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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul

22 a 25 de julho de 2019, Porto Alegre (RS)

GT 39 - De los movimientos sociales a los movimientos culturales

Ser um Pavee – o desafio de ser um Irish Traveller, o vizinho indesejado


dos Irlandeses.

Jéssica Cunha de Medeiros

Universidade Federal de Pernambuco


Resumo

Quando a temática se volta para as palavras “cigano” ou "traveller”, estes são


muitas vezes pensados a partir de dois conjuntos imagéticos que são,
paradoxalmente, antagônicos. Logo, corporificam um ideal romântico de um
grupo despreocupado e independente, ou “ladrão” deslocados para margem da
sociedade. E este último estereótipo que dominou as principais concepções
irlandesas de viajantes por décadas, se não séculos. Os Irish Travellers ou como
popularmente são chamados na Irlanda – “Pavee”, foram oficialmente
reconhecidos como uma minoria étnica pelo governo da Irlanda no início de
março de 2017, representando 0,6% da população. A distinta identidade e cultura
dos Pavee baseada em uma tradição nômade os coloca à parte da população
sedentária ou do “settled people”. Ao longo da história irlandesa, a comunidade
Traveller foi marcadamente separada da população geral, resultando em
estereótipos e discriminação, como demonstra Jane Helleiner (2003) os Irish
Travellers sofrem o ostracismo generalizado, sendo este e outros fatores que
contribuem para uma segregação social. Logo esse artigo se apoia em uma
pesquisa etnográfica junto ao Irish Travellers que vivem no condado da cidade
Cork na Irlanda há mais de 25 anos e como eles lidam com discurso e prática
local e nacional anti-Traveller revelada e ligada à legitimação e reprodução de
outras desigualdades sociais que são moldados por forças opressivas do
racismo, ocorridos de lutas políticas em âmbito local, nacional e europeu.

PALAVRAS – CHAVE: Irish Traveller; Irlanda; Etnicidade

Pavee: a minoria Irish Traveller

Existe uma lacuna entre qualquer grupo marginalizado e sua


representação na cultura dominante. No entanto, é discutível que, no caso dos
Irish Travellers tradicionalmente não alfabetizados, a divergência entre a imagem
e a vida real dos membros da comunidade foi enraizada e particularmente não
examinada pelas fontes oficiais. De tal modo que, ao falarmos das populações
dos Irish Travellers, estamos explorando uma minoria étnica que é atravessada
por uma longa história de ostracismo dentro da Irlanda, ou melhor dizendo, em
todo Reino Unido. Por conseguinte, são discriminados como os “Othering” dentro
das cidades que moram, de tal modo que sua presença foi efetivamente escrita
fora da versão oficial da história Irlandesa que foi promulgada sobre a
independência no início dos anos de 1900 (HELLEINER, 2003).

No entanto, a questão da origem dos Irish Travellers tem sido muito


debatido entre antropólogos e historiadores, tendo em vista as diversas
semelhanças dos Irish Travellers e dos Romanies (Gypsies), para Bettina Barnes
(1975) apesar dessa falsa similitude dos Irish Travellers, estes não se classificam
como Gypsies, nem são definidos como tal por antropólogos. No entanto, as
duas populações foram agrupados como semlelhantes em vários momentos e
em contextos variados. A distinção entre os Irish Travellers e os Romanies
aparecem quando nós exploramos as várias teorias de origem. Embora tenha
sido razoavelmente bem estabelecido que os Gypisies tenham emigrado da
Índia, e os Irish Travellers sido pensados como de origem estritamente Celta. Ao
contrário dos ciganos que se espalham por uma área ampla, os Irish Travellers
estão limitados às ilhas britânicas e aos Estados Unidos. Além disso, os ciganos
falam a língua Romani e Irish Travellers o Shelte, uma língua de origem celta. A
maior dificuldade está em tentar pensar os Irish Travellers em um contexto
histórico confiável.

