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Fabio Sá-Earp*
1. O USO DO TEMPO
O estudo do uso do tempo parte da constatação de que o tempo é inflexível e
irrecuperável. Assim, o dia tem 24 horas e nada o fará passar a ter 25, cumprindo aproveitar
bem o tempo, pois a hora perdida é irrecuperável – nunca mais retornaremos àquelas sete
horas da manhã de 7 de julho de 2006, em que preferimos ficar na cama em lugar de
levantar para aproveitar o dia.3 O tempo pode ser utilizado basicamente de maneiras: para
trabalho, para repouso e para o lazer.
O trabalho pode ser remunerado, como aquele feito para atividades de caráter
mercantil, ou não remunerado, como o doméstico ou o trabalho social voluntário. O tempo
de repouso é função das demais atividades do indivíduo, podendo variar no curto prazo mas
não por muito tempo (pode-se dormir pouco uma noite e trabalhar no dia seguinte, mas não
#
Publicado em José A. n. Kamel (org.), Engenharia do entretenimento, meu vício, minha virtude. Rio de
Janeiro: e-papers.
*
Do Instituto de Economia da UFRJ.
1
Ver, por exemplo, Goodale e Goodbey (1988), Jackson e Burton (1999), Wolf (1999) e Vogel (2005).
2
Ver Sá-Earp (2002).
3
A escolha entre as diversas opções disponíveis para o uso do tempo gera angústia, como qualquer decisão
que implica em risco. Este é um dos temas que merece ser estudado por uma psicologia do entretenimento.
1
é possível fazer isso todas as noites). Finalmente, o tempo livre depois do trabalho e do
repouso é utilizado para o lazer.
Como o tempo é inflexível, só se obtém tempo adicional para lazer retirando-o de
outra atividade – trabalho ou descanso. A contratação de empregados é uma forma clássica
para ter mais tempo livre às custas da redução do trabalho não remunerado – tudo indica
que a primeira forma histórica deste fenômeno foi a escravidão. O uso de máquinas
também desempenha aproximadamente a mesma função – veja-se os eletrodomésticos
aumentando o tempo livre da dona-de-casa ao longo de todo o século XX. Quanto à
redução da jornada de trabalho, esta foi uma luta que unificou as diversas correntes do
movimento sindical em todo o mundo por um século, desde a revolução industrial inglesa,
sob a palavra de ordem “oito horas para o patrão / oito horas de descanso / oito horas para o
que nós quisermos!”4
Passando para uma dimensão temporal mais ampla do que o dia, temos os
agregados semana e mês, que estão longe de serem unidades de medida consensuais ao
longo da história. Durante a Antiguidade romana e a Idade Média européia os intervalos
eram dados pelas datas consagradas a deuses e santos, sem uma periodicidade regular. A
duração de sete dias tornou-se padrão nos últimos séculos nas religiões muçulmana, judaica
e cristã, que guardam como dia de descanso respectivamente a sexta-feira, o sábado e o
domingo. Mas a revolução francesa, por exemplo, criou semanas de 10 dias, que vigoraram
durante alguns anos naquele país.5
O século XX assistiu a lenta difusão da semana inglesa – que deixa livres o sábado
e o domingo, permitindo o aparecimento da indústria do turismo de massa. E o final do
século assistiu o início da experiência francesa com a semana de 35 horas de trabalho,
aumentando as oportunidades para o lazer no memento mesmo em que experimentos
neoliberais tentavam aumentar a carga de trabalho.6 No que se refere ao tempo em sua
dimensão maior – digamos, anual – existe todo um movimento ao longo do século XX no
sentido de proporcionar aos trabalhadores férias pagas pelo menos uma vez por ano. Bem
sucedida na social-democracia européia, iniciante na Ásia, semidesenvolvida nos Estados
4
Ver a respeito Cross (1990).
5
Ver Attali (1982).
6
Ver Viard (2004).
2
Unidos, a proposta do mês de férias permite o desenvolvimento de viagens turísticas de
maior porte e é essencial para a consolidação da indústria do turismo de lazer.
Vejamos agora o uso do tempo livre, o lazer propriamente dito. Proponho chamar
ócio ao tempo dedicado ao nada fazer, ao dolce fa niente, e entretenimento ao tempo livre
utilizado de forma ativa, implicando em dispêndio de energia e, geralmente, também de
dinheiro.
O tempo de lazer pode ser claramente diferenciado do tempo de trabalho ou
diferenciar-se deste. Desde a revolução industrial ficou claro para o trabalhador que a
oficina e o escritório eram lugares de trabalho e apenas de trabalho, e que uma vez saído de
seus limites o trabalhador estava livre para dedicar-se a seus próprios assuntos. Esta
fronteira desapareceu na última década, graças ao progresso técnico, que permite que
qualquer trabalhador que tenha acesso a uma microcomputador plugado à Internet gaste
parte de seu tempo de trabalho com lazer, ou com problemas pessoais, ao mesmo tempo em
que o uso de telefones celulares faz com que seu chefe possa encontrá-lo numa praia, em
pleno fim de semana, para apresentar-lhe uma tarefa urgente que o traga de volta, física
e/ou mentalmente, ao mundo do trabalho. Esta mistura de tempos, proporcionada pelo
progresso técnico, é crucial para o lazer nesta próxima década.
