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David Foster Wallace e Infinite Jest

Adrian Leverkuhn

Declaração de Intenções

Escrevi, alguns dias atrás, uma coluna sobre Infinite Jest por aqui. Segundo romance de David Foster Wallace (DFW),
Infinite Jest (IJ), de 1996, é um mamute de mais de mil páginas, que foi recebido com histeria coletiva pelos
críticos – a resenha mais negativa o chamava de "um escritor virtuose capaz de fazer praticamente qualquer coisa" –
e que, desde então, tem sido discutido e avaliado acaloradamente. A seu respeito, por exemplo, foram escritos um
guia de leitura, o DFW's Infinite Jest: A Reader's Guide de Stephen Burn (pelo qual me orientei para escrever o texto
anterior), o especulativo Understanding David Foster Wallace (Understanding Contemporary American Literature) de
Marshall Boswell (que defende a tese, popular entre os admiradores de DFW, que IJ representa o início de um
vibrante terceiro influxo de modernismo, depois do modernismo do começo do século e do dito pós-modernismo,
ainda sem nome), e diversos artigos e ensaios. Apontaram-me que a coluna anterior ficou confusa, de difícil
compreensão para quem não tivesse lido o livro, e supondo conhecimento prévio da literatura americana recente
que dificilmente todos teriam; reli-a, e acabei tendo que reconhecê-lo.

A proposta desta segunda coluna, sugerida pelo editor, é traçar um panorama da ficção pós-moderna e sua relação
com a cultura de massa e de entretenimento, e mostrar onde exatamente Infinite Jest entra nessa história toda. É
claro que o pós-modernismo não se esgota em seu relacionamento com a televisão e outras mídias, e nem IJ se
reduz a uma versão em ficção de "E Unibus Pluram", ensaio da coletânea A Supposedly Fun Thing I'll Never Do Again
sobre televisão e literatura americana. O leitor de primeira viagem está convidado a dar uma olhada nos links que
listei no finalzinho desta, para conhecer o autor e seu estilo.

O Que Eu Quero Dizer Com "Ficção Pós-Moderna"

A ficção americana a partir de William Gaddis, Thomas Pynchon, John Barth, Donald Barthelme etc., e aqueles que
foram influenciados por esses escritores. Deixando claro, portanto, que não estou sugerindo nenhuma relação entre
os livros discutidos aqui e a filosofia de certos franceses malucos, a música experimental de gente como aquele
nova-iorquino que gostava de cogumelos, ou instalações à Bienal. Também não estou incluindo autores que também
recebem esse rótulo mas não pertencem a essa linhagem, como Borges ou Saramago.

Televisão e Ficção Americana

Uma das características mais marcantes dos escritores pós-modernos, embora provavelmente não a principal, é seu
flerte e sua preocupação com a cultura de massa. Os modernistas introduziram, também, elementos urbanos à
literatura que eram condenados até então; mas, vivendo no mundo dos jornais e dos primeiros dias do rádio, de uma
cultura de massa ainda nascente e aparentemente inofensiva, sua atenção dirigiu-se naturalmente a outros temas
como industrialização, a mecanização do trabalho, os miseráveis nas cidades e as guerras mundiais; para eles, uma
gráfica de jornal não impressionava tanto como trens, fornalhas industriais ou aviões, e falar da influência do
ragtime que tocava nas rádios numa Europa que se explodia mutuamente seria cretino, se é que essa influência era
observável.

Mas se nos propuséssemos a apontar quem foi o primeiro a se ocupar detidamente da mídia de massa na literatura,
teríamos que dizer que quase foi o modernista T.S. Eliot. Seu rascunho para The Wasteland (então He do The Police
in Different Voices) continha inúmeros fragmentos de canções, paródias urbanas no estilo que viria a ser típico dos
pós-modernistas etc. Pound, temendo que prejudicassem o efeito dramático do todo, recomendou cortá-las, e Eliot
cedeu, deixando pouquíssimas para trás; a partir de então, Eliot adotaria um tom cada vez mais místico e solene,
deixando a urbanidade do Prufrock e de parte da Wasteland definitivamente para trás. Há uma ironia em o quase
autor da primeira reação literária à cultura de massa ter escrito, bem mais tarde, uma longa carta para o New York
Times falando do perigo moral e intelectual representado pela televisão – mostrando que estava ainda atento para
essas questões, apenas poeticamente desinteressado.

