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FISIOPATOLOGIA

As mitocôndrias são conhecidas


como as ‘usinas de energia’
das células, e seu papel
no metabolismo celular está bem definido.
Estudos recentes vêm demonstrando
a importância da impermeabilidade
da membrana mitocondrial interna
para suas funções (como produzir ATP,
gerar calor em animais hibernantes
e regular a morte celular).
Falhas na permeabilidade seletiva
dessa membrana podem originar
diversas doenças e levar as células à morte,
o que vem atraindo cada vez mais atenção
para essas organelas.

O papel da mitocôndria no metabolismo e na produção de energia pelas


células está bem definido, embora muitas reações
envolvidas nos processos de conversão energética e
de transporte de elétrons ainda não estejam esclare-
cidas em nível molecular. Há cerca de três décadas,
acreditava-se que as funções da mitocôndria (figura
1) se limitavam a algumas vias metabólicas, como a
cadeia respiratória (a série de reações bioquímicas
que libera a energia necessária para sintetizar ade-
nosina-trifosfato, ou ATP, a molécula de energia da
Anibal Eugênio Vercesi célula), a fosforilação oxidativa (a própria síntese de
Departamento de Patologia Clínica, ATP) e a termogênese (a geração extra de calor) – es-
Faculdade de Ciências Médicas, ta última no chamado tecido adiposo marrom.
Universidade Estadual de Campinas A demonstração de que a respiração promove uma
anibal@unicamp.br diferença na concentração de prótons (um gradiente

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Figura 1. As mitocôndrias, organelas com DNA próprio,


são as ‘usinas de energia’ das células

de prótons) entre o interior da mitocôndria e o espa- fisioatologia. Além disso, as reações de oxidação-
ço que separa suas membranas interna e externa – redução (reações redox) envolvidas no transporte de
gerando um potencial elétrico-químico que a célula elétrons durante a respiração celular geram, como
usa como fonte de energia para fosforilar a adenosina- subproduto, espécies reativas de oxigênio, tóxicas a
difosfato (ADP), sintetizando ATP – revelou a impor- praticamente todos os componentes das células,
tância da impermeabilidade da membrana interna. em especial às próprias mitocôndrias, quando a ca-
Mesmo prótons só atravessam essa membrana se pacidade antioxidante da célula é deficiente. Tais
transportados por moléculas específicas, e essa ca- espécies (também chamadas de radicais livres)
racterística é essencial para a integridade da síntese parecem contribuir para o declínio na capacidade
de ATP e também para a saúde da célula. de produção de energia das mitocôndrias duran-
Constatou-se em seguida que a perda dessa te o processo de envelhecimento.
impermeabilidade constitui, em muitas condições No reino animal, a mitocôndria é a única organela
patológicas, um evento-chave no processo de mor- que contém seu próprio DNA, com genes que codi-
te celular programada ou acidental – o que fez da ficam para várias moléculas integrantes da cadeia
mitocôndria um centro de atenções em estudos de respiratória e genes que codificam RNA ribossomal 

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e RNA transportador (tRNA). Mutações nesse DNA fosforilação oxidativa – a síntese de ATP a partir de
podem induzir doenças mitocondriais com herança ADP e fosfato. Em 1949, logo após o desenvolvimento
materna que se expressam durante diferentes fases de técnicas que permitiram o fracionamento de cé-
da vida e que envolvem predominantemente os lulas, os bioquímicos norte-americanos Eugene
músculos e o sistema nervoso, por serem os tecidos Kennedy e Albert Lehninger (1917-1986) isolaram
que mais precisam de energia. mitocôndrias hepáticas e demonstraram que essa
organela é o sítio celular responsável pela síntese de

Respiração e fosforilação ATP, associada à oxidação dessas coenzimas.


