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Setenta ou Vulgata?

O
Antigo Testamento que
divide as Igrejas
Revista ihu on-line
13 Agosto 2019

Qual é o livro sagrado dos cristãos? A resposta não é de


todo óbvia. Se não há divergências no Novo
Testamento, percorrendo o índice de uma Bíblia
católica, de uma protestante ou de uma em uso entre
as Igrejas ortodoxas, se nota a diferença no número e
nos nomes dos livros do Antigo Testamento. Uma vez
iniciada a leitura, não é preciso avançar muito para
encontrar no texto diferenças significativas: no relato da
criação, no final de cada dia, estamos acostumados a ler
que Deus considera o que realizou algo "bom"; se
escutássemos a mesma passagem em uma Igreja grega,
ouviríamos kalón, que significa algo "belo".

O artigo é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã


antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão,
publicado por Corriere della Sera, 11-08-2019. A
tradução é de Luisa Rabolini.

Para explicar as diferenças, precisamos voltar à longa


história do texto bíblico. A Bíblia é uma coleção de livros
compostos em um período de tempo bem longo, a partir
cerca de 1000 a.C., que encontrou uma primeira
estruturação com o retorno do povo hebraico do exílio
na Babilônia no século VI a.C. A partir daquele momento,
também começou a diáspora, levando muitos judeus
para várias localidades no mundo mediterrâneo antigo,
onde exerceram o comércio tentando conservar sua
identidade religiosa. Isso estava estreitamente ligado à
Bíblia e, em particular, aos cinco primeiros livros, a Torá
ou Lei, que contêm um verdadeiro e próprio código legal,
com prescrições relativas à alimentação, ao direito penal
e familiar, bem como à prática religiosa.

Entre as localidades da diáspora, destacava-se


Alexandria, fundada em 331 a.C. por Alexandre, o
Grande, como a capital do Egito, onde o grego era
falado fluentemente, como em todas as maiores cidades
da bacia do Mediterrâneo. Ali, no final do século III a.C.,
foi iniciada a tradução da Bíblia do hebraico para o grego,
no início apenas da Torá e depois de todos os outros
livros. A versão foi concluída em cerca de dois séculos.
Mas não só: também foram inseridos alguns livros
compostos diretamente em grego, como os livros dos
Macabeus e da Sabedoria, que não têm
correspondentes na Bíblia hebraica.

Sobre as origens da tradução somos informados por um


escrito em grego, datado do século II a.C. por obra de um
judeu da comunidade alexandrina, a Carta de Aristeias a
Filócrates: o famoso erudito e diretor da Biblioteca de
Alexandria, Demétrio de Faleros, enquanto estava
empenhado em reunir "todos os livros do mundo, se
possível", sugeriu ao soberano Ptolomeu II Filadelfo (
283-246 a.C.) para realizar uma versão grega da Bíblia
para ser conservada na Biblioteca. Ptolomeu teria escrito
ao sumo sacerdote Eleazar de Jerusalém, e este teria
enviado uma cópia do texto especialmente verificada,
junto com setenta e dois mestres doutos para que a
traduzissem. De acordo com outra história, relatada pelo
filósofo judeu alexandrino Fílon, contemporâneo de São
Paulo, os setenta e dois teriam trabalhado trancados em
salas distintas, produzindo por inspiração divina uma
tradução idêntica.

Provavelmente, a tradução nascia da necessidade de


tornar a Bíblia, e acima de tudo a Torá, acessível para
uma comunidade que, tendo se afastado da Palestina há
muito tempo, não mais lia o hebraico. A Bíblia grega dos
Setenta (do número arredondado dos tradutores)
espalhou-se rapidamente, inclusive em todas as
comunidades da diáspora. No processo de tradução,
foram introduzidos aspectos do novo contexto em que a
Bíblia era lida. Por exemplo, a norma contida no livro de
Êxodo, segundo a qual quem causa um aborto a uma
mulher durante uma briga é obrigado a ressarcir o
marido, mas se a mulher morrer é passível da pena de
talião, é modificada e se refere à condição do feto
expelido: se já está formado, trata-se de homicídio, sinal
não só de uma moral mais precisa, mas também do
progresso da ciência médica, que em Alexandria tinha
uma famosa escola.