Para Eoin McNeill (1968) os Irish Travellers são descendentes do


semonrige (fabricantes de rebites) membros de minoria pré-cristã, que, onde
seus serviços eram inquestionavelmente valiosos para antigos guerreiros, mais
tarde foram relegados a um status inferior invadindo Gaels1. Segundo Bettina
Barnes (1975) a vantagem dessa teoria é que mostra duas consequências. Em
primeiro lugar, ajuda a explicar o presente preconceito dos habitantes da área
rural quando descrevem os Irish Travellers e, em segundo lugar, dá continuidade
histórica à existência há quase uma década do sistema rural de artesanato da
Irlanda. Vários autores concordam que desde a origem dos celtas, no entanto, é
um problema difícil que envolve muitos grupos étnicos, como Firbolgs, Danaans,
Sythians, e que não estamos realmente perto de resolver o problema da origem
dos Irish Travellers e talvez este não se revele o caminho mais adequado.

1É um termo que designa os falantes de uma das línguas gaélicas e célticas: irlandês, escocês
gaélico. O dialecto gaélico teve origem na Irlanda, tendo, em seguida, se espalhado para o oeste
e o norte da Escócia e na Ilha de Man.
A principal problemática se norteia na busca de uma explicação para o
início da distinção cultural do Irish Traveller com relação ao seu passado
histórico. Claramente, a indagação das origens está no primeiro plano do
pensamento popular sobre os Irish Travellers. Ou seja, é preciso voltar o olhar
da pesquisa sobre as mudanças que os afetaram ao longo do tempo, e não
confundir origens e histórias. Pois há uma distinção muito clara entre procurar o
primeiro Irish Traveller reconhecidamente distinto, e estudar a relação entre uma
minoria cultural estabelecida e a sociedade majoritária. No entanto, alguns
ativistas Traveller também acreditam que explicar o início dos Irish Travellers
como um grupo diferenciado na sociedade irlandesa é de vital importância. Para
Micheal MacDonagh (2000), explicar as origens dos Irish Travellers não apenas
condicionará a maneira como as pessoas pensam sobre estas populações, mas
também ditará que tipo de relação o Estado deverá estabelecer aos lhe propiciar
serviços e como estes serão prestados.

Em muitos aspectos, procurar pelos Irish Travellers em fontes históricas


é apenas uma parte da pesquisa que é necessária. Referências dispersas de
muitas fontes só farão sentido quando os contextos históricos, como atitudes em
relação à mobilidade, papéis de gênero no trabalho e estrutura familiar, também
forem considerados. Assim também como situação econômica, pois levantam
questões como a sazonalidade e o papel deles da participação deles nas
atividades econômicas. Inevitavelmente, a questão da pobreza dominará, não
porque o nomadismo seja necessariamente empobrecedor, mas porque a
maioria das fontes históricas constrõem pessoas nômades enquanto “típicos
pobres’, escrevendo sua história envolvendo fontes preocupadas com pobreza,
miséria e criminalidade.

Assim embora uma história do passado dos Irish Travellers possa ser
escrita de tais fontes, esta será sempre apenas uma história do ponto de vista
dos (principalmente) homens que criaram tais documentos. Sem dúvida, a
questão das origens continuará obscura e o “início” da cultura dos Travellers
provavelmente não será identificada através de métodos apenas históricos. Visto
que utilizar a “história” para uma causa política contemporânea, como por
exemplo, a defesa do tratamento igualitário e étnico dos Irish Travellers, não
avançará nos argumentos dos grupos de defesa política dessas populações,
porque a história está aberta a intermináveis debates e reinterpretações. Se um
pesquisador procura demonstrar que estes existiram no século IX, outro tentará
minar esse argumento. Acreditar que a cultura dos Irish Travellers só tem
validade histórica, se for antiga, é um começo perturbador para um argumento
acadêmico ou político de rentabilidade duvidosa.

Então, quem são Pavee?