Essa observação deu origem à fase moderna da

oxidativa investigação sobre os mecanismos de conversão de


energia em sistemas que consomem oxigênio. Du-
rante cerca de 20 anos houve uma busca infrutífera
A cadeia respiratória mitocondrial é composta de por um suposto intermediário químico que seria
várias proteínas que catalisam (promovem) reações responsável pelo acoplamento entre os dois proces-
redox de transferência de elétrons a partir de duas sos: a respiração e a síntese de ATP. Apesar de evi-
coenzimas (nicotinamida-adenina-dinucleotídeo, ou dências crescentes, o papel funcional da membrana
NADH, e flavina-adenina-dinucleotídeo, ou FADH2) mitocondrial foi ignorado por muitos pesquisado-
até o oxigênio molecular (figura 2). Grande parte da res durante essa ‘procura pelo intermediário’.
energia liberada nessas reações é utilizada para a Em 1961, o bioquímico inglês Peter Mitchell
(1920-1992), baseado na constatação de que a redu-
ção de oxigênio (O2) a água (H2O) pela cadeia respi-
ratória gera um gradiente de prótons (H+) entre o
meio interno (matriz) da mitocôndria e o espaço
Espaço entre Membrana Matriz entre suas membranas interna e externa, propôs a
as membranas interna
NADH teoria quimiosmótica da fosforilação oxidativa. Se-
gundo Mitchell, a passagem de elétrons pela série de
2e- moléculas envolvidas na cadeia respiratória induz
um fluxo de H+ da matriz para o espaço intermem-
NAD + branas, desequilibrando a concentração de prótons
NADH- nos dois espaços. Esse gradiente (ou potencial)
4H + eletroquímico de H+ seria o ‘intermediário’ rico em
deidrogenase energia que acoplaria a respiração à fosforilação.
Assim, o fluxo de H+ de volta ao interior da mito-
2e- côndria, visando restabelecer o equilíbrio, fornece-
ria a energia necessária para a fosforilação do ADP.
FADH2 Esse potencial eletroquímico de H+ (DµH+) tem
Ubiquinona 2e- um componente elétrico (Dy, mais negativo interna-
(coenzima Q)
mente) que atinge cerca de 180 milivolts (mV) no
2e- FAD estado de repouso, e um componente químico (DpH,
mais alcalino internamente) que oscila de zero a 0,5
unidade de potencial hidrogeniônico (pH). A enzima
Citocromo -c-
ATP-sintetase promove o retorno dos H+ à matriz e
4H +
redutase
aproveita a energia liberada do potencial protônico
para fosforilar o ADP. Essa proteína é formada por
2e-
Citocromo c
2e-

Citocromo -c- Figura 2. Esquema simplificado da cadeia respiratória,


2H + sistema de transporte de elétrons (e-) que ocorre
oxidase 1 2 O + 2H + nas mitocôndrias: os prótons (H+) levados da matriz
2
para o espaço intermembranas pelas chamadas
‘bombas redox’ situadas na membrana interna,
2e- fornecem — quando retornam à matriz — energia
H2O
para a produção de ATP, a molécula armazenadora
de energia das células

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duas regiões bem distintas: o fator F1 (solúvel, loca-


