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Adoradores ou Consumidores?

O Outro Lado da Herança de Charles G. Finney


por

Augustus Nicodemus Lopes

A palavra "evangélicos" tem se tornado tão inclusiva que corre o


perigo de se tornar totalmente vazia de significado — R. C. Sproul

Em certa ocasião o Senhor Jesus teve de fazer uma escolha entre ter 5
mil pessoas que o seguiam por causa dos benefícios que poderiam
obter dele, ou ter doze seguidores leais, que o seguiam pelo motivo
certo (e mesmo assim, um deles o traiu). Em outras palavras, uma
decisão entre muitos consumidores e poucos fiéis discípulos. Refiro-me
ao evento da multiplicação dos pães narrado em João 6. Lemos que a
multidão, extasiada com o milagre, quis proclamar Jesus como rei, mas
ele recusou-se (João 6.15). No dia seguinte, Jesus também se recusa a
fazer mais milagres diante da multidão pois percebe que o estão
seguindo por causa dos pães que comeram (6.26,30). Sua palavra
acerca do pão da vida afugenta quase que todos da multidão (6.60,66),
à exceção dos doze discípulos, que afirmam segui-lo por saber que ele
é o Salvador, o que tem as palavras de vida eterna (6.67-69).

O Senhor Jesus poderia ter satisfeito às necessidades da multidão e


saciado o desejo dela de ter mais milagres, sinais e pão. Teria sido feito
rei, e teria o povo ao seu lado. Mas o Senhor preferiu ter um punhado
de pessoas que o seguiam pelos motivos certos, a ter uma vasta
multidão que o fazia pelos motivos errados. Preferiu discípulos a
consumidores.

Infelizmente, parece prevalecer em nossos dias uma mentalidade entre


os evangélicos bem semelhante à da multidão nos dias de Jesus.
Parece-nos que muitos, à semelhança da sociedade em que vivemos,
tem uma mentalidade de consumidores quando se trata das coisas do
Reino de Deus. O consumismo característico da nossa época parece ter
achado a porta da igreja evangélica, tem entrado com toda a força, e
para ficar.

Por consumismo quero dizer o impulso de satisfazer as necessidades,


reais ou não, pelo uso de bens ou serviços prestados por outrem. No
consumismo, as necessidades pessoais são o centro; e a "escolha" das
pessoas, o mais respeitado de seus direitos. Tudo gira em torno da
pessoa, e tudo existe para satisfazer as suas necessidades. As coisas
ganham importância, validade e relevância à medida em que são
capazes de atender estas necessidades.

Esta mentalidade tem permeado, em grande medida, as programações


das igrejas, a forma e o conteúdo das pregações, a escolha das músicas,
o tipo de liturgia, e as estratégias para crescimento de comunidades
locais. Tudo é feito com o objetivo de satisfazer as necessidades
emocionais, psicológicas, físicas e materiais das pessoas. E neste afã,
prevalece o fim sobre os meios. Métodos são justificados à medida em
que se prestam para atrair mais freqüentadores, e torná-los mais
felizes, mais alegres, mais satisfeitos, e dispostos a continuar a
freqüentar as igrejas.

Esta mentalidade consumista por parte de evangélicos se mostra por


vários ângulos. Numa pesquisa recente feita pelo Instituto Gallup nos
Estados Unidos constatou-se que 4 em cada 10 americanos estão
envolvidos em pequenos grupos que se reúnem semanalmente
buscando saída para o envolvimento com drogas, problemas
familiares, solidão e isolacionismo. Embora evidentemente muitos
estarão em busca de uma oportunidade para aprofundar a experiência
cristã e crescer no conhecimento de Deus, a maioria, segundo Gallup,
busca satisfazer suas necessidades pessoais. De acordo com a revista
Newsweek, 1 em cada 5 americanos sofre de alguma forma de doença
mental (incluindo ansiedade, depressão clínica, esquizofrenia, etc.)
durante o curso de um ano. E disso se aproveitam os espertos. Uma
denúncia contra a indústria evangélica de saúde mental foi feita ano
passado por Steve Rabey em Christianity Today. Cada vez mais cresce
o marketing nas igrejas na área de aconselhamento, com um número
alarmante de profissionais cristãos oferecendo ajuda psicológica
através de métodos seculares. A indústria de música cristã tem
crescido assustadoramente, abandonando por vezes seu propósito
inicial de difundir o Evangelho, e tornando-se cada vez mais um
mercado rentável como outro qualquer. A maioria das gravadoras
evangélicas nos Estados Unidos pertence às corporações seculares de
entretenimento. As estrelas do gospel music cobram cachês altíssimos
para suas apresentações. Num recente artigo em Strategies for Today’s
Leader, Gary McIntosh defende abertamente que "o negócio das igrejas
é servir ao povo". Ele defende que a igreja deve ter uma mentalidade
voltada para o "cliente", e traçar seus planos e estratégias visando suas
necessidades básicas, e especialmente faze-los sentir-se bem.
Um efeito da mentalidade consumista das igrejas é o que tem sido
chamado de "a síndrome da porta de vai-e-vem". As igrejas estão
repletas de pessoas buscando sentido para a vida, alívio para suas
ansiedades e preocupações. Assim, elas escolhem igrejas como
escolhem refrigerantes. Tão logo a igreja que freqüentam deixa de
satisfazer as suas necessidades, elas saem pela porta tão facilmente
quanto entraram. As pessoas buscam igrejas onde se sintam
confortáveis, e se esquecem de que precisam na verdade de uma igreja
que as faça crescer em Cristo e no amor para com os outros.