Podemos falar que os Irish Travellers, podem ser enquadrados enquanto


um grupo indígena minoritário nômade, localizado principalmente na Irlanda,
Grã-Bretanha e EUA. Estão presentes na sociedade britânica há séculos de
acordo com fontes históricas (ADAMS et al., 1975: 172-173). Descritos pelas
definições oficiais como aqueles que vagueiam de um lugar para outro sem
residência fixa, ressaltando uma distinção das pessoas que episodicamente
viajam. A população irlandesa nomeava os Irish Travellers como Tinkers2,
contemporaneamente este termo é depreciativo e caiu em desuso, sendo
utilizado o termo Pavee3. Agora, a maioria dos irlandeses casuais se referem aos
Irish Travellers como Knackers4, que também não é aceito pelos mesmos.

Historicamente, os Pavee desempenhavam nichos vitais na economia


pré-industrializada da Irlanda e partes da Grã-Bretanha rural até a década de
1950. Eram empregados enquanto trabalhadores agrários sazonais, como
funileiros, inseridos no comércio de cavalos, no artesanato rural, na venda de
mercadorias artesanais vendidos de porta-a-porta, como latoeiros e
comerciantes dentre outros que eram necessários a população rural
estabelecida nessa região. Eram nômade parte ou durante todo o ano que incluía
viagens entre a Irlanda e partes da Grã-Bretanha, o que se refletia em padrões
familiares e ofícios distintos. Uma combinação de um modelo cultural
diferenciado, nomadismo, famílias extensas coesas e uma forte resistência ao
trabalho assalariado, sustentava a natureza e estrutura dos Pavee. Porém, as
habilidades empreendedoras dos viajantes adaptadas como "mainstream" da

2 Funileiros, pessoas que realizam trabalhos manuais dentre outros serviços.


3 É um nome nativo que expressa “ as pessoas que andam”.
4 Knacker é um título de trabalho utilizado há séculos para pessoas responsáveis em

determinadas áreas pela remoção e limpeza de carcaças de animais. O termo "knacker" é usado
também na Irlanda para denotar um Irish Travellers.
economia mudou depois de 1945 (ADAMS et al., 1975: 172-173), gerando
mudanças nesse cenário.

No entanto, a partir dos anos 1960, começamos a assistir os primeiros


processos de industrialização, mecanização da agricultura, assim como, um
maior acesso a rádio e tv. Essa transformação acarretou consequências
profundas na vida dos Pavee, em que os papéis que os mesmos
desempenhavam na sociedade irlandesa foram rapidamente substituídos. Isso
impactou os lugares que ocupavam socialmente, alterando as formas de
subsistência, previsivelmente o status. Os Pavee como muitos irlandeses
responderam a essas rápidas mudanças sociais, deslocando-se das áreas rurais
para os grandes centros urbanos em busca de trabalho (GMELCH, 1977).

Contudo, as famílias de Pavee que viviam em acampamentos eram vistas


como “problemas” por terem idéias diferentes sobre propriedade ou moradia. As
famílias Pavee que viviam em acampamentos eram vistas como um “problema”
e esse problema seria resolvido a partir da abordagem estatal, implicando em
“absorção” destes grupos a sociedade irlandesa, reduzindo a oportunidade para
que o nomadismo fosse praticado e de forma permanente através de uma
política de oferecer aos Pavee casas estabelecerem eles nas cidades que
acampavam. Pois o entendimento era que todas as dificuldades sociais e
culturais pelos quais estas populações enfrentavam girava em torno da prática
nômade (COMMISSION ON ITINERANCY, 1963).

Ao assumirem que prover moradia para os Pavee resultaria em uma


integração destes à sociedade irlandesa, leis foram promulgadas tornando o
nomadismo quase impossível para os Pavee. Essa política de “assimilação” foi
exposta no Relatório da Comissão de Itinerância (1963).

A escassez de locais temporários e permanentes teve um impacto


devastador sobre os cuidados de saúde primária, saúde mental, educação e
bem-estar geral dos Pavee na Irlanda e Grã-Bretanha. A prevalência de
acampamentos não autorizadas, aumentou o assédio da polícia e autoridades
sob os Pavee e os locais que ultrapassassem as cláusulas da CJPOA 19945.

