Fichamento “O tratado dos vigentes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e
XVII” de Luiz Felipe de Alencastro, Prefácio e Capítulo I.
Prefácio Nesta obra, o autor busca provar que o Brasil e sua história colonial se formaram no amplo espaço do Atlântico Sul. A história do Brasil colônia não pode ser confundida com o território do Brasil colônia. A ideia principal exposta por Alencastro em seu livro é a de que a colonização portuguesa, fundada no escravismo, estrutura um espaço econômico e social bipolar: uma zona de produção escravista situada no litoral da América do Sul (Brasil), e uma zona de fornecimento de escravos (Angola). Alencastro advoga que, desde o século XVI, é criado esse espaço aterritorial, esse “arquipélago lusófono” composto pelos enclaves da América portuguesa e pelas feitorias em Angola. É desse espaço que emerge o Brasil; é a partir dele que nosso país se forma. O autor coloca, porém, que seus capítulos não tratam de estudar de forma comparativa as experiências de colonização portuguesa no Atlântico. O que ele objetiva mostrar “é como essas duas partes unidas pelo oceano se completam num só sistema de exploração colonial (...)”. Capítulo 1 – O aprendizado da colonização p.11 Em 1499, o rei de Portugal D. Manuel se autoproclamava senhor de territórios longínquos da Ásia e da África que se conectavam à Europa. Entretanto, tudo se torna muito mais complicado quando a Metrópole tenta colocar em prática sua política no ultramar. Isso porque nem sempre os caminhos tomados pelos conquistadores para assegurar o controle dos nativos e o excedente econômico das conquistas estavam alinhados com os interesses das Coroas. Por isso, ainda no século XVI, as Metrópoles reorientam suas políticas a fim de colonizar seus próprios colonos. p.12 Duas circunstâncias marcam esse cenário: a primeira consiste no fato de que o trabalho escravo não necessariamente resultava no lucro da Metrópole. O excedente econômico obtido podia ser tomado pelos colonos ou enviado para outras rotas marítimas sem ser as com destino a Portugal. “Possuir e controlar nativos não garantia a transformação do trabalho extorquido em mercadorias agregadas aos fluxos metropolitanos (...).” A segunda circunstância está no fato de que a expansão mercantil não conduzia necessariamente ao reforço do poder monárquico. Dentro de um contexto de ascensão da burguesia, novas forças sociais surgiam nas metrópoles, alterando o equilíbrio de poderes na Europa. “(...) o domínio ultramarino nem sempre desemboca na exploração colonial, como também não instaura de imediato a obediência do colonato e dos negociantes ao poder metropolitano.” A partir desses ocorridos e de suas consequências, o autor argumenta que diferentes problemas foram surgindo no “teatro das Descobertas”. No Peru, em Angola, em Goa, em Moçambique e no Brasil, o domínio colonial começa a desandar. O autor parte então para a apresentação dos cenários que se delineiam em cada um desses lugares. p.13 Primeiro, o autor menciona o exemplo do Peru, onde começam a nascer conflitos entre a Coroa, o clero e os colonos pelo controle dos nativos. Em 1542, Carlos V promulga as Leis Novas, que preveem o fim das encomiendas e torna os indígenas dependentes diretos da Coroa espanhola, à qual pagariam tributos. Como resultado, surgem muitas insurreições no Peru, organizadas por colonos que acreditavam que o rei queria a colônia inteira para si. A solução encontrada foi a de que os colonos poderiam ficar com os indígenas, as encomiendas seriam mantidas, mas os conquistadores deveriam pagar tributos à Coroa. Já o rei impedia que o direito às encomiendas fosse transmitido hereditariamente. Na prática, o que o rei queria era uma forma de impor sua autoridade sobre as conquistas. p.14 Depois, Alencastro recorre a um segundo exemplo, semelhante a esse e ocorrido na Angola. Em 1571, a conquista desse território foi concedida a Paulo Dias Novais como capitania hereditária. Este, por sua vez, concedeu aos conquistadores e jesuítas terras, rendas e indígenas num modelo similar ao das encomiendas. “Denominados amos, esses novos feudatários controlavam os chefes nativos – os sobas – e cobravam tributos da população local (...).” Os tributos podiam ser quitados na forma de escravos que eram exportados para a América. Ao constatar que o tráfico negreiro emergia como atividade econômica, a Coroa busca retomar o controle de Angola. Envia um governador, depositário da autoridade régia, ao local, e lá ele tenta interromper esse esquema de sobas e amos. Isso gera muita revolta entre os colonos e os jesuítas, que acabam até por conseguir a suspensão da ordem régia. Quando o rei Filipe II é informado disso, ele bane os jesuítas do território angolano. p.15 A instituição dos amos é proibida de