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As estórias de fadas na Cidade de


Deus: teoria literária de JRR Tolkien e
as virtudes cardeais de santo
Agostinho
Diego Klautau

Ciberteologia

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Diego Klaut au
As estórias de fadas na Cidade de Deus:
teoria literária de J. R. R. Tolkien e as
virtudes cardeais de santo Agostinho
Diego Klautau*

Resumo: Este artigo trata dos conceitos literários de J. R. R. Tolkien de estórias de fadas, fanta-
sia, subcriação e eucatástrofe. Através do poema Mythopoieia (1930), do ensaio Beowulf: The
Monsters and the Critics (1936) e do ensaio On Fairy-Stories (1939) podemos tecer uma teoria
literária que entende sua finalidade como uma expressão religiosa, buscando similitudes com
o pensamento de santo Agostinho, especificamente nas quatro virtudes cardeais, expressas nos
livros A cidade de Deus (426) e O livre-arbítrio (388), assim como a gloria das nações pagãs e
a presença de virtudes que justificassem elementos da verdade em povo pagãos. Assim como
antigas virtudes romanas poderiam ser exemplos para os cristãos, também nos mitos escandina-
vos, como Beowulf, poderiam ser encontradas virtudes pertinentes à revelação cristã. Por fim,
também as estórias de fadas, subcriadas, podem e devem ecoar elementos do Evangelho cristão.
Palavras-chave: Literatura, cristianismo, virtudes.

But even as hope died in Sam, or seemed to die, it was


turned to a new strength. Sam´s plain hobbit-face grew
stern, almost grim, as the will hardened in him, and he
felt through all his limbs a thrill, as if he was turning into
some creature of stone and steel that neither despair nor
weariness nor endless barren miles could subdue
(Tolkien, 2005, p. 934).1

Tolkien e sua teoria literária Entre as diversas publicações acadêmicas, espe-


cialmente sua análise de Beowulf,6 com a conferên-
A partir da experiência dos folcloristas da Ingla- cia em Oxford Beowulf, The Monsters and the Critics
terra, como Georges MacDonald2 e Andrew Lang,3 J. (1936), trabalho de maior consistência acadêmica,
R. R. Tolkien4 produziu seu legendarium,5 um ciclo filológica e literária, Tolkien, sempre expressou a ne-
de escritos sobre o universo da Terra-média, onde de- cessidade de entender as lendas e mitos7 como ele-
senvolveu toda uma realidade fantástica, com seres mentos importantes da linguagem e da religião. Seu
inteligentes e mágicos, criaturas horrendas e angeli- famoso poema Mythopoieia (1930), publicado no
cais, semideuses e demônios. Através de uma criação livro Tree and Leaf (1964), reflete a discussão entre
literária que se estendeu por vários livros, poemas e Phylomythus (o que ama mitos) e o Mysomythus (o
contos, Tolkien propôs uma concepção de literatura que odeia mitos). Essa discussão seria uma repercus-
fantástica que retomou perspectivas em ambientes são dos diálogos entre Tolkien, cristão convicto, e seu
pré-modernos de narrativa, fundamentalmente as colega professor de Oxford C. S. Lewis,8 na época ex-
narrações mitológicas gregas, romanas e escandina- tremamente materialista. O poema teria os conteúdos
vas, os poemas épicos e as narrativas bíblicas. debatidos entre os professores.
Entre os diversos livros do legendarium estão, entre
os publicados em vida ou postumamente, O hobbit Blessed are the legends-makers with their rhyme
of things not found within recorded time.
(1937), as três partes de O senhor dos anéis (1954-
It is not they that have forgot the Night,
1955), As aventuras de Tom Bombadill (1934), O or bid us flee to organized delight,
silmarillion (1977), Outros versos do Livro Vermelho in lotus-isles of economic bliss
(1962), A última canção de Bilbo (1974), Os contos forswering souls to gain a Circe-kiss
inacabados (1980) e os doze volumes da História da (and counterfeit at that, machine-produced,
Terra-média (1983-1996). bogus seduction of the twice-seduced).9
(Lopes, 2006, p. 157)

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A referência do mundo como além do que se vê, do Tolkien desenvolve seu ensaio para responder a três
pensamento mitológico grego, no caso expresso pela perguntas: que são estórias de fadas? Qual sua ori-
relação entre Circe e as ilhas de Lótus em Homero,10 gem? Para que servem?
na Odisséia, e também da tradição platônica,11 como Essa tradução é proposital no pensamento de
no mito da caverna da República, e também do pensa- Tolkien. Ao fazer a diferença entre history, stories e
mento cristão da transcendência, recusa o materialis- tales, Tolkien quer, de fato, marcar a diferença entre
mo fundado na busca do lucro e da produção indus- história, estórias e contos:
trial, e das máquinas, como desenvolvimento absoluto.
• História é a realidade em que vivemos, no mundo
Essa crítica12 de Tolkien ao que ele considerava onde acontecem os fatos que estamos acostuma-
uma alienação e um desvio do verdadeiro propósito dos a ver. É o lugar onde acontecem os dramas
do saber indica sua tradição religiosa. Nesse sentido, puramente cotidianos, humanos e naturais.
esse trecho do poema reflete sua preocupação com
os poetas como investigadores para além do mundo • Estórias seriam as narrativas que demonstram que
material. Sua valorização da mitologia, das lendas e o ser humano não define o real. Existem outras
dos poetas que as realizavam indica a recusa do tem- dimensões do pensamento e da realidade. São
po em que vivia — entre guerras mundiais —, e da in- as lendas, os mitos e as narrativas que demons-
dustrialização, que ameaçava constantemente destruir tram que a humanidade sempre esteve ligada a
o mundo rural no qual o próprio Tolkien crescera.13 um mundo que é misterioso, transcendente ao
De fato, a religião, em Tolkien, sempre foi impor- humano e sobrenatural.
tante. A reflexão sobre a verdade religiosa está pre- • Contos são aquelas narrativas que são usadas
sente na produção de seu legendarium e também em como fábulas, sem nenhuma pretensão de expor
seus escrito teóricos. A própria pesquisa do poema e investigar nada. Esses, sim, são os contos infan-
medieval Beowulf se encaminha para essa relação tis e de puro entretenimento.
entre a tradição cristã, entendida como verdade de
fé, revelada e acolhida, e as produções pagãs da mi- Essa primeira definição de Tolkien, ao fazer a dife-
tologia e das lendas, que exaltavam virtudes e valores rença entre estórias de fadas e contos de fadas, marca
de uma determinada cultura, no caso de Beowulf, es- seu objeto. Os contos de fadas são as narrativas com
candinava. fadas diminutas, que normalmente são consideradas
O ensaio mais importante nessa área é On Fairy- ingênuas e graciosas. As estórias de fadas são sobre
Stories (1939), uma palestra conferida na Universit of um lugar, o Reino Encantado, ou Feéria, onde seres
St Andrews, na Escócia, em 8 de março de 1939. Esse humanos adentram e vivem experiências literárias
ensaio é considerado o mais extenso e abrangente de próprias. As aventuras dos seres humanos em Feéria
Tolkien, no qual o autor demonstra toda a sua visão é que são as estórias de fadas. As estórias de fadas
sobre trabalhos de folcloristas, mitólogos e filólogos. sempre tratam de seres humanos em relação consigo
Nesse ensaio Tolkien busca apresentar conceitos mesmo, com a natureza e com o mistério transcen-
fundamentais em sua teoria literária. Valorizando as dente. Estes são os desejos saciados em Feéria: a ob-
lendas, narrativas e mitologias, o escritor apresenta servação das profundezas do tempo e do espaço. A
uma visão nova, entendida como não-analítica dessas outra é a comunhão com todas as coisas vivas.
produções, mas como um incentivo e uma apologia As estórias de fadas trazem a reflexão de Feéria, em
a essa literatura, como estímulo para ler e escrever. seus níveis de questionamento e de aprofundamento,
Não apenas uma apresentação acadêmica, mas um que tragam a experiência humana em direção ao des-
admirador e atuante do ofício de escritor. conhecido e imprevisível. Segundo o próprio Tolkien,
O primeiro conceito importante apresentado é o a natureza de Feéria é indescritível, porém não é im-
próprio título da palestra. As estórias de fadas, fairy perceptível, e nenhuma análise do tipo cartesiano15
stories, são objeto de reflexão de Tolkien. Em inglês, poderá desvelar seus segredos. Logo, as estórias de
fairy stories são diferentes dos fairy tales, os contos de fadas possuem uma tradição própria, que remontam a
fadas. A tradução do conceito adotada é de Reinaldo pessoas, lugares e criaturas que podem ser encontra-
Lopes,14 em sua dissertação de mestrado A árvore das das em diversos tempos e lugares. Os elementos das
estórias: uma proposta de tradução para “Tree and estórias de fadas estariam misturados no grande Cal-
Leaf”, de J. R. R. Tolkien (2006). Nesse estudo, Lopes deirão de Estórias, onde os poetas e escritores fariam
traduz On-Fairy-Stories e Mythopoieia nos moldes em suas sopas, as narrativas que são construídas durante
que trabalhamos. Após tal definição de fairy-stories, o tempo e o espaço. Os anéis de poder, os corações

