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Karel Kosik
Julho/Setembro de 1968
Primeira Edição: O presente trabalho, publicado originalmente em L’Homme et la
societé, n. 9, julho-setembro de 1968, Paris, foi traduzido para o espanhol por
Fernando Crespo, Editorial Almagesto, Buenos Aires, 1991. A tradução para o
português, que ora vem a público, feita a partir da tradução espanhola, foi cotejada
com o original francês pelo revisor, o que permitiu algumas correções e a restituição
de pequenos trechos, suprimidos pela tradução espanhola.
Fonte: LavraPalavra - https://lavrapalavra.com/2019/08/21/o-individuo-e-a-historia/
Tradução: Willians Meneses da Silva, revisão técnica de Filipe Boechat
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podemos conhecê-las separadamente para buscarmos, em seguida, investigar
em que medida estão ligadas uma à outra.
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existir nem de depender dela, nem de reconhecê-la e de tornar-se seu
representante consciente. A partir deste instante, o indivíduo apresenta sua
atividade particular como uma manifestação direta do universal: é a história
mesma que se realiza em seus atos, é o Ser mesmo que se exprime através de
suas palavras. O grande indivíduo, que interviria, a princípio, como criador da
história, converte-se agora em instrumento da história.
Esta concepção leva, pelas consequências que implica, ao que constitui, de fato,
o ponto de partida da posição oposta. Para a teoria universalista o indivíduo
torna-se um agente histórico se expressa corretamente, pela sua ação, as
tendências ou leis das formações ou forças supraindividuais. A história é uma
potência transcendental: o grande individuo pode acelerar seu processo ou
conferir-lhe uma coloração histórica particular, mas ele não pode suprimir esta
força, nem a modificar em sua essência. Por mais importante que seja o papel
do grande indivíduo nesta concepção, sua missão apresenta dois aspectos
verdadeiramente pouco invejáveis. Este indivíduo é um autômato histórico,
fundando-se sobre um cálculo favorável do conhecimento (informação) e da
vontade (ação) que constituem os elementos suficientes de sua função, todas as
outras qualidades humanas sendo, desde a perspectiva de seu papel histórico,
inúteis ou subjetivas. Segundo esta concepção, o grande individuo, isto é, o
indivíduo histórico, não se identifica com o individuo desenvolvido
universalmente, isto é, com a personalidade. Se o grande individuo cumpre na
história uma função de aceleração e de coloração, surge uma segunda questão:
sua existência não se tornará inútil ou antiquada no momento em que um
“qualquer” ou “qualquer coisa” possa assumir essas duas funções de maneira
mais eficaz e sem as contingências ligadas à existência individual? A concepção
segundo a qual os grandes indivíduos são os realizadores particulares das leis
universais deve implicar finalmente a ideia de que essas funções podem ser
cumpridas de maneira mais segura e eficaz por instituições que, enquanto
dispositivos mecânicos, não precisam mais do que indivíduos de valor mediano
para fazê-las funcionar. Isto confirma a as predições de Schiller, Hölderlin e
Schelling: “em tal instituição, nada tem valor senão na medida em que pode ser
previsto e calculado com certeza. Consequentemente, nela só triunfam os que
possuem a personalidade menos marcante, os talentos os mais ordinários, as
almas que receberam a educação a mais mecânica, para a dominação e a direção
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dos assuntos”. A lógica desta teoria dos grandes indivíduos conduz à apologia
dos indivíduos medíocres.
Um individuo pode ser grande, porém sua grandeza pode não provir de sua
personalidade, de seu espírito ou de seu caráter, mas repousar sobre o poder;
sua grandeza está contida no poder que, por alguma circunstância, um
individuo particular dispõe e graças ao qual ele faz história. Um indivíduo que
dispõe de um máximo de poder pode não possuir, ao mesmo tempo, um mínimo
de individualidade.
O criado pertence ao mundo do grande indivíduo e seu olhar jamais pode ser
crítico, mas, direta ou indiretamente, apologético, e consiste em contar ou em
difundir “a pequena história”, em revelar segredos de bastidor, em murmurar e
favorecer pequenas intrigas. Podemos assim compreender porque, nesta
concepção, o ridículo, o cômico, o humor e a sátira existem sob uma forma
anedótica e em segundo plano, e não tem direito nenhuma importância
histórica. A história, pelo contrário, pertence ao domínio da seriedade, da
abnegação e, como diz Hegel, os períodos de felicidade nela não aparecem a não
ser excepcionalmente. Os criados podem contar anedotas de seus mestres, mas
somente um olhar a partir de um outro mundo, inacessível aos criados, pode
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revelar o ridículo de um indivíduo histórico e apreender seu comportamento
com uma comédia.
