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Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg
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TENTATIVAS
DE MITOLOGIA
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~I\~! .EDITORA PERSPECTIVA
.Equipe' de realização - R~visão: Sergio Buarque de Holanda;
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Produção: Plínio Martins Filho.
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4. SOCIEDADE PATIUARCAL
de ensaio complementar do trabalho amplo que se iniciou um zelo fervoroso - em alguns casos, quase se pode
com a publicação de Casa Grande e Senzala. Ensaio, dizer nostálgico - por certos valores e estilos tradicio
esse, mais deliberadamente impressionista do que' os de nais da área dominada, no passado, pela monocultura
mais, e que chegou a requerer do autor, segundo sua latifundiária e, em primeiro lugar, pela lavoura canaviei
mesma confissão, um trato prolongado e meio francis ra, fundada no braço escravo.
cano coDi a paisagem, a natureza e a gente mais típica Nessas condições chega a admitir, e admite mesmo,
de sua terra natal. sem reservas, que outras regiões do Brasil tiveram for
Graças, principalmente, àquela estrutura orgânica, mação até certo ponto dessemelhante; que a presença,
pôde ele dominar, enfim, dando-lhe forma, sentido e ora do latifúndio rural e da monocultura,. ora do escra
valor, um material imenso e muitas vezes incompatível vo negro não tenha marcado nelas tão decisivamente o
com toda abordagem fundada nos recursos das ciências passado rural e at~ o presente rural: enfim, que o símile
da natureza. Semelhante abordagem exigiria, sem dúvi mais apropriado para apresentar nosso desenvolvimento
da, um interesse mais detido pelos condicionamentos ou histórico seria o de um arquipélago ou o de uma cons·
nexos que relacionam entre si os aspectos freqüentemente telação, não o de um continente compactamente unitário.
contraditórios da realidade, do que por esses mesmos Sim, mas desde que a forma assumida pela família de
aspectos, apresentados em cores cruas e sugestivas. O tipo patriarcal, nas regiões onde predominou a mone
processo, sobretudo cumulativo do autor? não deixa de cultura latifundiária e o trabalho escravo, represente ver
realçar os traços que, ferindo fundo a imaginação, pare dadeiramente o alfa dessa constelação.
.cem. animar os acontecimentos de uma vida própria, in Este ponto mereceria exame porque parece formar
.capaz de refletir-se em escritos onde prevaleça um rigoro o principal dos obstáculos opostos até agora a uma acei
:so raciocínio discursivo. tação mais generalizada da perspectiva adotada por .Gil
A força de sugestões que cabe nesse processo pode berto Freyre em sua obra histórico-sociológica e dos cri
se dizer que é a de um poeta, de um desses poetas da es térios dependentes dessa perspectiva. Critérios e perspec
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cados a uma parte do Nordeste brasileiro e de certo modo obstinadamente para o conteúdo e a substância, não para
às outras áreas onde imperou quase sem contraste, entre a forma sociológica dos acontecimentos e dos fatos.
n6s, a grande lavoura açucareira, mas que se revelariam .:E: esta forma o que serve, em suma, para conciliar
menos aptos para o estudo das demais regiões do país. entre si as mais ásperas contradições, emprestando ao
, 'No' próprio Nordeste elas mal se prestariam, por todo uma harmonia e mesmo uma "unidade" (pág. 42)
exemplo, para as zonas onde a lavoura e mesmo o braço verdadeiramente soberanas. Nos seus livros é provável
escravo não tiveram papel mais saliente. Ou no planalto que ela apareça muito manchada de massapé negro,
paulista, onde' durante a maior parte do período colo muito lambusafa de mel de tanque para não transviar às
nial, pôde prevalecer, em ,grande escala, uma forma par ·vezes algum espírito desprevenido, mas tudo isso é de
ticular 'de policultura. Ou ainda no extremo-norte, onde pouca conta quando se trata de distinguir o essencial
se praticou largamente a indústria extrativa e a coleta através das aparências mais ou menos precárias.