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escondidos, o cetro, a estrela, o cristal, a espada, o capital. A resistência das estórias de fadas em rela-
dragão, o cavaleiro, o mago, os monstros. São todos ção ao materialismo se expressa pelo cuidado com a
elementos constitutivos das estórias de fadas. Natureza. Daí a reflexão do mito como elemento da
É justamente nesse ponto que Tolkien responde à natureza: o Trovão é Thor, mas também é o ferreiro
sua segunda pergunta: qual a origem das estórias de mal-humorado, figura típica dos escandinavos.
fadas? Fazendo uma comparação com a filologia,16 Também as estórias de fadas têm seus elementos
existem três metodologias de pesquisa em relação aos de reflexão sobre o ser humano, enquanto condição
elementos que compõem as estórias de fadas, seja e destino, e sobre o mistério, centro da religião. Tanto
através da evolução independente, seja da difusão, o ser humano quanto a mística podem estar presentes
seja da herança. Para Tolkien, o elemento mais difícil nas estórias de fadas, porém seu fundamento é a má-
de abordar é a evolução independente, pois trata da gica, a representação e reconhecimento da Natureza.
invenção. A busca pela difusão, propagação no es- Chegamos, agora, à terceira pergunta de Tolkien.
paço, ou da herança, propagação no tempo, apenas A utilidade das estórias de fadas é justamente a de
deslocam a questão da origem para um debate mais proporcionar um novo olhar para o mundo. Essas
complexo e com mais elementos. estórias, por tratarem de um lugar, de um encontro
Assim, Tolkien afirma a incapacidade do método entre os seres humanos e algo que está além deles,
científico analítico para desvendar as origens de Feé- porém presentes em seu desejo, é um lugar de novi-
ria, chegando, no máximo, a dissecar seus elementos dade, de assombro e de surpresa. É o espaço em que
e fazer certa arqueologia dos personagens, objetos e o mistério se apresenta com novas imagens, em que
lugares comuns às estórias de fadas. os dramas humanos são re-visitados e re-atualizados
Porém, embora pesquisando os ossos, legumes e e reconhecidos. Eis Feéria, que novamente se re-en-
demais ingredientes de uma sopa, o que mais importa canta19 com o cotidiano da natureza.
é como ela é servida e se realmente é saborosa e nutri- Esse novo olhar promovido pelas estórias de fa-
tiva. Daí a preocupação de Tolkien com as funções e das em relação à natureza é o fundamento de sua
utilidades das estórias de fadas. Ao dialogar com Max existência. O que preserva as estórias de fadas são
Müller,17 discorda de que a mitologia seja uma doen- suas virtudes e valores, presentes em si e espalhadas
ça da linguagem, ao contrário: é integrante essencial e difundidas em todos os que se aventuram em Fe-
da experiência humana de comunicar. Seria o mesmo éria. Daí a associação das estórias de fadas com as
que considerar o pensamento uma doença da mente. crianças. Embora Tolkien discorde dessa associação
Fundamentalmente, as origens das estórias de fa- imediata, diz que o fundamento de tal associação é a
das estão associadas ao pensamento mitológico e re- capacidade de as crianças acreditarem em coisas no-
ligioso. Ao mesmo tempo, o ser humano inicia sua vas. Que existe também nos adultos, porém de uma
reflexão sobre o mundo a sua volta e reconhece sua forma mais prejudicada, principalmente nos domí-
própria condição, questiona a validade de sua vida, nios das máquinas e do materialismo.
enquanto investiga o mundo que transcende ao que Essa capacidade de crença está expressa porque
vê e a ele mesmo, encaminhando-se em direção ao as estórias de fadas não estão preocupadas com a
profundo mistério que reconhece e não consegue ex- possibilidade — daí o irreal, o sobrenatural e o so-
plicar. Tolkien, em On Fairy-Stories, afirma que: bre-humano — , mas sim com a desejabilidade de
coisas esplêndidas e transcendentes. Também essas
Yet these things have in fact become entangled or may- virtudes presentes nessas coisas esplêndidas são tra-
be they were sundered long ago and have since groped
zidas pelas estórias de fadas através da fantasia, que
slowly, through a labyrinth of error, though confusion,
back towards re-fusion. Even fairy-stories as a whole
é a capacidade imaginativa de formar imagens men-
have three faces: the Mystical towards the Supernatural; tais que não estão presentes: o escape, transporte fora
the Magical towards Nature; and the mirror of scorn and do mundo em que estamos aprisionados na matéria;
pity towards the Man. The essential face of Faerie is the a recuperação, elemento que retoma a condição de
middle one, the Magical. But the degree in which the comunhão com as coisas vivas e de integralidade hu-
others appear (if at all) is variable, and may be decided mana; e a consolação, que permite ao ser humano
by the individual story-teller (Tolkien, 1997, p. 125).18 esperar algo além de sua visão limitada pela própria
Para Tolkien, as estórias de fadas são essencial- condição humana.
mente sobre a Natureza. Isso corrobora a idéia da Tais utilidades das estórias de fadas se reúnem
preocupação de Tolkien com a condição moderna e em um conceito central de Tolkien: a subcriação.
com a exploração da natureza pela ciência e pelo A principal forma de as estórias de fadas atingirem

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seus objetivos, o encontro com Feéria, é a criação de through whom is splintered from a single White
um mundo fantástico. Cada subcriador se utiliza dos to many hues, and endlessly combined
elementos do Caldeirão de Estórias, e serve sua sopa in living shapes that move from mind to mind.
com determinados elementos já existentes. Porém é Though all the crannies of the world we filled
graças à atividade artística do subcriador que se con- with Elves and Goblins, though we dared to build
Gods and their houses out of dark and light,
segue a medida para que os meios das estórias de and sowed the seed of dragons, ‘twas our right
fadas consigam produzir frutos. (used or misused). The right has not decayed.
Apenas se consegue fantasia, recuperação, escape We make still by the law in which we´re made.21
e consolo quando a medida correta é conseguida. No (Lopes, 2006, p. 155)
caso, a subcriação é essa medida. A subcriação é feita
Nesse trecho do poema Tolkien novamente retoma
quando se consegue produzir uma crença secundária,
a visão da subcriação como correspondência da ver-
em que o leitor se permite acreditar em algo verossí-
dade religiosa. Apesar da queda humana, a descrição
mil, coerente, mesmo que num ambiente de criaturas
da expulsão do homem e da mulher do Paraíso de
sobre-humanas, num ambiente sobrenatural, com di-
Deus feita no relato bíblico, no livro de Gênesis, o ser
vindades e seres muito além da realidade material.
humano ainda é filho de Deus, sua criatura. Assim,
Essa correspondência com a criação,20 o mundo apesar de desgraçado, o ser humano ainda carrega
no qual vivemos, passa pela realidade da divindade em si a realeza de Deus.
criadora. São as virtudes promovidas pela religião
Ao recusar o deus-artefato, Tolkien critica nova-
que estabelecem a correspondência, pois Deus nos
mente o materialismo e a tecnologia da ciência mo-
indica como agir corretamente. Em suma: pode até
derna. A capacidade de compreensão e de desen-
existir um mundo com o sol verde, com árvores ama-
volvimento intelectual e espiritual do ser humano é
relas, porém deve obedecer a um parâmetro que per-
imensa, como as luzes que se refratam em vários tons,
mita uma explicação de que Deus, ou seus avatares,
mas a unidade é novamente resgatada no branco. Por
criaram o sol verde para expressar a gratidão da gra-
fim, a apologia de que as estórias de fadas, com elfos,
ma, e as árvores amarelas para mostrar a proteção do
duendes, deuses de trevas e luz, dragões, são parte
fogo quando usado para aquecer os seres humanos.
da herança de Deus ao ser humano, a capacidade de
Assim, como na religião do mundo primário, na cria-
criação imaginativa.
ção, a arte subcriativa demonstra o cuidado de Deus
com a natureza e com os seres humanos, e nisso exis- Na dimensão da consolação das estórias de fa-
te a lógica religiosa real no mundo primário. das, existe um desdobramento fundamental, e che-
gamos ao conceito central no pensamento religioso
Da mesma forma, seres humanos compostos de
de Tolkien, a eucatástrofe. Eucatástrofe significa boa
ferro, num mundo subcriado, devem seguir as vir-
catástrofe, a virada que permite que as virtudes que
tudes propostas da religião da mesma forma que os
estão no mundo primário prevaleçam no mundo se-
seres humanos de carne e osso o fazem no mundo
cundário. A subcriação na medida correta acontece
primário, pois a honra e a coragem são importantes
quanto mais for verossímil a eucatástrofe. O final fe-
tanto no mundo primário, na criação, quanto nos
liz não é algo romântico, bobo ou incoerente, mas
mundos secundários. Se, ao contrário, os seres hu-
parte integrante da vida e da experiência huma-
manos de lama forem traidores e mentirosos, serão
na. Existem perdas, confusão, mortes e sofrimento,
condenados no mundo secundário, assim como trai-
e muitas vezes essa eucatástrofe não é exatamente
ção e mentira são condenáveis no mundo primário.
como gostaríamos que ela fosse. Existem mudanças
Somente assim será possível estabelecer uma ligação
e, muitas vezes, as coisas seguem rumos nunca ima-
entre o desejo dos seres humanos e a arte subcriativa.
ginados. Porém o que a eucatástrofe revela é que as
Em Mythopoieia, Tolkien escreve:
virtudes sempre são recompensadas e nunca nenhum
The heart of Man is not compound of lies, sacrifício é inútil.
but draws some wisdom from the only Wise, Deve haver uma plausibilidade, uma tensão que
and still recalls him. Though now long estranged, também existe no mundo primário, e assim estabe-
Man is not wholly lost nor wholly changed, lecer a ligação entre o mundo primário e o secundá-
Dis-graced he may be, yet is not dethroned, rio. Assim como na criação muitas vezes pensamos
and keeps the rags of lordship once he owned,
que as virtudes não irreais e inúteis, mas devemos
his world-dominion by creative act:
not his to worship the great Artefact, mantê-las, para conseguirmos entender o quão válida
Man, Sub-creator, the refracted light elas são, também no mundo secundário acontece o
mesmo. Para afirmar esse conceito, Tolkien apresenta