Outros aspectos da tradução têm implicações religiosas


diretas. Este é o caso das palavras dirigidas por Deus a
Eva, após a expulsão do Paraíso terrestre: no texto
hebraico é a linhagem da mulher que esmagará a cabeça
da serpente, enquanto nos Setenta aparece um pronome
masculino, que não tem respondente no original. Ou
aquelas dirigidas ao profeta Zacarias: o hebraico refere
a Deus o mérito da vitória sobre os inimigos do rei,
enquanto o grego o atribui a este último. Em ambas as
passagens dos Setenta, pode-se assim perceber uma
alusão à vinda do Messias, sem que seja possível
estabelecer com certeza se isso seria uma modificação
proposital ou casual. Os primeiros seguidores de Jesus,
que em geral falavam grego, os interpretaram nesse
sentido, e logo a Bíblia dos Setenta se tornou o texto de
referência para os cristãos, criando um desconforto
significativo para os judeus que permaneceram fiéis à
sua tradição, que depois de alguma tentativa para
atualizar a tradução grega, resolveram abandoná-la
completamente, limitando-se apenas ao texto hebraico.

Desde então, todas as Igrejas Orientais permaneceram


fiéis à Bíblia dos Setenta: além da grega, também a
siríaca, a copta, a russa, que no texto grego conduziu a
tradução nas respectivas línguas. A Igreja latina, por
outro lado, tomou um caminho diferente. Em 383, o papa
Damaso encarregou Jerônimo de revisar as traduções
latinas do Novo Testamento então em uso; este, que
conhecia o grego e o hebraico, estendeu a empreitada
ao Velho e logo percebeu as diferenças existentes entre
os Setenta e o texto hebraico. Reputando-os como
verdadeiros erros de tradução, ele decidiu realizar uma
tradução completamente nova a partir da Hebraica
veritas: assim nasceu a Vulgata, que logo se afirmou nas
Igrejas ocidentais, apesar das críticas dirigidas a
Jerônimo por Agostinho, que o acusava de presunção
porque, de fato, ele se considerava, sozinho, superior a
setenta e dois sábios - embora Agostinho não
acreditasse na lenda das setenta e duas salas diferentes
- e esquecesse que a Bíblia grega estava na base da
pregação dos apóstolos e da difusão da Igreja.

Até a descoberta dos manuscritos do Mar Morto,


pensava-se que Jerônimo estivesse certo. Em vez disso,
em Qumran foram encontrados exemplares bíblicos em
hebraico e aramaico mais afins ao texto sobre o qual
deve ter sido conduzida a tradução dos Setenta, em
relação àquele hebraico ora corrente que, não deve ser
esquecido, foi fixado em forma definitiva apenas por volta
do século X depois de Cristo. O Concílio de Trento
confirmaria o valor da Vulgata, enquanto Lutero iria ainda
mais fundo do que Jerônimo, traduzindo novamente o
Antigo Testamento do hebraico, deixando fora do
cânone protestante todos os livros não presentes no
hebraico, enquanto o cânone católico conserva alguns
daqueles presentes nos Setenta, e as Igrejas ortodoxas
todos. Por isso, não foi difícil para a Igreja Católica,
depois do Concílio Vaticano II, promover novas traduções
diretamente do hebraico, recorrendo ao grego apenas
para os livros ausentes nele, de modo que, sob alguns
aspectos, os católicos agora têm uma Bíblia comum mais
com os judeus que com os cristãos do Oriente. Existem
traduções dos Setenta em francês, alemão e espanhol.
Agora uma equipe liderada por Paolo Sacchi terminou
para a editora Morcelliana aquela em italiano: quatro
volumes em cinco partes, para um total de algo mais que
5 mil páginas, incluindo o texto grego. A imponente obra,
que foi possível graças a uma contribuição da empresa
de serviços A2A, representa um pequeno sucesso
editorial com cerca de mil cópias vendidas para o
primeiro volume, contendo a Torá.

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