florestal. Ou: nas terras minerais e sobretudo nos campos Entretanto esse princípio formal, de significação tão
sulinos onde parecem francamente inexistentes muitos decisiva, não se deixa claramente precisar para quem
traços que o autor pernambucano prende de modo indelé· estude os múltiplos escritos de um autor tão vivameri'ce
vel ao seu retrato de nossa civilização de raízes patriar empolgado, ele p.róprio, pelos element;os materiais da
cais e escravocratas. existência e do convívio humano. Ou seja - no seu
Aié onde serão explicáveis e mesmo justificáveis pr6prio vocabulário - pelo'. "conteúdo" ou "substância"
,muitas. dessas resistências? Que o assunto parece ao pró dos acontecimentos e dos fatos. Reduzido à expressão
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prio autor, de importância singular, mostra-o a insistência mais simples e mais genérica, o verdadeiro princípio orga
com que volta a ele, muitas vezes em tom defensivo e nizador estaria em determinado tipo de organização pa
triarcal da vida e da família: traço comum, em sua fase
polêmico,. nas suas últimas publicações, em particular
de desenvolvimento, a todas as manifestações regionais
nesta nova edição de Sobrados e Mocambos. Aos leitores,
particulares. E é a esse único traço - "forma" indepen~
por outro lado, e aos críticos, o exame da mesma ques
dente do "conteúdo" - que invariavelmente se reporta
tão pode fornecer acesso para a melhor inteligência dessa Gilberto Freyre quando algum crítico tenta negar o cará
obra, de sua alta significação e de seu verdadeiro alcance.
ter transregional das suas interpretações, lembni.ndo a
'Já às primeiras páginas da introdução que escreveu ausência, como força social e econômica dominante, nes
para o texto refundido e ampliado de seu livro. Gilberto ta ou naquela região brasileira com "passado hist6rico",
Freyre volta a um tema que, desde 1933, pelo menos, vem de alguns elementos à primeira vista inseparáveis do painel
acompanhando de perto seus estudos hist6ricos e sociais: que ele nos pinta: ausência, por exemplo, da casa-grande
o da unidade da formação do Brasil em torno do regime (no sentdo estritamente "material" da expressão); ausên
da economia patriarcaI.Essa unidade estaria sujeita a cia da senzala ou sequer do braço escravo; ausência, em
um ,mesmo' denominador comum. grande escala, da própria lavoura, substituída pela mine
De modo que, ao fixar o sistema patriarcal da colo ração ou (no extremo-norte) pela coleta florestal; -ausên
nização portuguesa, partindo das áreas onde terá alcan cia da grande propriedade; ou melhor, da grande lavoura
çado uma das suas expressões extremas e melhor defini comercial na grande propriedade, ausência da monocul
das - as áreas onde veio a imperar a monocultura lati tura.
fundiária amparada no braço escravo - ele pretende que Neste ponto cabe, porém, uma pergunta: seria o
suas interpretações sejam perfeitamente válidas para o patriarcalismo, tal como o descreve Gilberto Freyre, uma
Brasil inteiro. E busca explicar as objeções opostas por criação originária e específica das áreas de colonização
aqueles que não logram distinguir o caráter transregional sobretudo lusitana nesta parte da América, criação' surgi
'de: suas pesquisas, sugerindo que tais críticos se orientam da de preferência à sombra da Casa Grande, e capaz, só
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e amparar-seí em última análise, sobre simples preferên valor - , através de processos que conduzem à maturida
cias. pessoais., Não creio, porém, que para a inteligência de, a plenitude, e, em certo sentido, à perfeição:
.de nosso passado e de nosso presente, seja forçoso admitir Amadurecendo numas áreas mais. cedo do que noutras, de
um princípio formal em verdade tão elástico, próprio para clinando no Norte ou no Nordeste, antes por motivos ecológicos
lisonjear esta ou aquela preferência regional, servindo que pura ou principalmente econômicos -, quando apenas se
a sentimentos, ressentimentos, paixões, preconceitos, COn arredondava por iguais motivos, em formas adultas no Brasil
·veniência às vezes momentâneas e quase sempre polêmi meridional (pág. 41).
