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Paulo Roberto Ceccarelli

Transexualidades e mudanças discursivas


Transexualities and discursive changes

Paulo Roberto Ceccarelli

Resumo
O texto traz reflexões sobre as consequências das mudanças discursivas das últimas décadas
para a compreensão das sexualidades. A partir do momento em que o discurso hegemônico
sobre as relações entre sexo, gênero, desejo e prática sexual começaram a ser reavaliados, as
expressões da sexualidade que, até então, eram consideradas patológicas receberam outra es-
cuta. O texto centra-se nas transexualidades e nos movimentos recentes de despatologização
das identidades trans. Para o autor, quando os psicanalistas começaram a ouvir as dinâmicas
pulsionais e os movimentos identificatórios que subjazem às identidades trans, sem teorizá-las
como um desvio, as transexualidades passaram a ser entendidas como mais uma manifestação
da sexualidade.

Palavras-chaves: Transexualidades, Pulsão, Mudanças discursivas.

Há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos,


nos quais nossa civilização terá de aprender a conviver
com as reivindicações de nossa sexualidade.
Freud, [1898] 1969, p. 305.

Introdução com as representações e os papéis sociais do


Quando estamos diante de um sujeito que sexo, homem/mulher; finalmente, a sexuali-
se diz homem ou mulher, trabalhamos com dade indica a ‘orientação sexual’, sendo a he-
definições e classificações, cujas bases rara- terossexualidade considerada a ‘normal’, pois
mente questionamos. Essas bases, entretan- em ressonância com preservação da espécie.
to, são abaladas quando o sujeito que está Por parecerem óbvios, tais posicionamen-
diante de nós diz ser mulher, embora, anato- tos são aceitos como evidências em si, e uma
micamente, seja um homem (ou vice-versa). parte significativa da produção acadêmico-
Muitas vezes, tomados por um sentimento científica se apoia neles, sem levar em conta
de estranheza (Unheimlich), indagamos so- a construção histórica que os sustenta e sua
bre a “saúde psíquica” do sujeito em questão. função ideológica: há séculos, o discurso do-
Na cultura ocidental, sexo, gênero e se- minante vem determinando as sexualidades
xualidade são, na maioria dos contextos, lícitas e as proibidas, as relações entre homens
tratados como características ‘naturais’ dos e mulheres e como suas sexualidades devem
indivíduos e de seus corpos: os genitais de- ser, seus lugares no tecido social, o que in-
finiam o sexo em sua perspectiva biológica, clui as hierarquias de poder e as relações de
macho/fêmea; o gênero está relacionado trabalho (Foucault, 1984, 1985a, 1985b).

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Ao mesmo tempo, se pesquisarmos sobre gonizada pelas escolhas de objetos, as quais