Matriz
d
lizado na matriz) e o fator F0 (hidrofóbico, que atra-
vessa a membrana interna da mitocôndria, onde a a
também se situam os componentes da cadeia respi- b
ratória). O fator F1 contém os sítios ativos (locais de
ligação com as moléculas participantes de uma rea-
F1 ATP
ção – nesse caso, ADP e fosfato inorgânico) e é com-
posto por trechos distintos: três subunidades a, três
b, uma g, uma d e uma Î. As três últimas estão en-
volvidas na interação entre F1 e F0 e os três sítios ativos ADP + P1
são formados por aminoácidos das subunidades a e
g e
b. O fator F0 constitui o canal para a passagem de H+
e é composto por três tipos de subunidades (figura 3). H+
Um gradiente eletroquímico entre os dois lados de
uma membrana é um elemento central no aprovei- Membrana interna
F0 da mitocôndria
tamento de energia em sistemas biológicos. Esse
mecanismo é fundamental na evolução dos seres
vivos, já que ocorre tanto na fosforilação oxidativa em
mitocôndrias (seres aeróbicos) quanto na síntese Espaço entre
as membranas
fotossintética de ATP em cloroplastos (vegetais e
cianobactérias, por exemplo). Além disso, esse gra- H+
diente pode ser usado diretamente para processos Figura 3. Componentes estruturais da enzima ATP-sintetase,
mitocondriais que requerem energia, como o trans- situada na membrana interna da mitocôndria e responsável
porte de vários cátions (íons positivos), por exemplo, pela síntese de adenosina-trifosfato (ATP), usando
que penetram na mitocôndria em resposta ao poten- para isso a energia dos prótons (H+) que a atravessam
cial negativo interno.
O gradiente eletroquímico de H+ pode também
ser consumido, sem síntese de ATP, dissipando sua
energia na forma de calor. Isso caracteriza o que é Proteínas
chamado de ‘desacoplamento’ entre a respiração e a
fosforilação oxidativa: os prótons ejetados do meio desacopladoras (UCPs)
interno da mitocôndria pela respiração retornam a
ele sem passar pelo canal F0 da ATP-sintetase, passo A UCP é ativa em mitocôndrias recém-isoladas, mas
essencial para a fosforilação do ADP. Um ‘curto- sua atividade é inibida pela adição de nucleotídeos
circuito’ desse tipo foi evidenciado por estudos do derivados de guanina ou adenina, como guanosina-
biólogo inglês David Nicholls e seu grupo em mi- difosfato ou trifosfato (GDP ou GTP) e adenosina-
tocôndrias de tecido adiposo marrom, existente em difosfato ou trifosfato (ADP ou ATP). Estes se ligam
animais hibernantes e mamíferos recém-nascidos, e à UCP com alta afinidade, reacoplando a respiração
responsável pela geração de calor (termogênese) por à fosforilação. Assim, tais nucleotídeos atuam como
mecanismo independente de tremor. Em animais reguladores fisiológicos do processo de termogênese.
com termogênese estimulada por exposição ao frio, A regulação da atividade da UCP é complexa.
o tecido adiposo marrom respira a uma velocidade Além de ser inibida por nucleotídeos de guanina e
até 50 vezes maior que a de uma massa equivalente adenina, essa proteína é ativada por ácidos graxos
de tecido hepático. livres, que também participam do processo de termo-
A elucidação das bases moleculares dessa alta gênese. Assim, o desacoplamento depende da pre-
velocidade respiratória começou com a identifica- sença simultânea de níveis significativos de UCP e
ção de uma proteína de 32 kilodaltons (kDa), presen- de ácidos graxos livres. Tais ácidos graxos exercem
te na membrana mitocondrial interna, que promove duplo papel na bioenergética: atuam como substra-
o retorno de H+ à matriz. A quantidade dessa proteína tos para a respiração e ainda como reguladores do
desacopladora (uncoupling protein, UCP) nas mito- acoplamento entre respiração e a fosforilação.
côndrias do tecido adiposo marrom pode dobrar, Esse duplo efeito de ácidos graxos sobre a ter-
dependendo do estresse térmico a que o animal é mogênese permite que animais como os ursos man-
submetido cronicamente. O retorno de prótons à tenham sua temperatura em cerca de 35oC durante
matriz mitocondrial, através da UCP, estimula a os vários meses de hibernação. No período anterior
respiração e gera calor, dando a esse tecido a capaci- à hibernação, os ursos armazenam ácidos graxos,
dade de termogênese. na forma de gordura. Sob estímulo do frio, eles são 

