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Capítulo 1: 204

– Teu aro! – soou uma voz na escuridão.


Na escuridão de uma rua calada, que mais parecia uma larga ladeira, iluminada
por apenas um poste cuja luz insistia em oscilar. Este poste iluminava o lado oposto da
rua onde ficava uma modesta casa de muro amarelo, junto ao qual estava reunido um
grupo de amigos.
A voz que falara era de um jovem de vinte e um anos de alcunha Drácula.
Drácula era um rapaz forte e corpulento de pele escura, olhos claros, altura mediana, e
estava usando seu típico penteado moicano àquela noite, que normalmente usava para
sair de casa; tinha um palito de madeira na boca, o qual estivera mordendo pelas
últimas duas horas. Há pouco, Buyu houvera dito alguma coisa engraçada que ele,
naturalmente, houvera demorado a entender, e agora estava rindo abertamente com
os olhos arregalados, pendendo o corpo para baixo e apoiando-se no ombro de Junior;
este por sua vez, não havia entendido ainda, e estava apenas olhando para o espaço.
Junto a eles, estavam também Charles, um rapaz magricela com uma franja repicada
caída sobre os olhos escuros, que estava sentado de modo estranho na calçada, e
Joan, o mais alto dentre eles (junto a Junior), também muito magro, de cabelo curto,
que estava sem camisa; ambos tinham dezessete anos, e ambos houveram entendido
a piada. Joan olhava com uma cara de impaciência para Drácula, enquanto esperava
que este parasse de rir.
– Tá bom, Drácula, chega – disse ele ao notar que o outro não pretendia
recompor-se nem tão cedo.
– Não, sério, teu aro, Buyu, essa foi demais! – Drácula ia falando enquanto
tomava ar, soltando o ombro de Junior.
– Não. Sério que tu só entendeu da segunda vez que eu falei? – Buyu arregalou
os olhos, falsamente surpreso. Buyu era ligeiramente mais baixo que Joan e Junior,
tinha dezenove anos de idade e também a pele escura, uma barba por fazer e seu
cabelo rasteiro estava coberto por um boné branco e preto.
– Oh! A piada já perdeu a graça, já! – exclamou Joan com uma expressão
fingida de nojo na face.
– Não pra Junior, ele ainda não entendeu – ironizou Charles ao olhar para a
expressão indiferente no rosto do amigo.
– Pô, fala sério, Junior, tu não entendeu a piada?! – gritou Joan segurando-o
pelos ombros, falava como se aquilo fosse a coisa mais impensável do mundo.
– É… não – disse Junior lentamente, e depois deu uma risada. Junior tinha a
mesma altura que Joan, não obstante, era o mais novo dentre eles, mesmo tendo
dezessete. Seu rosto muito branco era incrivelmente marcado por manchas da
adolescência, seu semblante era de estar sempre sorrindo, a toda hora, em qualquer
situação, sua cabeça estava coberta por um lenço vermelho e um boné verde de aba
reta apontada para a esquerda; seus olhos pequenos e inexpressivos fitavam os olhos
grandes de Joan.
– Teu aro, Junior, deixa de ser baitola, pô! – gritou Drácula empurrando-o,
como se empurrasse a um prisioneiro de guerra.
– Não, calma, Drácula. Buyu, explica a piada – disse Charles levantando-se
para falar aos amigos. Buyu soltou um suspiro como se dissesse “Essa não!”
– Explicando A Piada! – Buyu recitou como sendo o título de algum programa de
televisão – Ok, Junior, recapitulando: tinha um cara que, todos os dias, passava por
uma determinada rua para ir para o trabalho…
– É, tipo, o cara mora aqui – disse Joan apontando para a sua casa, de muro
amarelo – e trabalha ali! – disse apontando para a escuridão ao fim da rua – Lá… perto
da casa de Pé-de-Pano!
– Certo – disse Junior, como se estivesse fazendo força para entender.
– Ok, o cara mora na casa de Joan e trabalha na casa de Pé-de-Pano! – repetiu
Buyu, todos riram mais um pouco, menos Junior – É de Galego do Peixe que estamos
falando! – riram ainda mais. – Então, todo dia o cara passava por uma rua, onde tinha
um muro bem alto, e do outro lado ele sempre escutava um monte de vozes que
gritavam “Quarenta e um! Quarenta e um!”
– Quareeeeeenta… – interrompeu Drácula, fazendo um quatro com os dedos – e
uuuuuuum! – e então fez o número um, quase enfiando o dedo nos olhos de Junior.
– Aham, aham, quarenta e um – repetiu Junior, sorrindo abestalhadamente.
– Aí! – retomou Buyu – Um dia, o cara ficou curioso com esse negócio de
quarenta e um, pegou uma escada e subiu, para olhar o que havia do outro lado. Mas,
tudo o que ele viu foi uma pedra vindo na direção de sua testa, e depois caiu no chão.
Daí escutou as vozes de novo: “Quarenta e dois! Quarenta e dois!”
Ao término da anedota contada pela terceira vez, Drácula voltou a rir, Charles
sorriu levemente ao vê-lo naquela situação, enquanto Joan olhava para o céu negro,
como se clamasse por ajuda divina. Junior, após pensar por alguns segundos, soltou
um “aaaah!” seguido por uma vaia geral.
– Pô, Junior, eu sei que tu é lerdo, mas desta vez foi demais, né?! – reclamou
Buyu erguendo as mãos, como se estivesse extremamente decepcionado. Junior
começou a rir de maneira discreta.
– Vocês também, nem pra contar a piada direito, né? – disse ele, sem perder o
sorriso.
– Não, tu é demais mesmo, viu, Junior – disse Drácula batendo no ombro dele.
– Deixa, não é a primeira vez, mesmo – disse Charles.
– Não, mas desta vez eu pensei que ele num fosse entender nunca! – disse
Joan, revoltado. Junior riu mais uma vez.
– Um minuto de silêncio para Junior! – disse Buyu, e sentou-se na calçada.
Todos os outros se sentaram também, menos Junior, e ficaram em silêncio durante
alguns segundos, até avistarem Bruno, que vinha voltando da casa de sua namorada,
subindo a ladeira da rua.
– TCHÊ! – gritou Buyu para ele, que acenou de volta. Bruno era um rapaz em
seus vinte e seis anos, alto e ligeiramente gordo, e que Joan chamava de “o cara que
vai e vem”, por ele sempre aparecer em sua rua, indo deixar a namorada em casa,
durante todas as noites em que os amigos se reuniam ali.
– Ok, volta ao minuto de silêncio – disse Joan, e todos se calaram mais uma
vez. Junior começou a olhar para os lados, ocioso, até começar a dançar um break, a
arte na qual era muito bom, e começou a fazer um beatbox para acompanhar.
– Eeei, menino, é pra fazer silêncio! – falou Drácula.
– Deixa, é só Junior! – disse-lhe Buyu.
– Tsc, é mesmo – Drácula fez um sinal com a mão como se estivesse
espantando uma mosca.