cas. ,À.obra de Gilberto Freyre ele nada acrescenta de É bastante significativo que, apesar do seu insistente
duradouro. Nem serve, certamente aos seus adversários, empenho de emancipar a "forma" social da "substância"
quando :se apóiam no mesmo critério, embora movidos ou do "conteúdo", Gilberto Freyre raramente consegue
por! sentiment~s regionais diversos dos seus. desunir estes elementos quando se trata de distinguir,
Aquelas noções a que tanto se apega, de "forma" entre· esta e aquela área de povoamento e ocupação do
e de "conteúdo" ou' substância, provinda, em última aná solo, as que lhe parecem expressões mais adultas ou
lise, 'de filosofia social de Sinunel, retiram toda a sua completas. :a, embora fingindo, em certos casos, dar es
força da própria indefinição. ~ verdade que em Simmel casso valor sociológico aos "objetos materiais" ou às
elas:'n.ãó 'passam, ao menos teoricamente, de simples me· técnicas peculiares a cada região distinta, não há dúvida
táforas.Na versão, porém; que lhes dá o autor de Sobra que, em outros, chega a introduzir, entre os próprios
dos e Mocambos tende a dissipar-se, mesmo em teoria, objetos, uma espécie de escala hierárquica, manifesta na
esse nominalismo deliberado. De instrumentos de exposi medida em que eles parecem acomodar-se melhor à "for
ção,: :'distinção, confronto, análise, convertem-se em rea ma" ideal e soberana.
lidades mais ou menos empíricas, servindo de base a Assim, por exemplo, a "grande casa estável de pedra
julgamentos de valor que mal se disfarçam. e cal", própria sobretudo dos engenhos de açucar do
< :' <Àssinl, é que, nos seus escritos, as "formas" sociais
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Nordeste, e também os sobrados de residência construí
dos "mais nobremente" (pág. 404) da mesma pedra ou
se mudam com facilidade, ora em entidades reais, à ma
neira :dos' orgailismos biológicos - e então se confun então de tijolos e cal de mariscos, comparam-se com
dem praticamente com" os "processos" sociais, capazes grande vantagem, em muitas das suas páginas, às. antigas
de crescimento, maturação e morte - ora em "idéias" de casas de São Paulo, feitas "quase todas de taipa". Como
saborhegeliano - ' idéias de onde hão de emanar mis explicar, então, que justamente em São Paulo, a área
teriosamente ~s próprios "objetos materiais. das casas de taipa correspondesse, na era colonial, às
: Neste último sentido ocorrem pelo menos uma vez terras mais prósperas - mais nobres? - de serra. acima,
quando, .em: revide a uma crítica de Afonso Arinos de em contraste com as da orla marítima, onde domina deci
Melo' Frànco, o autor escreve, à página 817: didamente a construção feita, como' nos engenhos do
{.' I J: I •. • ,I; Norte, de pedra das pedreiras e cal das ostreiras litorâneas?
. . Em nossos estudos, acentuando a importância dos "objetos Além da presença de certos fatores materiais, de al
materiais",. símbolos, .insígnias, mitos, não o fazemos por "mate
rialismó": ou por desprezo aos valores invisíveis ou requintada gum modo privilegiados, é certo que entre os distintivos
mente iriteleCtuais' e espirituais, mas por considerar que os cha da maturidade social parecem inscrever-se, para ele, mo
mados ;objetos materiais - até mesmo os móveis, trajos ou ali tivos "imateriais" nada irrelevantes. Assim, se a casa
" mentos': são ,reflexos;. das chamadas realidades imateriais, nunca -grande corpulenta e sólida tem direito a melhor trata
a~sentes dos: mesmos,. objetos.
mento é que lhe parece espelhar admiravelmente certas
:Spossível'dizer que aquelas formas soberanas e virtudes senhoriais, estabilizadoras e conservadores,' fa
-imateriais· se realizam de certo modo, em nosso mundo voráveis talvez ao maior requinte ou à maior cultura do
efêmero. - e :neste ponto é que se inserem os juízos de espírito. Virtudes que ele tem na mais alta conta, assim
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q «civilizações" regionais brasileiras, conforme pretende o
como haverá quem prefira, em contraposição, outras,. I
sociólogo pernambucano. Seria entrar no terreno movedi
mais dinâmicas e mais ativas. ÇO das preferências, dos interesses, dos sentimentos, dos
. E neste ponto interfere, ainda uma vez, a peeminên ressentimentos pessoais. Pensar, no entanto, que por sim
cia atribuída aqui à "forma social", independente de fa ples ato de presença e independentemente das condições
tores .eéonômicos ou de outra natureza e sobreposta a materiais a que se 'acha inexplicavelmente ligado, o pa
eles. A sociedade constituída em volta da grande proprie triarcalismo nordestino pôde suscitar aqueles valores é
dade monocultora e escravocrata se teria revelado, ape apegar-se a concepções um tanto místicas, que em todo
sar das suas flagrantes falhas, a mais criadora, entre caso desafiam um escrutínio plausível.