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empregados como combustíveis na respiração e co- Outros estudos do autor, em colaboração com os
mo ativadores da UCP na hibernação. Nesse perío- bioquímicos Iolanda Cuccovia e Herman Chaimovich,
do, também ocorre aumento dos níveis de UCP por da Universidade de São Paulo, demonstraram que
indução hormonal. essa proteína, batizada pelos autores como plant
Até meados dos anos 90, a UCP só havia sido uncoupling mitochondrial protein (PUMP), aumenta
identificada no tecido adiposo marrom. Por isso, foi a condutividade a prótons em vesículas artificiais
proposto que ela seria uma aquisição evolutiva tar- (lipossomas) e em todas as mitocôndrias de plantas
dia e especializada dos mamíferos. Entretanto, aná- estudadas até o momento, tal qual a UCP das mitocôn-
lises detalhadas do controle respiratório em mito- drias de mamíferos. No laboratório do biólogo Paulo
côndrias de plantas, bem como o efeito acoplador de Arruda, na Universidade Estadual de Campinas, essa
albumina de soro bovino (BSA) e ATP, levaram o proteína foi clonada e expressa em Escherichia coli.
bioquímico inglês Andrew Beavis e o autor deste A proteína recombinante isolada de E. coli foi incor-
artigo a propor a existência de um fator semelhante porada em lipossomas, onde apresentou as mesmas
à UCP em plantas. Em seguida, uma proteína de cerca propriedades da proteína natural de batata.
de 32 kDa foi isolada de mitocôndrias de batata no A descoberta da PUMP derrubou a tese de que
laboratório do autor, com o mesmo procedimento uma proteína desacopladora seria uma aquisição
usado para isolar a proteína desacopladora de tecido evolutiva de mamíferos, só expressa em tecido
adiposo marrom. adiposo marrom, e estimulou a procura de outras.
Hoje, são conhecidas cinco proteínas desse tipo em
mamíferos (UCPs 1 a 5), seis em plantas e outras em
H+ + Espaço fungos, tripanossomas, amebas, peixes e aves. Até o
intermembranas
momento, a única com função termogênica es-
tabelecida é a UCP1, nome atual da proteína desa-
copladora do tecido adiposo marrom.
CO
COOH
2 A UCP2 é expressa em mitocôndrias de vários
Membrana UCP UCP Membrana
interna COOH
CO2 interna tecidos humanos, em especial os ricos em macrófa-
gos (células do sistema imune), e estudos indicam
COOH
CO2 que exerce um papel importante no diabetes melli-
tus. O gene que a codifica situa-se no cromossomo
His His 11 do homem e no cromossomo 7 de camundongos,
Matriz em regiões associadas com a hiperinsulinemia (ex-
H+ cesso de insulina no sangue) e obesidade. A UCP3
é expressa em mitocôndrias de músculo esqueléti-
Figura 4. Modelo do retorno de prótons (H+) para a matriz
co. Sua superexpressão induz emagrecimento e
mitocondrial, com a ajuda de ácidos graxos (wwCOO-) que se ligariam
à proteína desacopladora (UCP), representada como um retângulo hiperfagia (estado de fome permanente) em ca-
na membrana interna da mitocôndria mundongos normais. As UCPs 4 e 5 são expressas
no cérebro e suas funções ainda são pouco conhe-
cidas. O estudo bioquímico e funcional dessas UCPs
H+ COO é dificultado pela pequena quantidade encontra-
da nos tecidos onde são expressas.
COOH + Espaço
intermembranas

Ativação das UCPs


por ácidos graxos
Membrana UCP UCP Membrana
interna interna

A estrutura da UCP1 sugere que ela não poderia


transportar prótons através da membrana da mito-
Matriz côndria, por não conter grupos carboxila COO2- (on-
COOH
de os prótons se ligam). Assim, esse transporte exi-
H+ COO ge a participação de outra molécula que contenha
tais grupos. O modelo proposto pelo bioquímico
Figura 5. Modelo do transporte de prótons em que o ácido graxo ligado
alemão Martin Klingenberg diz que esses ‘auxiliares’
w COOH) atravessa livremente a membrana da mitocôndria
ao próton (w
para a matriz, onde perde o próton e retorna ao espaço intermembranas seriam ácidos graxos, que se ligariam às UCPs e
w COO-) através da UCP
na forma aniônica (w disponibilizariam seus grupos carboxila ao longo

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do trajeto dos prótons (figura 4). Figura 6.