novo em 1607 e, embora continue a haver conflitos entre governadores de um lado e colonos e jesuítas de outros, o fato é que Angola finalmente adentra as redes de troca metropolitanas. Inclusive, de 1594 a 1640, a Coroa Espanhola concede aos portugueses o monopólio do fornecimento de escravos para a América hispânica. Em seguida, o autor parte para o exemplo de Goa, o caso da presença de Portugal nas margens do Índico, que é bem pouco impactante. Lá, a Coroa busca se apropriar de zonas de comércio, procurando drenar produtos em direção a Portugal. Tal política resulta em desentendimentos entre a Metrópole e os portugueses da Ásia. p.16 Michael Pearson, estudioso do tema, conclui que os casados, colonos portugueses nas Índias, situavam os interesses de seu comércio acima de sua fidelidade à Coroa, buscando participar em rotas de comércio que eram lucrativas para eles, mas prejudiciais para a Metrópole. Em razão da possibilidade de enriquecimento que o contrabando e o comércio regional ofereciam aos funcionários do rei, a administração régia perde o controle do lugar. Diogo do Couto afirma que: “em nenhuma parte é o rei [de Portugal] obedecido menos que na Índia”. O fato é que o complexo econômico que se forma na Índia opõe-se aos interesses de Lisboa. Tal exemplo ilustra um dos problemas mencionados anteriormente: o de que o excedente colonial se realizava, se transformava em produção mercantil, mas fugia às redes metropolitanas. Alencastro traz outro exemplo, o de Moçambique, onde, segundo ele, a fragilidade da presença lusitana é ainda mais clara. Lá, prevalecia o poder do Império pré-europeu de Monomotapa. Quando os colonos chegam, eles assumem funções dos feudatários nativos, passando a deter o controle de domínios, contanto que reconhecessem a autoridade do imperador nativo. p.17 O autor destaca que a soberania da Metrópole portuguesa se mostra fraca em Moçambique durante muito tempo. Paulatinamente assimilados pela sociedade nativa, os colonos portugueses (prazeiros) passam a compor a elite de senhores de terras locais e a comercializar escravos com os parceiros comerciais do império pré-europeu. O que ocorre mais uma vez é que Portugal falha em reorientar a seu favor os circuitos regionais de comércio: “por muito tempo as trocas permanecem voltadas para o Norte e para o leste, com os árabes de Oman (...).” Só em 1756 que o Estado português reivindica os direitos de exportação sobre escravos em Moçambique, duzentos anos mais tarde do que no Congo ou na Angola. Tirando algumas remessas esporádicas, o Brasil só recebe regularmente escravos da África Oriental a partir do início do século XIX. Essa questão em Moçambique inclusive fez com que os portos localizados na África Ocidental, sobretudo na Angola, fossem o mercado preferencial para obtenção de escravos pelos luso-brasileiros. p.18 Após tentativas frustradas de controle, a Coroa redefine sua política nessa parte do ultramar. Ela estabelece que, a partir de 1626, os domínios (prazos) de Moçambique deixam de ser possessões hereditárias e passam a ser domínios da Coroa. As terras são cedidas aos colonos por um período de três gerações, ao término do qual a Coroa retoma a posse da propriedade. Esse contrato pactuado entre a Metrópole e o colono é chamado de enfiteuse. Entretanto, esse aparato jurídico não vinga, uma vez que os prazeiros continuavam dependendo mais de acordos com os nativos do que de reconhecimento legal da Metrópole. “Dividindo o poder com os prazeiros, os quais dependiam eles próprios de pactos contraídos com súditos e autoridades nativas, Lisboa tarda a assentar sua soberania na região.” p.19 Um dos indicativos desses acordos com nativos é o fato de que colonos ofereciam um tributo, denominado curva, ao imperador Monomotapa quando assumiam seus postos. Quando, no século XVIII, o governador português em Moçambique decide não pagar esse tributo, irrompe uma longa insurreição que só termina quando os colonos pagam a curva ao Monomotapa. Essa situação era nova e singular: “(...) a América portuguesa não viu, nem de perto nem de longe, brotar incidentes desse tipo. Nenhuma tribo sul-americana jamais deteve poderio suficiente para impor sua soberania e cobrar tributos regulares do colonato luso-brasileiro.” A Coroa permanece tentando controlar os domínios, mas a fraca aderência de Moçambique à rede metropolitana suscita contínuos levantes entre os prazeiros. A situação só muda no século XIX, quando traficantes brasileiros de escravos tomam a iniciativa de integrar Moçambique ao comércio atlântico de escravos com o Rio de Janeiro. À luz dos exemplos, se configuram os impasses apresentados no começo do capítulo. O excedente econômico ultramarino escapava à Metrópole quando caía em circuitos avessos à malha portuguesa ou encalhava na