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MÁRIO DE ANDRADE: UMA GERAÇÃO DIANTE DO ESPELHO

 Categoria: Modernismo Rede Social


 Escrito por Maurício Hoelz e Rodrigo Jorge Ribeiro Neves | Imagem: Karina Freitas/ Acervo Pernambuco

As cartas do então jovem esquerdista Carlos Lacerda a Mário de Andrade são de alta voltagem. Membro da Casa do Estudante do Brasil e cursando Direito na
Universidade do Rio de Janeiro (atual UFRJ), Lacerda editava a revista rumo, voltada para temas como educação, política, literatura e cultura. O contato inicial com
Mário de Andrade, em 1933, foi intermediado pelo mineiro Rosário Fusco e teve como ensejo a publicação, em rumo, de uma enquete sobre os “20 melhores livros
brasileiros”. Depois disso, a relação entre eles se estenderia para além de outras colaborações e debates sobre temas candentes, como a tensão entre arte e engajamento
político, se convertendo em uma sincera amizade.

Moacir Werneck de Castro, em Mário de Andrade: O exílio no Rio, menciona a importância da aproximação de Mário com os “rapazes da Revista Acadêmica”, em
especial quando o escritor paulista residira no Rio de Janeiro, entre 1938 e 1941. Além de Moacir, os cariocas Carlos Lacerda, Murilo Miranda e Lúcio do Nascimento
Rangel se destacavam no “jogo recíproco de influências”, em que Mário teria contato com experiências, sobretudo, da “prática política” e eles, “o desejo de assimilar
conhecimentos” e “múltiplas vivências”.

Nova notificação em nossa rede social e recebemos a carta do jornalista e crítico literário argentino Luis Emilio Soto, que amplia as inquietações intelectuais e políticas
que revolveriam os anos 1930 e 1940, no Brasil, para o âmbito latino-americano. A Argentina havia sofrido um golpe de estado havia pouco tempo, liderado pelo general
José Félix Uriburu, e, apesar das eleições realizadas em seguida, o resultado não foi respeitado pelos golpistas, mergulhando o país em uma “década infame”. Para o
mineiro Otávio Dias Leite, Mário de Andrade responde com uma carta que expressa seu momento de maturação estética e política, atento às lições do passado e às
perspectivas futuras, encenadas pelas novas gerações, como a dos jovens críticos da revista Clima, formada por estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP, dos quais sobressaíam nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Antonio Candido, Rui Coelho, Gilda de Mello e Souza e Lourival
Gomes Machado. O ensaio Elegia de abril abre o primeiro número de Clima, publicado em maio de 1941, e compara o papel da geração dos modernistas com a seguinte,
o que provocou o descontentamento do missivista mineiro. Mário de Andrade não apenas se colocava e a toda sua geração diante do espelho, mas também apontava para
a importância da formação da cultura e do amadurecimento de nossa consciência.

CARLOS LACERDA A MÁRIO DE ANDRADE

[...] O Gorki já lembrou aos intelectuais norte-americanos que eles, quando estão se pensando mais livres, não passam de sujeitos presos dentro de uma gaiola de ouro.
Você, Mário, quando é que você andou solto?????? Preso dentro de uns salões de S. Paulo, solto apenas — você pensando — quando abria os seus livros, prendia-se de
novo depois nas ginásticas do modernismo, quando pensava que isso era a revolução que você pressentia sem conhecer, certo de que o que rodeava não estava certo...
Parece charada mas é verdade. O modernismo foi uma ginástica sueca, um treinamento, uma preparação para uma liberdade que não veio. E como não veio, pouco a
pouco os que andavam envolvidos nele foram tomando posição. Veja na estranja e veja mesmo aqui... E você? Você pensa que poderá ficar a vida inteira querendo se
fazer de superior aos outros, Mário? Talvez você seja mesmo superior a todos os outros, mas isso não te impedirá de estar, quem sabe sem saber, seguro pelo pé, como
um papagaio, à gaiola dourada da burguesia. Você faz conferência para quem? Lembre-se a do dia da Sociedade Felipe de Oliveira. Conferência para um público em que
dois terços não entenderam, e o resto estava saturado das ideias, dos pensamentos... Pense no bom que seria ter um público novo, enorme, de possibilidades ilimitadas,
gente que nascia naquela hora para a vida da inteligência, gente que agora você, com a sua atitude, parece ignorar cordialmente. No dia 23 de agosto, pouco antes da
polícia matar muita gente, dentro do Teatro João Caetano onde o Gilberto Trompowsky tinha pintado aquelas viadagens — mulheres segurando símbolos fálicos,
mulheres metade efebo, ouvi um negro, magro e velho, camponês de Barra do Piraí, agitando muito os braços magros no ar, dizer isto, Mário: “Meu pai foi escravo. Eu
fui escravo. Mas meus filhos hão de ser livres”. É analfabeto, Mário, sabe? Enquanto isso, você que é alfabetizado, insiste em continuar nessa posição incômoda de
burguês inteligente? Acabou a época dos burgueses inteligentes, Mário. A inteligência passou além deles, junto com a cultura. [...]