O silêncio continuou por talvez mais que um minuto, enquanto cada um deles
pensava em alguma coisa particular. Buyu pensava em várias coisas relacionadas ao
trabalho e à faculdade; Joan estava tentando se lembrar de todos os detalhes do conto
de horror que lera na Internet, na noite anterior, para comentá-lo com Charles;
Charles, por sua vez, relembrava sozinho a respeito do anime que tivera terminado de
assistir na noite anterior, cujo final ele estava se ardendo por dentro para não contar
para Buyu; Drácula estava pensando se daria mesmo certo ir para a festa em
Petrolina, no final da semana; Junior não pensava em nada, apenas dançava sozinho.
Todos estavam olhando para o chão, com a exceção de Junior, que olhava para todos
os lados, até que avistou alguém vindo na direção contrária a qual Bruno havia ido.
– Olha, lá vem alguém – Junior apontou. Todos voltaram os olhares para uma
sombra que emergia da escuridão para a luz oscilante do poste falho da prefeitura.
– É um bêbado – disse Joan, sem demonstrar qualquer interesse, e deu um
cuspe na rua. Suas sobrancelhas estavam fechadas.
– Ê, RESSACA! – gritou Buyu na direção do homem. Era época de Carnaval,
então ele estava provavelmente voltando de alguma festa. O vulto então entrou na luz.
Estava andando exatamente no meio da rua, e não pareceu notar os rapazes na
calçada; se notou, não lhes deu atenção. Porém, os jovens estavam olhando para ele.
De fato, era um homem embriagado, pois andava se arrastando, cambaleando, e seus
olhos entregavam completamente a ressaca, sem falar em seus trajes maltrapilhos,
peito de fora, longa barba e cabelos mal cuidados, o que lhe fazia parecer não ter
tomado banho por mais de um mês. Mas o que mais se destacava em sua aparência
era uma imensa mancha carmesim que cobria quase todo o seu torso e banhava suas
roupas. Havia uma grande ferida que lhe descia do ombro esquerdo, como se
houvesse sido feita por uma faca de açougueiro ou algo do tipo; havia muito sangue
escorrendo pelo seu braço e pingando no chão, ele mancava.
– Mas o que…? – Charles cerrou os olhos.
– Ai! – exclamou Buyu, levando a mão direita ao ombro esquerdo.
– Que merda é essa? – Joan fez uma careta.
– Ele vai cair, tá muito bêbado. – disse Junior.
– Não vão ajudá-lo – advertiu Drácula, quando Junior fez menção de ir até o
homem – Ele pode ser perigoso, pode ter ganhado essa ferida numa briga, pode estar
armado, vai saber.
Àquela altura, o homem já ia saindo da luz, e logo seu vulto sumiu na escuridão
ao fim da rua; todos os olhares seguiram-no por um ou dois minutos, até que ele
desaparecesse.
– Não queria ser esse cara – comentou Charles, franzindo a testa.
– Onde tá tendo festa agora, Drácula? – perguntou Joan.
– Sei lá, no Portal, talvez – respondeu Drácula coçando o queixo e sacando o
celular – Já é mais de meia-noite.
– Meia-noite? Vou pra casa, já – disse Charles, levantando-se.
– Ei, péra aí, besta, fica aí. Teus pais não tão viajando? – falou Joan puxando-o
pela camisa.
– Sim, mas Karol tá sozinha em casa, né?
– Falou, besta – disse Drácula, levantando-se também e estendendo a mão
para que Charles apertasse.
– Já vai também, Drácula? – perguntou Joan.
– Não, vou ficar por aqui, com tu, só volto pra casa às duas, agora.
– Esse é Draculinha! – falou Joan, erguendo-se e socando levemente o peito do
amigo várias vezes.
– Cuidado com os bêbados aí, hein – avisou Drácula.
– Deixa, eu já fui e voltei daqui vezes o suficiente. Esta cidade é pequena
demais pra acontecer alguma coisa comigo daqui pra lá.
– É, mas o Portal é bem aí! – falou Drácula apontando para o caminho que
Charles tomaria para ir para casa. O Portal da Cidade era um restaurante bem-visto de
Araripina, tinha seu próprio salão de festas, o Portal Fest, e era comum que a cidade
sitiasse sua rua para usá-la como área para festas.
– Não se preocupe, eu vou com ele – disse Buyu – tá tarde, já, mesmo, e já
deve ter terminado de baixar os episódios de Dragonball Kai que eu deixei no meu PC.
– Oh, quanta inteligência, Buyu, tu vai com ele e volta sozinho, o perigo é o
mesmo! – disse Drácula com desdém.
– Eita, como Drácula tá preocupado, hoje! – zombou Joan.
– Eu fico mesmo. Se eu fosse vocês, teria medo desses bêbados aí – respondeu
Drácula, tirando o palito que estivera mastigando da boca.
– E se nós fôssemos tu, não teríamos – disse Charles, referindo-se à fama de
brigão que Drácula tinha, relembrando o episódio no qual ele cravara um bastão com
pregos nas costas de um garoto que estava perturbando um de seus amigos.
– Não tem problema, Drácula, eu vou e Junior volta comigo, né, Junior? – falou
Buyu olhando para Junior.
– É. – respondeu Junior, como sempre sem demonstrar interesse.
– Tá bom, eu vou ficar por aqui, mesmo – disse Drácula.
– Então falou, os caba! – disse Joan, apertando as mãos de todos – Vamos
entrar, Drácula, aproveitar que mãe, pai e o Peixe tão viajando, mesmo.
– É, vamo jogar videogame – disse Drácula, Joan já havia aberto a porta de
casa.
– Falou, baitolas! – disse Buyu acenando. Charles e Junior se despediram
também, e foram juntos até a esquina, onde dobraram para descer uma ladeira ainda
mais vertical que a outra. Atravessaram três quadras, passando pelo SESC, e
chegaram à avenida, a rua mais movimentada da cidade. Àquela hora, muitos carros
vinham de ambos os lados, e eles tiveram que esperar pacientemente para passar.
Infelizmente, a rua do Portal não estava fechada, como Drácula antecipara, mas ainda
assim, estava havendo grande movimento no restaurante.
Enquanto Charles e Buyu comentavam sobre bandas e animes, os três
atravessaram a rua, desceram por um beco escuro, dobraram à esquerda, depois à
direita, passando por três terrenos baldios e um grande pé de manga, andaram mais
duas quadras em frente, dobraram à esquerda mais uma vez, então à direita mais
uma vez e seguiram mais alguns metros até uma casa de muro e portão amarelos.
Uma caminhada de menos de dez minutos.
– Ainda bem que tua casa é perto – resmungou Junior – porque eu tô é com
sono! Quero voltar logo. – Ele falou isso enquanto se espreguiçava. Charles tocou a
campainha da sua casa, e eles esperaram um pouco, enquanto conversando a respeito
de O Senhor dos Anéis, até que Karol veio abrir a porta.
– Tá tarde, Charles – disse ela. Era uma menina ligeiramente mais baixa que o
irmão, tinha os cabelos pretos pouco abaixo dos ombros, os olhos grandes, um nariz
amassado e um sorriso metálico – Oi, Buyu! Oi, Junior! – disse ela, acenando.
– Tá tarde, mas tu tá acordada – falou Charles – Tá na Internet?
– Aham – respondeu Karol.
– Tá na Velox ou no modem externo?
– Tô na Velox, o modem tá dando defeito.
– Não é o modem – disse Buyu – as antenas telefônicas mais próximas parecem
estar com problemas técnicos.
– True, meu celular tá sem cobertura. Sux, isso. – confirmou Charles,
mostrando o celular – Deve estar fora de área há uns três dias.
– Vi isso na TV – explicou Buyu –, algum tipo de crise telefônica.
– Ei, vamo logo! – disse Junior, cutucando Buyu.
– Calma, menino, já vamos! – reclamou Buyu, estapeando a mão dele e
estendendo a sua para apertar a de Charles e a de Karol – Boa noite!
– Boa noite – responderam os irmãos a Buyu.
– Pra vocês que ficam… – disse Buyu, afastando-se.
– Falou – disse Junior acenando.
– Falou, bestas – disse Charles, entrando em casa. Karol fechou a porta.

