossa caixa ¢ procuramos uma chave de fenda ‘que nos seja mais dtil:no momento de trabalharmos com uma cadeira, [por exemplo; e mesmo que nao utllizemos todas as ferramentas da caixa, elas permanecem li a nossa disposiglo, Assim também acor tece com 0 corpo teérico da cultura material: se entendemos que 4 cadeira corresponde as nossas pesquisas, a chave de fenda equivale 0 referenclal te6rico sobre os resquicios arqueologicos ¢ a calxa de ferramentas, & todo o referencial teérico. Ao contrério de ser wm problema para a arqueologia, essa posigao nos permite trabalhar na adequaca0 de nossa realidade de estuclo a0 ‘campo teérico da citncia do passado, Assim, em algum momento, mesmo que nao utilizemos um pequens pino de nossa calxa (enter ido como um referencia teérico ultrapassado ou muito criticado),e ‘estard A nossa disposislo © poderemos avallar se, naquele caso, ele & W Perioda Arcaicn ¥ J uninterbv3.digit) x" AVAUNIVIRTUS € CG © uninterbv3.digitalpages.com.br. * ‘ou ndo necessério. Destacamos, assim, que ¢ imprescindivel a quem trabalha com a arqueologia conhecer todo o ferramental teérico sobre a cultura material. Para fixar melhor as idelas aqui expostas, observe 0 Quadro 2.1, ‘no qual as principais ideias deste capitulo estao agrupadas de forma sintética, ‘Quadro 2.1 - Quadro sintético das principaisleituras da cultura material por melo de suas verlentes * Heito Pompeia; © ordenagio da cultura material por tipos: séries« tipologias © ipologisd levam s cronclogias; conceit de culturas arqueolégicas; ‘varlagbes de culturas arqueoldgicas eam ao entencdimento de ‘ierenclagao entre 3s culkuras; ‘mucanga: resultado do difuston smae do migrsciontemo; ‘cultura material: reflexo passive da cultura estudeda, ‘Cultura material: resposia adaptativa do grupo ao meto (bases ino evoluciontsmo biel gico e social) oco em aspectos econdmicos, de subsisténcta e tecnolighos; conjunto interdependente em interagdo: hé uma visto sistemica dda sociedacie (se muda um ¢lemento, mudam todos) ddesearte do difusiontsme do migractonism foco nos aspectos teenolligicas € ceondbmicos edescarte da visto sobre elementos ideacionals da cultura material 8 variabilidade de artefatos € devida a diferentes funcdes dos stjetons observam se “padroes a" na cultura materta

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