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a maior estória de fadas que ele conhece, os evange- Agostinho e as virtudes
lhos, com a narrativa da vida, ensinamentos, paixão,
morte e ressurreição de Jesus Cristo. Assim Tolkien es- Para aprofundarmos a relação que Tolkien estabe-
creve na parte final de On Fairy-Stories: lece entre as virtudes e as estórias de fadas, é neces-
sário o entendimento cristão de virtudes. Para tanto, a
It is not difficult to imagine the peculiar excitement and filosofia de santo Agostinho23 é a fonte na qual Tolkien
joy that one would feel, if any specially beautiful fairy- entende suas virtudes.
story were found to be “primarily” true, its narrative to be
Em A cidade de Deus,24 Agostinho discorre sobre
history, without thereby necessarily losing the mythical
or allegorical significance that it had possessed. It is not como o Império Romano foi grandioso devido aos
difficult, for one is not called upon to try and conceive dons que recebeu de Deus. Mesmo sem ter a reve-
anything of a quality unknown. The joy would have ex- lação do Deus único, os romanos buscaram verda-
actly the same quality, if not the same degree, as the joy deiramente as virtudes como centro de sua glória e,
which the “turn” in fairy-story gives: such joy has the assim, conseguiram que o maior império do mundo
very taste of primary truth. (otherwise its name would antigo pudesse ser-lhes concedido por Deus. Dessa
not be joy.) It looks forward (or backward: the direc- forma, Agostinho abre a discussão sobre a ação de
tion in this regard is unimportant) to the Great Eucata- Deus sobre os pagãos, que, mesmo desconhecendo a
strophe. The Christian joy, the Gloria, is of the same revelação monoteísta e cristã, poderiam seguir as vir-
kind; but it is pre-eminently (infinitely, if our capacity tudes como caminho para o encontro com a verdade.
were not finite) high and joyous. Because this story is
supreme; and it is true. Art has been verified. God is the Estes são os meios honestos, a saber: chegar à glória, ao
Lord, of angels, and of men — and of elves. Legend and mando e às honras pela virtude, não pela enganadora
history have met and fused (Tolkien, 1997, p. 156).22 ambição. Essas coisas de igual modo deseja o bom e o
remisso; mas aquele, isto é: o bom, toma pelo verda-
Nesse trecho Tolkien expressa sua visão evangélica
deiro caminho. O caminho em que se apóia é a virtude
das estórias de fadas. A idéia da eucatástrofe se colo- e apóia-se nele para o fim, que é a possessão, ou seja:
ca ao lado da ressurreição. A diferença entre estórias para a glória, a honra e o mando. Que isso se revelou
de fadas, história e lenda é abolida. O Evangelho é a inato nos romanos indicam-no, entre eles, os templos
vida de Jesus Cristo, que se inicia na história enquan- dos deuses da Virtude e da Honra, que construíram na
to homem, natureza e mistério. Porém é justamente a mais estreita união, tendo por deuses o que não passa
arrebentação desses limites que orienta a fé cristã. A de dons de Deus. Daí pode-se inferir o fim que queriam
ressurreição é verdadeira, por isso histórica. O mun- para a virtude e a que referiam os que eram bons, quer
do natural é vencido pelos milagres, curas e assom- dizer: a honra, porque os maus não a possuíam, mes-
bros que Jesus Cristo realiza, e finalmente a Gloria mo quando desejaram ter a honra, que se esforçavam
cristã é a alegria do encontro com um Deus que é em conseguir por meios infames, isto é: com enganos e
Pai. Nesse sentido Feéria é um vislumbre do Reino dolos. (Agostinho, 1991, pp. 208-209).
de Deus no mundo, nostalgia do Paraíso perdido no A visão de Agostinho sobre as virtudes como dons
relato bíblico. Feéria é o lugar de reencontro do ser de Deus demonstra que os romanos obtiveram seu
humano com os anjos, e com os elfos. êxito no mundo por causa da busca e veneração des-
Assim, a eucatástrofe é a característica que diferen- sas virtudes, até mesmo como deusas em si. Engana-
cia as estórias de fadas de outros gêneros de narrativa. dos por não conhecerem a verdade do monoteísmo
A tragédia, o drama, a comédia. É essa grande virada, cristão, puderam gozar dos dons das virtudes. No
quando tudo parece perdido, que se assemelha com caso, o objetivo é a glória, a honra e o mando, isto
o Glória da ressurreição. E junto os conceitos estória é: o reconhecimento entre os pares da vitória, essa
de fadas, narrativa da experiência humana no Reino vitória considerada justa e respeitável, e, enfim, o po-
Perigoso, Feéria, associado com o de subcriação, que der de mando entre seres humanos e Estado oriundo
esse Reino Perigoso é reflexo das escolhas originais dessa glória e honra. Por isso que se explica a exis-
do ser humano. É o Evangelho que dá sentido a todas tência do Império Romano como dom de Deus para
as outras estórias de fadas. Em certo sentido, o drama os romanos.
evangélico, com a eucatástrofe, é que inicia e redi- A própria existência de seres humanos que dese-
me todas as outras estórias de fadas. Para Tolkien, o javam essas virtudes e não as possuíam demonstra,
Evangelho é que é o Fogo que alimenta o Caldeirão embora com esforço, que traíam as próprias virtudes,
de Estórias, onde surgem todas as porções da Sopa, revela a condição de gratuidade dessas virtudes. Ape-
que rasga a diferença entre Mundo Primário e Mundo nas o caminho correto poderia conceder essas virtu-
Secundário, que justifica todos os subcriadores, de des e, ainda assim, a forma e para quem era concedi-
toda época e lugar.

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do de forma reta era mistério. Então a conclusão de ne Jesus Cristo como a Força e a Sabedoria de Deus.
Agostinho sobre a concessão de Deus. Essa definição pode enquadrar-se nas características
Novamente em A cidade de Deus, Agostinho defi- da glória, da honra e do mando romanos. Assim, a
ne a virtude e expressa como a sua busca pode obje- própria pessoa de Jesus Cristo é em si a mais gloriosa,
tivamente conceder a felicidade, isto é: a realização honrada e poderosa, a honra, o poder e a glória são
plena do ser humano em seu gozo pela vida. exclusivos do Filho de Deus.