conquista, onde o produto do trabalho dos nativos era consumido pelos colonos ou vazava pelo ralo do comércio regional. Assim, a partir das situações mencionadas, o autor expõe sua conclusão: a presença de colonos num território não assegura a exploração econômica desse território por parte da Metrópole. A exploração econômica não resulta, necessariamente, na dominação colonial. p.20 Enquanto isso, na América portuguesa, em 1534, é criado o sistema administrativo das capitanias hereditárias, com os objetivos principais de povoar e valorizar o território. Quinze capitanias são cedidas a donatários. Desses donatários, apenas dois prosperam: Duarte Coelho em Pernambuco e Pero do Campo Tourinho em Porto Seguro (até 1546). Em 1549, inicia-se o governo-geral, uma iniciativa de centralização que reduz os privilégios dos donatários. Adiante, são apontados os pormenores dessa virada. Vale lembrar que, nesse período, se opera a passagem de uma economia de coleta, baseada no trabalho indígena e no corte de pau-brasil, para uma economia de produção, fundada nos engenhos de açúcar e no escravo africano. Nesse cenário, os laços da colônia com o Atlântico são retesados pelo rei português, estimulando o tráfico negreiro. Esse contexto geográfico e econômico configura uma realidade que o autor define como “aterritorial, sul atlântica”. Aterritorial porque ainda é uma realidade que não se transpõe para um espaço bem delimitado e fixo, ela ultrapassa limites geográficos; sul atlântica porque, para Alencastro, abrange o espaço do mar atlântico sul, ressaltando a conexão Angola-Brasil. Inclusive, até o final do século XVII, enquanto Angola se agrega fortemente à colônia, a costa Leste-Oeste brasileira permanece dissociada do miolo negreiro do Brasil. p.21 O autor salienta que é nesse amplo espaço do Atlântico Sul que a história da América portuguesa e a gênese do Império se delineiam; não é dentro das fronteiras do que depois seria o Estado do Brasil. Ele destaca, retomando o que foi exposto no prefácio: “a continuidade da história colonial não se confunde com a continuidade do território da colônia.” Essa frase sintetiza a ideia principal do texto de Alencastro: a de que a história do Brasil toma sua dimensão num espaço muito mais amplo do que aquele cercado pelos limites geográficos da colônia, numa lógica que ultrapassa fronteiras territoriais. Enquanto o território da colônia é apenas um espaço geográfico bem delimitado, a história colonial abrange muito mais do que isso, muito mais do que uma faixa de terras litorâneas. Para o autor, ela engloba todo o espaço do Atlântico Sul. Inclusive, esses condicionantes atlânticos e africanos permanecem no horizonte do Brasil até o término do tráfico negreiro, quando a matriz espacial colonial se rompe. Ele ainda cita o historiador Sérgio Buarque de Holanda, que se pergunta: “por que um cronista quinhentista ou seiscentista (...) preocupar-se-ia com a eventual unidade dos diversos enclaves litorâneos da América do Sul que viriam a ser o Brasil? Como escrever uma história do Brasil, se o Brasil ainda não era o Brasil?”. Aqui, Alencastro salienta a preocupação do historiador de não acabar caindo em anacronismos quando estuda a história colonial. Não podemos transpor a lógica do espaço nacional contemporâneo para os mapas coloniais a fim de tirar conclusões sobre o que era nosso país antes dele se tornar país. Para concluir, o autor escreve que, nessas primeiras páginas, ele procurou fazer um pequeno resumo dos problemas que começam a surgir no horizonte colonial quando a Coroa, indo além do poder de domínio (dominium), passa a reivindicar o direito de propriedade sobre as terras e os povos conquistados (imperium). Ele segue dizendo que, entretanto, “o choque entre os poderes ibéricos e seus vassalos ultramarinos ressoa de maneira diferente nas conquistas”. No Peru, a Coroa espanhola consegue frear a ânsia de autonomia dos colonos; da mesma forma, em Angola, o adensamento do tráfico negreiro oferece meios a Portugal de impor seu domínio sobre o lugar. Mas já em Moçambique, o comércio reinol esbarra nas rotas marítimas pré-europeias, e os colonos são assimilados pelos nativos. Da mesma maneira, em Goa, na Índia, o comércio regional garante grandes lucros aos colonos portugueses, o que desvia as trocas marítimas da rede da Metrópole. p.22 Nos primeiros anos das Descobertas, não eram só os portugueses que investiam capital nas colônias. Estrangeiros católicos, residentes ou não em Portugal, podiam transacionar com os territórios do ultramar sob privilégios análogos aos concedidos aos portugueses. Se empregassem marinheiros nascidos em Portugal podiam, inclusive, utilizar seus próprios navios. Eles tinham de pagar taxas, mas, no geral, puderam comercializar com as colônias por um