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“Fluam, minhas lágrimas, disse o policial” mostra a capacidade de Philip K. Dick usar a
ficção científica para investigar o desalento humano
11/08/2021
Na falta desse poder de síntese visceral, resta-me refletir sobre minha leitura
mais recente sendo mais verborrágico e, por consequência, chato. Com
alguma sorte, e torcendo para que energias dickianas fluam por meio de
minhas palavras, serei capaz de apresentar um vislumbre de como funciona o
universo ficcional do autor ao revisitar elementos da história que começa em
uma terça-feira, 11 de outubro de 1988, quando o Programa Jason
Taverner teve trinta segundos a menos de duração.
Bem-vindo à paranoia
Em Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, Jason Taverner é aquela típica
estrela de TV babaca. O homem, que tem todas as qualidades caricatas de
quem tem um programa de sucesso há duas décadas (bonito, voz boa,
carismático, magnético), está prestes a tomar um baita tombo, lá do alto de seu
próprio ego, para despencar em uma espécie de multiverso pedagógico — em
uma manobra que K. Dick usa com frequência em seus escritos, a de pegar um
exemplo cotidiano que esteja enraizado no imaginário popular e transformá-lo
em uma história de terror psicológico.
Neste caso, o intocável do entretenimento vai descobrir que talvez ele não
tenha tanto controle sobre a existência quanto acha que tem. Que talvez o fato
de ele ser um Seis, espécie de humano modificado geneticamente, não irá
salvá-lo dos horrores de acordar certo dia sem ser reconhecido por ninguém. E
não só por ninguém que costumava assisti-lo na TV, mas por ninguém mesmo:
não há registros de sua existência em nenhum meio legal, e isso considerando
que a narrativa se passa em uma realidade dominada por um forte estado
policial.
Normalização do caos
Acho que dá para perceber, pelas qualidades dos personagens elencados
acima, que o livro é construído por meio de camadas reflexivas, no que uma
conduz — e se contrapõe — à outra. Há o apelo midiático versus o caminho do
artista independente; o policial truculento, muito bom no que faz, que se vê em
uma crise existencial; a doidona do bairro, outsider, que guarda segredos com
os quais os “normais” nem sonham em ter acesso; e, no caso específico de
Ruth Rae, uma figura decadente que, justamente por ter entendido a
decadência inerente ao caminho daqueles que desejam tão somente a glória
vazia, acaba por desenvolver as melhores sacadas sobre a vida. Ela explica ao
protagonista, na parte 11:
Jason, o sofrimento é a consciência de que você vai ter que ficar sozinho, e
não existe nada além disso, porque estar sozinho é o destino máximo e final de
toda criatura viva. A morte é isso, a grande solidão.
Sempre que penso nisso, em de onde vem essa força da prosa simples do K.
Dick, lembro da batalha de David Foster Wallace (1962-2008), descrita no
ensaio E Unibus Pluram, contra o recurso vazio da ironia. O que quero dizer é
que, em passagens como aquelas, Dick consegue expressar com uma
honestidade que transborda da página o desalento de ser humano, sem
precisar recorrer a manobras que soem inteligentonas, herméticas.
Essa linguagem direta perpassa o livro inteiro. Tudo que acontece, por mais
surreal que seja, é descrito com uma clareza que naturaliza o surreal, em uma
espécie de normalização do absurdo. Como se o autor não temesse esse caos
todo, mas, pelo contrário, tivesse realmente apreendido essa condição — a da
existência com todas suas nuances bizarras, jogos de poder, frequências
mentais inacessíveis, traumas e angústias, um monte de encheção de saco por
todos os lados e em todas as camadas sociais. E como se, enfim, ao entender
essa condição, ele tentasse utilizá-la para criar fortes exercícios reflexivos,
diluídos em uma história que pode parecer inocente. Não se engane.