LUIS EMILIO SOTO A MÁRIO DE ANDRADE

[...] Teremos que resignar-nos a que a função intelectual seja uma força passiva na América? Como reagem aí os escritores e artistas ante os avanços do poder? Existe
algum grupo de intelectuais. rebeldes às restrições impostas por Julien Benda a seu “clero”? Eis aqui várias questões sobre as quais gostaria de ouvir sua opinião,
relacionada com a atualidade brasileira e também com o desconcerto político que reina na América Latina. Eu só posso lhe dizer que o nosso horizonte amanhece cada
dia mais nublado, mais inquietante. [...]

MÁRIO DE ANDRADE A OTÁVIO DIAS LEITE

[...] Olha, Otávio, antes de mais nada é preciso esclarecer uma coisa. Muitos de vocês, meus companheiros de vida, se ressentiram da “Elegia de Abril”, tomando pra si as
acusações que fiz lá à geração, ou melhor às gerações de vocês. Isso é me desconhecer profundamente. Eu seria incapaz de uma indireta a amigos, inda mais por escrito!
Agora, se qualquer um de vocês, honestamente, em pura consciência pessoal, achar que qualquer das censuras insertas na “Elegia”, também lhe cabe, não sei que culpa
eu posso ter nisso! Eu juro que não pensei em companheiros de vida, ao escrever a “Elegia”, por Deus! Pensei em geral, pensei pelo que posso documentar em atos
alheios, pelas revistas, jornais, livros, cartas, confissões, conversas, atos, etc. etc. Mas tudo impessoalmente, em absoluto impessoalmente. Inda mais: eu não falei em “a
novíssima geração”, mas em “novas gerações”, no plural. E é visível pelo meu texto, que eu me dirijo especialmente nas censuras, à geração de 1930, pois esta já com 10
anos, de vida pública, pode provar por seus atos de vida pública, a sua fraqueza de atitude. Cheguei mesmo a uma alusão direta a Jorge Amado, não se esqueça.
Agora o esclarecimento: eu não “elogiei” os que estudam nas faculdades de filosofia e os rapazes de Clima. Tanto não elogiei que estes de Clima também sofreram, como
você e outros amigos meus (e não posso dizer que os rapazes de Clima são meus amigos, não convivo com eles, raro os vejo). Se vocês se doem, eles, os universitários
também se doeram. O elogio que fiz a essa (no caso a novíssima) geração foi em relação à minha, e apenas sob o ponto-de-vista de maior organização de cultura. Ora
isso é de uma verdade solar. Que está surgindo uma geração menos apriorística, mais científica e menos dogmática que a minha, isso você não poderá negar, me’rmão! E
só esse foi o meu elogio, um elogio de relação, e apenas. E se você seguiu a “Elegia” até o fim, não se esqueça que eu disse e afirmei que esse espírito universitário tinha
obrigação de se definir diante da vida e que cultura não implica abstencionismo.

[...] Agora qual o resultado das nossas angústias e escravidões do presente? Uns dizem, como você na sua carta: “O milhor é beber pra esquecer”. Outros dizem, como
talvez digam os climáticos, não sei: “O melhor é estudar (nas bibliotecas) pra esquecer”. Não quero afirmar que um meio “de esquecer” seja milhor que outro, não. O que
eu nego a você e a todos é o desvio de “esquecer”. O que eu nego a você como a todos é o direito “individualista” de recusar a vida. Não é possível mais barricadas?
Revoluções? Pregações de comício? Escritos? Pois se trata então de tornar a vida tão virulentamente invivível que ela estoure de qualquer forma. Você bota a sua
esperança no fim desta guerra. Feliz você que se contenta com tão pouco. Eu, pela maneira com que a coisa vai, já prevejo pra dentro de mais uns dez, quinze anos, uma
nova futura guerra universal que, talvez essa, nos traga uma organização pelo menos mais pacífica e equitativa de vida em dignidade humana.

REFERÊNCIAS

LACERDA, Carlos. Carta a Mário de Andrade – Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1934. Setor de Arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros - USP, Fundo Mário de
Andrade, código de referência: MA-C-CPL3838. O trecho citado integra o projeto de pesquisa Entre letras e lutas: Edição de texto fidedigno e anotada da
correspondência de Mário de Andrade e Carlos Lacerda, de Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, financiado pela FAPESP, processo nº 2016/18804-7.

ARTUNDO, Patricia (org.). Carta de Luis Emilio Soto a Mário de Andrade – Buenos Aires, 16 de abril de 1931. In: Correspondência de Mário de Andrade &
escritores/artistas argentinos. São Paulo: Edusp, IEB, 2013, p. 214-215.

MORAES, Marcos Antonio de (org.). Carta de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite – São Paulo, 19 de novembro de 1941. In: Mário, Otávio: Cartas de Mário de
Andrade a Otávio Dias Leite (1936-1944). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes: IEB-USP, 2006, p. 92-97.
(Memória Brasileira; 40).

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