bom tempo. Essa situação só muda após 1580, quando o chamado “exclusivo colonial”, ou, em outras palavras, o monopólio metropolitano, se define. Por considerar que mercadores estrangeiros causavam danos ao comércio do Reino, o rei proíbe a ida estes às conquistas a partir de 1591. Estrangeiros na América portuguesa tinham o prazo de um ano para retornar ao Reino. Tal virada na política da Metrópole tem sentido. O que se observa é que “de início, a Coroa concede amplos poderes a seus súditos que dispõem de capital e também aos estrangeiros católicos ativos no além-mar. Algumas décadas mais tarde, a monarquia volta atrás e inicia um movimento de ‘restauração metropolitana’, restringindo a autonomia dos principais atores da conquista”. Alencastro coloca que, por um lado, se estabelece o monopólio metropolitano no ultramar, prejudicando estrangeiros. Por outro, editam-se leis restringindo a liberdade dos próprios colonos portugueses, submetendo-os a governadores. O autor argumenta que isso constitui um processo de colonização dos colonos: “a Coroa aprende a fazer os rios coloniais correrem para o mar metropolitano; os colonos aprendem que a colonização deve coincidir com o mercado reinol. Só assim se completa a dominação colonial e a exploração colonial. p.23 Um dos instrumentos utilizados nesse processo de colonização dos colonos é a ortodoxia religiosa. Desde a segunda metade do Quatrocentos, a Coroa portuguesa dispunha de controle direto sobre o clero secular em virtude do Padroado, acordo entre o Papa e o rei de Portugal que garantia o exclusivo da organização e do financiamento das atividades religiosas nos domínios portugueses. Dessa forma, por um lado, a hierarquia religiosa só se investia de suas funções depois de aprovada pelas autoridades régias, ou seja, o rei podia nomear padres e bispos; por outro, o rei podia financiar a construção de igrejas e outras obras. O monarca português detinha ainda a faculdade de proibir a publicação de bulas pontificais. A conclusão do autor é a de que “a hierarquia religiosa se converte, sobretudo no Brasil e na África, em correia de transmissão do poder metropolitano”. Assim, as estruturas do Reino de Portugal tinham também uma dimensão religiosa; as atividades e funções da Igreja passam a atender aos interesses do poder político. Em especial, a repressão religiosa, concretizada pela Inquisição, acaba servindo como instrumento disciplinador da política e da economia metropolitana no ultramar. Em seguida, o autor mostra alguns exemplos históricos de como a ortodoxia religiosa e, mais especificamente, os poderes do clero secular, foram utilizados nas colônias para intimidar os colonos e impor a autoridade do rei. p.24 Depois, Alencastro salienta o papel importante do clero regular na América portuguesa enquanto força ideológica responsável por assegurar a ocupação reinol do território ultramarino. O autor menciona que “na ausência de guarnições militares importantes no ultramar antes da segunda metade do século XVIII, cabia principalmente ao clero a tarefa de manter a lealdade dos povos coloniais às Coroas ibéricas”. Em seguida, para exemplificar isso, o autor menciona alguns casos em que os jesuítas funcionaram como instrumentos de preservação da autoridade régia, atuando na América portuguesa em favor da política metropolitana. O autor argumenta que a Inquisição, por sua vez, detém um papel mais complexo. A Inquisição é uma instituição da Igreja Católica que surge durante a Idade Média na França do século XII com o objetivo de combater costumes considerados desviantes da doutrina católica. No início da Modernidade, o alcance da Inquisição é significativamente ampliado dentro do contexto da Contrarreforma, resultando nas Inquisições espanhola e portuguesa. A Igreja espanhola instalou tribunais inquisitoriais em Lima (1570), no México (1571) e em Cartagena (1610). Portugal não operou julgamentos da Inquisição em seus domínios; os acusados eram levados para Lisboa. Um foco particular das inquisições espanhola e portuguesa foram os cristãos novos. p.25 Alencastro cita um autor, Francisco Bethencourt, que apresenta algumas constantes importantes quando fala da repressão inquisitorial. Ele diz primeiro que a Inquisição portuguesa se caracterizava de fato por concentrar seus esforços na punição ao judaísmo. Bethencourt também fala que a atividade repressiva se intensifica muito nos territórios do ultramar, sobretudo no Brasil e em Angola, mais até do que no Reino. Em outras palavras, havia uma repressão inquisitorial concentrada no meio formado pelos colonos e mercadores situados no Atlântico Sul. Negociantes importantes são denunciados no Brasil e levados até Lisboa. Mais uma vez, dentro desse contexto de mudança da política da metrópole e de restauração do