Com isso, a literatura só viria a falar da cultura de massa nas décadas de 60 e 70, com a primeira geração de pós-
modernistas. Seu representante mais conhecido é certamente Thomas Pynchon, aquele escritor que apareceu
recentemente nos Simpsons, embora DFW se interesse mais pelas obras de William Gaddis, como JR e The
Recognitions. Aqui, não se vê mais nada dos escrúpulos de Pound e Eliot; mais ainda, esses primeiros rebeldes, com
suas histórias sobre plagiadores e autenticidade ou suas espirais paranóicas "com ritmo de desenho animado", falam
de pessoas que se encontram cercadas por imagens por todos os lados, e de como elas reagem a esta nova situação.
É difícil de precisar até que ponto estas alusões estão acompanhadas da ironia tipicamente pós-modernista, e até
que ponto elas são apropriações legítimas, num esforço de realismo. Esta ambigüidade sobrevive, DFW nos diz, até o
surgimento da geração seguinte: conforme as montanhas de detrito cultural despejadas ao público crescem
exponencialmente, com a introdução, principalmente, da televisão, vemos os rebeldes seguintes contra-atacarem
com zombaria e cinismo, mais como denúncia do que o típico afastamento irônico dos pós-modernos. É o tempo dos
escritores da "contra-cultura", que é, por definição, uma resposta à cultura de massa – em sua versão mais grosseira,
aos valores ditos "capitalistas" que dissemina (sendo a contra-cultura de esquerda por excelência), mas, em seus
melhores momentos, atenta também a efeitos das tecnologias de comunicação em massa que em muito transcendem
o ideológico.

Mas a que estavam reagindo? Para DFW, o público recebe, cada vez que liga a televisão, imagens de pessoas
agradáveis (pleasant) de se ver, e, além disso, que não parecem afetadas por estarem sendo observadas, que não
correspondem a qualquer tentativa de relação entre observadores e observados. Estas pessoas, como personagens de
ficção ou celebridades, reduzem-se a exatamente isso: imagens sem profundidade humana, habitando enredos
superficiais e previsíveis, sem nenhuma outra função além de serem observadas; sua aparição constitui, nas palavras
de DFW, “unconscious reinforcement of the deep thesis that the most significant quality of truly alive persons is
watchableness”. E, expostos à repetição exaustiva dessas imagens, muitas pessoas incorporam, lentamente, a
subjetividade de espectador, de preferir uma relação entre imagens a relações legitimamente humanas. É preciso
observar, no entanto, que DFW não é nenhum adepto do luditismo que via de regra domina a retórica anti-
televisiva: ele reconhece que as pessoas escolhem serem entretidas, que elas escolhem, afinal, o que assistem na
televisão, se assistem televisão, e que tanto da programação consiste nisso justamente porque há um desejo e uma
demanda por elas. Mais ainda, ele demonstra repúdio pela desculpa fácil de dizer que os leitores “foram estragados
pela televisão”; e, além disso, o que esta escolha pelo entretenimento seriado e passivo significa, o que ela nos
informa sobre quem a faz e quais são suas implicações são alguns dos temas centrais explorados em Infinite Jest.

Um exemplo desses temas em Infinite Jest é o diálogo de 61 páginas, mas espalhadas em um intervalo de 700, entre
Hugh Steeply, agente do governo americano, e René Marathe, membro do improvável grupo terrorista canadense Les
Assassins des Fautueils Rollents e agente triplo, em algum ponto da Grande Concavidade. Marathe condena a
fraqueza passiva de um povo que é incapaz de rejeitar o prazer, que, dada a chance, aceitaria ser entretido até a
morte; Steeply responde com o discurso de liberdade individual caracteristicamente americano. Os dois perseguem o
"entretenimento" Infinite Jest, uma espécie de filme tão divertido que pessoas expostas a ele perdem qualquer
vontade e desejo além de assisti-lo novamente; os terroristas pretendem usá-lo como arma, distribuindo-o
livremente, e o governo quer impedi-los. Para justificar a aparente contradição, Steeply, em certo ponto, narra a
história da experiência com ratos que, diante de uma alavanca que disparava uma descarga elétrica nos centros de
prazer do cérebro, rejeitavam qualquer outro estímulo (comida, bebida, fêmeas no cio), preferindo acionar o
dispositivo até a morte [1]. A razão parece pender para o lado de Marathe, mas se descobre, mais para o final, que
ele é prisioneiro da mesma sensibilidade e do mesmo tipo de ilusão da sociedade televisiva.

