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ISSN: 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil
Resumo
Unitermos
que desempenha o papel principal. Mas entre a maior parte das pessoas, as
duas funções estão em jogo em proporções variáveis.
Nós podemos estudar agora as diferenças que existem, na época atual,
no domínio do vestuário entre o homem e a mulher. Conhecemos as diferenças
psíquicas gerais que estão evidentemente em relação com nosso assunto.
Em comparação com a mulher, o homem adulto normal é dotado de um
narcisismo menos livre, uma sexualidade mais concentrada sobre os órgãos
genitais. É provável também (mas isto está bem menos estabelecido) que ele
possui um supereu mais severo do que aquele da mulher, pelo menos em certas
direções que nos interessam aqui. Essas diferenças psíquicas são reencontradas
na diferença das roupas. Em conformidade com seu narcisismo mais livre, a
mulher se permite um luxo maior, uma variedade maior, uma beleza maior
em seu vestuário. Graças a sua libido mais concentrada, o corpo masculino é
(fora da região genital) menos carregado de erotismo que o da mulher; mas
também é, em geral, sujeito a menos restrições pudicas. O homem não tem
necessidade de cobrir sua cabeça, seu rosto, seu peito e suas pernas para se
mostrar modesto, como fizeram as mulheres em diferentes países e em
diferentes épocas. Conformando-se ao rigor de seu supereu, o homem gosta
de indicar sua seriedade pela severidade da forma e da monotonia das cores de
suas roupas. É apenas estando em férias e usando roupas esportivas que ele se
permite uma licença maior.
Esta influência do supereu sobre as roupas masculinas necessita de um
sacrifício considerável de dois prazeres primitivos sobre os quais falamos –
o narcisismo e o auto-erotismo da pele nua. Em conseqüência do recalcamento
geral do narcisismo masculino, e na medida em que se refere ao corpo inteiro,
a vestimenta do homem permite apenas uma satisfação extremamente restrita
do exibicionismo; esse exibicionismo primitivo não pode se manifestar nem
pela meia-nudez erótica – como no decote – nem por uma via sublimada das
roupas delicadas ou magníficas. Ele pode se satisfazer somente por meio de
uma sublimação menos direta e independente do vestir, graças a uma profissão
que exige ou necessita de um exercício público, como a de ator, pregador,
político, conferencista; ou por uma proteção, durante a qual o exibicionismo
se converte em voyeurismo (escopofilia), o homem ali encontrando uma
satisfação substitutiva na beleza da mulher.
O mesmo acontece com os elementos auto-eróticos em questão – os
prazeres cutâneos e musculares. No que diz respeito a isso, a mulher goza de
uma liberdade muito maior que a do homem. Minhas próprias pesquisas
femininas, essas que por muitos séculos deixaram sempre exposta uma
parte do corpo – o pescoço, os ombros, o peito, os braços – e que
permaneciam escondidas no homem. A moda feminina de nossos dias,
em sua relativa simplicidade, limita-se, em geral, a sublinhar as formas
do corpo e a enfeitá-lo com uma bonita moldura, não visando promover
qualquer impressão de beleza ou de voluptuosidade por meio das roupas
magníficas e suntuosas. O mesmo acontecia com as roupas clássicas do
Império, que contrastavam notavelmente com o vestuário muito mais
rico e amplo do século XVIII. Podem-se distinguir essas duas mesmas
tendências nas reações que se fazem contra o exibicionismo. Tais reações
podem se dirigir principalmente contra a manifestação do corpo nu –
como foi com os cristãos antigos e como acontece nos dias de hoje – ou
contra a magnificência da roupa, como era o caso dos puritanos ingleses.
3. Em terceiro lugar, existe uma variação no que concerne à parte do
corpo que é acentuada pela moda. Durante um longo período (desde e
durante a Renascença), a parte superior do tronco é que era vista como
a parte do corpo feminino mais interessante, e para a qual se pretendia
dirigir a atenção por diferentes meios – o decote, o espartilho, a cintura
apertada. Freqüentemente também eram envidados todos os esforços
para acentuar o contraste entre a bacia larga e a cintura fina, que é
uma característica da anatomia feminina. Para atingir esta finalidade,
empregavam-se ou a constrição da cintura, ou o alargamento –
freqüentemente fantástico – das ancas, por meio do vertugadin7, da
crinolina8, dos cestos9, ou de uma combinação de dois desses processos.
Algumas vezes, retrocedendo à adoração da Vênus Calipígia, era o
traseiro que se admirava mais, e ao qual – imitando-se os gostos de
certos povos primitivos – eram dadas proporções imponentes por meio
da tournure10. No momento atual, o interesse se concentra sobre os
membros, mais do que sobre o torso. Gostamos de seguir as linhas
elegantes do braço; usamos vestidos sem mangas ou com mangas
longas e colantes, pois não toleramos nada que nos impeça de perceber
os contornos naturais. Mesmo as pernas femininas saíram de seu
esconderijo secular; durante os últimos anos, ficou o homem ofuscado
pela visão inesperada da beleza sedutora dos membros inferiores, beleza
que tinha sido velada desde o começo de nossa civilização.