Creio que há vários fatores que provocaram a presente situação. Ao


meu ver, um dos mais decisivos é a influência da teologia e dos
métodos de Charles G. Finney no evangelicalismo moderno. Houve
uma profunda mudança no conceito de evangelização ocorrida no
século passado, devido ao trabalho de Charles Finney. Mais do que a
teologia do próprio Karl Barth, a teologia e os métodos de Finney têm
moldado o moderno evangelicalismo. Ele é o herói de Jerry Falwell,
Bill Bright e de Billy Graham; é o celebrado campeão de Keith Green,
do movimento de sinais e prodígios, do movimento neopentecostal, e
do movimento de crescimento da igreja. Michael Horton afirma que
grande parte das dificuldades que a igreja evangélica moderna passa é
devida à influência de Finney, particularmente de alguns dos seus
desvios teológicos: "Para demonstrar o débito do evangelicalismo
moderno a Finney, devemos observar em primeiro lugar os desvios
teológicos de Finney. Estes desvios fizeram de Finney o pai dos fatores
antecedentes aos grandes desafios dentro da própria igreja evangélica
hoje: o movimento de crescimento de igrejas, o neopentecostalismo, e o
reavivalismo político".

Para muitos no Brasil seria uma surpresa tomar conhecimento do


pensamento teológico de Finney. Ele é tido como um dos grandes
evangelistas da Igreja Cristã, e estimado e venerado por evangélicos no
Brasil como modelo de fé e vida. E não poderia ser diferente, visto que
se tem publicado no Brasil apenas obras que exaltam Finney.
Desconheço qualquer obra em português que apresente o outro lado.
Meu alvo, neste artigo, não é escrever extensamente sobre o assunto,
mas mostrar a relação de causa e efeito que existe entre o ensino e
métodos de Finney e a mentalidade consumista dos evangélicos hoje.

Em sua obra sobre teologia sistemática (Systematic Theology [Bethany,


1976]), escrita pelo fim de seu ministério, quando era professor do
seminário de Oberlin, Finney revela ter abraçado ensinos estranhos ao
Cristianismo histórico. Ele ensina que a perfeição moral é condição
para justificação, e que ninguém poderá ser justificado de seus pecados
enquanto tiver pecado em si (p. 57); afirma que o verdadeiro cristão
perde sua justificação (e conseqüentemente, a salvação) toda vez que
peca (p. 46); demonstra que não acredita em pecado original e nem na
depravação inerente ao ser humano (p. 179); afirma que o homem é
perfeitamente capaz de aceitar por si mesmo, sem a ajuda do Espírito
Santo, a oferta do Evangelho. Mais surpreendente ainda, Finney nega
que Cristo morreu para pagar os pecados de alguém; ele havia
morrido com um propósito, o de reafirmar o governo moral de Deus, e
nos dar o exemplo de como agradar a Deus (pp. 206-217). Finney nega
ainda, de forma veemente, a imputação dos méritos de Cristo ao
pecador, e rejeita a idéia da justificação com base da obra de Cristo em
lugar dos pecadores (pp. 320-333). Quanto à aplicação da redenção,
Finney nega a idéia de que o novo nascimento é um milagre operado
sobrenaturalmente por Deus na alma humana. Para ele, "regeneração
consiste no pecador mudar sua escolha última, sua intenção e suas
preferência; ou ainda, mudar do egoísmo para o amor e a
benevolência", e tudo isto movido pela influência moral do exemplo de
Cristo ao morrer na cruz (p. 224).