Outro modelo, proposto pelo bio- Membrana No sistema
interna antioxidante
químico Keith Garlid, sugere Catalase
H2O + O2 mitocondrial,
que as UCPs não transportam di- os radicais
retamente os H+, mas sim ânions tóxicos O2.-
de ácidos graxos. Essa proposta te- OD H2O2 GPx / TPx gerados
MnS H2O na cadeia
ve como base estudos do bioquí- •
O2 respiratória são
mico russo Vladimir Skulachev, Ca2+ neutralizados
em que foi demonstrado que os GR / TR
P1 2GSH/TSH GSSG/TSST por uma série
ácidos graxos protonados pe- Cadeia
de reações
respiratória
netram rapidamente através da de oxidação-
membrana mitocondrial, sem a redução,
Matriz NADP + NADPH que têm como
ajuda de um transportador. Após
NADH NAD + resultantes
dissociação do H+ na matriz alca- moléculas
lina, os ânions (que, por ter car- de água
ga, não passam diretamente pe- TH
e o composto
la membrana) retornam ao meio Transidro- NAD+
Espaço
externo com a ajuda do carreador genase
intermembranas
de nucleotídeos de adenina (ADP
e ATP) presente na membrana
mitocondrial interna. H+
Esse carreador, na ausência de
seus substratos específicos (ADP
e ATP), transporta ácidos graxos
negativamente carregados (ânions) para fora da UCPs pode estimular de forma significativa a res-
matriz mitocondrial, onde o meio é mais ácido e eles piração e em conseqüência o catabolismo (degra-
se protonam novamente. A saída dos ânions ocor- dação de nutrientes, como proteínas, ácidos gra-
re devido à atração exercida pelo potencial positivo xos, glicose etc.). Essa talvez seja uma das funções
de prótons no espaço intermembranas (transporte das UCPs 2, 3 e 4, bem como das UCPs de plantas,
eletroforético). Os ácidos graxos, novamente pro- muito menos abundantes que a termogênica UCP1.
tonados, voltam ao interior da mitocôndria (atra- O desacoplamento (redução do gradiente de pró-
vessando diretamente a membrana) atraídos pelo tons sem síntese de ATP) pode também diminuir
pH alcalino da matriz. Cada um desses ciclos de a produção mitocondrial de oxigênio reativo, como
entrada do ácido graxo protonado e saída do ânion, descrito a seguir.
deixando o H+ na matriz, resulta no transporte de um
próton (H+) para a matriz mitocondrial. Baseando-se
nesses dados, Keith Garlid e colaboradores testaram
e comprovaram a hipótese de que as UCPs, análogos Produção de oxigênio
estruturais do carreador de ATP e ADP, são verdadei-
ros transportadores de ânions de ácidos graxos, e pro- reativo pela mitocôndria
movem o desacoplamento entre a respiração e a fos-
forilação oxidativa ao fazer o transporte indireto de Na cadeia respiratória, o oxigênio é normalmente
H+ para o interior da mitocôndria através do movi- reduzido a água em quatro passos consecutivos de um
mento de entrada/saída de ácidos graxos (figura 5). elétron. A citocromo-c-oxidase, enzima altamente
O aumento da passagem de H+ através da mem- especializada nesse processo, liga-se fortemente ao
brana mitocondrial interna, mediado pelas UCPs, oxigênio parcialmente reduzido e não o libera an-
reduz o potencial de membrana apenas o suficiente tes de sua redução total. Assim, a produção do tóxi-
para que possa haver ao mesmo tempo produção de co radical superóxido (O2.-) por essa redução do O2
ATP e de calor. Na verdade, a eficiência da fosfori- é praticamente nula. No entanto, de 1% a 2% do
lação oxidativa diminui (menor número de molé- oxigênio consumido pela mitocôndria é convertido
culas de ADP fosforiladas, em relação ao de molé- ‘indevidamente’ a O2.- em passos intermediários da
culas de oxigênio consumidas). A quantidade de cadeia respiratória (na altura da NADH-desidro-
calor liberado depende da quantidade de UCPs e genase ou da coenzima-Q).
de mitocôndrias nos tecidos e pode não ser o bas- Como esse processo gera O2.- continuamente, a
tante para caracterizar termogênese. No entanto, mitocôndria possui um eficiente sistema antioxi-
uma leve redução do potencial de membrana pelas dante, que envolve várias enzimas e outros com- 