5Criminal Justice and Public Order Act 1994, ou seja, A Lei de Justiça Criminal e Ordem Pública
de 1994 é uma lei do Parlamento do Reino Unido. Introduziu uma série de mudanças na lei
Essas pressões forçaram muitos a ocuparem alojamentos inadequados, muitas
vezes separando famílias e removendo os Pavee dos suportes sociais e
psicológicos da sua família extensa. O assentamento inadequado os expõem à
discriminação, ao racismo e uma cultura de degradação, especialmente para
jovens Pavee que divididos entre a cultura nômade e as culturas de rua urbanas,
refletem essa tensão no comportamento. O efeito cumulativo desse processo foi
o empobrecimento, o genocídio cultural e a criminalização de grandes seções da
comunidade Pavee na Irlanda e Grã-Bretanha (COLLINS, 2003).

Para se ter idéia do incômodo destas populações para o governo irlandês,


em 1960, o político sênior James Dillon expôs ao parlamento irlandês se
referenciando os Irish Travellers como “o tipo difícil de Tinker itinerante”6. O uso
da palavra é considerado pejorativo e tem sido criticado por grupos de defesa
dos Irish Travellers, pois é totalmente indiferente e racista. A questão, é que
muitos irlandeses são contrários a essa opinião, tendo em vista, que se afirmam
enquanto, “não racistas” e também porque muitos rejeitam a idéia de que sua
etnia é distinta. A maioria dos irlandeses, no entanto, que conversei, falou que
reconhece um Pavee em segundos, independentemente de traje ou
circunstância. Tive a oportunidade de constatar no momento que estávamos
conversando e apontaram-no mostrando para mim um deles no centro de Cork,
na Irlanda onde estávamos realizando uma entrevista.

O racismo estrutural com os Pavee é profundo. O conflito com os Pavee


irlandeses é quase inevitável. Pois a população geral considera que os
Pavee são brancos e irlandeses, concluindo que eles não são um grupo étnico
distinto das pessoas oriundas de outras localidades. Os negros, por exemplo,
formam uma série de grupos étnicos. Os Gypsies que são cidadãos de diferentes
países europeus têm nacionalidade checa e etnia cigana, nacionalidade romena
e etnia cigana e nacionalidade francesa e etnia cigana. Então, discutir origem,

existente, principalmente na restrição e redução de direitos existentes e em maiores penalidades


para certos comportamentos "anti-sociais". Nesta contêm a seção 80, que revogou o dever
imposto aos conselhos pelo Caravan Sites Act 1968 de fornecer locais para Gypsies e Travellers
e o subsídio de ajuda para o fornecimento de lugares também foi retirado.

6"Dáil Éireann – Volume 183 – 29 June, 1960". Dáil Éireann. 29 June 1960. Archived from the
original on 5 October 2013. Retrieved 13 April 2019.
história, mas pensando em termos de processos, parece fundamental quando se
pesquisa e se discute sobre os Pavee.

Os novos horizontes trazidos para os Pavee diante o mapeamento


genético

Em 2017 estudos na área da Genética publicado pela Revista Scientific


Reports liderado pela RCSI7 (Royal College of Surgeons, na Irlanda) e pela
Universidade de Edimburgo, examinaram a estrutura genética das populações
Irish Traveller, confirmando que eles são descendentes de irlandeses. Pela
primeira vez, possibilitou uma estimativa objetiva de quando os IrishTravellers se
separaram da população “estabelecida” na Irlanda. Essa pesquisa, está
ajudando a informar a história destas populações diante os processos políticos
de reconhecimento étnico, pois diante desta constatação os Estados da Irlanda
seriam ainda mais pressionados a reconhecê-los formalmente como grupos
étnicos. Este pesquisa genética contou com pesquisadores da University
College Dublin e da Universidade Hebraica de Jerusalém, o estudo teve uma
base populacional 50 Irish Travellers, 143 Roma europeus, 2232 irlandeses,
2039 britânicos e 6255 europeus ou pessoas de outros lugares do mundo. E
Explorou a história e a estrutura da população Irish Traveller no contexto de
grupos irlandeses, europeus de países vizinhos e os grupos Roma Gypsies.