controle pela Coroa, a ortodoxia religiosa e, mais especificamente, a repressão da Inquisição, é utilizada em favor da autoridade régia. A Coroa variava entre a fúria repressiva, a extorsão direta e o desejo de tirar proveito econômico dos cristãos novos. As leis do período registram isso. Alvará de 1587 proibia que os cristãos novos saíssem do Reino. Isso é revogado em 1601 ao preço de 100 mil cruzados da comunidade judaica. No vaivém, a repressão se torna mais traiçoeira e arbitrária; o terror infundido pela Inquisição atemorizava uma massa grande de indivíduos, muito maior do que antes. p.26 As cartas de missionários na Angola, por exemplo, revelam essa pressão oblíqua da Inquisição. O autor cita o exemplo do jesuíta Pero Tavares, que, em sua jornada de conversão dos nativos, tenta destruir um ídolo de uma aldeia local. Para evitar confusão, ele logo aconselha os nativos a não falarem mais sobre isso, porque, senão, ele se encarregaria de contar ao governador e ao bispo, “pois esses casos pertenciam ao Santo Ofício”. Ao ouvirem isso, os moradores concordam com a destruição da imagem. Embora esse caso possa parecer banal, ele revela o terror inquisitorial, a força intimidadora do clero no Brasil e na Angola, apesar do fato de que não havia tribunais do Santo Ofício montados nesses territórios. Alencastro advoga que, em dado momento, “sobressai um traço histórico do autoritarismo português”. Sem excluir tão radicalmente os judeus de seu território, como a Espanha fez, a monarquia portuguesa persegue e pilha sua burguesia mercantil judaica e pseudojudaica, com a Inquisição buscando “culpados” para perpetrar roubalheiras. p.27 Instala-se a contingência dos direitos civis de um grupo socioeconômico, e as consequências dessa derrota política da burguesia mercantil marcam indelevelmente a sociedade luso- brasileira. O fato é que, seja por meio do terror da Inquisição ou do zelo do clero, a Igreja ibérica desempenha um duplo papel: ajuda a consolidar o dominium ao fixar o povoamento colonial nas regiões ultramarinas, e fortalece o imperium, na medida em que suscita a vassalagem dos povos do além-mar ao Reino. Tais observações revelam o sentido da restauração metropolitana do final dos Quinhentos: a colonização dos colonos e o estabelecimento do controle das terras coloniais e dos povos conquistados. Paralelamente ao centralismo político, instaurado em detrimento das franquias dos colonos, se assiste ao assentamento do “exclusivo colonial” que prejudica os mercadores estrangeiros. Vale ressaltar que é só depois do impulso da mineração na América espanhola e do deslanche do tráfico negreiro para o brasil que os monarcas ibéricos passam a impor suas autoridades com maior peso sobre as margens africanas e americanas do Atlântico. Entretanto, o autor dá a entender que as políticas de controle coloniais estabelecidas pelas duas metrópoles se diferem um pouco entre si. No caso espanhol, o controle se dá pouco sobre o processo produtivo e mais sobre a circulação das mercadorias. Os metais preciosos, produtos das colônias espanholas, eram estocados e levados até três portos americanos e de lá até Sevilha. Tal sistema, na prática, se traduzia em um monopólio do transporte com apenas pouquíssimos pontos de comunicação autorizados entre a Espanha e suas colônias. No caso português, a situação é um pouco diferente. O esquema de concentração de trocas em alguns portos e as longas esperas na armazenagem e transporte de mercadorias, típicos do modelo espanhol, não eram funcionais para a metrópole portuguesa, visto que esta obrigava suas colônias a exportar bens agrícolas, produtos perecíveis. Além disso, os portos portugueses participavam também do comércio oceânico, complicando o estabelecimento do esquema triangular de comércio. p.28 A solução encontrada pela Coroa portuguesa é a de instituir um controle maior no processo produtivo através da introdução de africanos. Assim, os colonos deveriam recorrer à Metrópole não só para exportar suas mercadorias; dependiam dela também para importar sua força de trabalho, os escravos. Esse fenômeno configura os rumos da presença lusitana no espaço sul-atlântico. De fato, frotas de navios perduram até a primeira metade do século XVIII transportando para a Metrópole o açúcar e, sobretudo, o ouro brasileiro. Todavia, trata-se de um sistema menos rigoroso que o da América espanhola. Grande responsável pela produção colonial, o tráfico negreiro se torna o instrumento de alavancagem da Coroa portuguesa. “Pouco a pouco essa atividade transcende o quadro econômico para se incorporar ao arsenal político metropolitano”. O exercício do poder imperial no Atlântico equaciona-se no âmbito do trato negreiro. O autor advoga, porém, que, ao permitir a colonização dos colonos, isto é, sua captura