2. A RENDA
A maior parte das atividades de entretenimento custa dinheiro. Mesmo uma simples
caminhada na praia exige um traje adequado, que terá um custo – a menos que se trate de
uma praia de nudismo. Mas mesmo neste último caso será preciso chegar lá, o que exige
um custo de deslocamento, por meio de transporte público ou privado. Este tipo de
dispêndio, pré-requisito para que o consumidor possa dedicar-se à sua atividade, pode ser
privado ou público – aqui incluídos os equipamentos coletivos que vão desde os parques às
quadras de esportes. Além disso, estes dispêndios geram diretamente renda e emprego a
tidos os fornecedores de bens e serviços envolvidos; e os gastos destas pessoas gerarão
outros tantos empregos e renda, em um movimento que se espalhará pela sociedade.
Podemos dizer quem consome as formas mais caras de entretenimento no Brasil.
Recorrendo à Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE encontramos quatro itens de
despesa referentes a entretenimento: viagens, diversões e esportes e livros/jornais/revistas.
3
Dividindo a população brasileira segundo a sua renda expressa em salários mínimos temos
a tabela abaixo:
Tabela 1
Despesas familiares mensais por faixa de renda em salários mínimos
Brasil – 2002 – valores corrigidos para reais de junho de 2006
Despesas média 8 a 10 10 a 15 15 a 20 20 a 30 mais de
SM SM SM SM 30 SM
com viagens 33 27 36 61 93 215
com diversões e esportes 28 28 40 61 85 141
com livros, jornais e revistas 12 12 15 25 29 49
Total com 73 66 92 148 218 423
entretenimento
Despesa total 2360 2541 3252 4341 5901 11577
Fonte: Dados IBGE, elaboração do autor.
Aqui temos uma estimativa do gasto médio da família brasileira com
entretenimento: cerca de 33 reais por mês, ou 1,4% de uma renda de 2360 reais. Em uma
família de quatro pessoas, sobram em torno de 8 reais para cada um. Temos, portanto, um
mercado em que os números médios são muito acanhados, espelhando a concentração da
renda existente no país. Se concentrarmos nossa atenção nas camadas mais bem
remuneradas, que recebem acima de 30 salários mínimos mensais, encontraremos um gasto
médio de 423 reais por mês com entretenimento, cerca de 3,7% de uma renda de 11577
reais. Para cada um dos quatro membros da família teríamos disponíveis pouco mais de 105
reais; agora, considerando que o preço médio de um livro vendido ao público é de 25 reais
e que estas famílias gastam 49 reais por mês com livros, revistas e jornais, podemos
entender a razão pela qual o mercado do livro é atrofiado no Brasil.
3. O GOSTO
O gosto desempenha um papel fundamental de reforço da inserção social, pois
mostra, ainda que sempre de maneira incompleta, pelo menos três informações essenciais:
(i) a que grupo o indivíduo pertence; (ii) a que grupo gostaria de pertencer, isto é, qual o
seu grupo de referência; (iii) a que grupos ele não pertence. Estas são as informações
essenciais para os fabricantes de equipamentos de entretenimento no sentido amplo, o que
inclui grande parte da moda de vestuário – ou alguma leitora será capaz de nos dizer com
que roupa irá a uma balada dentro de dois anos?
4
Este é o campo em que os economistas fracassam. Nada sabemos sobre o gosto, ma
não podemos deixar de tentar alinhavar algumas idéias sobre o mesmo – ainda que de
forma precária. Pois o gosto oscila de acordo com a moda, tornando produtos e atividades
indispensáveis e algum tempo depois os sepultando na vala funda da memória. Os mais
velhos se lembrarão do sucesso comercial de peças quase arqueológicas como o bambolê e
o mug; preparemo-nos para receber em breve o necrológio do tênis infantil com rodinhas no
calcanhar...7
De uma coisa, porém, podemos saber. Existe uma família de produtos que estão
inteiramente na moda, sendo objeto de desejo da quase totalidade dos consumidores, que
inclui aparelhos que hoje conhecemos como iPod, celular, lap top, palm top, etc. Estes
aparelhos estão na ponta final da revolução tecnológica em curso e estão incorporando em
um aparelho que será levado no bolso funções de telefone, rádio, TV, gravadores de som e
imagem, e muitas outras que ainda não sabemos quais serão. Proponho chamá-los em
conjunto de Aparelhos Portáteis Eletrônicos Múltiplos – APEMs.
4. A PRÓXIMA DÉCADA
A próxima década (pelo menos) será a era de outro dos APEMs, e isto traz
importantes desafios para a economia do entretenimento. Primeiro porque as diferentes
versões dos APEMs combinarão diferentes funções para diferentes preços, atingindo a
praticamente toda a população – os últimos a rejeitar o celular e o computador estão
morrendo. Segundo porque as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo livre serão cada
vez mais esgarçadas, e para um número crescente de pessoas esta interpenetração será
natural, de forma que a maior parte do lazer terá um componente de trabalho e a maior
parte do trabalho terá um componente de lazer.