A grande guinada, no entanto, acontece na geração seguinte, nas décadas de 80 e 90. A superficialidade das imagens
idealizadas, então, já se tornara óbvia, e o público responde, por um lado, com um crescente marasmo diante da
repetição de fórmulas que perderam seu efeito e, por outro, com insatisfação diante do tipo de vida que propõem.
Surge, aí, uma resposta irônica da própria televisão: é o tempo em que ela própria satiriza a falsidade e as
limitações do que mostra, em que ela própria desmonta seus artifícios com metalinguagem cúmplice, em que acusa
a passividade do espectador, mas que, por trás de toda sua pirotecnia do cool, continua apresentando o mesmo
conteúdo de antes. Um personagem de novela diz que certo evento improvável “só acontece em novelas”; o público
sorri reconhecendo a ironia, mas prossegue assistindo uma história que ainda depende dos mesmos mecanismos
batidos de todas as telenovelas. O proverbial “couch potato” é ridicularizado pelos programas que assiste, mas sua
resposta à provocação é um interesse renovado e não uma reação contra seu vício (que já não parece mais tão
passivo, artificial ou careta). Os bastidores de um programa de auditório são revelados, um cameraman filma outro,
ou é levado para o outro lado da lente, mas nada mais muda em um formato esgotado há anos. O público é, por fim,
anestesiado por uma “ilusão de que uma passividade que foi reconhecida foi também superada”, que uma situação
insatisfatória é aceitável se você for cínico a respeito.

E é aí que a estratégia dos pós-modernistas falha. Como atacar um meio com auto-consciência e ironia quando ele
próprio já incorporou essas características para si, já faz ele mesmo esse tipo de crítica, exaurindo dela toda sua
força? Mesmo o engano das gerações anteriores de que fazer a diagnose levaria por si só à cura foi absorvido, agora
já como engano. Essa terceira geração, para DFW, está muito mais empenhada em resgatar o humano da
artificialidade televisiva do que suas antecessoras, mas, enquanto insistir em lutar com as mesmas armas, estará
fadada ao fracasso. O modernete blasé e cínico não é mais o outsider, mas a vítima-da-moda padrão. Essa nova
geração, representada por autores como Bret Easton Ellis (de American Psycho), teria perdido completamente o
contato com o público: auto-indulgentes em seu cinismo fácil, optam ou pelo "hermetismo pelo hermetismo", a
dificuldade pela dificuldade, com a intenção de agradar críticos e impressionar não-iniciados mas sem fornecerem o
prazer característico da leitura (afinal, o leitor já foi estragado pela mídia de massa / a televisão / o capitalismo
tardio), ou pelo enredo banal, seguindo as mesmas fórmulas da televisão, partindo da mesma suposição de que o
leitor foi “estragado” e não é capaz de apreciar nada mais elaborado. Em ambos os casos, vemos o mesmo cinismo
fácil, a mesma superficialidade de personagens e tramas, o mesmo medo de arriscar um contato real com o leitor,
de falar sobre coisas novas, que realmente lhe importam.

And then but so chegamos à proposta de David Foster Wallace em Infinite Jest. Podemos ler o tomo gigantesco
como uma investigação sobre entretenimento e vícios e nossa relação com ambos, como um longo compêndio, com
traços paranóicos, de abandono e famílias disfuncionais, e de diversas outras maneiras, a maioria aparentemente já
prevista na sua confecção; mas ele é, em seu princípio fundador, um chamado às armas para uma nova geração de
escritores, para que ousem romper com o tédio pós-moderno e voltem a respeitar e se interessar pelo leitor. Esses
“anti-rebeldes”, como ele os chama em "E Unibus Pluram", seriam escritores "que de alguma maneira ousam se
afastar da observação irônica, que tem a presunção infantil de realmente [...] tratar dos velhos e fora-de-moda
problemas humanos e emoções da vida na América com reverência e convicção. Que rejeitam a auto-consciência
[...] Os novos rebeldes podem ser artistas dispostos a correr o risco do bocejo, do rolar de olhos, do sorriso faceiro,
da cotovelada cúmplice, da paródia de ironistas talentosos..." Esses anti-rebeldes recuperariam a sinceridade, o
efeito literário que não venha sempre neutralizado pela ironia; e ofereceria ao público formas e artifícios novos, por
vezes complexos e difíceis, mas que fossem, como de regra antes do século XX, meios para alcançar outras coisas e
não fins em si mesmos – seriam novos porque os antigos cansaram e é preciso inserir vitalidade, e não para seguir um
imperativo de transgressão e make it new. Seriam, além disso, escritores que falariam do que há de único na
experiência de viver hoje, na virada do século XX para o século XXI, na América – não que se dedicassem a reclamar
que o rei está nu, que levamos, coletivamente, vidas comoditizadas, mediadas, sado-masoquistas e insípidas, que
estamos cercados de lixo cultural que tenta nos invadir a todo momento por todos os poros, mas que mostrassem
como conseguimos, apesar de tudo, conservar algo de humano e mágico, como conseguimos ainda entender os
velhos temas e responder emocionalmente a eles, sem cinismo e mecanismos de proteção.