Estas duas concepções, por contraditórias que sejam nos detalhes, são incapazes
de encontrar uma solução satisfatória à questão da relação do particular com o
geral. Ou o geral é absorvido pelo particular, e a história torna-se não somente
irracional, mas também absurda, na medida em que cada elemento particular
assume a feição do geral e nela reinam, consequentemente, a arbitrariedade e a
contingência; ou bem o particular é absorvido pelo geral, no sentido em que
indivíduos não são mais do que instrumentos, a história é predeterminada e os
homens somente a fazem aparentemente. Nesta concepção se manifesta
nitidamente uma sequela da teoria teológica que considera a história como um
andaime com a ajuda do qual se constrói um edifício; o andaime, caracterizado
pela provisoriedade, é, por sua natureza ontológica, radicalmente distinto do
edifício e, por isso, separável deste último, que tem o caráter da perenidade. Na
concepção de Santo Agostinho, as “machinamenta temporalia” e as “machinae
transiturae” são qualitativamente diferentes disso para o qual contribuem para
a construção, isto é: illud quo manet in aeternum.
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Os princípios do universal e do particular, pelos quais se exprimiam a relação da
história e do indivíduo sob a forma antinômica petrificada, não são apenas
abstrações que não podem delimitar o caráter concreto da história; são também
princípios falsos e imaginários: não constituem o ponto de partida, ou a base
(principium), do qual nasce o movimento e pelo qual a realidade torna-se
explicável, mas, antes, graus ou etapas deduzidos e petrificados deste mesmo
movimento. Com a evidenciação das insuficiências e contradições dessas duas
concepções, começou-se a abrir caminho para uma certa dialética na qual a
relação da história e do indivíduo não se exprimia mais sob uma forma
antinômica, mas como um movimento no qual se constitui a unidade interna de
seus dois termos. Este novo princípio é o princípio do jogo jogo ou da
representação(1*) {jeu}.(2*)
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{joué} e perdeu, há o que não entrou no jogo e que o observa com a intenção de
participar dele algum dia, e há aquele que é, a uma só vez, ator e expectador e
que, enquanto participante, reflete sobre o sentido do jogo {jeu}. Há, com efeito,
uma diferença entre considerações que incidem sobre o sentido do jogo {jeu} e
uma reflexão sobre o modo de assimilar a técnica e as regras do jogo {jeu} para
que este ganhe um sentido para quem o entendeu como sua própria
oportunidade e a ocasião de fazer valer suas possibilidades.
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cognoscíveis que chamamos de história”.(4) Reduzir a história a um objeto, isto
é, a um processo objetivo tendo leis particulares e se constituindo a partir do
caos das ações individuais e ao que vem se somar ora grandes individualidades
que lhe servem de instrumento, ora simples indivíduos enquanto componentes
deste último, significa que se introduz no fundamento mesmo da história um
tempo reificado. A reificação dos tempos na concepção da história manifesta-se,
por um lado, como supremacia do passado sobre o presente, da história escrita
sobre a história real e, por outro lado, como absorção dos indivíduos pela
história. A história enquanto ciência incidindo sobre a história interessa-se
pelos atos acabados, terminados, pelos acontecimentos que ocorreram. Se a
história existe como objeto de uma ciência e na perspectiva de um historiador
do passado, isto não quer dizer, entretanto, que a história efetiva tenha ela
também apenas uma única dimensão temporal ou que uma única dimensão
temporal defina o tempo concreto da história. O acontecimento histórico que o
historiador estuda enquanto passado e que ele conhece, consequentemente, o
desenvolvimento e as consequências, desenvolveu-se de tal maneira que suas
consequências eram desconhecidas por seus participantes e que o porvir estava
presente em sua ação enquanto plano, surpresa, espera e esperança; isto é,
enquanto inacabamento da história. As leis que regem os processos objetivos da
história são leis (continuidades) de atos acabados e passados que já perderam
seu caráter ativo, fundado sobre a unidade das três dimensões do tempo, para
reduzir-se a uma só dimensão: aquela do passado. Suas leis não constituem,
pois, mais que um quadro geral e, nesse sentido, correspondem a uma história
abstrata (abstracta), isto é, a uma história que perdeu seu caráter essencial, ou
seja, sua historicidade.
