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FISIOPATOLOGIA
de prótons) entre o interior da mitocôndria e o espa- fisioatologia. Além disso, as reações de oxidação-
ço que separa suas membranas interna e externa – redução (reações redox) envolvidas no transporte de
gerando um potencial elétrico-químico que a célula elétrons durante a respiração celular geram, como
usa como fonte de energia para fosforilar a adenosina- subproduto, espécies reativas de oxigênio, tóxicas a
difosfato (ADP), sintetizando ATP – revelou a impor- praticamente todos os componentes das células,
tância da impermeabilidade da membrana interna. em especial às próprias mitocôndrias, quando a ca-
Mesmo prótons só atravessam essa membrana se pacidade antioxidante da célula é deficiente. Tais
transportados por moléculas específicas, e essa ca- espécies (também chamadas de radicais livres)
racterística é essencial para a integridade da síntese parecem contribuir para o declínio na capacidade
de ATP e também para a saúde da célula. de produção de energia das mitocôndrias duran-
Constatou-se em seguida que a perda dessa te o processo de envelhecimento.
impermeabilidade constitui, em muitas condições No reino animal, a mitocôndria é a única organela
patológicas, um evento-chave no processo de mor- que contém seu próprio DNA, com genes que codi-
te celular programada ou acidental – o que fez da ficam para várias moléculas integrantes da cadeia
mitocôndria um centro de atenções em estudos de respiratória e genes que codificam RNA ribossomal
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e RNA transportador (tRNA). Mutações nesse DNA fosforilação oxidativa – a síntese de ATP a partir de
podem induzir doenças mitocondriais com herança ADP e fosfato. Em 1949, logo após o desenvolvimento
materna que se expressam durante diferentes fases de técnicas que permitiram o fracionamento de cé-
da vida e que envolvem predominantemente os lulas, os bioquímicos norte-americanos Eugene
músculos e o sistema nervoso, por serem os tecidos Kennedy e Albert Lehninger (1917-1986) isolaram
que mais precisam de energia. mitocôndrias hepáticas e demonstraram que essa
organela é o sítio celular responsável pela síntese de
empregados como combustíveis na respiração e co- Outros estudos do autor, em colaboração com os
mo ativadores da UCP na hibernação. Nesse perío- bioquímicos Iolanda Cuccovia e Herman Chaimovich,
do, também ocorre aumento dos níveis de UCP por da Universidade de São Paulo, demonstraram que
indução hormonal. essa proteína, batizada pelos autores como plant
Até meados dos anos 90, a UCP só havia sido uncoupling mitochondrial protein (PUMP), aumenta
identificada no tecido adiposo marrom. Por isso, foi a condutividade a prótons em vesículas artificiais
proposto que ela seria uma aquisição evolutiva tar- (lipossomas) e em todas as mitocôndrias de plantas
dia e especializada dos mamíferos. Entretanto, aná- estudadas até o momento, tal qual a UCP das mitocôn-
lises detalhadas do controle respiratório em mito- drias de mamíferos. No laboratório do biólogo Paulo
côndrias de plantas, bem como o efeito acoplador de Arruda, na Universidade Estadual de Campinas, essa
albumina de soro bovino (BSA) e ATP, levaram o proteína foi clonada e expressa em Escherichia coli.
bioquímico inglês Andrew Beavis e o autor deste A proteína recombinante isolada de E. coli foi incor-
artigo a propor a existência de um fator semelhante porada em lipossomas, onde apresentou as mesmas
à UCP em plantas. Em seguida, uma proteína de cerca propriedades da proteína natural de batata.
de 32 kDa foi isolada de mitocôndrias de batata no A descoberta da PUMP derrubou a tese de que
laboratório do autor, com o mesmo procedimento uma proteína desacopladora seria uma aquisição
usado para isolar a proteína desacopladora de tecido evolutiva de mamíferos, só expressa em tecido
adiposo marrom. adiposo marrom, e estimulou a procura de outras.