David Foster Wallace foi bem-sucedido nessa empreitada, e é por isso que Infinite Jest é comparado a Ulysses, a
maior obra do modernismo, e a O Arco-Íris da Gravidade, maior do pós-modernismo. Seu enredo é intrincadíssimo,
com centenas de personagens, e deixando muito para a investigação do leitor (na verdade, descobre-se depois de
um tempo, deixando o principal para o leitor); sua vasta paleta de registros e efeitos beira um exibicionismo
mórbido, uma vontade de mostrar ao leitor que ele é capaz de escrever qualquer coisa que queira escrever, e fazê-
lo bem (seu domínio da linguagem é de envergonhar Pynchon e Nabokov); e, apesar de tudo isso, ele usa seus
recursos para contar uma história comovente, para retratar um mundo que, embora experienciado diariamente,
escapa a seus contemporâneos. Seus personagens são o melhor antídoto para os monstrinhos superficiais dos pós-
modernos, com diálogos brilhantes e absolutamente verossímeis – IJ foi a primeira vez que encontrei personagens
que parecem, mesmo, ser meus contemporâneos – não pessoas dos anos 60 ou do século retrasado, mas que pensam
e falam como jovens do século XXI, a tal ponto que se poderia tomá-los por pessoas verdadeiras. É claro que seu
vasto uso de referências à cultura de massa parece pós-modernista à primeira vista, mas logo se vê que elas estão lá
por serem necessárias ao tema e ao propósito do que é um estudo sobre literatura e entretenimento, e por um
imperativo de realismo – somos já a segunda geração cujas memórias de infância contém mais desenhos animados
que contos folclóricos, e é uma das primeiras vezes que isso, e que nós não somos todos emocionalmente
retardados, é encarado na literatura.

É difícil dizer se Infinite Jest instaura, como se vêm dizendo, uma terceira fase, um terceiro influxo de modernismo.
No Brasil, como de costume, estamos algumas décadas atrasados em relação à literatura do resto do mundo, e as
boas novas parecem um pouco perdidas no tempo e no espaço. Nossos escritores também reagem à cultura de
massa, mas sem a percepção crítica mesmo dos piores pós-modernos: vejam Clarah Averbuck, por exemplo, dizer
em uma entrevista que o leitor hoje tem um spam [sic] de atenção de 30 segundos, mas sem parecer muito
incomodada a respeito; ao contrário, reconhece que ela mesma é assim, e sua literatura reflete isso. Ou então, a
massa de autores de histórias suburbanas, entremeadas por cultura pop e um desejo de chocar e “ser maldito”, que
falham ao meramente copiar um modelo americano ultrapassado (e sem o sub-texto americano da liberdade, como
se fosse possível fazer Bukowsky sem Salinger e Thoreau) e não passar da superfície, do tentar parecer cool,
imitando indefesamente a lógica interna do que almejam criticar. O Brasil precisa, também, de David Foster
Wallace: da lição de que um escritor que tenta ser cool acaba sendo apenas patético, que o cinismo já não é mais
um abrigo seguro, que não se pode mais tratar o leitor como um escravo da mídia impunemente; e, além disso, da
importância da técnica, de autores que sejam capazes de maravilhar-nos, de surpreender-nos com a linguagem, de
falar de muitas coisas em muitas vozes.

[1] Para os interessados, o estudo foi realizado por James Olds na década de 50.

Para ir além
Infinite Jest pode ser importado pela Livraria Cultura ou pela Amazon. O guia de Stephen Burn pode ser importado
pela Amazon. "E Unibus Pluram: Television and U.S. Fiction" faz parte da coletânea de ensaios A Supposedly Fun
Thing I'll Never Do Again, também disponível na Livraria Cultura e na Amazon. Recomendo também vasculhar sebos
estrangeiros on-line.

Na internet, aponto o leitor para o ensaio David Lynch Keeps His Head, também retirado de A Supposedly Fun
Thing..., a longa resenha para a Harper's Tense Present, o conto-título da coletânea Brief Interviews With Hideous
Men, e o conto The depressed person; além, é claro, para The Howling Fantods.

Adrian Leverkuhn
Brasília, 6/4/2004

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