nas malhas metropolitanas, a dinâmica do tráfico negreiro modifica o sistema colonial de maneira contraditória. Isso porque, em contraponto ao intercâmbio direto das colônias com a Metrópole, ela cria rotas bilaterais que vinculam diretamente o Brasil à África Ocidental. p.29 No século XVIII, apenas 15% dos navios que entravam no porto de Luana (Angola) vinham da Metrópole. Todo o resto vinha do Rio de Janeiro, da Bahia e de Recife, carregando mercadorias brasileiras (mandioca, cachaça, etc.) e não europeias (tecidos asiáticos). Não é nem necessário salientar que uma porcentagem ainda maior desses barcos voltava direto para o litoral brasileiro: ao contrário de outras mercadorias africanas (marfim, ouro, etc.), os escravos, mercadorias vivas, não podiam ser colocados em risco de morte numa viagem até Lisboa. Resultam, assim, dois fluxos de troca bilaterais, nada parecidos com o esquema de comércio triangular característico do Atlântico Norte e posto em prática por outras potências europeias. O autor vai focar agora em uma das implicações do fato de o Brasil ter se formado no Atlântico Sul: o tráfico negreiro não se reduz ao comércio de escravos. Ele teve consequências decisivas na formação histórica brasileira; extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda para moldar o conjunto da economia, da demografia da sociedade e da política da América portuguesa. p.30 Global trader entre a Europa e as zonas mercantis agregadas pelas caravelas, reconhecido por Madri e Roma como legítimo senhor do tráfico negreiro, Portugal recolhe trunfos territoriais e econômicos que lhe permitem fincar o pé no Atlântico Sul durante três séculos. Embora estivesse acumulando enorme quantidade de capital, a Metrópole portuguesa não dispunha de meios nem de força para conservar esse domínio que atravessava continentes, da Europa, África e América até a Ásia. Vencida por potências melhor instrumentadas para o comércio marítimo, Lisboa perde mercados e territórios, sobretudo no Oriente. A solução encontrada pela Coroa é implantar, no Atlântico, uma “economia de produção mais eficazmente explorada do que a economia de circulação de seu império asiático.” Logo se patenteia a superioridade do sistema atlântico, baseado na pilhagem dos povos africanos e na agricultura escravista americana. Nessa perspectiva, onde entra o tráfico negreiro? O autor argumenta que, em primeiro lugar, o comércio de escravos constitui parte da rede que liga Portugal ao Oriente. Isso porque, nas trocas com a Ásia, Lisboa devia pagar com remessas de metais preciosos, bens que os portugueses eram pouco providos. Para obter esses metais, eles realizam expedições na África, onde trocam escravos por ouro. Em segundo lugar, o comércio de escravos se apresenta como fonte de receita para o Tesouro Régio. O autor inclusive coloca que os ganhos fiscais do tráfico negreiro se sobrepõem aos ganhos da escravidão. p.31 Por isso, durante muitos anos, escravos são exportados em grande quantidade para o estrangeiro com a finalidade de avolumar os rendimentos da Coroa portuguesa. Mesmo com a alta registrada no preço dos africanos em Portugal nos anos 1560-70, o rei não atribui caráter prioritário à demanda metropolitana ou colonial e estimula as vendas de escravos sobretudo para a América espanhola. Essa estratégia é consagrada pelos Asientos entre 1594 e 1640. Depois de 1640, com o fim da União Ibérica, o então monarca português, D. João IV, apressa-se em autorizar a venda de africanos para os espanhóis da América, desde que se reservasse um terço dos escravos para o mercado brasileiro. Nessa decisão de abertura comercial, pesava o medo de Portugal de que a Espanha invadisse Angola à procura de escravos. Apesar de ser reconhecida certa prioridade à demanda brasileira, somente em 1751 – no pico da exploração do ouro – aparece um interdito régio contra as exportações de africanos para colônias não portuguesas, estabelecendo exclusividade para a colônia brasileira. p.32 Em terceiro lugar, o tráfico negreiro surge como vetor produtivo da agricultura das ilhas atlânticas. Isso porque, em dado momento, surgem vantagens econômicas do escravismo sobre o trabalho livre, traduzidas inclusive em política econômica. Em 1562, o rei de Portugal institui um alvará autorizando que uma parte dos trabalhadores livres da Ilha da Madeira fossem substituídos por escravos da Guiné para a produção de açúcar lá. O decreto justifica essa ação no fato de que, dada a experiência acumulada da Coroa, previa-se que as receitas régias e a produtividade dos engenhos aumentassem com a introdução do trabalho escravo. p.33 Quando o rei dá “lugar e licença” para que se difundisse o escravismo nessa ilha, ele transforma duradouramente a economia atlântica. O autor, em seguida, se propõe a