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As Palavras e as Coisas
Uma arqueologia das
ciências humanas
Tradução
SALMA TANNUS MUCHAIL
Martins Fontes
São Paulo — 2000
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título
LES MOTS ET LES CHOSES — Une Archéologie des Sciences
Humaines, por Éditions Gallimard. Paris.
Copyright © Éditions Gallimard, Paris, 1966.
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1981, para a presente edição.
8ª edição
fevereiro de 1999
2ª tiragem
junho de 2000
Tradução
SALMA TANNUS MUCHA1L
Revisão gráfica
Ivete Batista dos Santos
Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
99-0089 CDD-001.309
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento — do nosso: daquele que tem nossa idade e
nossa geografia —, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por
muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita “uma
certa enciclopédia chinesa” onde será escrito que “os animais se dividem em: a)
pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e)
sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i)
que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino
de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe
parecem moscas”. No deslumbramento dessa taxinomia, o que de súbito atingimos,
o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso.
Que coisa, pois, é impossível pensar, e de que impossibilidade se trata? A
cada uma destas singulares rubricas [pág. IX] podemos dar um sentido preciso e
um conteúdo determinável; algumas envolvem realmente seres fantásticos — ani-
mais fabulosos ou sereias; mas, justamente em lhes conferindo um lugar à parte, a
enciclopédia chinesa localiza seus poderes de contágio; distingue com cuidado os
animais bem reais (que se agitam como loucos ou que acabam de quebrar a bilha) e
aqueles que só têm lugar no imaginário. As perigosas misturas são conjuradas,
insígnias e fábulas reencontram seu alto posto; nenhum anfíbio inconcebível,
nenhuma asa arranhada, nenhuma pele escamosa, nada dessas faces polimorfas e
demoníacas, nenhum hálito em chamas. Ali, a monstruosidade não altera nenhum
corpo real, em nada modifica o bestiário da imaginação; não se esconde na pro-
fundeza de algum poder estranho. Sequer estaria presente em alguma parte dessa
classificação, se não se esgueirasse em todo o espaço vazio, em todo o branco
intersticial que separa os seres uns dos outros. Não são os animais “fabulosos “
que são impossíveis, pois que são designados como tais, mas a estreita distância
segundo a qual são justapostos aos cães em liberdade ou àqueles que de longe
parecem moscas. O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é
simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma
dessas categorias.
Tampouco se trata da extravagância de encontros insólitos. Sabe-se o que há
de desconcertante na proximidade dos extremos ou, muito simplesmente, na
vizinhança súbita das coisas sem relação; a enumeração que as faz entrechocar-se
possui, por si só, um poder de encantamento: “Já não estou em jejum, diz Eustenes.
Por todo o dia de hoje estarão a salvo da minha saliva: Áspides, Anfisbenas,
Anerudutos, Abedessimões, Alartas, Amóbatas, Apinaos, Alatrabãs, Aractes,
Astérios, Alcarates, Arges, Aranhas, Ascálabos, Atélabos, [pág. X] Ascalabotas,
Aemorróides...”. Mas todos esses vermes e serpentes, todos esses seres de podridão
e de viscosidade fervilham, como as sílabas que os nomeiam, na saliva de Eustenes:
é aí que todos têm seu lugar-comum, como, sobre a mesa de trabalho, o guarda-
chuva e a máquina de costura; se a estranheza de seu encontro é manifesta, ela o é
na base deste e, deste em, deste sobre, cuja solidez e evidência garantem a
possibilidade de uma justaposição. Era decerto improvável que as hemorróidas, as
aranhas e as amóbatas viessem um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas,
afinal de contas, nessa boca acolhedora e voraz, tinham realmente como se alojar e
encontrar o palácio* de sua coexistência.