Buyu e Junior retornaram por todo o caminho até aquela ladeira quase vertical,
e escalaram-na de volta. A casa de Buyu era logo depois dela, do lado esquerdo da
rua, a de Junior era um pouco mais longe.
– Falou, Buyu – disse Junior, estendendo a mão.
– Falou o quê? Eu vou contigo até tua casa e depois volto.
– Ah, tá bom – disse Junior, rindo. Ambos prosseguiram até a casa de Junior,
não muito longe dali. Quando chegaram, Junior despediu-se o mais rápido possível
para poder ir para a cama. Sua mãe e suas irmãs já estavam dormindo e seu pai não
estava em casa.
Buyu voltou sozinho para sua casa. Ao chegar, abriu a porta, subiu as escadas,
entrou na sala, pensou Mãe tá dormindo, pai tá no bar, cruzou o caminho até o seu
quarto, entrou, fechou a porta, acendeu a luz, sentou-se na cadeira de seu
computador, ligou o monitor, e pôs-se a se atarefar na Internet, madrugada adentro.

Charles e Karol faziam o mesmo, cada um em seus quartos.


Joan e Drácula jogavam um jogo de futebol no videogame.
Junior já dormia tranquilamente em sua cama; não demorara a pegar no sono.

Nenhum deles imaginava que o dia seguinte seria o dia de suas vidas.
Capítulo 2: Bizarra Euforia