a “história das práticas sexuais” (Gregersen, são tributárias das vicissitudes do sexual.
1983) descortinamos um cenário curioso: o Seus elementos constitutivos começam bem
quanto essa história é repetitiva, para não di- antes do nascimento da criança, no lugar que
zer monótona. Em todas as culturas encon- ela ocupa no narcisismo daqueles/as que lhe
tramos as mesmas manifestações da sexua- deram um “berço psíquico” (Ceccarelli,
lidade, que subjazem às chamadas ‘identida- 2002).
des sexuais’. Por conseguinte, a sexualidade adulta,
O que a cultura ocidental, com a sua ten- marcada pela polimorfia do sexual infantil,
dência a patologizar as subjetividades que dentro das singularidades que lhe são pró-
fogem aos padrões socialmente construídos, prias, é construída desde os primeiros dias
denomina de ‘desvios’ – perversões; traves- de vida, constituindo o núcleo mais profun-
tismos; transexualidades; bissexualidades; e do de cada um:
até a algumas décadas atrás as homossexuali-
dades – está presente desde sempre em todos [...] há sem dúvida algo inato na base das per-
os grupamentos humanos e em algumas ou- versões, mas esse algo é inato em todos os
tras espécies animais, recebendo explicações seres humanos (Freud, [1905] 1976, p. 174).
e destinos de acordo com a visão da sexuali-
dade da cultura em questão. Entre os elementos presentes nos proces-
Todas as culturas são interpeladas pelo sos de subjetivação estão, além dos aspectos
enigma do sexual e criam dispositivos para intrapsíquicos, os ideais culturais nos quais
lidar com as demandas pulsionais: são os dis- o bebê se encontra inserido quando do seu
cursos sobre a sexualidade. Eles representam nascimento e que outrora pertenciam ao
artefatos culturais tributários do momento mundo exterior (Freud, [1914] 1974). Faz
sócio-histórico no qual emergem. parte desses ideais aquilo que o imaginário
Na cultura ocidental, o ‘saber’ sobre a se- social define como masculino e feminino, ou
xualidade construído pela ordem religiosa, seja, os de atributos de gênero.
jurídica ou médica, esteve sempre atrelado Nascemos ‘sexualmente indiferenciados’,
aos interesses do Estado e às classes domi- pois,
nantes. Esse ‘saber’ determina os desejos e as
práticas sexuais ‘normais’ e as ‘patológicas’, [...] no psiquismo, não há nada pelo que o
além de oferecer ‘cura’ às últimas. Com isso, sujeito possa situar-se como ser de macho ou
criaram-se dispositivos que ditam as regras ser de fêmea. [...] O que se deve fazer, como
referentes ao uso da libido e aos prazeres do homem ou mulher, o ser humano terá sempre
corpo (Ceccarelli; Salles, 2011). que aprender, peça por peça, do Outro (La-
can, [1964] 1985, p. 194).
O sexual e a sexualidade
As ‘manifestações da sexualidade’, isto é, os Nessa perspectiva, é possível que, devido
destinos do sexual, ganharam uma nova às variáveis presentes na construção de psi-
compreensão com os aportes freudianos. O cossexualidade, sexo e gênero não se sobre-
sexual, polimorfo e perverso, é o recalcado; ponham.
o inconsciente que se manifesta em suas pro- Nas últimas décadas, os estudos de gêne-
duções (Ceccarelli, 2016). ro, as teorias queer e as teorias críticas têm
Com Freud aprendemos que a maneira produzido uma desconstrução do sistema
como o indivíduo vivencia a sua sexualidade, hegemônico sexo/gênero, denunciando a
é o resultado de um percurso identificatório ideologia que o sustenta, ao mostrar que não
tendo por enredo a dinâmica edípica prota- existem “[...] relações de coerência e conti-