É importante ressaltar que hoje os Irish Travellers representam


aproximadamente 0,6% da população irlandesa, consistindo em entre 29.000 e
40.000 pessoas. E esta pesquisa histórica, usando DNA de amostras de Irish
Travellers, irlandeses, europeus, e Roma Gypsies, levantou questões ao
descobrir que, primeiro: em um nível genético, os Pavee são muito próximos dos
demais irlandeses, apesar de mostrarem diferenças significativas. Segundo, que
não se encontraram provas de uma ancestralidade partilhada entre os Pavees e
Roma Gypsies. Terceiro, que a estimativa do tempo em que os Pavee
divergiram da população estabelecida foi de aproximadamente 12 gerações, ou
seja, 360 anos atrás. Quarto, foi demonstrado pequenas diferenças genéticas

7 A pesquisa foi parcialmente financiada pela Science Foundation Ireland . O RCSI está
classificado entre as 250 melhores instituições do mundo e ocupa o 1º lugar na República da
Irlanda no ranking mundial de universidades do Times Higher Education (2016-2017). É uma
instituição internacional de ciências da saúde sem fins lucrativos, com sede em Dublin, focada
em educação e pesquisa para promover melhorias na saúde humana em todo o mundo.
entre os falantes dos dialetos Cant e Gammon da língua Shelta dos Irish
Travellers (BINCHY, 1994). Por último, foi descoberto que a proporção de
genomas dos Pavee, onde as cópias materna e paterna são idênticas, estavam
em igualdade com populações consangüíneas similares em outros países
(CARMI et al., 2017)

Isso significa que os genes dos viajantes irlandeses estão mais próximos
da população irlandesa estabelecida em um nível genético, em oposição ao
equívoco comum de que os Pavee são uma população híbrida de Irish Travellers
e europeus. A distância genética que existe entre Pavee e a população irlandesa
pode ser atribuída à uma desvio genético, causado por centenas de anos de
isolamento genético combinado com um número populacional decrescente. O
estudo conseguiu elucidar um importante questão que girava em torno do debate
do momento em que a população dos Irish Traveller se separa dos irlandeses
estabelecidos. Demonstrando que é um equívoco afirmar que os viajantes se
deslocaram devido à Grande Fome (1845-1852) na Irlanda. Tendo em vista que
se a separação começou por volta de 12 gerações atrás, isso remonta a meados
dos anos 1600.

Ou seja, uma dos motivos pelos quais os irlandeses argumentam contra


os Irish Travellers, é o fato deles acharem que eles simplesmente desistiram da
sociedade durante a Grande Fome (CLARK, 1998). A relação com a origem dos
Irish Travellers a Grande Fome é entendida por McDonagh (2000) como uma
tentativa de negar que os Pavee estão de posse de algum tipo de status étnico.
A análise genética agora mostra que os viajantes são tão distintos dos irlandeses
estabelecidos que merecem seu próprio grupo étnico, e o reconhecimento da
etnia dos Pavee coloca em descrédito a ideologia racista de que todos os Irish
Travellers são um povo que precisam ser civilizados e normalizados pelo Estado.

Entre os Pavee, os sentinelas de sua cultura

Parecendo sentinelas, duas caravanas abandonadas supervisionam a


entrada do campo de Spring Lane, esta foi minha primeira visão quando cheguei
no que o governo chama de alojamento. Cerca de 20 famílias, incluindo mais de
90 crianças, vivem neste campo. Na pequena estrada, para chegar na parte
central do campo, várias barracas construídas de placas de metal, se dispunham
ao redor dos traillers, que em suas pequenas chaminés fumaçavam na
preparação de alguma comida. Os Pavees moram próximo a uma antiga
pedreira, no subúrbio, a cinco minutos do centro de Cork, que é a segunda maior
cidade da Irlanda.

É importante ressaltar que o Conselho de Cork tornou-se a primeira


autoridade local a apoiar a etnia do Pavees na Irlanda. Em uma reunião do
Conselho uma moção apresentada pelo vereador do Partido Sinn Fein, Mick
Nugent, foi aceita para reconhecer a Comunidade dos Pavees como um grupo
étnico. Embora Ronnie Fay, do Centro de Visitantes de Pavee Point 8, um
importante organização em defesa dos populações Travellers tenha saudado a
moção e tenha dito que era “positiva”, disseram ao TheJournal.ie que “a etnia do
Pavee é um fato” e eles não precisam de conselhos para votar sobre isso.