Joan acordou mais cedo que o normal, no dia seguinte. Ele normalmente
acordaria às onze, em época de férias, mas achou estranho quando, ainda deitado,
checou seu celular para ver que ainda eram seis da manhã. Drácula houvera saído dali
às quatro da manhã, hora na qual Joan já estava caindo pelas tabelas.
No entanto, a razão que fez com que Joan dormisse tão pouco e mal, mais
importante, acordasse tão cedo, fora uma série de frenéticas batidas metálicas do lado
de fora, que lhe perturbava. Ele tentou voltar a dormir, cobrindo a cabeça com um
travesseiro, mas não conseguiu. Ficou imediatamente muito estressado, levantou-se
chutando as paredes, abriu o armário para pegar uma camisa qualquer e vestiu-a; pôs
um boné na cabeça e direcionou-se para fora.
Ao abrir a porta, estava no pequeno terraço de sua casa, ainda atrás do muro.
Dali, ele podia distinguir que o barulho que o estivera incomodando vinha de seu
próprio portão: alguém estava batendo nele, muitas e muitas vezes, repetidamente.
– Pára com isso aí, merda! – gritou ele, impaciente. De imediato, as batidas
cessaram, mas não por muito tempo. Dois ou três segundos depois, o tec-tec voltou, e
deixou Joan ainda mais irritado.
– CHEGA! PARA DE BATER AÍ, CACETA! – ele bradou para o portão, e começou
a xingar a pessoa do outro lado com diversos palavrões. Porém, em vez de pararem,
as batidas começaram a se repetir num intervalo mais curto, e ninguém respondeu aos
gritos do rapaz. Mas ele não desistiu, deu alguns passos à frente e gritou mais uma
vez:
– PARA DE BATER NESSA MERDA AÍ! QUER LEVAR UM MURRO?! – ele
realmente parecia querer bater em quem quer que estivesse do outro lado, mas essa
pessoa não deixou de arranhar e golpear o portão. Joan, então, aproximou-se dele e
chutou-o com força; a pessoa parou de bater, como se tivesse levado um susto, mas,
em menos de um segundo, uma reação inesperada pegou Joan de surpresa: o som
mudara, e o que parecia metal batendo no portão, agora, assemelhava-se a dezenas
de pássaros arranhando-o todos ao mesmo tempo.
Ele recuou, com um pouco de medo, mas logo foi retomado pela fúria.
Encaminhou-se para dentro, foi até os fundos da casa, onde procurou algo que
pudesse usar para bater sem dó. Voltou, então, para o terraço munido de uma longa e
grossa tábua de madeira com dois pregos nas pontas. Enquanto destrancava a porta,
ele ergueu a arma, para amedrontar a pessoa que estava pregando nele aquela peça
sem graça. Porém, ao abrir o portão, foi surpreendido por um homem de camisa
branca de botões, que, sem deixar se intimidar pela tábua de madeira, jogou-se para
cima de Joan, que, com um rápido movimento, escapou por pouco dele. O homem não
se equilibrou ao errar o golpe e caiu no chão, e sua cabeça colidiu violentamente com
o degrau do terraço.
Sangue escorreu e se espalhou rapidamente pelo chão. Joan soltou a tábua, de
olhos arregalados. Ele nunca vira sangue em tão grande quantidade, e talvez nunca
tivesse visto, também, um homem morto, mas com certeza era a primeira vez que ele
se sentia culpado pela morte de alguém. Assustado, tentou manter a calma e a
sanidade; ajoelhou-se junto ao corpo para ver se ainda tinha vida, se podia ajudá-lo
de alguma maneira. Com medo de virar o corpo, checou o pulso, mas não sentiu nada
além de um frio assustador. Um pouco duvidoso, segurou o homem pelos ombros e
virou-o. O coração de Joan acelerou; ele não podia fazer nada; o homem estava
completamente morto.
Lágrimas de medo e confusão molhavam rosto do rapaz aos poucos, enquanto
ele fitava o corpo, paralisado. Não conseguia aceitar o fato de ter provocado a morte
de alguém. Foi quando, de repente, seus olhos notaram algo que uma pessoa
desesperada dificilmente perceberia: aquele homem não poderia estar vivo.
Joan tinha certeza de que o homem caíra com a testa sobre o degrau, e
realmente havia um grande buraco em sua cabeça; sendo assim, como poderia haver
em sua garganta uma ferida tão profunda e agonizante? Parecia ter sito cortada por
alguma arma branca, suja e sem qualquer amolação. Deveria ter doído muito.
Perplexo, achou que uma pessoa com aquele tipo de ferida não poderia sequer andar
direito; porém, como a água de um balde jorra no chão, de repente baixou-lhe o
pensamento de que aquele homem poderia estar pedindo por socorro, e não podia
responder aos gritos devido àquela ferida em sua garganta. O desespero quase o
consumiu novamente, mas ele pensou melhor, e concluiu que um homem com aquele
tipo de buraco no pescoço não poderia realmente viver mais que alguns segundos.
Além de violentamente arrebentada, a garganta do homem estava deformada, como
se as cartilagens houvessem rompido e o pomo-de-adão tivesse saltado para fora. Era
uma obra desumana.
Joan levantou-se, agora estava bem mais calmo. A ideia de ter provocado a
morte não lhe assolava mais. Ele apenas analisava o cadáver, a fim de entender
aquela situação constrangedora. Foi então que a ideia mais absurda adentrou sua
mente, seguida pelo mais pálido espanto, um misto de excitação e medo, uma tênue
dúvida e a maior descrença, e, acima de tudo, uma alegria sem igual. Ele não
acreditava no que estava pensando, nem queria acreditar que estava querendo
acreditar naquilo; estava se achando a pessoa mais imbecil do mundo naquele
momento, mas ele queria acreditar. Olhou para a porta aberta, Não pode ser, pensou
ele, Não é possível. Ficou tentado a olhar para o lado de fora, para buscar saber, mas
não queria, ao mesmo tempo.
Num instante, o homem morto no terraço de sua casa já não tinha mais
importância, e ele se convenceu de que, se ele estivesse errado, mesmo, e aquilo
fosse uma grande babaquice, pelo menos ele seria o único a saber. Quando esses
últimos pensamentos invadiram a mente do jovem, ele não mais se demorou a
recolher a “arma” que derrubara no chão e a direcionar-se para a porta; não havia
uma distância de mais de dois passos entre ele e a rua, mas aqueles foram os dois
passos mais longos e ansiosos de sua vida. Seu coração estava incrivelmente
acelerado, um frio em sua barriga não parecia querer abandoná-lo; seus olhos
estavam arregalados, já secos pela fria brisa matinal; mantinha a boca aberta
inconscientemente, num fraco sorriso. Mal podia conter sua felicidade, mas precisava.
Ele deixava escapar curtos sons indefinidos da garganta, mas perdia a voz. A excitação
ante a possibilidade de que seu talvez maior desejo tivesse se realizado vinha com um
forte receio. E ele finalmente pôs os pés para fora do portão.