A virtude os antigos definiram como a arte de viver bem Porta-te com ânimo viril, e persevera acreditando na
e retamente. Daí, porque em grego virtude se diz arete, verdade em que acreditas, pois nada é mais recomen-
acreditarem os latinos traduzi-la bem com o nome de dável que se acredite, embora se mantenha oculta a
arte. Se a virtude fosse inseparável das faculdades do razão por que (tal verdade) é assim, ter de Deus o mais
espírito, que necessidade haveria do deus Cácio para alto grau de devotividade. Ora, ninguém acredita que
torná-los hábeis, isto é: inteligentes, se a felicidade é ele é onipotente, e que nem por minúscula parcela (da
capaz de conferi-lo? Nascer engenhoso é privativo da sua natureza) está sujeito a mudança. (Não se acredita)
felicidade. Em conseqüência, mesmo quando o não- igualmente que é ele o criador de todas as coisas boas,
nascido não possa tributar culto à Felicidade, para que, às quais sobreleva. Que também é o dirigente justís-
granjeando-lhe a amizade, lho conceda, aos pais, que simo de todas as coisas por ele criadas. E bem assim,
lho tributam, poderá conceder lhes nasçam filhos enge- que não foi ajudado na criação por nenhum outro ser,
nhosos (Agostinho, 1991, p. 169). como quem se não bastasse a si mesmo. Daí ter criado
do nada todas as coisas e que, procedente dele mesmo,
A arte de viver bem e retamente, a arete, é virtude. não tenha criado mas gerado quem lhe fosse igual, esse
Sendo uma arte, há quem faça bem e quem não faça. que nós professamos ser o Filho único de Deus, e a
Mesmo o engenhoso, o inteligente, que pode apro- quem, se pretendemos designá-lo mais acessivelmen-
ximar-se mais facilmente da felicidade, deve buscar te, chamamos Força e Sabedoria de Deus, por meio
essa felicidade, objetivo último da virtude. Toda vir- da qual fez todas as coisas, que foram feitas do nada.
tude existe e é concedida pela busca da felicidade. Assentes estas verdades, dirijamos os nossos esforços,
Felicidade é viver bem e retamente, a virtude é a com a ajuda de Deus e pelo modo que vai seguir-se,
para a intelecção do assunto sobre que me interrogas
arte pela qual se encontra essa vida. Mesmo quem
(Agostinho, 1986, pp.25-26).
não tem capacidade de engenhosidade e inteligên-
cia deve buscar essa vida para que os familiares em Aqui, Agostinho exprime a coerência entre acre-
seu entorno possam, sendo pais ou filhos, porventura ditar na onipotência de Deus e sua característica de
conseguir tal felicidade. Também a concepção de que Criador. Além de ser a potência original, o criador de
é algo que deve ser buscado e não algo inato ao ser tudo, é também o justo juiz que determina e condena
humano, a virtude deve ser entendida, sempre, como tudo o que acontece no mundo. Também demonstra a
uma busca. Por isso Agostinho coloca a questão de geração do Filho de Deus, Jesus Cristo, como Senhor
que, se a virtude fosse algo inseparável do espírito, e Ordenador do mundo. Enquanto Deus é potência
não haveria necessidade de deuses, ou seja: de algo criadora e reguladora, Jesus Cristo é o Ordenador do
além do ser humano, algo que a concedesse. mundo, ou seja: aquele que domina os caminhos da
Apesar da discussão25 entre vontade e graça em vida da boa e reta vida, enfim, da felicidade. E assim
Agostinho, podemos estabelecer a condição de que expressa os fundamentos da Força e da Sabedoria di-
a virtude é algo que deve ser buscado pela vonta- vina. Essas mesmas características valorizadas pelos
de, porém é concedida pela graça divina. Assim, a romanos são atribuídas por Agostinho a Jesus Cristo.
diferença que Agostinho realiza entre querer, poder As características de Força e Sabedoria de Deus
e fazer impõe-se como uma expressão da busca da são expressas primeiramente por são Paulo (1Cor
virtude para alcançar a felicidade, isto é: a vida reta 1,22-31), quando afirma que Jesus Cristo transforma a
e boa. Para tanto, as virtudes no mundo pré-cristão, noção tanto de judeus quanto de gregos na qualidade
que Agostinho investiga, demonstram esta realidade: de valores de Força e Sabedoria.
da mesma forma que Deus se revelou aos hebreus, No evangelho de João, a apresentação de Jesus
também aos pagãos existiam caminhos que indica- Cristo é feita através da Palavra de Deus (Jo 1,1-18),
vam a presença do Cristo. que é o meio pelo qual tudo foi feito, onde se encon-
Ao identificar os objetivos romanos da felicida- tra a vida enquanto luz que dispersa as trevas, que é
de como glória, honra e mando, Agostinho retoma voltada para Deus e é o próprio Deus. Também se re-
a pessoa de Jesus Cristo como expressão central des- vela na encarnação da Palavra, como um homem que
sas qualidades. Em O livre-arbítrio,26 Agostinho defi- veio mostrar, ensinar e doar a capacidade humana de
amar como o próprio Deus ama.

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 15


Para tal doação, Agostinho reflete sobre a virtude No tocante à justiça, que diremos ser ela senão a virtu-
como fazendo parte dessa doação do amor. Embo- de pela qual se dá a cada um o que é seu?
ra haja diferença entre a revelação de Jesus Cristo,
sua vida e sua ressurreição, as demais virtudes hu- (Agostinho, 1986, pp. 59-60)
manas apresentadas no decorrer da história também São essas as quatro virtudes que Agostinho defi-
são encontradas, enquanto dons de Deus, na pessoa ne como fundamentos da felicidade. Todos os impé-
de Jesus Cristo. Assim especifica o professor Antônio rios pagãos de alguma forma conseguiram seu po-
Soares Pinheiro, tradutor e comentador da edição de der, honra e glória através dessas quatro virtudes. São
O livre-arbítrio por nós adotada, objetivamente, o que chamadas de cardeais, porque indicam a direção da
se entendia por virtude: vida reta e boa, a felicidade. Ao aproximar o termo
O latim dispunha do substantivo virtus (virtude), mas virtude de justiça, também é necessário apontar as
não possuía o adjetivo correspondente. Uma das ex- outras três virtudes, para que fique claro que o virtuo-
pressões a que se recorria para suprir essa falta era o so não é apenas o justo, mas aquele que busca as três
adjectivo justus, e isso contribuía para que um dos sen- outras virtudes.
tidos da palavra justitia (justiça) viesse a ser o de vir- Dessa forma, ao designar Jesus Cristo como Força
tude. Por outro lado, tanto justus como justitia ora se e Sabedoria de Deus, Agostinho também apresenta
aplicavam a determinada virtude, ora à posse normal as virtudes humanas que o próprio Cristo possuía e
de todas, ora à sua posse no supremo grau de perfeição.
concedia. Força é a fortaleza, como a superação das
A par dessas acepções, justiça designava também o que
hoje por ela entendemos, isto é: a virtude que obriga a
perdas e danos que sofremos — físicos, psíquicos ou
dar a cada um o que lhe pertence ou é devido (Pinhei- sociais —, e justiça é a capacidade humana e social
ro, 1986, p. 52). de distribuição de bens físicos, psíquicos e sociais.
Enquanto por sabedoria presume-se a temperança
Segundo essa definição, virtude pode ser enten- — como autocontrole e discernimento também físi-
dida através da concepção de uma determinada vir- co, psíquico e social —, a prudência — como conhe-
tude, ou como a posse de todas as virtudes em certo cimento daquilo que move o ser humano, seja para
grau ou o domínio máximo de certa virtude. A rela- o bem, seja para o mal, e a capacidade de distinguir
ção, portanto, entre virtude e justiça se expressa de a ambos.
forma íntima. O fato de justiça e justo serem associa-
O pensamento de Agostinho sobre as virtudes ex-
dos ao fundamento da virtude pode fazer com que
pressa-se, então, como um fundamento de ligação
sejam confundidos o virtuoso com o justo. Aqui é ne-
com Deus. A virtude é o caminho da felicidade, e
cessário, então, diferenciarmos o que é exatamente a
essa felicidade é a união com Deus, é sua fruição,28
justiça em termos de Agostinho.
entendido como a alegria, o gozo de estar junto com
A virtude é a arte de viver bem e retamente, que Deus. É esse o caminho que o cristão, ao seguir Jesus
é a felicidade. Logo a virtude é a arte de se chegar à Cristo, deve abraçar. As virtudes são dons de Deus
felicidade. Porém existem várias virtudes como cami- assim como a própria união com Deus. O caminho
nhos para esse objetivo. Virtude pode ser entendida virtuoso fundamental é o seguimento de Jesus Cristo
tanto como a vida virtuosa como uma determinada em seus ensinamentos e práticas. É a vida de Jesus
virtude ou como o domínio supremo de perfeição. Cristo que demonstra a verdadeira felicidade, que é
Assim, é necessário entendermos como Agostinho a alegria da ressurreição, a glória, como verdade do
compreende essas virtudes, além da justiça, que amor de Deus e da possibilidade humana de estar
expressa seu fundamento mais íntimo. Para tal, no unido a esse Deus.
próprio O livre-arbítrio, existe uma definição de tais
virtudes, que são retomadas em toda a obra de Agos-
tinho, até n’A cidade de Deus. Beowulf e as virtudes
Depois de definirmos os conceitos literários de
[...] prudência é o conhecimento do que se deve bus-
car, e do que se deve evitar. Tolkien, e as definições de virtude de Agostinho, re-
tomamos agora como Tolkien avalia o poema Beo-
[...] fortaleza é aquela aficiência27 pela qual despreza- wulf. Em seu ensaio Beowulf: The Monsters and the
mos todas as incomodidades e perdas de bens, que não Critics (1936), Tolkien busca compreender esse texto
estão em nosso poder. que narra as aventuras do príncipe dos geats, povo
da Suécia atual, no século IV d.C., que parte para
[...] a temperança é a aficiência que reprime e afasta a Heorot, o salão do hidromel do rei Hrothgar, do povo
vontade das coisas que se desejam aviltantemente. dos dinamarqueses. Em busca de glória, o príncipe