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postos (vitaminas C e E, por exemplo). Nesse sistema, De fato, folhas de plantas transgênicas de tabaco
o O2.- é ‘capturado’ pela superóxido-dismutase que superexpressam a proteína PUMP mostraram-se
(MnSOD) e usado para formar peróxido de hidro- mais resistentes que as de plantas-controle ao estres-
gênio (H2O2). Também tóxico, o H2O2 é detoxificado se oxidativo induzido pela exposição a H2O2. Tais
pela glutationa-peroxidase (GPx) e pela tioredoxi- resultados estão de acordo com a constatação, em
na-peroxidase (TPx), ou pela catalase (esta só em outros estudos, de que tanto a UCP3 quanto a PUMP
mitocôndrias do coração). As formas da glutationa são estimuladas em condições de estresse oxidati-
(GSH) e da tioredoxina (TSH) oxidadas nessa reação vo. Esse possível papel das proteínas desacoplado-
(GSSG e TSST, respectivamente), são novamente ras na regulação da produção de radicais de oxigê-
reduzidas por suas respectivas redutases (GR e TR), nio em mitocôndrias levou, nos últimos anos, a uma
às custas da conversão de NADPH a NADP+ (forma intensa busca de evidências sobre sua participação
fosforilada da coenzima NADH). O NADP+ resultan- nos mecanismos de proteção contra a morte celular
te é regenerado pela NAD(P)-transidrogenase (si- associada ao estresse oxidativo.
tuada na membrana da mitocôndria), às custas da
oxidação da NADH (figura 6), que também é substra-
to inicial da cadeia respiratória, gerando NAD+. Este
último é regenerado novamente a NADH por várias Estresse oxidativo
reações que ocorrem na matriz mitocondrial (prin-
cipalmente reações do chamado ciclo de Krebs). mitocondrial
Quando a geração mitocondrial de O2.- está au-
mentada, ou o sistema antioxidante está enfraque- O íon cálcio (Ca2+) parece ser o principal agente
cido, o H2O2 pode se acumular, levando a um estres- estimulador da geração de radicais livres de oxigê-
se oxidativo. Nessa situação, o H2O2 pode reagir nio em mitocôndrias, acumulando-se no interior
com íons ferro (Fe2+) presentes na matriz, levando à destas por um processo eletroforético: o íon, positivo,
formação do radical hidroxil (HO·). Todas as pro- é atraído pelo potencial interno negativo (devido à
teínas desacopladoras inibem essa geração de es- saída de prótons). Quando atinge alta concentração,
pécies reativas de oxigênio nas mitocôndrias, por- o Ca2+ liga-se, na face da membrana interna voltada
que, ao desacoplar a fosforilação da respiração, a para a matriz, ao fosfolipídeo cardiolipina (respon-
velocidade desta última aumenta. Com isso, a uti- sável pela fixação de várias proteínas da cadeia
lização da coenzima-Q (ubiquinona) e do oxigênio respiratória nessa membrana). Essa ligação causa al-
molecular é mais rápida, reduzindo a chance de a terações da cadeia respiratória que facilitam a pro-
primeira doar um elétron diretamente ao segundo, dução de O2.-, e portanto de H2O2. Ao mesmo tempo,
gerando O2-. o Ca2+ disponibiliza outro íon (Fe2+) na matriz (ao
tomar o lugar dele em certos compostos), e o Fe2+
estimula a produção do radical hidroxil (HO·), capaz
de destruir proteínas, lipídeos e DNA mitocondriais.
Os radicais de oxigênio peroxidam ácidos graxos
Oxidação de lipídios
Poro de transição (permeabilização poliinsaturados, componentes da membrana mito-
de permeabilidade (TPM) da membrana) condrial. O fosfato inorgânico, quando em altas con-
centrações, realimenta o processo, pois estimula a
Espaço
intermembranas formação de espécies reativas a partir de aldeídos
resultantes da peroxidação dos ácidos graxos poliin-
SH saturados, e essas espécies multiplicam os danos à
HS Pi
membrana. Assim, a mitocôndria constitui o princi-
pal sítio de produção de oxigênio reativo e, em con-