Estava de pé da calçada, o queixo caído, um sorriso se esboçava lentamente. As


mãos, trêmulas, mal sustentavam a tábua de madeira. Seu nariz agora experimentava
um forte cheiro de queimado. Seus olhos, brilhantes, contemplaram o céu azul,
coberto por incontáveis torres de fumaça preta; depois, abaixaram para a árvore na
calçada, toda marcada pelo que pareciam arranhões. Ele olhou em volta para ver, à
esquerda e à direita da rua, vultos que se moviam lentamente, arrastando os pés; à
sua frente, alguns poucos corpos que se remexiam, e uma pessoa encolhida, que
parecia estar comendo a carne de um gato.
Não é possivel, ele tornou a pensar Não, não, tem que ser mentira. É um
sonho. O sorriso em sua face era cada vez maior, e ele estava lutando consigo mesmo
para acreditar naquilo. O que ele sempre sonhou, o que ele sempre quis, podia agora
ser verdade, e ele tinha que aceitar. Ele tornou os olhos para a pessoa que estivera
encolhida, e esta levantou a cabeça, virando-a em sua direção. Era um homem, tinha
os olhos avermelhados, com pupilas assustadoramente claras, uma boca escancarada
além do que os maxilares permitiam, dentes sujos de areia e sangue, e um arranhão
enorme da orelha ao queixo.
Ele levantou-se e, arrastando-se, começou a se mover na direção de Joan. A
cada passo que o homem dava, um novo e excitante pensamento invadia a mente do
rapaz.
Está mesmo acontecendo!
Não, não está.
Mas ele deveria estar morto...!
Não posso acreditar!
Ele está vindo pra cá…
Tenho que fazer alguma coisa!
Não, e se eu estiver errado…?
Não, não tem como, é impossível…

A criatura estava agora a três passos de Joan, que estava paralisado, e não
podia sequer emitir som. Ele recuou um passo, e de repente sua mente libertou-se de
vez. A voz voltou à sua garganta, e, com um salto, ele ergueu a tábua, gritando:
– MORTO! – E golpeou a cabeça do homem, que demonstrou uma reação
esperada: apenas cambaleou para o lado, gemendo, e voltou a se mover na direção de
Joan, esticando um braço.
– ESTÁ MORTO! MORTO! – Joan parecia ter saído de si, e golpeou a cabeça do
inimigo por diversas vezes num mesmo ponto, até que ele caiu de joelhos e sucumbiu
ao chão. Joan estava ofegante, sorridente e muito energético. Neste momento, toda a
excitação que ele estivera contendo explodiu de uma só vez.
– ESTÁ ACONTECENDO! CACETA! NÃO ACREDITO! É VERDADE! – Joan pulava,
golpeando a parede repetidas vezes com a tábua, sorrindo o máximo que podia. Sua
boca já doía, seus olhos lacrimejavam, e ele comemorava.
Após um ou dois minutos de surto, ele pareceu voltar a si, e olhou para os
lados. As outras pessoas que andavam a esmo agora estavam se movendo em sua
direção. Num rápido movimento, ele voltou para casa, pisando no corpo em seu
terraço, correu para a cozinha, onde pegou as chaves do carro sobre a mesa, voltou
correndo para o terraço, cruzou um estreito corredor até a garagem, abriu o portão,
entrou no carro e saiu na ré mais rápida e descontrolada já vista, atropelando três dos
que vinham por trás.
Ainda sem conseguir conter o sorriso, ele passou a marcha e acelerou ladeira
acima, atropelando mais cinco no caminho, e, num cavalo de pau, estacionou junto à
calçada de uma casa de dois andares, de parede cinza. Ali, abriu a janela e gritou para
cima, um alto e vigoroso “TCHÊ!”

Muito mais rápido do que Joan esperava, Buyu surgiu na varanda do segundo
andar, segurando a mão de sua mãe.
– Estamos descendo! – ele gritou, também sorrindo. Já a mãe do rapaz não
parecia estar entendendo muita coisa. Ela parecia assustada e confusa. Buyu correu
para dentro, ele estava usando um largo calção preto e uma camisa de lã azul de
mangas compridas. Foi até seu quarto, onde pegou um boné, um taco de beisebol e
um pen-drive. Quando ia sair, antes de fechar a porta, deu uma última olhada para
trás, para o seu computador, e sussurrou um “até mais!”
Joan não queria esperar muito; ele estava ansioso e mal se continha. Na
realidade, ele ainda não estava acreditando direito, mas era a mais pura realidade:
todas as pessoas que ele vira até então, com a exceção de Buyu e sua mãe, eram
agora zumbis, mortos-vivos, nada além de corpos andantes. Buyu voltou para fora,
agarrou o braço da mãe e puxou-a escada abaixo.
– Gustavo, para onde vamos, meu filho?! – indagou ela, chorosa.
– Calma mãe! Depressa, depressa, não podemos demorar! – A excitação de
Buyu era também evidente.
– Mas para onde você está me levando? O que está acontecendo? Por que
estamos saindo de casa assim? – Ela estava amedrontada e perplexa. Foi então que
Buyu parou de correr, quase no fim da escadaria, e virou-se para ela.
– Mãe… Nossa casa agora não significa mais nada. O mundo não é mais o
mesmo. Tudo o que estivemos esperando, ou sonhando, sei lá, talvez desejando, pode
estar acontecendo agora… E nós vamos seguir, mãe!
– Seguir para onde, meu filho? – A senhora ainda não compreendia direito.
Buyu fez uma pausa, na qual encarou o rosto de sua mãe com grande alegria.
– Para a viagem de nossas vidas! – completou ele, virando-se e abrindo o
portão. Saiu, esperou que sua mãe saísse, fechou a porta, trancou-a e atirou a chave o
mais longe que pôde.
– Entra Buyu! Entra Buyu! – chamou Joan, contente. Buyu abriu a porta de trás
do carro e entrou, sua mãe entrou logo atrás e fechou a porta. Joan acelerou e
começou a dar a volta.
– Pra onde tu vai, Joan? – perguntou Buyu.
– O que é que cê tem? Pra a casa de Charles! – exclamou Joan.
– Mas a casa de Junior é bem aqui!
– Eu disse que não o pegaria!
– Mas…
– Buyu, vamos seguir o plano! – Joan agora parecia ter ficado com raiva de
repente. Buyu olhava para o rosto dele pelo retrovisor. A mãe de Buyu abraçou-o, e
ele ficou calado. O carro desceu a ladeira, agora em direção da casa de Charles,
tripulado por Joan, Buyu e Dôra, a mãe de Buyu, que era uma senhora alta, muito
magra, de pele escura e cabelos negros curtos. Dôra estava usando uma calça jeans e
uma blusa branca, com uma estampa de uma pomba, que provavelmente usaria para
ir à igreja, como católica devota, já que era domingo. Mas acabou não indo.
– Como tu acordou tão cedo? – Buyu perguntou para Joan.
– Um zumbi batendo na minha porta. Tem melhor? – explicou Joan. Buyu riu.
– Então um zumbi te acordou.
– Foi. E tu?
– Eu… Não dormi. Fiz no break, hoje.
– Ah… É o certo!