Em Cork estima-se hoje que vivam aproximadamente 500 famílias,


Pavees que em sua maioria nasceu em Cork, e são pressionados continuamente
para serem desalojados da área, relegados às margens extremas da sociedade
irlandesa por uma lógica de Estado hostil e vistas pessoas perigosas. Consegui
um contato para chegar aos Pavees através de uma colega Roma Gypsy que
trabalhava comigo e que conhecia alguma pessoas Pavee. Antes de conhecer
Liam de 19 anos, que foi o primeiro Pavee que conheci, eu brasileira e
pesquisadora dos ciganos calon do Nordeste do Barsil, não conseguia identificar
quem era ou não Pavee. Em Cork, circulam e vivem muitas pessoas de
nacionalidades diferentes, que se deslocam para a cidade, em busca da
apredizagem do inglês, de emprego, fugindo da capital e considerando o custo
de vida mais atrativo. Então, lidamos com muitos sotaques e fenótipos diferentes.
Contudo, após conhecer Liam e conseguir a autorização de sua família, de poder
visitar accommodation como chamam, comecei a identificar seu sotaque, seus
traços faciais e o modo pelo qual se comunicam e como expressam isso na
postura e no movimento de seus corpos.

8 A Pavee Point é uma organização não governamental nacional composta por Irish Travellers,
ciganos e membros da maioria da população que trabalham em parceria a nível nacional,
regional, local e internacional. Que tem como objetivo contribuir para a melhoria da qualidade de
vida, condições de vida, status e participação de Travelers & Roma através do trabalho
inovadores para a justiça social, maior solidariedade, desenvolvimento, igualdade e direitos
humanos. Segue o link: https://www.paveepoint.ie/about-pavee-point/
A maioria dos jovens entre 17 e 20 anos é casado, a mãe Liam, Eva de
38 anos, misturando o inglês com algumas palavras Gammon9, falou que é
comum os Pavee casarem cedo e que é normal casamentos entre primos
(casamentos consangüíneos), tendo em vista que o matrimônio entre os Pavees
não divide a família fisicamente estendida e limita à quebra da disciplina interna
do grupo. Para Eva, os pais também temem perder suas crianças
(particularmente mulheres) nas relações de namoro, de amizade ou casamento
com rapazes que não sejam Pavee, existe grande resistência de colocarem seus
filhos nas escolas regulares, pois, para Eva é na escola onde eles tem mais
contatos com os costumes “da rua”, e que estes podem ser “influenciados” a
práticas dos irlandeses, sofrendo consequências dentro do círculo familiar
Pavee.

Os papéis de gênero são claramente definidos até para o mais novo dos
filhos, ao me mostrarem as crianças, os garotos sempre mostram seus punhos
apertados e assumem uma posição de virilidade. As garotas, por outro lado,
tomam posição com a mão na cintura ou nos quadris, se escondendo por trás
das pernas de seus pais. As meninas Pavee de idade escolar secundária
geralmente iniciam uma espécie de “aprendizado” em casa para o casamento
precoce que substitui o ensino secundário formal. Em conversa com algumas
meninas entre 16 e 22 anos, elas explicavam que faziam a limpeza e tinham a
obrigação de mater a casa organizada e certificar-se de que os meninos e o pai
tenham comida quando voltarem para casa após o trabalho. Ela ainda explana
que tentam fazer trabalhos de meio período ou fazer vendas de carros para
trazer dinheiro para casa, para que você possam comprar suas próprias coisas,
pois se tiverem uma grande família, terão que trabalhar para comprar suas
coisas pessoas.