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que pode fazer a história do (com o) indivíduo. A história tende a favorecer, por
sua evolução, o desenvolvimento da personalidade ou leva, ao contrário, à
generalização do anonimato e do impessoal? Pode o individuo intervir na
história ou sua possibilidade de inciativa e de atividade só se manifesta em favor
das instituições?
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abstrato. Os momentos existenciais da práxis humana, como o riso, a alegria, o
medo e todas as formas da vida em comum, cotidiana e concreta, como a
amizade, a honra, o amor, a poesia, são rejeitados como ações e acontecimentos
históricos quando são admitidos como assuntos “privados”, “individuais” ou
“subjetivos”, ou bem se convertem em simples instrumentos funcionais, no
quadro de uma dependência simplista que os faz objetos de uma manipulação
(manipulação da honra, da coragem etc.).
De fato, o homem somente pode existir como individuo, o que não significa que
cada individuo seja uma personalidade ou que um individuo que advogue o
individualismo não possa viver da vida das massas. E, do mesmo modo, o
caráter social do individuo não é uma negação da individualidade, como o
pertencimento à comunidade humana não pode ser identificado com o
anonimato impessoal. Se o individualismo é a prioridade do individuo sobre o
todo e o coletivismo a submissão do indivíduo aos interesses do todo, então
parece que estas duas formas são idênticas em um ponto: ambas privam o
indivíduo da responsabilidade, o individualismo porque o homem, enquanto
individuo, é um ser social; o coletivismo porque o homem, mesmo no seio de
uma coletividade, é um individuo.
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independência. Um revolucionário aprisionado está privado de sua liberdade,
mas pode salvaguardar sua independência.
A independência não significa fazer o que os outros fazem, mas não significa
tampouco fazer qualquer coisa sem levar em consideração os outros. Ela não
significa que não dependemos em nada dos demais ou que nos devemos nos
isolar. Ser independente é ter com os demais uma relação de tal ordem que a
liberdade possa aí se produzir, isto é, realizar-se nela. A independência é a
historicidade: é um centro ativo onde se interpenetram o passado e o porvir; ela
é uma totalização na qual se reproduz e se anima no particular (o individual)
isso que é comum ao humano.
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Notas de rodapé:
(1*) Nota do tradutor espanhol: a palavra francesa jeu significa tanto jogo como representação
teatral. O autor a utiliza indistintamente em ambos sentidos. Para não perder de vista esta
circunstância, optamos por traduzir em cada caso segundo o contexto, agregando entre
parênteses a palavra em francês. (retornar ao texto)
(2*) Nota do tradutor brasileiro: Optamos por traduzir jeu ao mesmo tempo por jogo e
representação (teatral), de forma a manter sempre presente a ambivalência do termo. Somente
em alguns casos mantivemos o critério do tradutor espanhol, com a diferença de que
reproduzimos o texto original sempre entre chaves para evitar a confusão com os parênteses e
colchetes introduzidos pelo autor ao longo do texto. (retornar ao texto)
(1) Schelling: Werke, Munique, vol. II, pág. 602. (retornar ao texto)
(2) K. Marx, Misère de la Philosophie, Ed. Sociales, pág. 124. (retornar ao texto)
(3*) Nota do tradutor brasileiro: ao definir o porvir (em francês, l’avenir) como palavra francesa
“enjeu” significa tanto jogo como representação teatral. O autor a utiliza indistintamente em
ambos sentidos. Para não perder de vista esta circunstância, optamos por traduzir em cada caso
segundo o contexto, agregando entre parênteses a palavra em francês. (retornar ao texto)
(3) É nesse sentido que Dilthey, entre outros, entendem a historicidade do indivíduo. Consultar
Ges. Schriften, vol. VII, pág. 135. (retornar ao texto)
(4) Lukacs, Existentialisme ou marxisme., Paris, 1948, pág. 150. (retornar ao texto)
(5) Karl Marx, Fondements de la critique de l’économie politique (Grundrisse), Ed. Anthropos,
Paris, volumen I, pág. 273. (retornar ao texto)
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