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nuidade entre sexo, gênero, prática sexual e Outro caminho, indicado ao longo da
desejo” (Butler, 2003, p. 38). obra de Freud, sugere que masculinidade e
O sexual tem recebido novas leituras, feminilidade ‘são pontos de chegada e não de
sugerindo que as possibilidades de subjeti- partida’. E mais ainda: o ponto de chegada é
vação são inúmeras e levando a uma reava- sempre uma construção tributária da parti-
liação dos discursos seculares relativos aos cularidade dos processos identificatórios e
atributos sociais de gênero (Bertini, 2009; do lugar que o recém-nascido, candidato a
Butler, 1993, 2003, 2004, 2009; Fraisse, sujeito, ocupa no desejo do Outro. O caráter
1996; Laqueur, 1992). incerto da masculinidade e da feminilidade,
Tudo isso tem levado a uma revisão do assim como a dificuldade de definir mascu-
que o Outro nos ensina sobre o ‘que se deve lino e feminino, rompe com a realidade ana-
fazer, como homem ou mulher’, trazendo re- tômica. A significação dessas noções nada
percussões na compreensão tanto nas cons- tem de natural: são apenas convenções cul-
truções identitárias quanto nas ‘orientações turalmente construídas. Elas são resultado
sexuais’. de processos bem mais complexos que pre-
Geneviève Fraisse (1996, p. 91) observa: disposições e determinações instintuais e ge-
neticamente herdadas (Freud, [1930] 1974).
Pensar a alteridade é, então, pensar o dife- Desde 1952, quando ocorreu na
rente, a relação, o conflito. Isto é mais difícil, Dinamarca a primeira cirurgia, oficialmente
evidentemente, do que pensar a diferença dos comunicada, de ‘mudança de sexo’, retrata-
sexos apoiada em invariantes culturais, antro- da no filme A garota dinamarquesa (2015),
pológicas ou psicanalíticas ou, ainda, graças a construção identitária conhecida como
a boas intenções sobre a complementaridade ‘transexualismo’ e, mais recentemente, ‘tran-
natural dos sexos, e a boa consciência sobre a sexualidade’ vem tomando consistência e
perenidade do mal feminino. ganhando visibilidade em todo o mundo:
as reivindicações dos sujeitos trans têm sido
Identidades trans e mudanças discursivas cada vez mais ouvidas, garantindo-lhes um
As considerações aqui apresentadas nos le- reconhecimento social (Ceccarelli, 2013).
vam a perguntar sobre como escutar os su- No Ocidente, as leituras contemporâneas
jeitos que não se enquadram nos universais do sexual têm produzido reposicionamentos
de sexo e de gênero (as identidades sexuais, em relação aos elementos presentes nas cons-
as chamadas ‘orientações sexuais’ e as cate- truções identitárias e nas aquisições das refe-
gorias de masculino e feminino). Seriam eles rências sociais de gênero. Se, até bem pouco
portadores de algum ‘transtorno’ (transtorno tempo, algumas manifestações do sexual,
de identidade, disforia de gênero, problemas tais como as homossexualidades, levavam a
com a atribuição fálica, e assim por diante)? acaloradas discussões psicológicas e médico
Tal posição se baseia, ainda que implici- -legais sobre os ‘desvios’ que elas encerravam
tamente, na existência de uma concordância e, por extensão, inúmeras propostas de trata-
entre a anatomia e o sentimento de identida- mento e cura eram oferecidas, na atualidade
de sexual, ou seja, entre sexo e gênero. Parte- as instituições, inclusive psicanalíticas, que
se do princípio de que existe algo inato no ser impeçam o acesso desses sujeitos as suas fi-
humano que faz com que a anatomia deva leiras correm o risco de ser processadas por
coincidir com as categorias sociais de homem homofobia (Ceccarelli, 2012).
e mulher. Nessa perspectiva, as transexuali- As identidades trans têm nos levado a
dades deveriam ser tratadas como uma per- revisar alguns dos pressupostos teórico-clí-
versão ou uma psicose, pois escapam à lógica nicos da psicanálise, para não insistirmos
fálica sustentada pelas fórmulas de sexuação. em modalidades rígidas de subjetivação que

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ditam o normal e o patológico, produzindo moções pulsionais recalcadas ligadas à bisse-