Essas famílias que visitei já fazem parte do momento geracional na qual


as viagens já se tornam menos frequentes. Donegal, pai de Eva, fala que as

9
Os Pavees usam o idioma dentro de sua própria comunidade e na presença de pessoas
estabelecidas em certas situações. Para a amiga que me acompanhou, que estava me ajudando
na compreensão e tradução, ela falou que eles utilizam algumas palavras em Gammon/ Shelte,
porque para os mesmos tem coisas que fazem mais sentido em sua língua. Consegui identificar
o significado de algumas palavras pelo contexto da conversa, outras foi impossível para mim
naquele momento.
famílias que moram Spring Lane não estão viajando com tanta frequência porque
sentem medo de quando retornarem serem impedidos de voltar para o campo.
Essa fala está associada aos discursos opressivos do vereador Ken O'Flynn,
então candidato a prefeito da cidade para realocarem eles para outra área. Para
a maioria do Pavees que estão nesse alojamento, essa proposta, é para os
expulsarem sem realocação para toda população Pavee. Os Pavees demandam
que só se retiram da área se construírem alojamentos em Ellis's Yard, um campo
a 8 minutos de Spring Lane. Contudo os moradores da área não concordam com
a realocação e falam que deveriam retirar os Pavees de toda redondeza.

O espaço de Spring Lane é bastante limitado, tanto físico, quanto


simbolicamente para os Pavees ganharem a vida e vivenciarem sua cultura.
Visto que esses grupos precisam de maiores espaços, pois possuem um elo
cultural forte com a criação de cavalos, e, em segundo plano, com cachorros.
Assim como fazem artesanato de lata (que origina o apelido depreciativo de
funileiros/ tinkers) e suas práticas de socialização, que incluem tarefas diárias
nas áreas externas dos traillers.

À guisa da conclusão, há um desafio a ser encarado nos estudos sobre


os Irish Travellers que gira em torno de como a sociedade sedentária definem
os Pavees, o momento em que a academia os toma enquanto questão de
pesquisa e o quanto isso gerou hipóteses de origens e justificativas para situação
na qual eles se encontram hoje, assim como a leitura pela qual o Estado se
apropriou dessa questão legitimando ou não essas populações. Muitas
produções não refletem a partir de processos, mas congela-se a história das
populações Travellers e Gypsies em geral como se fizessem parte de uma só
matriz, por colocarem com ponto central a questão do “nomadismo”10. Assim,
irlandeses questionam a falta de símbolos culturais significativos para o
reconhecimento étnico, tendo em vista, que não os reconhecem enquanto um
grupo. Pois, enquanto a noção de identidade étnica utilizada por aqueles que se
posicionam contra a política de garantir aos grupos étnicos os direitos legais se

10Na dissertação de mestrado explico que o nomadismo é uma categoria acionada pelos ciganos
calon em contextos distintos, tanto marcar a identidade, destacar uma trajetória, traçar uma
ocupação no território e/ou demarcar uma diferença. Por esse motivo o nomadismo não pode
ser um conceito estagnado no tempo, mas precisa ser entendido atravessado por processos
históricos, identitários e políticos. (MEDEIROS, 2016).
dirijam para raça e cultura, e que esses grupos gradativamente estariam
desaparecendo, essa perspectiva não contemplará atualizações ou
reelaborações socioculturais na dinâmica de vida desses grupos, além de que
dificilmente haverá consenso em reconhecer etnicamente um grupo como
distinto. É pouco provável que esses conflitos deixem de existir, pois sempre há
interesses divergentes (BARTH, [1969] 2000). Maybury-Lewis afirma que a
“etnicidade não é uma condição estável, senão uma relação negociada entre um
grupo e outros, entre estes grupos e o Estado” (2003, p.14).

Categorizar os Pavee como um grupo étnico, capacita alguns


(particularmente as organizações de "líderes" dos Irish Travellers) a se
perceberem nesse momento político em que estão envolvidos e com seus
respectivos interesses, utilizando a etnicidade enquanto um instrumental político.
Entretanto, podem ter o efeito de reforçar o estigma e aumentar ainda mais a
intolerância, e as atitudes em relação aos Pavees na sociedade em geral. Isso
porque os argumentos culturais quando diz respeito a etnicidade dentro dos
círculos acadêmicos e políticos raramente são livres de consequências
políticas/sociais, e na Irlanda tem havido muitos casos onde os jornalistas
transformaram os argumentos sobre a etnia dos Pavees como algo que se
sustenta a partir de uma opinião, desconsiderando todos os processos históricos
de lutas e todas as questões apresentadas pelas pesquisas científicas.

