Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
O texto traz reflexões sobre as consequências das mudanças discursivas das últimas décadas
para a compreensão das sexualidades. A partir do momento em que o discurso hegemônico
sobre as relações entre sexo, gênero, desejo e prática sexual começaram a ser reavaliados, as
expressões da sexualidade que, até então, eram consideradas patológicas receberam outra es-
cuta. O texto centra-se nas transexualidades e nos movimentos recentes de despatologização
das identidades trans. Para o autor, quando os psicanalistas começaram a ouvir as dinâmicas
pulsionais e os movimentos identificatórios que subjazem às identidades trans, sem teorizá-las
como um desvio, as transexualidades passaram a ser entendidas como mais uma manifestação
da sexualidade.
nuidade entre sexo, gênero, prática sexual e Outro caminho, indicado ao longo da
desejo” (Butler, 2003, p. 38). obra de Freud, sugere que masculinidade e
O sexual tem recebido novas leituras, feminilidade ‘são pontos de chegada e não de
sugerindo que as possibilidades de subjeti- partida’. E mais ainda: o ponto de chegada é
vação são inúmeras e levando a uma reava- sempre uma construção tributária da parti-
liação dos discursos seculares relativos aos cularidade dos processos identificatórios e
atributos sociais de gênero (Bertini, 2009; do lugar que o recém-nascido, candidato a
Butler, 1993, 2003, 2004, 2009; Fraisse, sujeito, ocupa no desejo do Outro. O caráter
1996; Laqueur, 1992). incerto da masculinidade e da feminilidade,
Tudo isso tem levado a uma revisão do assim como a dificuldade de definir mascu-
que o Outro nos ensina sobre o ‘que se deve lino e feminino, rompe com a realidade ana-
fazer, como homem ou mulher’, trazendo re- tômica. A significação dessas noções nada
percussões na compreensão tanto nas cons- tem de natural: são apenas convenções cul-
truções identitárias quanto nas ‘orientações turalmente construídas. Elas são resultado
sexuais’. de processos bem mais complexos que pre-
Geneviève Fraisse (1996, p. 91) observa: disposições e determinações instintuais e ge-
neticamente herdadas (Freud, [1930] 1974).
Pensar a alteridade é, então, pensar o dife- Desde 1952, quando ocorreu na
rente, a relação, o conflito. Isto é mais difícil, Dinamarca a primeira cirurgia, oficialmente
evidentemente, do que pensar a diferença dos comunicada, de ‘mudança de sexo’, retrata-
sexos apoiada em invariantes culturais, antro- da no filme A garota dinamarquesa (2015),
pológicas ou psicanalíticas ou, ainda, graças a construção identitária conhecida como
a boas intenções sobre a complementaridade ‘transexualismo’ e, mais recentemente, ‘tran-
natural dos sexos, e a boa consciência sobre a sexualidade’ vem tomando consistência e
perenidade do mal feminino. ganhando visibilidade em todo o mundo:
as reivindicações dos sujeitos trans têm sido
Identidades trans e mudanças discursivas cada vez mais ouvidas, garantindo-lhes um
As considerações aqui apresentadas nos le- reconhecimento social (Ceccarelli, 2013).
vam a perguntar sobre como escutar os su- No Ocidente, as leituras contemporâneas
jeitos que não se enquadram nos universais do sexual têm produzido reposicionamentos
de sexo e de gênero (as identidades sexuais, em relação aos elementos presentes nas cons-
as chamadas ‘orientações sexuais’ e as cate- truções identitárias e nas aquisições das refe-
gorias de masculino e feminino). Seriam eles rências sociais de gênero. Se, até bem pouco
portadores de algum ‘transtorno’ (transtorno tempo, algumas manifestações do sexual,
de identidade, disforia de gênero, problemas tais como as homossexualidades, levavam a
com a atribuição fálica, e assim por diante)? acaloradas discussões psicológicas e médico
Tal posição se baseia, ainda que implici- -legais sobre os ‘desvios’ que elas encerravam
tamente, na existência de uma concordância e, por extensão, inúmeras propostas de trata-
entre a anatomia e o sentimento de identida- mento e cura eram oferecidas, na atualidade
de sexual, ou seja, entre sexo e gênero. Parte- as instituições, inclusive psicanalíticas, que
se do princípio de que existe algo inato no ser impeçam o acesso desses sujeitos as suas fi-
humano que faz com que a anatomia deva leiras correm o risco de ser processadas por
coincidir com as categorias sociais de homem homofobia (Ceccarelli, 2012).
e mulher. Nessa perspectiva, as transexuali- As identidades trans têm nos levado a
dades deveriam ser tratadas como uma per- revisar alguns dos pressupostos teórico-clí-
versão ou uma psicose, pois escapam à lógica nicos da psicanálise, para não insistirmos
fálica sustentada pelas fórmulas de sexuação. em modalidades rígidas de subjetivação que
CECCARELLI, P. R.; COSTA SALLES, A. C. A inven- GREGERSEN, E. Práticas sexuais: a história da sexua-
ção da sexualidade. Reverso, Belo Horizonte, ano 32, lidade humana. São Paulo: Roca, 1983.
n. 60, p. 15-24, 2010. Publicação semestral do Círculo
Psicanalítico de Minas Gerais. LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fun-
damentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por
CECCARELLI, P., R; LEVY, E. A patologização da Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio
normalidade: rumo a uma nova ordem repressiva. In: de Janeiro: Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil).
LEMOS, F.; SILVA, A.; SANTOS C.; Silva D. (Org.).
Transversalizando no ensino, na pesquisa e na exten- LAQUEUR, T. La fabrique du sexe. Paris: Gallimard,
são. Curitiba: CRV, 2012. p. 427-440. 1992.