fazer uma pequena análise da evolução do escravismo. Ele diz que essa cronologia se inicia em meados do século XIV, época na qual o tráfico negreiro português se desenvolvia apenas na periferia da economia metropolitana e das trocas africanas. Depois, o trato começa a se apresentar como uma fonte de receita para a Coroa e responde à demanda escravista de outras regiões. Por fim, os africanos passam a consolidar a produção ultramarina. Alencastro salienta, porém, que só no final do século XVI é que o Brasil desponta como um atraente mercado para o tráfico. Até esse momento, a maior parte dos escravos que Portugal obtinha na África era comercializado com a América espanhola ou levada até as ilhas atlânticas (Canárias, Cabo Verde, Madeira, São Tomé). Quando o açúcar brasileiro começa a ganhar destaque por alcançar altos níveis de produtividade, a partir de 1580, essa situação muda. A expansão açucareira brasileira, aos poucos, se torna dependente do tráfico negreiro. Essa transformação se dá devido a uma série de circunstâncias que merecem ser examinadas de perto. p.34 O autor ressalta que a Coroa age ativamente na origem do processo produtivo posto em marcha no Brasil. Ela institui alvarás estabelecendo medidas que estimulam a produção de açúcar na colônia. Essas medidas incluem incentivos fiscais e diminuição no preço de escravos. Pouco a pouco, as exportações de escravos para o Brasil amarram os enclaves africanos de Portugal às trocas oceânicas. Ao mesmo tempo, o tráfico negreiro sincroniza as engrenagens do sistema colonial; é ele que faz com que a colonização funcione. O autor argumenta que os acontecimentos que se desenrolam na América portuguesa afetavam os territórios portugueses na África e vice-versa por meio de um jogo de efeitos recíprocos. Alencastro coloca que esse movimento de assentamento do sistema colonial é ativado em vários níveis, ou seja, se mostra em vários aspectos. O primeiro deles é o de que, por meio do controle do tráfico negreiro, a Metrópole passa a ser investida de enorme poder, o poder de reproduzir o sistema escravista em seus domínios. Ou seja, por ter controle do comércio de escravos, Portugal podia também, se quisesse, reproduzir o escravismo em qualquer território sobre seu domínio. O autor salienta ainda que, durante três séculos, o que se observa é uma complementaridade econômica entre África e Brasil, articulada por Portugal. Isso foi importante para afastar a possibilidade de desenvolvimento divergente ou até mesmo concorrencial entre esses dois territórios portugueses. Entretanto, esse projeto de acoplagem da exploração das duas margens do Atlântico só é realmente pensado pela metrópole em meados do século XVII. p.35 Antes disso, se pensou que a África portuguesa poderia virar um outro Brasil, projeto inclusive estimulado pela própria Coroa, que chegou a conceder aos colonos luso-africanos os mesmos privilégios outorgados aos senhores de engenho americanos. Todavia, em meados dos Seiscentos, a Metrópole percebe que esse empreendimento não é vantajoso, devido a problemas locais (falta de lenha e má qualidade da cana africana) e logísticos (em razão das rotas comerciais da região, os produtos precisavam fazer escala no Brasil, o que encarecia seus preços). É a partir daí que Portugal decide que a colonização empreendida será complementar e não concorrencial: o Brasil produzirá açúcar, tabaco, algodão e café; enquanto a África fornecerá os escravos. O segundo aspecto mencionado por Alencastro, em relação ao movimento de assentamento do sistema colonial, é o de que a Coroa enxerga, no trato de escravos, novas fontes de receitas. p.36 Essas novas fontes de receita provêm dos direitos de saída dos portos africanos, dos direitos de entrada nos portos brasileiros e de outras inúmeras taxas cobradas sobre os cativos. Além disso, o aparato reinol não era o único a se beneficiar, pois existia também a taxa paga ao clero pelo batismo obrigatório de cada deportado nos portos de embarque. O autor salienta que “pode-se calcular que por volta de 1630 um africano entrava no Brasil com tributos equivalentes a 20% do seu preço no porto de embarque e na América espanhola com taxas correspondentes a 66%”. Os escravos se tornaram, assim, um dos itens de comércio mais tributados de todo o império. Com o passar do tempo, surgem taxas inclusive para a compra e venda de escravos dentro do território brasileiro. Alencastro pontua que também devemos levar em consideração outras vantagens que Portugal obtém a partir de seu quase monopólio do trato negreiro até meados do século XVII. Uma delas é a possibilidade de penetrar na América hispânica para adquirir metais preciosos e comercializar produtos regionais. O terceiro aspecto trazido pelo autor no que tange à sincronização das engrenagens