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 16


Beowulf, dos geats, descobre que Heorot é atacada The myth has other forms than the (now discredited)
constantemente por Grendel, monstro antropomórfi- mythical allegory of nature: the sun, the seasons, the
co que devora os maiores guerreiros do rei Hrothgar. sea, and such things... The significance of a myth is not
Depois de lutar e matar o monstro, Beowulf também easily to be pinned on paper by analytical reasoning.
derrota a mão de Grendel, retornando como herói It is at its best when it is presented by a poet who fells
rather than makes explicit what his theme portends;
honrado e glorioso para sua terra. who presents it incarnate in the world of history and
Depois de muitos anos, agora como rei dos geats, geography, as our poet has done. Its defender is thus at
Beowulf enfrenta sua derradeira batalha, ao enfrentar a disadvantage: unless he is careful, and speaks in par-
o dragão que ataca seu povo. Graças à ajuda de seu ables, he will kill what he is studying by allegory, and,
parente Wiglaf, e com o sacrifício do próprio Beo- what is more, probably with one that will not work. For
wulf, o dragão é morto. Porém o funeral de Beowulf myth is alive at once and in all its parts, and dies before
prenuncia a era de tristeza dos geats, pois o maior de it can be dissected (Tolkien, 1997, p.15)29
seus guerreiros e seu próprio rei está morto. A crítica de Tolkien em relação à racionalidade
Ao estudar o poema, Tolkien elenca sete pontos- analítica se funda no resgate do pensamento mítico.
chave em sua compreensão. São esses pontos que A compreensão dos mitos como alegorias de fenôme-
nos permitem fazer uma aproximação entre o pensa- nos da natureza que os antigos não entendiam não
mento literário de Tolkien expresso em On Fairy-Sto- é aceita por Tolkien, para quem o mito está vivo e é
ries e a filosofia de Agostinho sobre as virtudes. mais fácil um poeta compreendê-lo do que um cien-
Esse poema foi analisado por Tolkien em seu en- tista moderno.
saio como um poema. Eis o primeiro ponto impor- Essa concepção mais uma vez corrobora seu con-
tante. O valor literário em termos de beleza e força ceito de subcriação, e mesmo o de eucatástrofe. Ao
criativa. Tolkien ressalta esse ponto justamente por- estar vivo, o mito produz sentimentos e realidade que
que quer delimitar sua crítica entre entender Beowulf a razão analítica não consegue explicar. Somente
como um documento histórico ou como um tratado a poesia pode aproximar-se dessa explicação, des-
teológico. Quer justamente fazer o que considera o sa verdade que o poeta pode exprimir com base no
meio-termo entre ambos. Não é algo teórico filosó- mundo da história e da geografia, ou seja: no tempo e
fico ou conceitual, é um poema escrito para retratar no espaço que pode ser compreendido pelos seus pa-
beleza, encantamento e arte, ao mesmo tempo que res. Isso não significa que o próprio mito esteja preso
não é um documento histórico, porque não trata exa- neste tempo e espaço, porém é a maneira do poeta
tamente da história documental ou administrativa de expressar essa realidade mítica que não pode ser ex-
qualquer instituição ou corpo burocrático. São mitos plicada nem mesmo alegoricamente.
e lendas de um povo. De mesma forma, ao refletir sobre a filosofia de
Aqui, aproximamo-nos de seu conceito de sub- Agostinho, as mesmas virtudes que são encontradas
criação. A importância de um poema é mais do que nos diversos povos independem do tempo e do espa-
seu valor estético. Não é porque é belo, mas porque ço. Jesus Cristo é atemporal, e embora sua revelação
é bom e verdadeiro. A preocupação de Tolkien em aconteça em determinado tempo da história isso não
afirmar que seu estudo é sobre o poema, e não so- significa que os demais tempos não tivessem virtudes
bre seus conceitos ou sobre seu contexto histórico, que refletissem seu caminho. A relação que Tolkien
é para ressaltar que o próprio poema, enquanto arte, faz com o mundo primário, e daí a compreensão das
expressa conceitos e um contexto, porém isso não virtudes, pode ser alargada para as estórias de fadas,
é o mais importante. O importante é exatamente o e daí o entendimento do mito como eco do Evange-
impacto que o poema tem sobre o leitor. Sobre as lho, independente do tempo e do espaço.
reflexões que podem ou não possuir a aplicabilidade No terceiro ponto de análise de Tolkien em rela-
em outros tempos e outros pensamentos. ção a Beowulf, a importância simbólica é expressa.
É exatamente esse segundo ponto que Tolkien O dragão é o mal. Esse símbolo30 está presente em
aprofunda em seu ensaio. Faz diferença entre alego- várias culturas, seja a serpente malévola do relato do
ria e mito. Para Tolkien, a alegoria possui um signi- Gênesis (3,1-14), seja a serpente de Midgard,31 da mi-
ficado direto do significante. O que é representado tologia escandinava, que circula o mundo e vai des-
pode ser explicado sem maiores dificuldades através pertar no Ragnarok, o fim dos tempos. Seja o dragão
daquilo que representa. Não é assim que Tolkien es- enfrentado e morto pelo rei Beowulf, que morre por
tuda em Beowulf: causa dos ferimentos, seja o dragão cor de fogo do
Apocalipse cristão (Ap 12,1-18).

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 17


Para Tolkien, o dragão é o mal absoluto, a morte the purpose by professed historians. But it is the mood
como derradeiro fim. Na mitologia escandinava, o of the author, the essential cast of his imaginative ap-
Ragnarok termina com todos os deuses derrotados, prehension of the world, that is my concern, not history
mas com os gigantes mortos, e Surtur, o grande de- for its own sake; I am interested in that time of fusion
mônio do fogo, incendeia tudo e é o fim dos tempos. only as it may help us to understand the poem. And
in the poem I think we may observe not confusion, a
Para Beowulf, o que importa para conseguir glória, half-hearted or a muddled business, but a fusion that
honra e comando é a capacidade de resistir aos ape- has ocurred at a given point of contact between old and
los da covardia e da fraqueza de decisão. O mundo new, a product of thought and deep emotion.
da pós-morte também não oferecia descanso eterno,
pois os grande guerreiros também viveriam apenas “One of the most potent elements in that fusion is the
para lutar no fim dos tempos, onde todos seriam der- Northern courage: the theory of courage, which is the
rotados, inclusive os deuses. great contribution of early Northern literature (Tolkien,
Aqui, estabelecemos o quarto ponto do estudo de 1997, p. 20).33
Tolkien, e o fundamental em relação às virtudes de Aqui, Tolkien demonstra sua preocupação funda-
Agostinho: o dogma da coragem na mitologia escan- mental: a apreensão imaginativa do poeta que escre-
dinava. A principal virtude trazida pela narrativa de veu Beowulf. De fato, o conceito de estória de fada
Beowulf ecoa o fundamento mitológico do Ragnarok. como uma subcriação se apresenta também em Beo-
O que importa é não desistir. Não há esperança de wulf. O mundo primário é descrito, porém com ele-
vitória, nem mesmo com a ajuda dos deuses, porque mentos que estão presentes no caldeirão de estórias.
os próprios deuses estão fadados a morrer. Dragão, Caim, Grendel e sua mãe estão em combate
Embora seja um texto que traga Grendel e sua mãe com figuras de reis e heróis que se balizam nas vir-
como monstros antropomorfos e devoradores de seres tudes de Agostinho. A teoria da coragem, ou o dog-
humanos, ambos são descendentes do Caim da Escri- ma, que Tolkien apresenta em seu ensaio, nos mostra
tura hebraica. Assim, a presença do cristianismo no o quão importante esse fundamento se apresenta na
texto é clara, também nos valores que os reis trazem narrativa de Bewoulf. Da mesma maneira que os ro-
em si. Força e sabedoria são as marcas fundamentais manos receberam seu Império como dom de Deus
nos ideais propostos nos reis, assim como Agostinho através das virtudes, os escandinavos também man-
expressa a pessoa de Jesus Cristo. tiveram sua cultura e sua tradição através do dom da
Tanto Hygelac, reis dos geats, tio de Beowulf e coragem.
seu antecessor no trono, quanto Hrothgar e o próprio É possível traçar paralelos com as virtudes de
Beowulf como rei giram nessa tensão entre força e fortaleza, justiça, temperança e prudência através
sabedoria. Enquanto Hrothgar, rei dos dinamarque- do dogma da coragem. E este é o quinto ponto que
ses, é a sabedoria, monoteísta, acolhedor e doador Tolkien apresenta em Beowulf. Tal ponto de fusão en-
de anéis,32 porém já idoso e sem forças para enfrentar tre a cristandade e o pensamento pagão é o que se
Grendel, que ameaça seu povo; enquanto Hygelac apresenta no poema. Não algo misturado de forma
é o valoroso rei dos bravos geats, povo do próprio desordenada, mas uma coerência e uma harmonia
Beowulf, rei que morre em batalha em invasão de ou- que produz um poema com valor em si mesmo.
tros povos, Beowulf é apresentado como aquele que Neste ponto, ao entender o pensamento pagão de
consegue ter a sabedoria e a força durante seu tempo Beowulf e ao mesmo tempo expressar o monoteísmo
de juventude e de herói, ao matar Grendel, e governa de Hrothgar e a descendência de Grendel até Caim,
com sabedoria seu povo quando se torna rei, e não as escrituras se fazem presente. Na mitologia escan-
foge da batalha contra o inimigo último, símbolo do dinava, não há salvação, nem mesmo para os mais
próprio mal, o dragão. fortes. O Ragnarok irá consumir tudo, inclusive os
Embora todos esses símbolos possuam concomi- deuses. A batalha, então, se torna espiritual, pois não
tância entre as Escrituras e a filosofia de Agostinho em é mais possível recuar pela própria honra.
relação à força e à sabedoria, e à mitologia escandi- A resistência se torna perfeita, porque é sem espe-
nava, Tolkien apresenta a formulação própria do texto rança nenhuma. A noção de que é possível agarrar
de Beowulf como a visão da coragem caracetrística a vitória pela teimosia em continuar lutando mesmo
da virtude escandinava. sem esperança. Ao concretizar esse dogma, o paga-
So regarded Beowulf is, of course, an historical docu- nismo de Beowulf se aproxima da Paixão de Jesus
ment of the first order for the study of the mood and Cristo, descrita no evangelho de João (Jo 18,1-40), que
thought of the period and one perhaps too litlle used for a apresenta de forma diferente da dos demais evange-