todas as do Brasil, de valores políticos, estéticos e inte Não é preciso certamente uma adesão às formas
lectuais. . mais crassas do materialismo histórico para admitir-se
.~.,,:e:o qu~ está dito nas palavras finais de seu livro que a pujança econômica pode favorecer certos recursos
.Nordeste. No mesmo livro, à página 288, afiança-se ainda: materiais e certos hábitos de ociosidade em nada desfa
Màs' .foi justamente essa civilização nordestina do açucar voráveis ao tipo de cultura i'ntelectual e trato político tão
talvez' a . mais patológica, socialmente falando, de quantas flo enaltecidos pelo autor. Assim ocorreu, sem dúvida, no
resceram no Brasil - que enriqueceu de elementos mais caracte Nordeste açucareiro, como ocorreu em outras áreas do
rísticos a cultura brasileira. .
Brasil colonial e imperial favorecidas pela fortuna. Quem
E não custa ao autor levantar os olhos em dado mo percorre a lista de estudantes brasileiros formados em
tmento,' dos canaviais do Nordeste patrillTcal para as Coimbra verificará, sem esforço, at~ que ponto isto é
oliveiras de .certa terra clássica de meio-dia da Europa. verdadeiro. O fato de Minas Gerais, na idade do ouro
Pois também a civilização helênica, escreve ele, e dos diamantes, ter fornecido um número maior de es
tudantes do que o de todas as demais capitanias brasi
f~i uma civilização mórbida segundo os padrões de saúde social leiras (nos três últimos decênios do século XVIII esse
em vigor entre os modernos. Civilização escravocrata. Civiliza
ção pagã. Civilização monossexuaI. E entretanto estranhamente número ainda é de 132, para 122 do Rio de Janeiro,
criadora de valores pelo menos políticos, intelectuais e estético\;. 'j
108 da. Bahia, 68 de Pernambuco e 30 de São Paulo)
Muito' mais criadores desses valores do que as civilizações mais não pode ser indiferente a quem deseja estudar movi
saudáveis que ainda se utilizam da cultura grega. mentos tais como o da Escola Mineira ou o da Incon
Palavras estas, que extraídas, embora, de um livro fidência. A rápida e efêmera ascensão econômica do
confessadamente impressionista, ajudam, por isso mesmo, Maranhão coincidirá, 'por sua vez, com um aumento no
a desvelar' o que vai, nas suas interpretações, de intenso tável no número de estudantes daquela capitania e pro
calor afetivo, de amoroso e nostálgico enlevo pelo passa víncia nortista, que chegará a ultrapssar largamente, no
do de sua região natal e ancestral, envolvendo, não raro, meio século imediato, os próprios totais de Minas e os
as noções puramente teóricas que parecem querer intro de Pernambuco.
duzir-se em obras declaradamente mais sóbrias. Entre Não foi certamente por um milagre que tivemos a
essas noções, tentei destacar, nestes artigos, a da existên famosa "Atenas brasileira". Nem foi por acaso que a
cia de uma forma social separável de quaisquer elemen Bahia, beneficiada nesse período, e ainda em maior grau
tos materiais, isto é, de todo "conteúdo" ou "substância", pelas mesmas condições, se tornaria grande forja de
para usar suas mesmas palavras. estadistas do Império.
Não importa discutir aqui se os valores políticos, J
As explicações que não têm em conta semelhantes
·intelectuais,! estéticos, representados a seu modo - "cria fatores levam a pensar um pouco nas de Monsenhor
dos""diria Gilberto Freyre - pela "civilização do açú Pizarro, se não estou equecido, quando escreveu do açú
car" terão sido os mais significativos ou os mais insignes car, que serve, não só para temperar os manjares como
'entre nós; comparados aos que se encarnavam em outras I
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