Finney, reagindo contra a influência calvinista que predominava no


Grande Avivamento ocorrido na Nova Inglaterra do século passado,
mudou a ênfase que havia à pregação doutrinária para uma ênfase à
fazer com que as pessoas "tomassem uma decisão", ou que fizessem
uma escolha. No prefácio da sua Systematic Theology ele declara a
base da sua metodologia: "Um reavivamento não é um milagre ou não
depende de um milagre, em qualquer sentido. É meramente o
resultado filosófico da aplicação correta dos métodos."

Finney não estava descobrindo uma nova verdade, mas abraçando um


erro antigo, defendido por Pelágio no século IV, e condenado como
herético pela Igreja, ou seja, que nenhum de nós nasce pecador; o
homem, por nascimento, é neutro, e capaz de fazer escolhas para o
bem e para o mal com inteira liberdade. Finney tem sido corretamente
descrito por estudiosos evangélicos como sendo semi-pelagiano (ou
mesmo, pelagiano) em sua doutrina, e um dos responsáveis maiores
pela disseminação deste erro antigo entre as igrejas modernas.

Na teologia de Finney, Deus não é soberano, o homem não é um


pecador por natureza, a expiação de Cristo não é um pagamento
válido pelo pecado, a doutrina da justificação pela imputação é
insultante à razão e à moralidade, o novo nascimento é produzido
simplesmente por técnicas bem sucedidas, e avivamento é o resultado
de campanhas bem planejadas com os métodos corretos.

Antes de Finney, os evangelistas reformados aguardavam sinais ou


evidências da operação do Espírito Santo nos pecadores, trazendo-os
debaixo de convicção de pecado, para então guiá-los à Cristo. Não
colocavam pressão sobre a vontade dos pecadores, por meio
psicológicos, com receio de produzir falsas conversões. Finney, porém,
seguiu caminho oposto, e seu caminho prevaleceu. Já que acreditava
na capacidade inerente da vontade humana de tomar decisões
espirituais quando o desejasse, suas campanhas de evangelismo e de
reavivamento passaram a girar em torno de um simples propósito:
levar os pecadores a fazer uma escolha imediata de seguir a Cristo.
Com isto, introduziu novos métodos nos seus cultos, como o "banco
dos ansiosos" (de onde veio a prática de se fazer apelos ao final da
mensagem), o uso de qualquer medidas que provocassem um estado
emocional propício ao pecador para escolher a Deus, o que incluía
apelos emocionais e denúncias terríveis do pecado e do juízo.

O impacto dos métodos reavivalistas de Finney no evangelicalismo


moderno são tremendos. Seus sucessores têm perpetuado estes
métodos e mantido as características do fundador: o apelo por decisões
imediatas, baseadas na vontade humana; o estímulo das emoções
como alvo do culto; o desprezo pela doutrina; e a ênfase que se dá na
pregação a se fazer uma escolha, em vez da ênfase às grandes
doutrinas da graça. As igrejas evangélicas de hoje, influenciadas pela
teologia e pelos métodos de Finney, acreditando que reavivamentos
podem ser produzidos, e que pecadores podem decidir seguir a Cristo
quando o desejarem, têm adotado táticas e práticas em que as pessoas
são vistas como clientes, e que promovem a mentalidade consumista
nas igrejas evangélicas.

A relação entre os métodos de Finney e o espírito consumista moderno


foi corretamente notado por Rodney Clapp, em recente artigo na
Christianity Today (Outubro de 1966): "Ao enfatizar a importância de
se tomar uma decisão para Cristo, Charles Finney e outros
reavivalistas ajudaram na sacramentalização da ‘escolha’, elemento
chave do consumismo capitalista de hoje. O reavivalismo [de Finney]
encorajava sentimentos de êxtase e a abertura do indivíduo para
mudanças costumeiras de conversão e reconversão" (p. 22).

O Senhor Jesus preferiu doze seguidores genuínos a ter uma multidão


de consumidores. Creio que a igreja evangélica brasileira precisa
seguir a Cristo também aqui. É preciso que reconheçamos que as
tendências modernas em alguns quartéis evangélicos é a de produzir
consumidores, muito mais que reais discípulos de Cristo, pela forma
de culto, liturgias, atrações, e eventos que promovem. Um retorno às
antigas doutrinas da graça, pregadas pelos apóstolos e pelos
reformadores, enfatizando a busca da glória de Deus como alvo maior
do homem, poderá melhorar esse estado de coisas.

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