Matriz HO dições de estresse oxidativo, pode ser também o prin-
Fe2+

Cadeia Ca2+ • MnSOD


respiratória O2 H2O2 Figura 7. O poro de transição de permeabilidade surge
Pi Mecanismos
antioxidantes na membrana quando cresce a geração de superóxido (O2.-),
enfraquecidos induzida pelo íon cálcio (Ca2+) e por fosfato inorgânico (Pi),
causando acúmulo (não controlado) de peróxido de
Membrana hidrogênio (H2O2) – este, na presença do íon ferro (Fe2+),
interna
gera o hidroxil (OH.), que oxida grupos protéicos tiólicos
(-SH) e leva à abertura do poro (e que também pode
permeabilizar a membrana pela peroxidação dos lipídeos
que a compõem, sob estímulo do fosfato inorgânico)

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cipal alvo dos danos causados por esses radicais. das caspases, que promovem a morte ‘limpa’. Nesse
Como a membrana mitocondrial interna é rica em caso, as células encolhem e se fragmentam, for-
proteínas, estas se tornam um dos principais alvos mando os ‘corpos apoptóticos’. No núcleo, a cromati-
das espécies reativas geradas. O radical hidroxil, na se condensa e o DNA se fragmenta, e esses restos
principalmente, oxida resíduos SH de aminoácidos são absorvidos por células vizinhas. A apoptose é
cisteína de proteínas vizinhas, formando ligações necessária para a vida de seres multicelulares, pois
dissulfeto (S-S) entre essas proteínas. Isso leva à pro- elimina células desnecessárias ou disfuncionais,
dução de agregados protéicos de alto peso molecular sem iniciar um processo inflamatório.
que provocam uma permeabilização não específica
dessa membrana (figura 7), conhecida como ‘transi-
ção de permeabilidade mitocondrial’ (TPM). Nesse
caso, a membrana interna torna-se aos poucos per- Patologia mitocondrial
meável a prótons, íons e até a pequenas proteínas.
Essa permeabilização depende da presença de Em termos genéticos ou fisiológicos, a mitocôndria
Ca2+ no espaço intramitocondrial e é inibida pelo é uma organela semi-autônoma. Ela tem seu pró-
imunossupressor ciclosporina A, que se liga à pro- prio genoma, que no homem apresenta 37 genes:
teína ciclofilina, componente essencial do agregado dois codificam RNAs ribossomais, 22 codificam
protéico que forma o poro da TPM, e previne a aber- RNAs transportadores e 13 codificam polipeptídeos
tura deste. O termo ‘transição’ é usado porque a per- que integram alguns componentes da cadeia respi-
meabilização pode ser parcialmente revertida, logo ratória e da ATP-sintetase. O DNA mitocondrial
após o início do processo, pela adição de quelantes (DNAmt) está ligado à membrana interna e é muito
de Ca2+ (compostos que se ligam fortemente a esse sensível a lesões oxidativas devido à falta de histo-
íon) ou de redutores que evitam a oxidação de gru- nas (proteínas associadas ao DNA ‘normal’ das cé-
pos protéicos tiólicos (-SH). A formação do poro po- lulas) e a mecanismos de reparo incompletos. De fa-
de ser estimulada por compostos capazes de aumen- to, a fragmentação desse DNA parece estar associa-
tar o estresse oxidativo mitocondrial: fosfato inor- da ao dano mitocondrial que ocorre durante o en-
gânico, oxidantes de nucleotídeos de piridina e de velhecimento e às condições de estresse oxidativo
Sugestões
grupamentos tiólicos, protonóforos (carreadores de descritas acima. Como o DNAmt codifica proteínas para leitura