Hoje, são conhecidas cinco proteínas desse tipo em
mamíferos (UCPs 1 a 5), seis em plantas e outras em
H+ + Espaço fungos, tripanossomas, amebas, peixes e aves. Até o
intermembranas
momento, a única com função termogênica es-
tabelecida é a UCP1, nome atual da proteína desa-
copladora do tecido adiposo marrom.
CO
COOH
2 A UCP2 é expressa em mitocôndrias de vários
Membrana UCP UCP Membrana
interna COOH
CO2 interna tecidos humanos, em especial os ricos em macrófa-
gos (células do sistema imune), e estudos indicam
COOH
CO2 que exerce um papel importante no diabetes melli-
tus. O gene que a codifica situa-se no cromossomo
His His 11 do homem e no cromossomo 7 de camundongos,
Matriz em regiões associadas com a hiperinsulinemia (ex-
H+ cesso de insulina no sangue) e obesidade. A UCP3
é expressa em mitocôndrias de músculo esqueléti-
Figura 4. Modelo do retorno de prótons (H+) para a matriz
co. Sua superexpressão induz emagrecimento e
mitocondrial, com a ajuda de ácidos graxos (wwCOO-) que se ligariam
à proteína desacopladora (UCP), representada como um retângulo hiperfagia (estado de fome permanente) em ca-
na membrana interna da mitocôndria mundongos normais. As UCPs 4 e 5 são expressas
no cérebro e suas funções ainda são pouco conhe-
cidas. O estudo bioquímico e funcional dessas UCPs
H+ COO é dificultado pela pequena quantidade encontra-
da nos tecidos onde são expressas.
COOH + Espaço
intermembranas
postos (vitaminas C e E, por exemplo). Nesse sistema, De fato, folhas de plantas transgênicas de tabaco
o O2.- é ‘capturado’ pela superóxido-dismutase que superexpressam a proteína PUMP mostraram-se
(MnSOD) e usado para formar peróxido de hidro- mais resistentes que as de plantas-controle ao estres-
gênio (H2O2). Também tóxico, o H2O2 é detoxificado se oxidativo induzido pela exposição a H2O2. Tais
pela glutationa-peroxidase (GPx) e pela tioredoxi- resultados estão de acordo com a constatação, em
na-peroxidase (TPx), ou pela catalase (esta só em outros estudos, de que tanto a UCP3 quanto a PUMP
mitocôndrias do coração). As formas da glutationa são estimuladas em condições de estresse oxidati-
(GSH) e da tioredoxina (TSH) oxidadas nessa reação vo. Esse possível papel das proteínas desacoplado-
(GSSG e TSST, respectivamente), são novamente ras na regulação da produção de radicais de oxigê-
reduzidas por suas respectivas redutases (GR e TR), nio em mitocôndrias levou, nos últimos anos, a uma
às custas da conversão de NADPH a NADP+ (forma intensa busca de evidências sobre sua participação
fosforilada da coenzima NADH). O NADP+ resultan- nos mecanismos de proteção contra a morte celular
te é regenerado pela NAD(P)-transidrogenase (si- associada ao estresse oxidativo.
tuada na membrana da mitocôndria), às custas da
oxidação da NADH (figura 6), que também é substra-
to inicial da cadeia respiratória, gerando NAD+. Este
último é regenerado novamente a NADH por várias Estresse oxidativo
reações que ocorrem na matriz mitocondrial (prin-
cipalmente reações do chamado ciclo de Krebs). mitocondrial
Quando a geração mitocondrial de O2.- está au-
mentada, ou o sistema antioxidante está enfraque- O íon cálcio (Ca2+) parece ser o principal agente
cido, o H2O2 pode se acumular, levando a um estres- estimulador da geração de radicais livres de oxigê-
se oxidativo. Nessa situação, o H2O2 pode reagir nio em mitocôndrias, acumulando-se no interior
com íons ferro (Fe2+) presentes na matriz, levando à destas por um processo eletroforético: o íon, positivo,
formação do radical hidroxil (HO·). Todas as pro- é atraído pelo potencial interno negativo (devido à
teínas desacopladoras inibem essa geração de es- saída de prótons). Quando atinge alta concentração,
pécies reativas de oxigênio nas mitocôndrias, por- o Ca2+ liga-se, na face da membrana interna voltada
que, ao desacoplar a fosforilação da respiração, a para a matriz, ao fosfolipídeo cardiolipina (respon-
velocidade desta última aumenta. Com isso, a uti- sável pela fixação de várias proteínas da cadeia
lização da coenzima-Q (ubiquinona) e do oxigênio respiratória nessa membrana). Essa ligação causa al-
molecular é mais rápida, reduzindo a chance de a terações da cadeia respiratória que facilitam a pro-
primeira doar um elétron diretamente ao segundo, dução de O2.-, e portanto de H2O2. Ao mesmo tempo,
gerando O2-. o Ca2+ disponibiliza outro íon (Fe2+) na matriz (ao
tomar o lugar dele em certos compostos), e o Fe2+
estimula a produção do radical hidroxil (HO·), capaz
de destruir proteínas, lipídeos e DNA mitocondriais.
