A mucosa intestinal, à semelhança das demais mucosas e da pele, funciona como uma das
interfaces entre os meios externo e interno. Sua finalidade funcional, no entanto, exige grande
permeabilidade, ativa e passiva, propiciando o trânsito bidirecional de nutrientes, água e
eletrólitos, o que expõe o meio interno e ela própria à invasão de microrganismos e de
substâncias tóxicas. É revestida, na sua face intraluminal, por um número incontável de
microrganismos, patogênicos ou não, que exigem um equilíbrio permanente para impedir seu
supercrescimento ou sua penetração na mucosa, o que poderia acarretar transtornos à
fisiologia do intestino.
Fisiologia do intestino:
• Absorção de líquidos: o aporte de líquidos para o intestino corresponde a
aproximadamente 10 L/dia, provenientes de fontes variadas, como: ingesta, saliva, suco
gástrico, secreções biliopancreáticas e o próprio suco entérico. A maior parte é absorvida no
jejuno, junto com os nutrientes, de forma que apenas cerca de 1 a 1,5 L de líquidos chega ao
cólon. Destes, 10%, ou 100 a 150 ml, serão eliminados com as fezes. Uma redução de apenas
1% na capacidade de absorção será suficiente para causar diarreia.
• Sistema nervoso entérico: Sua função é mediada por neurotransmissores como peptídeo
intestinal vasoativo (VIP), somatostatina, norepinefrina, neuropeptídio Y, serotonina,
acetilcolina e outros, regulando a função do músculo liso, o transporte de íons através da
mucosa e os processos absortivo e secretor, além de funções endócrinas, da modulação do
sistema imune e do controle do fluxo sanguíneo local. Portanto, alterações na sua estrutura
anatômica, assim como deficiência ou hipersecreção de substâncias exócrinas ou endócrinas,
inibidoras ou estimuladoras de suas funções, poderão provocar sintomas diarreicos.
Etiologia:
A etiologia das diarreias infecciosas e não infecciosas é extremamente variável, tendo, cada
uma, características fisiopatogênicas e clínicas específicas. A seguir, são descritas as
características epidemiológicas, fisiopatológicas e clínicas das diarreias infecciosas:
• Vírus: inúmeros agentes virais podem desencadear quadros diarreicos. Há, no entanto,
um grupo que tem predileção pelo tubo digestivo. São transmitidos por água contaminada ou
de uma pessoa para outra, estando associados a surtos epidêmicos. Os mais prevalentes são o
rotavírus e o norovírus. Outro agente viral, o citomegalovírus, consiste também em uma
infecção prevalente em todo o mundo, a qual é usualmente sintomática apenas em indivíduos
imunocomprometidos. As diarreias virais manifestam-se em um contexto de gastroenterite
aguda, com fezes aquosas, tendo como característica importante a presença de vômitos, com
duração habitualmente curta (máximo de 72 horas). A infecção pelo citomegalovírus pode se
apresentar, no entanto, como forma persistente (entre 15 e 30 dias) e disentérica.
• Bactérias: são a segunda causa mais frequente das diarreias agudas, após os vírus. As
características individuais das mais prevalentes são:
- Escherichia coli: bastonete Gram-negativo, não formador de esporos, flagelado. Inclui cinco
diferentes sorotipos com características patogênicas individuais: enteroinvasiva (EIEC),
enterotoxigênica (ETEC), enteroagregante (EAEC), enteropatogênica (EPEC) e
enterohemorrágica (EHEC). É transmitida por alimentos e água contaminados com fezes
humanas ou de animais, raramente podendo ocorrer transmissão pessoa a pessoa. Atuam por
meio da produção de enterotoxinas, que estimulam a secreção de cloro e reduzem a absorção
de sódio, e de citotoxinas, que agridem o epitélio intestinal, alterando sua estrutura. As
características da diarreia dependem do sorotipo. A diarreia aquosa está associada à infecção
pelos sorotipos EPEC, ETEC e EAEC, ao passo que os sorotipos EIEC e EHEC causam disenteria.
- Salmonella: bastonete Gram-negativo, transmitido por ovos, aves domésticas, leite e outros
alimentos contaminados. A S. typhimurium está intimamente relacionada com gastroenterites,
enquanto a S. typhi está mais relacionada a efeitos sistêmicos tóxicos (febre tifoide). Produz
enterotoxinas que estimulam secreção de cloro, e invadem a mucosa, ativando eventos
inflamatórios. Manifesta-se inicialmente por diarreia aquosa, seguida de diarreia
sanguinolenta.
- Shigella: bastonete Gram-negativo, transmitido por via fecal-oral e por meio de alimentos e
água contaminados. Produz enterotoxina potente, além de penetrar nas células colônicas,
provocando degeneração do epitélio e inflamação da lâmina própria, o que resulta em
descamação e ulceração. Os sintomas surgem após um período de incubação de um a dois
dias. A fase inicial, de enterite, manifesta-se por diarreia aquosa, seguida por colite, com
diarreia mucossanguinolenta.
