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Caminhos já trilhados
SD3 – Nosso governo tem recebido notícias positivas sobre esse remédio
[hidroxicloroquina, cloroquina] fabricado no Brasil, largamente utilizado no
combate à malária, lúpus, artrite.
1
https://www.youtube.com/watch?v=fnJov5K1BSw
acima dá a ver: esse discurso negacionista se materializa em formulações
afirmativas que se contrapõem às formulações, igualmente afirmativas,
produzidas pela prática científica Vale dizer: seu discurso negacionista é
assertivo.
O negacionismo, diferentemente da negação praticada no discurso dos
ditadores, não disputa sentidos através de um enunciado dividido. Enquanto o
enunciado dividido justapõe dois enunciados discursivos, dos quais um vai ser
desqualificado, não por ser falso, mas porque o sujeito com ele não se identifica
ideologicamente, o negacionismo não opõe concepções de mundo em
delimitação recíproca. Esse funcionamento discursiviza uma narrativa que
falsifica saberes científicos devidamente comprovados. Assim procedendo, em
meio a uma pandemia, a política entrou em rota de colisão com os saberes
médicos, gerando tensão permanente entre esses dois campos.
Para falsificar enunciados no interior da ordem médica é necessário que
as posições-sujeito que disputam em torno de uma determinada questão sejam
reconhecidas por essa ordem e o capitão, não sendo médico, não tem
legitimidade para nela inscrever seu discurso. Por conseguinte, seu discurso
negacionista, produzido fora da ordem médica, consiste em uma narrativa
política paralela à narrativa científica, que expressa sua opinião, totalmente
desprovida de evidências científicas e legitimidade.
No caso aqui em análise, o negacionismo é produzido no lugar discursivo
de presidente, lugar para tratar de questões que dizem respeito ao fazer político
de um presidente. É desse lugar discursivo que o tenente-capitão pode/deve
fazer a gestão da pandemia. E é com a autoridade que lhe confere esse lugar,
no entanto, que o capitão faz uma gestão às avessas, distorcendo
sistematicamente as medidas sanitárias de controle da infecção e desdizendo a
gravidade da situação. E assim procedendo, vai substituindo o real por uma
ficção.
O capitão, em sua forma cínica de identificar-se com a ideologia (ŽIŽEK,
1996; BALDINI e DI NIZO, 2015), sabe que a ciência está certa, mas continua
distorcendo as recomendações médicas, espalhando em seu lugar alternativas
que a ciência já descartou por serem ineficazes.
A formulação negacionista gera desinformação e confusão junto à
população que necessita ser orientada, como podemos perceber pelas SD
presentes no Recorte Discursivo 1.
O negacionismo dessa primeira hora pandêmica, ao negar a gravidade da
doença e as medidas protetivas, expõe “a razão cínica” (SLOTERDIJK, apud
BALDINI e DI NIZO, p. 140) que verdadeiramente move o capitão: ele faz, sim,
a gestão da pandemia, mas em direção aos interesses dos empresários e, por
conseguinte, do capital e não em direção à preservação das vidas dos
brasileiros.
Examino, a seguir, o negacionismo produzido em lives ou conversas no
“cercadinho” com seguidores e/ou jornalistas. Este segundo momento toma falas
públicas informais, realizadas nos três últimos meses de 2020, como objeto de
análise.
SD7 - Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: nós [a Pfizer] não nos
responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré,
é problema seu” ... “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em
alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles não têm
nada a ver com isso4.
SD8 - Eu não posso falar como cidadão uma coisa e como presidente
outra. Mas, como sempre, eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não
2
R7, Planalto, 21.10.20
3
http://www.estadao.com, 10.11.20.
4
http://istoé.com,19.11.20
vou tomar vacina. E ponto final. Se alguém acha que a minha vida está
em risco, o problema é meu.5
5
Correio Brasiliense, 15.12.20.
6
Entrevista publicada no canal de seu filho, Eduardo Bolsonaro. Poder 360, 19.12.2020.
mentira política e denunciar o negacionismo do tenente-capitão, evidenciando
que “a revolta é contemporânea à linguagem” (PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 302).
Mas fechemos esse parêntesis. Pausa de respiro.
De tudo quanto precede, percebe-se que o negacionismo falsifica a
ciência e constrói, em seu lugar, perversamente, uma realidade imaginária.
Produz um simulacro do real que opacifica a realidade e confunde, como faz, por
exemplo, em SD9, ao afirmar que a “pandemia está chegando ao final” e, por
isso, “não há pressa em adquirir a vacina”, escancarando, uma vez mais, o modo
cínico que sustenta suas mentiras políticas como forma de evadir-se de suas
obrigações e responsabilidades.
O negacionismo sistemático, a partir do lugar discursivo de presidente,
torna-se criminoso, pois, ao distorcer fatos científicos e desacreditar as formas
de enfrentar a pandemia, predispõe a população contra as medidas sanitárias.
E ao afirmar, como em SD8, que não vai vacinar-se, incentiva seus seguidores
(INDURSKY, 2020b), que se espelham no capitão-mito, a também recusar a
vacina.