Os radicais de oxigênio peroxidam ácidos graxos
Oxidação de lipídios
Poro de transição (permeabilização poliinsaturados, componentes da membrana mito-
de permeabilidade (TPM) da membrana) condrial. O fosfato inorgânico, quando em altas con-
centrações, realimenta o processo, pois estimula a
Espaço
intermembranas formação de espécies reativas a partir de aldeídos
resultantes da peroxidação dos ácidos graxos poliin-
SH saturados, e essas espécies multiplicam os danos à
HS Pi
membrana. Assim, a mitocôndria constitui o princi-
pal sítio de produção de oxigênio reativo e, em con-
•
Matriz HO dições de estresse oxidativo, pode ser também o prin-
Fe2+
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cipal alvo dos danos causados por esses radicais. das caspases, que promovem a morte ‘limpa’. Nesse
Como a membrana mitocondrial interna é rica em caso, as células encolhem e se fragmentam, for-
proteínas, estas se tornam um dos principais alvos mando os ‘corpos apoptóticos’. No núcleo, a cromati-
das espécies reativas geradas. O radical hidroxil, na se condensa e o DNA se fragmenta, e esses restos
principalmente, oxida resíduos SH de aminoácidos são absorvidos por células vizinhas. A apoptose é
cisteína de proteínas vizinhas, formando ligações necessária para a vida de seres multicelulares, pois
dissulfeto (S-S) entre essas proteínas. Isso leva à pro- elimina células desnecessárias ou disfuncionais,
dução de agregados protéicos de alto peso molecular sem iniciar um processo inflamatório.
que provocam uma permeabilização não específica
dessa membrana (figura 7), conhecida como ‘transi-
ção de permeabilidade mitocondrial’ (TPM). Nesse
caso, a membrana interna torna-se aos poucos per- Patologia mitocondrial
meável a prótons, íons e até a pequenas proteínas.
Essa permeabilização depende da presença de Em termos genéticos ou fisiológicos, a mitocôndria
Ca2+ no espaço intramitocondrial e é inibida pelo é uma organela semi-autônoma. Ela tem seu pró-
imunossupressor ciclosporina A, que se liga à pro- prio genoma, que no homem apresenta 37 genes:
teína ciclofilina, componente essencial do agregado dois codificam RNAs ribossomais, 22 codificam
protéico que forma o poro da TPM, e previne a aber- RNAs transportadores e 13 codificam polipeptídeos
tura deste. O termo ‘transição’ é usado porque a per- que integram alguns componentes da cadeia respi-
meabilização pode ser parcialmente revertida, logo ratória e da ATP-sintetase. O DNA mitocondrial
após o início do processo, pela adição de quelantes (DNAmt) está ligado à membrana interna e é muito
de Ca2+ (compostos que se ligam fortemente a esse sensível a lesões oxidativas devido à falta de histo-
íon) ou de redutores que evitam a oxidação de gru- nas (proteínas associadas ao DNA ‘normal’ das cé-
pos protéicos tiólicos (-SH). A formação do poro po- lulas) e a mecanismos de reparo incompletos. De fa-
de ser estimulada por compostos capazes de aumen- to, a fragmentação desse DNA parece estar associa-
tar o estresse oxidativo mitocondrial: fosfato inor- da ao dano mitocondrial que ocorre durante o en-
gânico, oxidantes de nucleotídeos de piridina e de velhecimento e às condições de estresse oxidativo
Sugestões
grupamentos tiólicos, protonóforos (carreadores de descritas acima. Como o DNAmt codifica proteínas para leitura
prótons) e outros. essenciais para a respiração e a fosforilação oxida-
Há evidências experimentais de que a TPM seria tiva, sua fragmentação leva também a disfunções DEMEIS, L.