O carro alcançou a casa de Charles, finalmente, onde Buyu desceu o mais


rápido possível e Dôra seguiu-o. Buyu tocou a campainha e escutou passos rápidos e
pesados vindo na direção da porta. Charles abriu-a.
– Opa, pensei que vocês não fossem mais chegar – disse ele. Parecia estar
muito mais calmo e controlado que os amigos, ante àquela situação.
– Quatro minutos, Charles! – falou Joan.
– Pra que?
– Pra se tu ajeitar, diu!
– E irmos todos até a casa de Drácula? Uma ova! Deixa Buyu e a mãe dele aqui
enquanto cê vai buscar Drácula. Nós nos ajeitamos enquanto isso.
– Pronto! – concordou Joan – Fecha a porta aí, Buyu!
Buyu apressou-se a fechar a porta do carro que sua mãe deixara aberta tão
logo quanto Joan partiu, dizendo que não demoraria.
– Entra aí, mainha – disse Buyu para Dôra.
– Tudo bem? – perguntou Dôra a Charles, ainda um pouco chocada.
– Vamos, estamos com quase tudo pronto, já – explicou Charles, acenando
para que os dois entrassem.
Buyu e Dôra entraram e Charles fechou a porta atrás deles. Atravessaram o
espaçoso terraço até a sala, onde Karol estava fechando uma mochila verde, e outra,
preta, muito estufada, estava jogada no chão.
– Eu ia dormir, quase cinco horas, mas daí essa zoada começou a me
incomodar, então fui ver o que era – comentou Charles com Buyu.
– Ah, então cê não dormiu, também? – respondeu o outro.
– Não… Karol dormiu um pouco, mas eu fui acordá-la. Ela custou a acreditar
quando contei.
– Bom, eu também não acreditei! – exclamou Buyu.
– Na verdade, nem eu. Quem acreditaria? – Charles falava enquanto ia até sua
mochila. – Fez no break?
– Fiz sim. Logo, não dormi, também. E mãe ficou embaçando para sair – falou
Buyu, indicando a mãe ao seu lado, com o polegar. Esta continuava parada, em pé, na
mesma posição e no mesmo lugar em que estava quando entrara na sala. Karol jogou
a mochila sobre as costas. Parecia ainda um pouco sonolenta, então se sentou no sofá.
Charles pegou a mochila preta e jogou-a sobre o outro sofá, abriu-a e começou a
checar tudo o que tinha dentro.
– Pra que tanta coisa? – Buyu ergueu uma sobrancelha.
– Tenho coisas das quais preciso.
– Eu saí sem nada de casa.
– É, mas eu vou levar pelo menos três camisas, três calças e três cuecas.
– Por que três calças? Nenhum short?
– Não – Charles respondeu como se zombasse. Buyu sabia muito bem que
Charles não usaria short algum. Charles sempre usava calça; inclusive, neste
momento, estava usando uma calça de tecido preto, uma camisa de frio preta e uma
camisa por cima, preta e vermelha, com a palavra “NEGO” costurada. A bandeira da
Paraíba.
– E o que mais tu tá levando aí? – perguntou Buyu.
– O laptop, o carregador do laptop, o modem para Internet, escova de dente,
pasta, lápis, borracha, canetas e minhas pastas de desenhos, com algumas folhas –
respondeu Charles, enquanto se certificava de que estava tudo lá mesmo. Depois que
ele terminou de falar, Karol levantou-se e correu para seu quarto, voltando
rapidamente com sua pasta de desenhos também. Ao ver a preocupação de Charles
com aquelas pastas, Buyu pensou em dizer algo do tipo “O mundo vai acabar, e tu
tá preocupado com desenhos?”, mas ele não falou. Ele sabia o quanto os desenhos
significavam, e, além disso, sabia qual seria a resposta de Charles. Porém, mesmo que
Buyu não tivesse proferido tais palavras, Charles ainda falou o que ele falaria:
– Meus desenhos são meu legado – disse ele, olhando para a bolsa com orgulho
– Meus mangás são tudo o que criei – Ele voltou o olhar para Buyu, e havia um
pequeno, porém sincero sorriso no rosto do amigo. Um silêncio tomou conta do recinto
brevemente, antes de Charles lembrar o que ia dizer – Ah, eu estava pensando se levo
o videogame ou não.
– Leva – Buyu deu de ombros – É possível que tenhamos a chance de usá-lo, e
nos arrependeremos se estivermos sem ele.
– É – respondeu Charles, suspirando –, você tem razão. – Ele então foi até o
videogame e começou a remover seus cabos.
– Espero que Joan não demore – comentou Karol, bocejando.