prótons) e outros. essenciais para a respiração e a fosforilação oxida-
Há evidências experimentais de que a TPM seria tiva, sua fragmentação leva também a disfunções DEMEIS, L.
(Ed. científico)
um evento essencial no processo de morte celular, e a diversas alterações nessa organela, que resultam & Rangel, D.
por apoptose ou por necrose. O aumento prolonga- em complexas patologias. (Ed. artístico).
A mitocôndria
do da concentração de Ca2+ no citossol (meio líquido A cadeia respiratória também contém subuni-
em 3 atos
do espaço intermembranas e extramitocondrial) e dades codificadas pelo DNA do núcleo da célula. (CD-Rom),
na matriz mitocondrial pode induzir essa permeabi- Por isso, patologias mitocondriais também resultam Rio de Janeiro,
Universidade
lização. Na morte celular por necrose, o teor de Ca2+ de erros ou mutações no genoma nuclear. A mito- Federal do Rio
aumenta no citossol por falência dos mecanismos côndria e seus genes são sempre herdados da mãe, de Janeiro, 2000.
KOWALTOWSKI, A.;
que promovem a retirada desse íon e a TPM gene- através do óvulo (o espermatozóide contribui ape- CASTILHO, R.F.
ralizada leva à falta de ATP, seguida de morte celu- nas com seu núcleo para formar o zigoto). Assim, a & VERCESI, A.E.
lar. Na morte por apoptose, a TPM seria um evento mãe pode transmitir mutações do DNAmt a todos os ‘Mitochondrial
permeability
restrito a locais de aumento do Ca2+ liberado de for- filhos, mas só as filhas podem repassá-las à sua prole. transition and
ma regulada pelo retículo sarco-endoplásmico (or- Por ter inúmeras mitocôndrias, uma célula pode oxidative stress’,
in Federation
ganela celular). Nesse caso, a produção do ATP ne- conter simultaneamente DNAmt mutado e normal. of European
cessário para esse tipo de morte seria garantida por Assim, o DNAmt mutado apresenta concentração e Biochemical
outras mitocôndrias não atingidas. distribuição variável e se expressa diferentemente Societies Letters,
v. 495 (1-2),
Trabalho recente do biólogo italiano Luca Scor- de tecido para tecido – as doenças mitocondriais são p. 12, 2001.
rano e colaboradores sugere que a razão entre as mais freqüentes nos músculos e o cérebro, tecidos KROEMER, G. & REED,
J. C. ‘Mitochondrial
quantidades das proteínas Bcl-2 (antiapoptótica) e com maior demanda bioenergética. control of cell
Bax e Bak (pró-apoptóticas) expressas na mitocôn- As manifestações clínicas podem aparecer em death’, in Nature
Medicine, v. 6,
dria e no retículo pode decidir a quantidade de diferentes idades, de acordo com a dinâmica das
p. 513, 2000.
Ca2+ transferida do retículo para a mitocôndria, divisões celulares. Doenças degenerativas do sis- NELSON, D.L. & COX,
explicando a tendência de certas células a sofrer tema nervoso – como Huntington, Parkinson e M.M. Lehninger
Principles of
apoptose. A abertura do poro de TPM facilitaria a Alzheimer – podem ter seu desenvolvimento deri- Biochemistry
liberação pela mitocôndria de fatores pró-apoptóticos. vado de associações entre mutações no DNAmt e (3ª Edição),
Nova York, Worth
A presença desses fatores no citossol ativa protea- maior produção de espécies reativas de oxigênio Publishers, 2000.
ses (enzimas que degradam proteínas) denomina- nessas organelas. ■

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