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 18


lhos sinóticos, onde Jesus sua sangue (Lc 22,35-53), — historically unlikely for a man of this sort in the pe-
pede para o pai afastar o cálice (Mc 14,32-42), ou riod — he brought probably first to his task a knowled-
mesmo duvida da presença do pai em sua agonia na ge of Christian poetry, especially that of the Caedmon
cruz (Mt 27,45-51). school, and specially Genesis… Secondly, to his task
the poet brought a considerable learning in native lays
No evangelho de João, a quem Tolkien, por tam- and traditions… (Tolkien, 1997, pp. 26-7).37
bém chamar-se João (John), considerava seu patrono,34
Jesus Cristo é apresentado sem medo de seu martírio Essa concepção do sentimento de pesar e de
e de sua cruz. Um Jesus Cristo que busca cumprir heroísmo de um povo pagão, provavelmente da pró-
exatamente o plano de Deus sem nenhuma dúvida. pria tradição e cultura do ser humano instruído, é o
É a vontade superando qualquer sentimento de fra- principal elo de ligação entre a escritura de Beowulf
queza. e Agostinho. Da mesma forma que o bispo de Hipo-
O sexto ponto do estudo de Beowulf é a apresen- na, professor de cultura romana, estudioso dos mitos
tação que faz da mitologia do Norte em comparação e lendas de Roma, busca no passado de sua civili-
com a mitologia do Sul. Para Tolkien, o continente zação, e mesmo nos cultos dos deuses, aquilo pelo
europeu dava muito valor aos deuses do Sul, entendi- qual Deus concedeu certa virtude, o texto anglo-sa-
do como o Mediterrâneo, especificamente o mundo xão faz o mesmo.
greco-romano, e deveria reconhecer melhor as con- Sentir algo de permanente e simbólico, a verdade,
tribuições que foram feitas em sua cultura e forma- expressa em versos e linhas que ecoam a teoria da
ção, oriundas do mundo do Norte, especificamente coragem, o dogma da luta desesperançada, da for-
da Escandinávia e do anglo-saxão. ça e sabedoria de Deus, Jesus Cristo, que é insensa-
No ensaio, Tolkien realiza uma comparação entre tez para os gregos e escândalo para os judeus (1Cor
os deuses e os monstros na Eneida, de Virgílio,35 na 1,23). Eis os reis que devem ser seguidos, aqueles aos
Odisséia, de Homero,36 e no Beowulf. A concepção quais Deus concedeu as virtudes que indicam sua
do ciclope como um filho dos deuses que os seres predileção e seu caminho em direção à verdade da
humanos devem enganar porque invadiram seu lar e, lei inscrita nos corações.
assim, dentro de um jogo dos próprios deuses, con- É essa mesma escrita que reflete as estórias de fa-
seguir voltar sãos para suas casas diverge completa- das. O Evangelho justifica Beowulf, Eneida, Odisséia,
mente da visão de Grendel, de sua mãe e do dragão. Gênesis. E também os elfos e hobbits de O senhor
Em Beowulf os monstros são o mal. Os deuses são dos anéis, do Silmarillion e do Hobbit. O fato de o
aliados dos seres humanos em sua tentativa desespe- ser humano poder criar estórias de fadas significa o
rada de lutar uma luta inútil, mas que é a única opção fato de querer investigar as causas primeiras de sua
para os seres humanos que merecem ser chamados conduta e de suas virtudes. Por que ser justo, pru-
assim, com base na glória, honra e poder de coman- dente, temperante e forte é o que busca responder
do. Como os objetivos romanos em sua cidade. As nas estórias de fadas. E é justamente o Evangelho que
relações entre os dons das virtudes são fundamentais permite que tais anseios sejam portadores dessa ver-
na análise dos monstros e dos deuses. Mesmo conde- dade revelada.
nando os deuses romanos como demônios e ilusões, Finalmente, o sétimo ponto que Tolkien resgata
Agostinho via nas virtudes o meio pelo qual Jesus em Beowulf é a construção do pensamento no texto
Cristo poderia manifestar-se em mundos que ainda e não de sua história. Tolkien quer encontrar aquilo
não o conheciam. Isso reflete muito mais as descri- que permanece enquanto verdade, especificamente
ções dos monstros e dos gigantes (Gn 6,1-8) como traduzida nas virtudes, apresentadas através da narra-
adversários de Deus no Gênesis. A aproximação é tiva simbólica de monstros e heróis. O conflito contra
mais direta entre Beowulf e as Escrituras cristãs. Da o mal, simbolizado pelo dragão, é justamente o mes-
mesma forma, Tolkien interpreta o poema Beowulf mo conflito do Apocalipse cristão.
com essa ênfase. É o caráter inumano dos monstros que extrapo-
la a reflexão de cunho histórico e de registro. São
“In Beowulf we have, then, an historical poem about justamente as batalhas contra seres sobre-humanos e
the pagan past, or an attempt at one — literal historical
sobrenaturais que remetem a investigação e o pensa-
fidelity founded on modern research was, of course, not
attempted. It is a poem by a learned man writing of mento sobre a realidade natural. A discussão cósmica
old times, who looking back on the heroism and sor- sobre o destino da vida humana, seus esforços e suas
row feels in them something permanent and something virtudes. As estórias de fadas têm como centro a refle-
symbolical. So far from being a confused semi-pagan xão sobre a natureza. É o ser humano diante daquilo

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 19


CURRY, Patrick. Defending Middle-earth. Tolkien: Myth
and Modernity. London, HarperCollins, 1997.
que pode e não pode. Seus limites diante do mistério

FIROLAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. As ciências


e suas conquistas e descobertas diante da criação.
It just because the main foes in Beowulf are inhuman das religiões. São Paulo, Paulus, 1999
that the story is larger and more significant than this GALVÃO, Ary Gonzales. Beowulf. São Paulo, Hucitec,
imaginary poem of a great king´s fall. It glimpses the 1992.
cosmic and moves with the thought of all men concer- LOPES, Reinaldo. Árvore de estórias. Dissertação de
mestrado. São Paulo, USP, 2006.
ning the fate of human life and efforts (Tolkien, 1997,
LOYN, H. R.. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro,
p.33).38
Para muito além da discussão política, seja glorio- Jorge Zahar Editor, 1990.
sa, seja honrada, as estórias de fadas tratam do des- TOLKIEN, J.R.R. O hobbit. São Paulo, Martins Fontes,
tino e do sentido dos seres humanos. As virtudes, o 2003.
exemplo do rei, não são fundamentais em si mesmas, ______. O senhor dos anéis. São Paulo, Martins Fontes,
somente em direção ao mistério do sobre-humano. 2001.
Assim, a aproximação entre a permanência das vir- ______. O silmarillion. São Paulo, Martins Fontes,
tudes presentes nas estórias de fadas, mitológicas e 2002.
inventadas, é a permanência da eternidade de Deus. ______. The Monsters and The Critics and Other Essays.
As virtudes são dons de Deus e também eternas London, HarperCollins, 1997.
enquanto tais, porque estão presentes em Jesus Cris-
to enquanto verdadeiro homem e verdadeiro Deus. É Notas
Mestrando em Ciências da Religião na PUC/SP. Contato:
isso que justifica sua existência em outros povos an- *

dklautau@yahoo.com.br.
tes de Jesus Cristo e de diferentes culturas e tradições.
Agostinho, no trecho final de O livre-arbítrio, nova- 1
“Mas no momento em que a esperança morria em
mente apresenta essa conclusão, quando entoa quase
Sam, ou parecia morrer, ela se transformou em
um hino à retitude, o domínio pleno das virtudes.
uma nova força. O rosto simples do hobbit ficou
É, porém, tão grande a beleza da retitude, tão grande austero, quase cruel, no momento em que sua
o enlevo da luz eterna, isto é: da Verdade e Sapiência disposição se endureceu, e ele sentiu um frêmito
incomutável, que mesmo se não fosse permitido per- percorrer-lhe pernas e braços, como se tivesse se
manecer nela mais que pelo espaço de um dia, só por transformado em alguma criatura de pedra e aço,
isso se desprezariam, com razão e merecidamente, inu- que não poderia ser subjugada nem pelo desespero,
meráveis anos desta vida, embora cheios de delícias, e nem pelo cansaço, nem por milhas infindáveis de
de superabundância de bens temporâneos. Com efeito, terra desolada” (Esteves, 2000, p. 989).
não foi dito pelo salmista sem fundamento, ou com pe- 2
Folclorista escocês (1824-1905). Um dos primeiros
queno afeto: pois um só dia nos vossos átrios vale mais
que milhares. Se bem que isso se pode entender noutro compiladores de lendas e contos de fadas
sentido, referindo-se os milhares de dias à mutabilidade escandinavos e da Grã-Bretanha.
do tempo, e designando-se pelo apelativo dia a imuta-
3
Folclorista escocês (1844-1912). É atribuído a Lang
bilidade da eternidade (Agostinho, 1986, p. 266). a descoberta de uma relativa presença da crença
em um ser supremo em muitas populações não-
letradas, criador e indicador ético. Ver: FIROLAMO,
Bibliografia Giovanni & PRANDI, Carlo. As ciências das
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Petrópolis, religiões. São Paulo, Paulus, 1999.
Vozes, 1991. Nasceu na África do Sul em 1892, no período do
4

______. O livre-arbítrio. Braga, Editorial Franciscana, imperialismo inglês na África. Mudou-se para a
1986. Inglaterra ainda criança, onde estudou, trabalhou
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo, Paulus, 1990. como professor de filologia e anglo-saxão nas
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. A universidades de Leeds e Oxford. Casou-se com
Idade da Fábula. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999. Edith Bratt, teve quatro filhos, foi católico convicto
CARPENTER, Humphrey (Org.) As cartas de J. R. R. e questionou fortemente a fundamentação do
Tolkien. Curitiba, Arte e Letra, 2006. nazismo na mitologia escandinava. Morreu
______. J. R .R. Tolkien. Uma biografia. São Paulo, em 1973, com honras do Império Britânico e
Martins Fontes, 1992. consagrado no mundo inteiro por sua criação.
CROATTO, Severino. As linguagens da experiência Ver: CARPENTER, Humphrey. J. R .R. Tolkien. Uma
religiosa. São Paulo, Paulinas, 2001. biografia. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 14 20


5
Termo cunhado pelo próprio Tolkien, em suas fundação da razão como elemento possível de
cartas, para descrever a totalidade de sua criação encontro com a verdade do mundo, daí o aforismo
literária relativa à Terra-média. “penso logo existo”, presente em seu Discurso do
6
Mais antigo poema escrito em anglo-saxão. Datado método (1637).
do século VII d.C., trata da cultura escandinava e 16
Ciência que estuda o desenvolvimento de
da mitologia pagã e elementos cristãos. Ver: LOYN, determinada língua, assim como seus principais
H.R.. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro, registros históricos e transformações no decorrer
Jorge Zahar Editor, 1990. do tempo.A preocupação com o documento da
7
Entendido como uma narrativa de criação do língua é fundadora da filologia.
mundo ou de algum fenômeno natural, humano ou 17
Filólogo alemão (1823-1900). Considerado um dos
sobrenatural, o mito é uma constante em todas as fundadores das Ciências da Religião. Pesquisou
religiões. Ver: CROATTO, Severino. As linguagens as religiões orientais e a mitologia européia. Ver:
da experiência religiosa. São Paulo, Paulinas, FIROLAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. As
2001. ciências das religiões. São Paulo, Paulus, 1999.
8
Escritor norte-irlandês (1989-1963), professor em 18
“Contudo, essas coisas de fato se tornaram
Oxford e Cambridge de literatura inglesa. Sua entrelaçadas — ou talvez elas tenham sido
conversão ao cristianismo é atribuída às conversas separadas há muito tempo e tenham desde então
com o professor Tolkien. tateado vagarosamente, através de um labirinto
9
“Benditos os que em rima fazem lenda/ao tempo de erro, de confusão, de volta à re-fusão. Mesmo
não-gravado dando emenda./Não foram eles que a as estórias de fadas como um todo têm três faces:
Noite esqueceram,/ou deleite organizado teceram,/ a mística voltada para o sobrenatural; a mágica
ilhas de lótus, um céu financeiro, perdendo a alma voltada para a natureza; e o espelho de escárnio e
em beijo feiticeiro/(e falso, aliás, pré-fabricado,/ pena voltado para o ser humano. A face essencial
falaz sedução do já deturpado)” (Lopes, 2006, p. de Feéria é a do meio, a mágica. Mas o grau em
158). que as outras aparecem (se aparecem) é variável,
10
Considerado primeiro grande poeta grego, suas e pode ser decidido pelo contador de estórias
obras datam do século VIII a.C. e marcam a poesia individual” (Lopes, 2006, p. 73).
épica. 19
Essa visão de re-encantamento pode ser uma
11
Relativa a Platão (428-347 a.C.), filósofo grego resposta a um teórico alemão de uma geração
cujas obras fundam o pensamento ocidental. anterior a Tolkien, Max Weber (1864-1920), que
12
Existe uma leitura da obra de Tolkien como crítica à aponta como uma característica da Modernidade
Modernidade, entendida como capitalismo, Estado- um desencantamento do mundo, entendido como
Nação e ciência moderna, daí sua necessidade a saída do pensamento idealista religioso das
de recuperar valores pré-cristãos. Inspirados nas práticas cotidianas. Ver: FIROLAMO, Giovanni
obras de literatura medieval, como os romances & PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São
corteses e as canções de gesta, os escritores Paulo, Paulus, 1999.
medievais estabeleceriam uma literatura com fins 20
Na tradição católica, afirma-se Deus como criador
de exaltar virtudes e valores na formação cultural do mundo e toda realidade em que vivemos como
da cristandade. Ver: CURRY, Patrick. Defending obra sua. Tolkien, por diversas vezes, defendeu a
Middle-earth. Tolkien: Myth and Modernity. religião e a Igreja Católica. Nas escrituras bíblicas,
London, HarperCollins, 1997. narrativa da criação, tanto na tradição judaica, no
13
Humphrey Carpenter, biógrafo de Tolkien, mostra Antigo Testamento, como centro em Deus criador,
que sua vida esteve sempre ligada a um resgate de como nos evangelhos, o Novo Testamento, vendo
virtudes cristãs, principalmente pela vida de Tolkien Deus como Pai, tal qual na oração do pai-nosso.
durante as guerras mundiais e pelo imperialismo 21
“Mentiras não compõem o peito humano,/que
inglês. do único Sábio tira o seu plano/e o recorda. Inda
14
Jornalista e mestre em estudos lingüísticos pela que alienado,/algo que não se perdeu nem foi
USP. Participa de páginas na internet de divulgação mudado./Desgraçado está, mas não destronado,/
e estudo das obras de J. R. R. Tolkien. Ver:< www. trapos da nobreza em que foi trajado,/domínio do
valinor.com.br>. mundo por criação:/o deus Artefato não é o seu
15
Relativo a René Descartes (1596-1650), matemático quinhão,/homem, subcriador, luz refratada/em
e filósofo francês, considerado um dos fundadores quem a cor branca é despedaçada/para muitos
do pensamento moderno. Sua principal tese é a tons, e recombinada,/forma viva mente a mente