Joan já havia passado bastante da própria casa, a essa altura, e estava quase
alcançando a autoestrada, enquanto gritava, comemorava e fazia as mais desleixadas
manobras para matar tantos zumbis quanto pudesse. O carro alcançou a autoestrada e
Joan atravessou-a sem sequer olhar para os lados, adentrando uma estrada de terra
do outro lado, que seguia para dentro do mato, o caminho até a casa de Drácula. Ele
continuou nessa estrada, aceleradamente, batendo em pedras, atropelando plantas e
corpos, batendo nos buracos e passando direto por curvas sinuosas, matando dezenas
de insetos no caminho, até parar ao lado de uma casinha na beira da estrada, onde
havia um grande e feroz pastor alemão atado a uma árvore, e um Drácula sentado ao
lado dele, com a mesma calça jeans e a mesma camisa cinza da noite anterior, o
mesmo brinco de caveira e o mesmo penteado. Sentado tranquilamente ao lado de seu
cachorro, mordendo um palito de dente, segurando um cano de aço numa mão e uma
espingarda de cano serrado na outra.
– Teu aro, Joan! – gritou ele, quando viu que era seu amigo que estava
dirigindo o carro tão imprudentemente. – Se eu tivesse no meio da estrada, tu teria
me atropelado!
– Não teria atropelado alguém em pé! – disse Joan, descendo do carro – Só
tinha corpos.
– E se eu tivesse ferido no chão, seu baitola?
– Daí você já seria um zumbi, compadre! – respondeu Joan, se aproximando do
cercado de madeira.
– Péra aí, que falta de consideração é essa? – ironizou Drácula, soltando as
armas no chão e levantando-se para ir saudar o amigo.
– Brincadeira, Drácula. Além do mais, eu já sabia que tu tava me esperando
aqui – falou o outro, rindo.
– É o certo – respondeu Drácula com um sorriso aberto, abrindo o cercado para
que Joan entrasse – Entra aí.
– Não, pô, a gente tem que voltar logo pra pegar Buyu e Charles e ralar peito.
– E é?
– É sim, ó.
– Então é.
– Cadê teu pai? Tua mãe? Todo mundo?
– Não sei, quando eu cheguei, eles não estavam aqui. Quando saí da tua casa,
vindo pra cá, eu já achei uns bichos desses no caminho – explicou Drácula, apontando
para os corpos dos zumbis que ele matara, no chão –, daí saí matando todos,
querendo chegar em casa logo, mas daí, quando cheguei, não tinha ninguém aqui.
– Eita. E aí, vai atrás deles.
– Bora, pô. A gente pode dar uma olhada aí pelo sítio, tal… Até porque eu num
vi eles por aqui, então, vai saber, né? Pode ser que pai esteja por aí, sei lá.
– Pois é, temos tempo. Enquanto isso, Charles e Buyu estão nos esperando lá
na casa de Charles. É bom que dá mais tempo pra eles se organizarem pra a gente ir
embora.
– Pronto, pois vamo!
Joan olhou por cima do ombro de Drácula, para o cachorro amarrado à árvore,
e uma questão intrigou-o.
– Vai deixar ele aí? – perguntou ele, indicando, com o queixo, o belo animal
preso. Drácula olhou para trás.
– Acha que ele vai fazer algum bem? – perguntou, coçando o queixo.
– Sei lá. Não quer salvá-lo? É o teu cachorro.
– Pois é – Drácula tornou a olhar para Joan. – Se tiver lugar pra ele no carro… –
insinuou, sorrindo.
– Ah, deixe de onda, meu velho! – disse Joan, abrindo os braços – Pode mandar
o que vier pro meu carro!
– O carro do teu pai, não? – corrigiu Drácula, zombando.
– Não mais – riu-se Joan, dando meia-volta para entrar no automóvel. Drácula
foi até o cão e soltou-o. Este começou a latir muito alto, na direção do carro, e fez
menção de avançar, mas Drácula o conteve, e, catando as armas no chão, dirigiu-se
ao carro de Joan.
– Ele vem, mas não deixe ele chegar perto de mim! – falou Joan, batendo a
porta e encolhendo-se sobre o banco do motorista. Ele sofria de um sério pavor de
cachorros. Rindo, Drácula caminhou com seu cachorro, preso pela coleira até o carro
de Joan, abriu a porta de trás, colocou o animal para dentro, fechou-a e tratou de
sentar-se no banco do passageiro.
– Fica quieto, Lex! – ordenou Drácula a sua mascote, logo que se sentou, e,
virando-se para Joan, perguntou: – Não tem problema ele ficar ali atrás?
Joan olhou para trás. O cachorro estava o mais comportado possível, com
grandes olhos brilhantes e a língua estirada para fora, como que ansioso pela mais
divertida aventura que viesse.
– Não – respondeu Joan – De que adiantam carros limpos agora, né? – Dizendo
isso, ele sorriu para o para-brisa e acelerou para fazer descuidadamente para frente,
derrubando parte do cercado do outro lado da estrada.
– Ei, tá doido?! – exclamou Drácula, – Vai nos matar!
Lex não movia uma pata.
– Matar? Não, no máximo vai arranhar a pintura.
– Ou amassar o carro, né?
– Não interessa! Já, já, nós não vamos mais precisar dele, mesmo.
Capítulo 3: Seguindo o Plano