1
Os problemas de método suscitados por tal “arqueologia” serão examinados em uma próxima obra.
efeito de superfície; no nível arqueológico, vê-se que o sistema das positividades
mudou de maneira maciça na curva dos séculos XVIII e XIX. Não que a razão tenha
feito progressos; mas o modo de ser das coisas e da ordem que, distribuindo-as,
oferece-as ao saber, é que foi profundamente alterado. Se a história natural de
Tournefort, de Lineu e de [pág. XIX] Buffon tem relação com alguma coisa que não
ela mesma, não é com a biologia, a anatomia comparada de Cuvier ou o
evolucionismo de Darwin, mas com a gramática geral de Bauzée, com a análise da
moeda e da riqueza tal como a encontramos em Law, em Véron de Fortbonnais ou
em Turgot. Os conhecimentos chegam talvez a se engendrar, as idéias a se
transformar e a agir umas sobre as outras (mas como? até o presente os
historiadores não no-lo disseram); uma coisa, em todo o caso, é certa: a
arqueologia, dirigindo-se ao espaço geral do saber, a suas configurações e ao modo
de ser das coisas que aí aparecem, define sistemas de simultaneidade, assim como a
série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o limiar de uma
positividade nova.
Assim, a análise pôde mostrar a coerência que existiu, durante toda a idade
clássica, entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da
riqueza e do valor. É esta configuração que, a partir do século XIX, muda
inteiramente; a teoria da representação desaparece como fundamento geral de
todas as ordens possíveis; a linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e
quadriculado primeiro das coisas, como suplemento indispensável entre a
representação e os seres, desvanece-se; uma historicidade profunda penetra no
coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria, impõe-lhes
formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; a análise das
trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção, a do organismo toma
dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; e, sobretudo, a linguagem
perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente
com a espessura de seu passado. Na medida, porém, em que as coisas giram sobre
si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua
inteligibilidade e [pág. XX] abandonando o espaço da representação, o homem, por
seu turno, entra, e pela primeira vez, no campo do saber ocidental. Estranhamente,
o homem — cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca
desde Sócrates — não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das
coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que ele
assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos
humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia", entendida como reflexão
geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e um
profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente,
uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que
desaparecerá desde que este houver encontrado uma forma nova.
Vê-se que esta investigação responde um pouco, como em eco, ao projeto de
escrever uma história da loucura na idade clássica; ela tem, em relação ao tempo,
as mesmas articulações, tomando como seu ponto de partida o fim do Renascimento
e encontrando, também ela, na virada do século XIX, o limiar de uma modernidade
de que ainda não saímos. Enquanto, na história da loucura, se interrogava a
maneira como uma cultura pode colocar sob uma forma maciça e geral a diferença
que a limita, trata-se aqui de observar a maneira como ela experimenta a
proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a
ordem segundo a qual é preciso percorrê-los. Trata-se, em suma, de uma história da
semelhança: sob que condições o pensamento clássico pôde refletir, entre as coisas,
relações de similaridade ou de equivalência que fundam e justificam as palavras, as
classificações, as trocas? A partir de qual a priori histórico foi possível definir o
grande tabuleiro das identidades [pág. XXI] distintas que se estabelece sobre o
fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das diferenças? A
história da loucura seria a história do Outro — daquilo que, para uma cultura é ao
mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o
perigo interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade); a história da
ordem das coisas seria a história do Mesmo — daquilo que, para uma cultura, é ao
mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto distinguido por marcas e
recolhido em identidades.
E se se pensar que a doença é, ao mesmo tempo, a desordem, a perigosa
alteridade no corpo humano e até o cerne da vida, mas também um fenômeno da
natureza que tem suas regularidades, suas semelhanças e seus tipos — vê-se que
lugar poderia ter uma arqueologia do olhar médico. Da experiência-limite do Outro
às formas constitutivas do saber médico e, destas, à ordem das coisas e ao
pensamento do Mesmo, o que se oferece à análise arqueológica é todo o saber
clássico, ou melhor, esse limiar que nos separa do pensamento clássico e constitui
nossa modernidade. Nesse limiar apareceu pela primeira vez esta estranha figura
do saber que se chama homem e que abriu um espaço próprio às ciências humanas.
Tentando trazer à luz esse profundo desnível da cultura ocidental, é a nosso solo
silencioso e ingenuamente imóvel que restituímos suas rupturas, sua instabilidade,
suas falhas; e é ele que se inquieta novamente sob nossos passos. [pág. XXII]