4. Existe também uma variação quanto à idade mais admirada da mulher.
A acentuação, na época atual, dos membros; a insistência sobre a cintura
belezas esbeltas do ano passado. Isto, e também a saia alongada, indicam que
a idade da maturidade retorna à condição de ideal.
Tudo isso faz pensar em uma mudança da moda que se assemelha, em
suas características gerais, às mudanças que tiveram lugar há cem anos, quando
a simplicidade clássica do estilo imperial passou gradualmente à amplitude
bufa e gigantesca do meio do século XIX.
É claro que existem forças consideráveis que se opõem ao retorno da
maturidade: sobretudo a influência do esporte e da atividade geral feminina,
que caracterizaram esse mundo do pós-guerra. Tem-se a impressão de que
os novos estilos que pretendem ser introduzidos correspondem muito mais
aos desejos dos costureiros que àqueles de seus clientes. A tentativa de
introduzir as saias longas pelo método direto já falhou, em muitas retomadas.
Arrisca-se agora uma nova tentativa, limitando-se: 1) aos vestidos para usar
à noite e à tarde; 2) a um alongamento parcial, limitado sobre alguns pontos
ou sobre um lado. Resta saber se esse ataque mais insidioso terá êxito onde o
ataque direto fracassou. Os jornais já falam da “guerra das saias”. O momento
é, certamente, de grande interesse para todos aqueles que se ocupam da
história e da sociologia do vestir.
Eu percebo que nessas notas pouco sistematizadas, não fiz mais do que
tocar em um assunto extremamente vasto e complicado. As roupas
constituem uma espécie de ambiente artificial que o homem interpõe entre
seu próprio corpo e seu meio. Esse ambiente – embora tenhamos o poder de
constituí-lo e de mudá-lo conforme a nossa vontade – é tão constantemente
presente e se torna tão natural, que não inspira em geral a curiosidade
verdadeira. E isso devido a esse meio curioso – meio que possui ao mesmo
tempo as qualidades de pele exteriorizada, com suas funções de higiene e de
erotismo; de casa ambulante; com suas funções protetoras, decorativas e
pudicas. Ora, se, como supõe Herbert Spencer, a vida consiste na adaptação
contínua de relações interiores com relações exteriores, a ciência da vida
não tem certamente o direito de negligenciar esta posição do eu interior,
que o homem anexou do mundo exterior para o engrandecimento e
embelezamento de seu organismo.
Notas
1. De la Valeur affective du Vêtement, publicado em Revue Française de Psychanalyse, 1929,
p. 309. Tradução de Izabel Haddad.
2. O psicanalista inglês John Carl Flügel nasceu em 03 de junho de 1884, em Londres. Foi
membro honorário da Sociedade Psicológica Britânica e da Associação Psicológica da Índia.
Seu pai era alemão e sua mãe inglesa, de modo que Flügel dominava as duas línguas, mais
o francês. Em virtude de uma má-formação congênita nos pés, ele não seguiu um programa
escolar normal, mas ingressou na Universidade de Oxford quando tinha apenas 17 anos.
Obteve seu doutorado em filosofia, mas interessou-se sobremaneira por temas psicológicos,
como o hipnotismo. Tornou-se membro da famosa Sociedade Frederick W.H Meurs para a
Pesquisa Psíquica. Dotado de uma personalidade inquiridora e pouco convencional, Flügel
encontrou na psicanálise subsídios para suas investigações sobre questões morais e sociais.
Desde as descobertas de Freud acerca da interferência da moralidade sexual na etiologia
das neuroses, as implicações éticas e sociais da teoria psicanalítica se tornaram determinantes
nas pesquisas de Flügel. Sua obra mais conhecida, Homem, morais e sociedade, foi publicada
em 1945. Flügel escreveu também A psicologia das roupas, publicado em Londres, em 1930;
e também O sonhador nu – do estilo vestimentário. Entre 1918 e 1924, Flügel foi presidente
da IPA, fundada por Freud em 1910. Morreu com 71 anos, em Londres, em agosto de 1955,
deixando uma obra preciosa e inovadora.
3. Grifo do autor.
4. Grifo do autor.
5. N.T: Entretela colocada por dentro do colarinho.
6. N.T: Preferiu-se manter a tradução das palavras pousuivants e poursuivis em francês literal,
por não ter encontrado um termo que os substituísse adequadamente.
7. N.T: Arquinho que as senhoras usavam.
8. N.T: Anágua armada com lâminas de aço.
9. N.T: Tecido de vime, anquinhas que as mulheres usavam para revelar as saias que punham
por cima.
10. N.T: Grifo meu. Anquinhas que usavam as mulheres de moda por baixo dos vestidos ou
algibeiras para aviltar os vestidos sobre as ancas.
In this article, psychoanalyst John Carl Flügel analyses fashion phenomenon, and the
psychic consequences of the intimate relation men establish with clothes. In his opinion,
such relation goes beyond the common function of clothes such as protection, decoration
and decorum. Wearing clothes covers nudity, protects against the sense of shame, and
produces a “second skin” to the body. The psychic effects of fashion market over individuals
are also examined from the point of view of superego and ideal ego.
Keywords
Fashion; psychoanalysis; body; clothes; libido.