Charles, Karol, Buyu e Dôra estavam sentados à mesa na cozinha da casa de


Charles, comendo sanduíches que haviam acabado de fazer com o pão do dia anterior.
Charles e Buyu estiveram conversando animadamente nos últimos minutos, mas agora
um silêncio mortal pairava no ar, naquele ar sujo e empoeirado. Charles estava
comendo muito, Buyu estava comendo pouco, Karol estava comendo menos, ainda
sonolenta e olhando para baixo. Dôra não parecia ter se recuperado do choque, ainda,
Ela olhava para o espaço, com os olhos arregalados e a boca semiaberta. Buyu
resolveu dedicar um pouco de atenção a ela.
– Que é que cê tem, mãe? – perguntou ele, alegremente. Ela olhou para ele,
alguns segundos depois, como se estivesse saindo de algum transe. Ela abriu a boca,
mas não falou nada. Buyu franziu a testa, enquanto mastigava o sanduíche.
– Que é que cê tem?! – perguntou ele, ainda mais alto.
– E-e… – gaguejou ela – e-eu… Gustavo…
– Fala direito, mainha, seja homem!
– O que… está acontecendo?
O silêncio mais uma vez caiu sobre eles, e agora machucava um pouco. Buyu e
Charles se entreolharam, enquanto Charles fazia um sinal com os olhos para que o
outro explicasse a situação para a pobre mulher. Buyu virou-se para a sua mãe e
começou a gesticular.
– Mãe, seguinte… – ele procurava palavras – Assim… Hoje, começou… Você
sabe, a gente…
– Vocês? – o tom de voz dela subiu, de maneira tipicamente materna.
– Não, sabe, é que… – ele parecia realmente muito confuso, – Sabe quando o
cara come tapioca?
– Hã?
– É, sabe, que tá sem manteiga?
– Como assim?
– A gente pega a tapioca e pensa “Ah, vou comer uma tapioca com manteiga!”,
daí morde e… Droga! Não tem manteiga!
– Gustavo, meu filho, do que você está falando?
– Não mãe, deixa-me explicar… Num tem aquele dia que papai chegou em casa
bêbado?
– Qual dos?
– Qualquer dia aí.
– Falando nisso, cadê seu pai?
– Deve estar morto, já, a uma hora dessas.
– Como assim, meu filho?!
– É! Assim… – Buyu apontou o dedo para a mãe, enquanto parado por alguns
segundos com a boca aberta, como se fosse começar a falar a qualquer momento, mas
não começou. Uma buzina soou do lado de fora, neste momento, Charles levantou-se
rapidamente para abrir a porta, ao que Buyu seguiu-o, e, enquanto levantava-se,
dirigiu mais uma vez a palavra a Dôra:
– Mãe, reza um terço, que serve! – disse ele simpaticamente, e seguiu Charles
até o terraço. Ao cruzar a porta para fora, viu o outro já abrindo o portão e Joan e
Drácula entrando por ele. Joan estava sorridente, Drácula não.
– Entra aí, besta! – disse Charles, enquanto apertava as mãos dos amigos.
– Bora, a gente fez lanchinho pra vocês! – disse Buyu, apontando para dentro.
– Deixa de onda, traga aí pra a gente comer. – respondeu Joan – A gente come
no caminho, se não vai ficar cheio de bosta, aqui nesse cacete. E a macaca vai piar.
Buyu e Charles riram, mas insistiram para que eles entrassem, enquanto Joan
continuava insistindo para que eles fossem logo para o carro, e essa discussão seguiu
por uns dois minutos. A rua onde Charles morava era uma rua bem calma, afastada do
movimento do centro, e por isso normalmente não haveria muitas pessoas lá. Mas na
situação atual, havia o dobro de movimento que o normal; se houvesse duas pessoas
ali num dia normal, agora havia quatro. E essas poucas pessoas estavam agora bem
próximas do portão da casa de Charles.
Charles e Joan continuaram discutindo aquela bobagem, enquanto Buyu olhava
para fora, ocioso; de repente, avistou três zumbis aproximando-se lentamente da
calçada, e alarmou-se. Porém, antes que Buyu pudesse dizer qualquer coisa, Drácula
ergueu o cano que carregava em mãos e, com um ódio no olhar um movimento
impecável, nocauteou todas as criaturas com pancadas certeiras na cabeça. Charles e
Joan assustaram-se com a pancada e olharam para trás.
Drácula estava golpeando um dos zumbis, jogado ao chão, acertando-o várias
vezes com o cano no rosto e no peito. O sangue banhou a calçada. Quando nenhum
deles conseguia mais se mexer, Drácula ergueu a cabeça e olhou para as montanhas
no horizonte – a rua de Charles entrava direto para uma área rural, a menos de
cinqüenta metros.
Karol e Dôra vieram correndo do lado de dentro, assustadas, Karol gritava por
perguntar o que fora aquele barulho que escutaram, enquanto Dôra apenas mantinha
as mãos na boca. Os rapazes estavam todos em silêncio. Drácula direcionou o olhar
para eles, profundo e penetrante. Joan voltou a olhar para Charles.
– Quatro minutos – disse ele, sorrindo. Charles entendeu a mensagem. Eles não
tinham mais tempo a perder. Voltou-se para dentro e apontou para a porta, enquanto
dizia para a sua irmã ir pegar sua mala.
Buyu pegou a mão de sua mãe e guiou-a para fora enquanto Karol e Charles
voltavam de mochila nas costas, Charles carregando o taco que Buyu trouxera em
mãos, e seguiram para dentro do carro. Todos foram se acomodando: Joan no banco
do motorista, Drácula no banco do passageiro e Karol, Charles, Dôra e Buyu atrás.
Buyu foi o último a entrar e estranhou o grande cachorro de Drácula sentado
docilmente no chão.
– O cachorro de Drácula vai mesmo?
– Claro que vai! – disse Joan – Fecha a porta, Buyu.
Buyu obedeceu. Joan acelerou, e deu meia-volta.

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