uma nova ordem repressiva (Ceccarelli; xualidade constitucional despertado por esse
Levy, 2012). Colocar a psicanálise como de- encontro.
tentora de um saber que lhe outorga o direito Os movimentos de despatologização das
de ditar os caminhos ‘normais’ de subjetiva- identidades trans levaram a uma mudança
ção, equivale a transformá-la em um discur- política: cada vez mais, esses sujeitos vêm ga-
so fundamentalista. nhando visibilidade e apoio legal, sobretudo
Um dos aspectos que torna tão descon- no que diz respeito aos direitos do cidadão.
certantes as discussões sobre as transexuali- Desde a Resolução n.º 1.482/97, do CFM,
dades é que elas tocam diretamente as bases de 10 de setembro de 1997, que autorizou, ‘a
imaginárias responsáveis pelos movimentos título experimental’, a ‘cirurgia de transgeni-
identificatórios presentes nas construções talização’, o movimento trans não parou de
identitárias. O(A) transexual, com sua rei- crescer. Na época, a Resolução entendia que
vindicação identitária, nos coloca uma ques- “o paciente transexual é portador de um des-
tão raramente evocada: como sabemos que vio psicológico permanente da identidade
somos homem ou mulher? sexual”, [o que faz do transexualismo uma
E mais: de onde vem a ‘certeza’, a ‘con- doença]. E em 2008, reconhecendo que a
vicção delirante’, de estarmos diante de uma “[...] discriminação é determinante no pro-
mulher ou de um homem? Tal certeza é ‘na- cesso de sofrimento e de adoecimento a que
turalmente’ apoiada pelas referências obje- estão sujeitos os transexuais”, o Ministério da
tivas – sobretudo o sexo anatômico – que a Saúde baixou uma portaria garantindo a rea-
pessoa à nossa frente exibe. Ora, essas refe- lização do “processo cirúrgico transexualiza-
rências são abaladas quando a ‘mulher’, ou dor” – no âmbito do Sistema Único de Saúde
o ‘homem’, nos revela ser (anatomicamente) (SUS).
um homem, ou uma mulher. Se, em um primeiro momento, como vi-
Quando, à luz das teorias atuais da inter- mos, o transexualismo foi visto como uma
face sexo/gênero, os psicanalistas, mesmo patologia, hoje o debate se centra na des-
os mais recalcitrantes, começaram a ouvir patologização, ou a não patologização, das
as dinâmicas pulsionais e os movimentos transexualidades, que ainda aparecem nos
identificatórios que subjazem às identida- manuais de psiquiatria como “problema de
des trans, sem teorizá-las como um desvio e, identidade sexual”. Esse ponto central das
principalmente, sem se sentirem ameaçados reivindicações trans foi longamente contem-
pelo retorno de suas moções pulsionais re- plado no I Colóquio Internacional sobre a
calcadas, as transexualidades passaram a ser Transexualidade - Trans-identidades, gênero
entendidas como mais uma manifestação da e cultura - realizado entre os dias 9 e 12 de ju-
sexualidade. nho de 2010, em Havana, com participantes
O encontro com um sujeito que se diz de vários países.1
transexual, por mais bem preparado e des- Os movimentos de despatologização
pojado de preconceito que o interlocutor das identidades trans (travestis, transexuais
possa estar, evoca a dimensão subjetiva in- e transgêneros), bem como a militância
consciente daquele(a) a quem o(a) transe- para que essas identidades sejam retira-
xual se dirige, provocando, não raro, um sen- das dos catálogos das doenças mentais de
timento de estranheza, pois “[...] complexos uma vez por todas, continuam: a Stop Trans
infantis que haviam sido recalcados revivem
uma vez mais por meio de alguma impres-
1. <http://www.legrandsoir.info/1er-Colloque-Internatio-
são” (Freud, [1919] 1996, p. 310). Esse sen- nal-Trans-identites-Genre-et-Culture-a-La-Havane-la-
timento de estranheza se deve ao retorno de transsexualite-n-est-pas-une-maladie.html>.

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Pathologization, uma campanha internacio- modalidades de cirurgias estéticas que po-