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passada./Se todas as cavas do mundo enchemos/ humano é necessário querer a graça e para isso é
com elfos e duendes, se fizemos/deuses com casas necessário a liberdade, porém não cabe a ela poder
de treva e de luz,/se plantamos dragões, a nós e fazer, que é concessão da graça.
conduz/um direito. E não foi revogado./Criamos 26
Livro escrito em forma de diálogo. Agostinho
tal como fomos criados” (Lopes, 2006, p. 156). traça os primeiros fundamentos de sua filosofia,
22
“Não é difícil imaginar a excitação e a alegria peculiar que busca compreender como é possível ao ser
que alguém sentiria se alguma estória de fadas humano cometer o mal e ao mesmo tempo buscar
especialmente bela se mostrasse ‘primariamente’ o bem. A resposta se faz na análise das várias
verdadeira, sua narrativa ser história, sem, por opções do ser humano em relação a Deus, e a
meio disso, necessariamente perder a significância irrestrita capacidade humana de agir livremente.
alegórica ou mítica que possuíra. Isso não é Em O livre-arbítrio (387) muitos críticos indicam
difícil, porque não se exige que se tente conceber a contradição entre querer e poder que Agostinho
qualquer coisa de uma qualidade desconhecida. apresenta no conjunto de sua obra.
A alegria teria exatamente a mesma qualidade, se 27
Pinheiro (1986), em nota explicativa do texto, afirma:
não o mesmo grau, que a alegria à qual a ‘virada’ “Termo derivado do verbo latino afficere, traduz a
numa estória de fadas dá: tal alegria tem o próprio palavra affectio, e designa qualquer disposição ou
sabor da verdade primária (de outra forma o seu estado psíquico, em geral de componente afetiva”
nome não seria alegria.). Ela olha adiante (ou atrás: (p. 59).
a direção a esse respeito é desimportante) para a 28
Em O livre-arbítrio, em nota explicativa, Pinheiro
Grande Eucatástrofe. A alegria cristã, a Glòria, é do define assim fruição: “No texto latino, encontra-se
mesmo tipo; mas é preeminente (infinitamente, se o verbo perfrui, que se poderia verter por gozar.
nossa capacidade não fosse finita) elevada e alegre. Evita-se esta expressão por encontrar-se bastante
Porque essa estória é suprema, e é verdadeira. A materializada, e por Agostinho ter criado a célebre
arte foi verifeita. Deus é o Senhor, de anjos, de doutrina moral do uso contraposto à fruição,
seres humanos — e de elfos. Lenda e história se reservando para esta a suprema alegria da posse
encontraram e fundiram” (Lopes, 2006, p. 137). de Deus. Em conexão com essa doutrina, difruir
23
Aurelius Agostinus (354-430 d.C.) é considerado exprime o ato de alegria espiritual” (p. 60).
um dos pilares da filosofia cristã. Professor de 29
“O mito tem outras formas do que a (agora
retórica, filósofo, sacerdote, fundador de mosteiros desacreditada) alegoria mítica da natureza: o sol,
e enfim bispo de Hipona, na África romana, sua as estações, o mar e essas coisas... O significado
vasta obra foi lida e suas idéias foram a base de de um mito não é facilmente posto no papel pela
toda cristandade medieval. racionalidade analítica. Este é melhor quando é
24
Livro extenso e cheio de referências ao mundo apresentado por um poeta que sente ao invés de
antigo, tanto romano como hebraico, A cidade de explicitar o que o tema ostenta; que o apresenta
Deus (413-426) foi escrito como fundamento da encarnado no mundo da história e da geografia,
percepção cristã da história, das instituições e do como nosso poeta tem feito. Seu defensor está em
poder. Após a destruição de Roma em 410, e após desvantagem: a não ser que ele seja cuidadoso e fale
o embate pelagiano sobre o livre-arbítrio e a graça, em parábolas, ele vai matar o que está estudando
Agostinho se dedica a descrever como Deus age através da alegoria, e, mais ainda, provavelmente
entre os seres humanos e na história do mundo, isso não vai funcionar. Pois o mito está vivo como
conduzindo a humanidade em direção à salvação um um todo e em todas as suas partes, e morre
e de acordo com os planos divinos. antes que possa ser dissecado” (tradução minha).
25
Uma das maiores polêmicas do pensamento 30
Na discussão do símbolo, é a representação que
agostiniano é a revisão que o autor realiza de une uma figura conhecida e representável ao
suas primeiras obras. Sobre a questão do querer, mistério não-representável. O dragão pode ser
poder e fazer, no livro a Graça e liberdade (427), descrito, mas o que de fato ele significa não. Eis
após a condenação das doutrinas pelagianas, a fundamental diferença entre uma alegoria, que
Agostinho se propõe a elucidar as relações entre podemos explicar o que representa, e o símbolo,
graça, que é concessão gratuita de Deus, algo fora que mantém uma parte no âmbito do mistério. Ver:
da capacidade humana, e liberdade, como atributo CROATTO, Severino. As linguagens da experiência
que caracteriza a vontade humana. Afirmando religiosa. São Paulo, Paulinas, 2001.
que tanto uma como a outra são necessárias na 31
Midgard era o reino do meio, como a mitologia
dinâmica da salvação, Agostinho afirma que ao ser escandinava chamava a Terra em que moramos. A

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serpente é morta por Thor, o deus do trovão e da — historicamente improvável para um homem
guerra, que anda nove passos e morre por causa desse tipo no período — trouxe, provavelmente,
do veneno. A relação entre este trecho do mito e primeiramente, a sua tarefa um conhecimento
a morte de Beowulf é notória. Thor é considerado da poesia cristã, especialmente aquele da escola
o deus mais poderosos depois de Odin, o pai dos de Caedmon, e especialmente o Gênesis... Em
deuses. Ver: BULFINCH, Thomas. O livro de ouro segundo lugar, para sua tarefa o poeta trouxe um
da mitologia. A Idade da Fábula. Rio de Janeiro, conhecimento considerável em narrativas e em
Ediouro, 1999. tradições nativas...” (tradução minha).
32
O símbolo de doação de anéis está ligado à 38
“É justamente porque os principais adversários em
capacidade do rei de estabelecer alianças e Beowulf são inumanos que a estória é mais larga e
compromissos, assim como sua generosidade. mais significativa que esse imaginário poema sobre
Ver: GALVÃO, Ary Gonzales. Beowulf. São Paulo, a queda de um grande rei. Isso vislumbra o cosmo
Hucitec, 1992. e se move com o pensamento de todos os seres
33
“Beowulf é considerado, naturalmente, um documento humanos preocupados com o destino humano e
histórico de primeira ordem para o estudo do modo e do seus esforços” (tradução minha).
pensamento do período e talvez demasiado pouco usado
para a finalidade por eminentes historiadores. Mas é o modo
do autor, o molde essencial de sua apreensão imaginativa
do mundo, que é meu interesse, não história por sua própria
causa. Eu estou interessado nesta época da fusão somente
enquanto pode ajudar-nos a compreender o poema. E no
poema eu penso que nós podemos observar não a confusão,
um coração dividido ou negócios atrapalhados, mas uma
fusão que tenha ocorrido em um ponto certo no contato
entre velho e novo, um produto do pensamento e a emoção
profunda. Um dos elementos mais potentes nessa fusão é
a coragem nortista: a teoria da coragem, que é a grande
contribuição da inicial literatura nortista” (tradução minha).
34
A preocupação de Tolkien de entender como
os evangelhos podem ser acreditados, mesmo
trazendo coisas impossíveis, como os milagres, é
amplamente debatida em suas cartas. A passagem
do Evangelho de uma estória de fadas, ou seja:
de mundo secundário a um mundo primário, a
consciência, ou fé, de que tais coisas realmente
aconteceram, era o grande fascínio de Tolkien. Ver:
CARPENTER, Humpfrey (Org.). As cartas de J. R. R.
Tolkien. Curitiba, Arte e Letra, 2006.
35
Poeta romano (70 a.C. a 19 a.C.), principal poeta
épico em língua latina. Considerado o poeta que
inspirou os ideais imperiais em Roma.
36
Poeta grego do século VIII a.C., considerado
fundador da poesia épica grega, cujas obras
fundamentais são Odisséia e Ilíada, que descrevem
a guerra de Tróia e o retorno de Ulisses a Ítaca.
37
“Em Beowulf nós temos, então, um poema histórico
sobre o passado pagão, ou uma tentativa que — a
fidelidade histórica literal fundada na pesquisa
moderna, naturalmente, não tentou. É um poema
por um homem instruído escrevendo sobre tempos
antigos, que ao olhar para trás no heroísmo e no
pesar sente neles algo permanente e algo simbólico.
Assim, longe de ser um confuso semipagão

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