• Protozoários:
Diagnóstico:
Diarreia aguda: Antes disso, no entanto, faz-se necessário classificar a diarreia em aguda ou
crônica, o que definirá a abordagem inicial.
A grande maioria das diarreias agudas é autolimitada, com tendência à regressão espontânea,
exigindo apenas tratamento sintomático. A tentativa de definição etiológica deve ser limitada
à interpretação dos dados epidemiológicos e clínicos, que permitirão hipóteses diagnósticas
acuradas o bastante para servirem de guia às medidas terapêuticas.
Na avaliação de um paciente com diarreia algumas questões são importantes na coleta dos
dados da história:
- Diarreias tóxicas: surgem entre 4 e 24 horas após a ingestão do alimento contaminado por
toxinas de bactérias como Staphylococcus aureus, Clostridium perfringens e Bacillus Ceres, e
tendem a regredir logo após a eliminação da toxina, entre 1 e 2 dias após seu início.
• Presença de outros sintomas: febre, náusea, vômitos, dor abdominal – a febre é sugestiva
de doença infecciosa, mais frequentemente viral. Já a presença de vômitos deve servir de
alerta para a maior probabilidade de desidratação, uma vez que aumenta a perda de líquidos,
ao mesmo tempo que prejudica a reposição oral. A presença de dor abdominal torna pouco
provável o diagnóstico de diarreia funcional.
A análise dessas características permitirá uma hipótese diagnóstica com grau de acurácia
adequado. Podem-se utilizar os dados epidemiológicos e clínicos para sugerir que a etiologia
de um quadro de diarreia é secundário à infecção viral. Assim, se os sintomas são de uma
gastroenterite aguda, em que as manifestações digestivas altas, como náuseas e vômitos,
estão presentes e são proeminentes, quando há um período de incubação de mais de 14
horas, quando o quadro clínico dura apenas até 72 horas, quando não há sinais sugestivos de
infecção bacteriana, como fezes sanguinolentas, dor abdominal severa, e quando estão
ausentes evidências epidemiológicas como viagens e uso de antibióticos, pode-se sugerir
infecção viral como agente etiológico.
O exame físico do paciente com diarreia é útil, principalmente para avaliar a severidade dos
sintomas. A avaliação do nível de desidratação através do turgor da pele, da frequência
cardíaca e da mensuração da pressão arterial em decúbito e sentado é o mais importante dado
a ser colhido, uma vez que ditará a necessidade, ou não, da hidratação venosa. O exame do
abdome avaliará distensão e sensibilidade abdominais. Achados inflamatórios articulares são
também associados a infecções por Y. enterocolitica e C. jejuni, como parte da síndrome de
Reiter.
O paciente com diarreia aguda deve, portanto, ser abordado inicialmente com tratamento
sintomático e seguimento cuidadoso da evolução dos sintomas. Poderão ser solicitados alguns
exames complementares no caso de manifestações mais severas, do agravamento progressivo,
apesar das medidas adotadas, ou naqueles com mais de 48 horas de duração dos sintomas,
sem sinais de arrefecimento, para avaliar o quadro hematológico: hemograma, níveis do sódio
e potássio séricos, ureia e creatinina. Podem-se considerar exceção os casos de diarreia
sanguinolenta, que poderão merecer investigação etiológica precoce.
Diarreia crônica: A persistência de quadro de diarreia por mais de 4 semanas, ou por mais de 2
semanas para alguns, caracteriza a diarreia crônica. Ao contrário da diarreia aguda, a
permanência dos sintomas por tanto tempo poderá exigir investigação cuidadosa de forma a
identificar o agente etiológico, permitindo, assim, abordagem terapêutica específica.
A coleta dos dados da história e o exame físico, como descritos para a diarreia aguda, são
essenciais. Poderão ser suficientes para orientar abordagem terapêutica empírica, sem a
necessidade de qualquer exame complementar. O aspecto das fezes, por exemplo, poderá
servir como guia na formulação das hipóteses diagnósticas:
• Albumina sérica: diarreia crônica associada à má absorção pode provocar a queda dos
níveis séricos dessa proteína calprotectina fecal – a calprotectina corresponde a 60% do
conteúdo protéico. Seus níveis plasmáticos aumentam 5 a 40 vezes na presença de processos
infecciosos ou inflamatórios, com níveis ainda mais elevados nas fezes. Seus níveis fecais são
determinados pela ELISA, com valor superior da normalidade de 50 mcg/g. É importante na
distinção entre processos funcionais e processos inflamatórios, sugerindo a presença destes
últimos quando acima de 100 mcg/g. Valores elevados indicam fortemente a presença de
doença orgânica.