Trabalhos acadêmicos, com a intenção de validar Pavees como um etnia


distinta, tiveram a consequência não intencional de nutrir o racismo cultural
dentro da sociedade irlandesa. O racismo cultural, de acordo com Wren, “é um
substituição refinada do racismo biológico anterior. Depende da história que a
biologia ou a religião utiliza para explicar a superioridade” (WREN, 2001:143).
Enquanto o racismo cultural estiver enraizado em atitudes sociais de longa
duração da sociedade contra os Pavee, a ideia de etnicidade, de uma identidade
que se distingue dos irlandeses, será questionada, ou colocada em em cofronto
todas as vezes que os Pavees forem vistos como envolvidos em comportamento
anti-social. Para os irlandeses é inaceitável distinguir os cabelos loiros,
castanhos ou ruivos, olhos claros dos Irish Travellers, dos irlandeses “regulares”.
Como pude constatar na fala de uma irlandesa de 37 anos:
Os ativista querem nos convencer que eles (Pavee) são diferentes
de nós. Não concordo, são exatamente o mesmo que o resto de
nós, mas com caravanas. Estão falando de uma raça e etnia
diferente, que não são irlandeses, se são porque cobram do nosso
governo uma postura. Isso está incorreto: seus nomes, raça,
recursos são irlandeses. Sua linguagem, Shelta, é uma forma de
backslang11, feito através da língua irlandesa. Minha opinião é que
eles, dizem pouco sobre respeitar a cultura e sensibilidades de seus
vizinhos irlandeses (ENTREVISTA CONCEDIDA EM FEVEREIRO
DE 2019, CORK, IRLANDA).

A emergência étnica tem uma relação direta com a política estatal, pois
as políticas públicas são desenvolvidas por necessidades. Os grupos não
surgem necessariamente com as políticas, mas são restituídos em seus
territórios, onde tem a possibilidade de reorganizar suas coletividades com o
auxílio do Estado (WEBER, 1991). Voltar esse olhar para os grupos étnicos
contribui na ação de pagamento de uma dívida que a sociedade nacional tem
com esses povos que foram obrigados a deixar para trás suas histórias e cultura
e se submeter a distintas formas de relações com o governo.

Assim reconhecer a etnia dos Pavee significa reconhecer que os viajantes


experimentam racismo e discriminação. E somente reconhecendo totalmente
esse problema que o governo e os grupos sociais envolvidos podem trabalhar
em direção a uma solução. Estes longos anos de exclusão dos Pavee na
sociedade irlandesa resultou em condições de vida muito adversas para os Irish
Travellers – baixos níveis de resultados na educação, desemprego de longa
duração e problemas graves de saúde, incluindo baixa expectativa de vida, e
altas taxas de mortalidade. Dados do Ireland Traveller Health Study (AITHS) em
201012 constatou que taxa de suicídio era seis vezes maior do que a média
nacional, respondendo por 11% das mortes dos pavee. Comparado aos Roma
Gypsy que vivem na Irlanda, os Irish Travellers segundo o Economic and Social
Research Institute (ESRI)13 da Irlanda, passam por um processo de exclusão
estrutural e sistemática dez vezes maior de discriminação. Portanto, quando

11
Uma espécie de retorno das antigas gírias.
12
All Ireland Traveller Health Study Team (AITHS Team) (2010) All Ireland Traveller Health Study: Summary
of Findings. Dublin: School of Public Health, Physiotherapy and Population Science, University College
Dublin.
13
WATSON Dorothy; KENNY, Oona; MCGINNITY, Frances. A Social Portrait of Travellers in Ireland. The
Economic and Social Research Institute. Research Series Number 56, 2017.
falamos de Pavee, ainda estamos lidando com populações que continuam a se
opor à desconfiança da maioria estabelecida.

Referências

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