do sistema colonial diz respeito à atenuação provisória de um antigo conflito entre administração régia, moradores e jesuítas. Isso porque a introdução de africanos aliviava o cativeiro indígena e contribuía para reduzir a autonomia que os colonos retiravam de seu controle sobre o trabalho indígena. p.37 Dessa forma, Alencastro destaca que “o conflito entre o produtivismo mercantil dos colonos e a evangelização (...) dos indígenas exercida pelo clero será apaziguado pelo tráfico negreiro”. O autor até cita dois dos maiores defensores dos indígenas, o espanhol Las Casas, no século XVI, e o jesuíta Antônio Vieira, no século XVII. Ambos propõem às suas respectivas Coroas o recurso ao trato negreiro a fim de que o escravo africano libertasse os indígenas da servidão imposta pelos colonos. O quarto ponto que o historiador coloca é o de que os negociantes portugueses combinavam as vantagens próprias de uma posição de oligopsônio (na compra do açúcar) com as vantagens inerentes a uma situação de oligopólio (na venda de escravos). Mercadores da América portuguesa facilitavam a venda de escravos africanos por meio do crédito aos fazendeiros a fim de controlar a comercialização de produtos agrícolas. No Brasil, o açúcar era trocado por escravos. Na África, mercadorias eram trocadas também por escravos. p.38 O quinto aspecto que Alencastro traz é o fato de que, com o tráfico negreiro, o comércio externo da colônia torna-se dinamizado; em outras palavras, o sistema escravista movimenta a economia da América portuguesa. Na esfera macroeconômica, o comércio de escravos amplia a demanda das zonas agrícolas, ao mesmo tempo que alavanca a produção. No nível microeconômico, os lucros dos engenhos servem de garantia para a compra de novos escravos; o excedente, assim, pode ser investido produtivamente. Simultaneamente, fica assegurada a transferência de renda do setor produtivo para o setor mercantil. Além disso, o autor salienta que o escravo também constitui um objeto de luxo dentro da realidade do império português: “um dos traços mais arraigados da sociedade luso-brasileira consiste no hábito de considerar o número de empregados domésticos como sinal de riqueza”. Fica claro que o comportamento ostentatório da classe dominante contribui, logo, para densificar a demanda de africanos. p.39 O sexto aspecto trazido pelo autor no texto é que, no longo prazo, o recurso ao crédito e à compra antecipada de africanos favorece os moradores. Isso porque a oferta de escravos se torna mais regular e flexível que a de índios. Para compreensão desse cenário, Alencastro pontua que devemos levar em consideração o investimento europeu canalizado no tráfico negreiro, as dimensões do mercado africano e o sistema náutico do Atlântico Sul. Ademais, o autor também salienta que essa realidade foi propiciada pelo fato de que muitos africanos estavam parcialmente imunizados contra certas epidemias cujas quais os indígenas estavam vulneráveis. Além disso, o tráfico negreiro ainda aumentava a mortalidade indígena na América portuguesa, levando os moradores a ampliar a demanda de africanos. Doenças como a febre amarela, a malária e a verminose, originárias da África Ocidental e para as quais os africanos eram imunes, contagiam a colônia brasileira. p.40 Todas essas razões concorrem para facilitar a exploração e o enquadramento social dos escravos estrangeiros. Segue-se um processo de repovoamento colonial fundamentalmente baseado no implante de colonos europeus e de escravos africanos. Entretanto, Alencastro reitera que é somente no século XVII, depois da reconquista de Angola (1648) e do declínio da população indígena que o trabalho escravo africano se torna irreversível no Brasil. p.41 O autor salienta que, desde meados do Seiscentos, se definia um fato fundamental da evolução do império e da América portuguesa: a xenofagia da economia brasileira – isto é, sua propensão a absorver, agregar estrangeiros em seu espaço produtivo. Por fim, ele conclui que, intencionais ou não, os efeitos induzidos pelo tráfico negreiro geraram a acumulação específica ao capitalismo comercial. Como foi dito, o controle metropolitano sobre a reprodução do sistema escravista teve um papel decisivo na organização econômica do Atlântico. Também ficou patente que o trato de escravos atingia um volume importante e, sobretudo, um alto grau de integração com o mercado atlântico. p.42 Submetido durante três séculos à Portugal, o Brasil se converse no maior importador de escravos do Novo Mundo. Esse sistema avassalador de mercantilização de homens impede que se considere o tráfico negreiro como um efeito secundário da escravidão e impõe uma interpretação aterritorial da formação do Brasil.
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (fichamento de leitura).