O funcionamento discursivo do negacionismo consiste, pois, em uma
modalidade específica da negação que se produz pelo viés de processos de
torção discursiva (INDURSKY, 2019, 2020a), os quais se realizam sob o efeito
da identificação cínica do sujeito com a ideologia. Esses gestos de torção
discursiva, ao se discursivizarem, tramam verdade e falsidade como o direito e
o avesso de um mesmo tecido discursivo. Um não existe sem o outro. Em suma:
o negacionismo, construído por gestos de torção discursiva, constitui, de fato,
uma mentira política, marca muito forte do funcionamento da língua fascista com
a qual o tenente-capitão se subjetiva e produz seus pronunciamentos.
Cabe, então, a pergunta: se o negacionismo praticado pelo capitão pode
ser entendido como mentira política, qual a relação desse funcionamento com
fake news e pós-verdade?
Negacionismo e pós-verdade
Para dar conta da pergunta que deixei ao final da seção anterior, nesta
segunda parte vou trabalhar com dois textos de Mónica Zoppi-Fontana. O
primeiro, é o artigo Pós-verdade: léxico, enunciação e política (2018a). E o
segundo é uma entrevista que Mónica concedeu à Revista Heterotópica:
Mulheres em discurso: linguagem, política e verdade (2018b).
O primeiro texto é atravessado por muitas indagações e algumas delas
ressoam na reflexão que faço aqui. Em função disso, vou trazê-las para
entrelaçar às minhas inquietações a propósito das análises efetuadas na seção
anterior.
Mónica interroga-se, desde o início de seu artigo, sobre “os regimes de
verdade que sustentam a enunciação e circulação do discurso político” (ZOPPI-
FONTANA, 2018a, p.135). Essa interrogação de Mónica ressoa inversamente
em meu texto. Dizendo de outro modo: enquanto Mónica interroga-se sobre os
regimes de verdade que sustentam o discurso político, em minhas análises
observei o regime de repetibilidade do negacionismo que determina o discurso
político do capitão. Assim procedendo, mobilizo os filtros da moral e da ética em
sua relação com a política.
Tais filtros de observação me conduziram ao próximo questionamento de
Mónica: “Na circulação social dos discursos: qual campo impõe seus objetos,
seus modos de dizer, seus efeitos de naturalização sobre os outros, nos dias
atuais?” (id.ib., p. 136).
Em tempos pandêmicos, era de se esperar que o campo da medicina
impusesse seus objetos, pois ele pauta-se em salvar vidas e, no momento em
que vivemos, indica diferentes modos de enfrentar a pandemia. É claro que os
campos político e da informação, numa conjuntura pandêmica, podem e devem
desempenhar um papel extremamente importante, mas é a ciência e a medicina
que devem assumir a linha de frente nesse cenário de mortalidade tão
assustador. Entretanto, como vimos nas análises da seção anterior, o campo da
política deturpou os saberes da ciência e da medicina e naturalizou a morte e os
números inacreditáveis de vidas perdidas. Mas não só: foi do lugar discursivo de
presidente que o capitão, que não é médico, passou a fazer recomendações que
contrariam os pareceres médicos sobre o uso de determinados fármacos, como,
por exemplo, a hidroxicloroquina e a ivermectina, “prescrevendo” o kit-covid
como um tratamento preventivo eficaz contra esse vírus. De modo que é o
campo político que constantemente tenta impor seus objetos, tentando fazer
parecer que tudo já está bem e que é necessário voltar à normalidade, salvar a
economia, voltar ao trabalho, o transporte e o comércio devem funcionar, as
crianças devem retornar às escolas etc. Para isso, desqualifica todos os
cuidados preventivos, condena o uso de máscaras, o confinamento e as vacinas.
Como decorrência dessas torções discursivas, o campo médico precisou
unir-se à imprensa, sobretudo a televisiva, para fazer circular orientações sobre
uso de máscaras, a importância de evitar aglomerações e sobre a segurança
das vacinas, contrapondo-se às falsificações criminosas que o chefe do
executivo faz circular. Essa é uma batalha diária entre os saberes científicos e a
mentira política: de um lado, “a circulação social de uma fala pública” diz Mónica
(ZOPPI-FONTANA, 2018b, p. 37) ao que acrescento: a circulação da fala pública
presidencial criminosa; de outro, a circulação social do discurso científico.
Em trabalhos anteriores, postulei que a falsificação factual está
relacionada à produção de fake news (INDURSKY, 2019; 2020a). Agora, face à
diferença que Mónica estabelece entre fake news e pós-verdade, retomo essa
reflexão a partir da análise do funcionamento do discurso negacionista do
capitão. Para Mónica
“... a pós-verdade sempre aparece relacionada à enunciação de
uma figura identificável, geralmente a um ator político destacado. A
enunciação se dá, portanto, a partir de uma relação com o nome
próprio, com uma autorização do dizer a partir de uma instância
social já legitimada. É essa relação com um locutor já legitimado e
cujo dizer está autorizado institucionalmente que aproxima a
enunciação da pós-verdade ao funcionamento da mentira na
política [...]. (ZOPPI-FONTANA, 2018b, p.35) (Os destaques são
meus)
7
Esses dois exemplos são, de fato, perguntas que telespectadores de um programa de perguntas e
respostas enviaram via whatsapp a um infectologista presente.
propaganda de Hitler: uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. E, como
observa Pêcheux,
BIBLIOGRAFIA
8
Reproduzo aqui parcialmente uma nota de Pêcheux: “esta expressão se deve a Régis Debray {...] que
evoca um discurso aparentemente sem propósito do ´qualquer coisa`. Imagem esclarecedora [...] para
entender que esse discurso do ´qualquer coisa` não se alimenta justamente de ´qualquer coisa´.
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