(Ed. científico)
um evento essencial no processo de morte celular, e a diversas alterações nessa organela, que resultam & Rangel, D.
por apoptose ou por necrose. O aumento prolonga- em complexas patologias. (Ed. artístico).
A mitocôndria
do da concentração de Ca2+ no citossol (meio líquido A cadeia respiratória também contém subuni-
em 3 atos
do espaço intermembranas e extramitocondrial) e dades codificadas pelo DNA do núcleo da célula. (CD-Rom),
na matriz mitocondrial pode induzir essa permeabi- Por isso, patologias mitocondriais também resultam Rio de Janeiro,
Universidade
lização. Na morte celular por necrose, o teor de Ca2+ de erros ou mutações no genoma nuclear. A mito- Federal do Rio
aumenta no citossol por falência dos mecanismos côndria e seus genes são sempre herdados da mãe, de Janeiro, 2000.
KOWALTOWSKI, A.;
que promovem a retirada desse íon e a TPM gene- através do óvulo (o espermatozóide contribui ape- CASTILHO, R.F.
ralizada leva à falta de ATP, seguida de morte celu- nas com seu núcleo para formar o zigoto). Assim, a & VERCESI, A.E.
lar. Na morte por apoptose, a TPM seria um evento mãe pode transmitir mutações do DNAmt a todos os ‘Mitochondrial
permeability
restrito a locais de aumento do Ca2+ liberado de for- filhos, mas só as filhas podem repassá-las à sua prole. transition and
ma regulada pelo retículo sarco-endoplásmico (or- Por ter inúmeras mitocôndrias, uma célula pode oxidative stress’,
in Federation
ganela celular). Nesse caso, a produção do ATP ne- conter simultaneamente DNAmt mutado e normal. of European
cessário para esse tipo de morte seria garantida por Assim, o DNAmt mutado apresenta concentração e Biochemical
outras mitocôndrias não atingidas. distribuição variável e se expressa diferentemente Societies Letters,
v. 495 (1-2),
Trabalho recente do biólogo italiano Luca Scor- de tecido para tecido – as doenças mitocondriais são p. 12, 2001.
rano e colaboradores sugere que a razão entre as mais freqüentes nos músculos e o cérebro, tecidos KROEMER, G. & REED,
J. C. ‘Mitochondrial
quantidades das proteínas Bcl-2 (antiapoptótica) e com maior demanda bioenergética. control of cell
Bax e Bak (pró-apoptóticas) expressas na mitocôn- As manifestações clínicas podem aparecer em death’, in Nature
Medicine, v. 6,
dria e no retículo pode decidir a quantidade de diferentes idades, de acordo com a dinâmica das
p. 513, 2000.
Ca2+ transferida do retículo para a mitocôndria, divisões celulares. Doenças degenerativas do sis- NELSON, D.L. & COX,
explicando a tendência de certas células a sofrer tema nervoso – como Huntington, Parkinson e M.M. Lehninger
Principles of
apoptose. A abertura do poro de TPM facilitaria a Alzheimer – podem ter seu desenvolvimento deri- Biochemistry
liberação pela mitocôndria de fatores pró-apoptóticos. vado de associações entre mutações no DNAmt e (3ª Edição),
Nova York, Worth
A presença desses fatores no citossol ativa protea- maior produção de espécies reativas de oxigênio Publishers, 2000.
ses (enzimas que degradam proteínas) denomina- nessas organelas. ■
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