Este fenômeno trará mudanças profundas em diversos campos – antes de mais nada
na relação entre capital e trabalho. A idéia de que um empregador compra o uso exclusivo
do tempo de seus assalariados parecerá a muitos exótica, bem como seus desdobramentos –
como, por exemplo, a tentativa de bloquear o uso do correio eletrônico pessoal nos
computadores da empresa, visto que os empregados o farão com seus próprios celulares
particulares. Mudanças deste tipo se refletirão nos contratos de trabalho e pode-se imaginar
7
Desenvolvi este tema em Sá Earp (2002), pp. 53-57.
5
que a assimetria informacional irá gerar incompreensões que gerarão uma infinidade de
processos – ampliando o mercado de trabalho para advogados e contadores, pelo menos.
Grande parte deste trabalho poderá ser feito a domicílio, mas não todo. Por isso o
próprio ambiente de trabalho pode ser modificado – não se deve excluir a possibilidade de
que empresas que operem com equipamento caro demais para ser levado para a residência
do trabalhador possam trazer parte da residência para o escritório – por exemplo, com
instalações para os filhos pequenos dos funcionários, instalações recreativas, cozinhas
coletivas e refeitórios.
Estas circunstâncias geram novos desafios para engenheiros e arquitetos, e tem um
correspondente nas empresas de equipamentos esportivos que criam espaços para que o
consumidor experimente os produtos, já referidas por Wolf (1999). Assim, o Mall of
América, shopping center situado em Minneapolis, conta com um aquário gigante e um
parque de diversões com 30 mil metros quadrados, e recebe anualmente 40 milhões de
visitantes, um número de visitantes maior do que o Grand Canyon, a Disneylândia da
Califórnia e a Disneyworld da Flórida somados.
Outro exemplo é a loja de material esportivo Recreational Equipment Inc., de
Seattle, que “instalou-se em um galpão semelhante a um hangar de mais de 100 mil pés
quadrados, com um muro para escalada de 22 metros de altura, uma cachoeira de 12
metros, uma trilha de quase 150 metros para caminhada e mountain biking, bem como uma
sala de chuva para testar roupas impermeáveis. Só no primeiro ano o estabelecimento
recebeu mais de um milhão e meio de visitantes. Em filiais espalhadas pelo país estão
programando pistas para esqui cross-country e para caiaques e canoas, bem como
quiosques interativos que permitem consultar mapas e guias de turismo, planejar viagens,
etc.”8
Mas a interpenetração entre trabalho e lazer não deve ser feita sem angústia. Aí está
a oportunidade para o desenvolvimento de todos uma série de estudos e experiências
terapêuticas no campo da psicologia e da medicina do trabalho. A capacidade de
comunicar-se com alguém que não se conhece em algum lugar do mundo se soma à
dificuldade de fazer o mesmo com quem está ali mesmo ao lado, mas com toda a atenção
concentrada em seu APEM...
8
Sá-Earp (2002:45), apud Wolf (1999).
6
Em parte esta angústia deve derivar da incapacidade da população de baixa renda
entrar nesse maravilhoso mundo novo do consumo. E aqui nos defrontamos com um
problema especificamente brasileiro: a pior distribuição de renda do mundo. Os telefones
celulares já são um objeto preferencial no muno da criminalidade, tanto como objeto a ser
roubado como arma para controlar de dentro dos presídios todo um circuito criminoso que
vai da extorsão à coordenação de atentados contra a polícia e a população em geral. Estes
novos equipamentos não apenas serão objetos preferenciais para roubos e furtos como serão
usados para perpetrar crimes, em uma escala que dificilmente a justiça e as polícias
brasileiras poderão enfrentar.
Em todos os casos mencionados percebe-se a necessidade de novos tipos de
profissionais, de leis e de instituições. Em suma, se quisermos aproveitar plenamente as
novas oportunidades de entretenimento teremos antes que reconstruir este país. E
precisaremos fazer isto com uma seriedade e uma urgência que sequer longinquamente se
percebe no discurso das autoridades que nos dirigem.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
. Attali, Jacques (1982). Histoires du temps. Paris: Fayard.
. Cross, Gary (1990). A social history of leisure since 1600. State College, PA: Venture
Publishing.
. Goodale, T. e Godbey, G. (1999). The evolution of leisure. Historical and philosophical
perspectives. State College, PA: Venture Publishing.
. IBGE (2004). Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF. Obtida em www.ibge.gov.br.
. Jackson, E.L. e Burton, T.L. (1999). Leisure Studies. Prospects for the the twenty-first
century. State College, PA: Venture Publishing.
. Sá-Earp, Fabio (2002). Pão e circo. Limites e perspectivas para a economia do
entretenimento. Rio de Janeiro: Palavra e Imagem.
. Viard, Jean (2004). Lê sacre du temps libre. La societé des 35 heures. Paris : L´Aube.
. Vogel. Harold L. (2005). Entertainment industry economics. A guide for financial
analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 6ª edição.
. Wolf, Michael J. (1999). Entertainment economy. New York: Times Books.