nal lançada em 2012 que lutou nesse sentido, dem ser tão mutilantes, ou até mais, que a
contou, no Brasil, com o apoio dos Conselhos transgenitalização.
Federal e Regionais de Psicologia.2 A questão é de peso e está longe de rece-
E a mais recente e emblemática aqui- ber consenso. Penso que, por enquanto, de-
sição de reconhecimento das identidades vemos estar abertos a todos os argumentos e
trans data de fevereiro de 2013: a decisão do ouvir todas as partes envolvidas no debate.
Ministério da Saúde em colocar no cartão Só assim poderemos progredir no diálogo e
de saúde desses sujeitos o nome social, em alcançar uma posição que responda, dentro
vez do nome de batismo. Espera-se, assim, do possível, às reivindicações elencadas.
contribuir para a diminuição da segregação Por estar cada vez mais participando de
social da qual são vítimas esses sujeitos, res- debates sobre o tema em várias capitais do
guardar sua dignidade como assegura o art. País e como consultor ad hoc do CFP a res-
1º, § III da Constituição Federal de 1988, as- peito de assuntos que tratam da sexualidade
segurando-lhes, ao mesmo tempo, o pleno em geral e, recentemente, sobre a despato-
direito ao acesso à saúde e à cidadania. logização das identidades trans, tenho tido
Tais mudanças repercutiram diretamente uma experiência muito interessante: discu-
na ‘visão’ que se tinha desses sujeitos, abrin- tir essa questão com os sujeitos diretamen-
do caminho à novas conquistas e promo- te implicados nela – travestis, transexuais,
vendo políticas públicas de saúde e inserção transgêneros – o que, sem dúvida, produz
social de sujeitos trans, o que levou à mu- uma mudança de perspectiva. Passei a me
dança do modo de designar esses sujeitos: se, perguntar sobre até que ponto os ‘critérios
num primeiro momento, falava-se de tran- de diagnóstico’ limitam nossa escuta desses
sexualismo, a mudança para transexualida- sujeitos.
de, ou transexualidades, no plural, retrata Entretanto, ainda que não se possa negar
um avanço importante. O sufixo “ismo”, em os grandes avanços em termos de direitos do
transexualismo, sugere, como foi o caso para cidadão trazidos por essas mudanças discur-
homossexualismo, uma conotação patológi- sivas em torno das transexualidades, o de-
ca. Já em transexualidade, como em homos- bate atual sobre o livre acesso à cirurgia de
sexualidade, o sufixo “dade” significa “modo transgenitalização exige prudência, por im-
de ser”. plicar não apenas o sujeito interessado, mas
Alguns membros de movimentos de des- a sociedade como um todo, e as relações in-
patologização das identidades trans advo- terpessoais (um sujeito que, após a cirurgia,
gam pelo acesso livre e irrestrito à cirurgia adquire as características do sexo feminino e
de transgenitalização, como um direito do altera o seu nome, pode legalmente se casar
cidadão para adequar o corpo à sua identida- com um homem? Ela deveria falar a seu côn-
de subjetiva. Para eles/elas, a exigência de ter juge sobre sua condição anterior? O cônjuge
a identidade caucionada por uma autoridade tem o direito de saber para poder escolher
exterior institucionalmente investida de po- se quer, ou não, se casar com um transexual?
der – psiquiatras, psicólogos, psicanalistas – Não dizer sobre o passado configuraria um
parece absurda e ditatorial. Afinal, alegam, ato criminoso? No âmbito trabalhista e pre-
ninguém precisa de um expert para lhe dizer videnciário, a questão é polêmica posto que,
que ele/ela é, de fato, homem ou mulher. E, para a mulher, o tempo da aposentadoria não
muito menos, para se submeter às inúmeras é o mesmo). Nessa perspectiva cabe pergun-
tar: o “direito” à cirurgia deve ser outorgado
2. Em: <http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeo- ao sujeito pelo fato de ele/ela se posicionar
lho_ver.aspx?print=true&id=365>. subjetivamente como transexual? Questão

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Transexualidades e mudanças discursivas

delicada e geradora de discussões espinho- Abstract


sas. The text brings reflections on the consequen-
ces of discursive changes of the last decades for
Para concluir the understanding of the sexualities. From the
Quando nos dispomos a ouvir os sujeitos moment, the hegemonic discourse on the re-
cujas vivências identitárias e sexuais diver- lations between sex, gender, desire and sexual
gem das ‘tradicionais’ sem tentar classificá-los practice began to be reassessed; expressions of
como desviantes; quando procuramos en- sexuality that until then were considered pa-
tender seus percursos pulsionais e seus ca- thological received another listening. The text
minhos identificatórios, somos levados a re- focuses on transsexualities and recent move-
pensar nossos instrumentos classificatórios e ments of de-pathologization of trans identities.
nos perguntar com qual ouvido escutamos e For the author, when psychoanalysts began to
em que medida os diagnósticos nos servem listen to the drive dynamics and identificatory
de defesa contra o retorno da nossa própria movements that underlie trans identities, wi-
sexualidade recalcada. thout theorizing them as a deviation, transse-
Quando procurarmos entender de forma xualities came to be understood as just ano-
mais detida as dinâmicas pulsionais que sus- ther manifestation of sexuality.
tentam as múltiplas expressões da sexualida-
de humana, somos levados a concluir que os Keywords: Transexualities, Drive, Discursive
discursos sobre a sexualidade são criações changes.
tributárias do momento sócio-histórico da
cultura na qual emergem, e que nunca re-
fletem a verdade do sujeito. Os processos Referências
identificatórios que nos constituem são in-
separáveis da organização simbólica da cul- BERTINI, M.-J. Ni d’Eve ni d’Adam - Défaire la diffé-
tura. Além disso, testemunham as inúmeras rence des sexes. Paris: Max Milo, 2009.
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