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O xamanismo de Carlos Castaneda: apropriação, ruptura ou

continuidade?
Nelson Neraiel (*)

Revisado em 22 de março de 2011.

Comentários sobre o Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo. Organização Léo Artése/


Associação Lua Cheia – Pax, São Paulo, 13 a 20 de março de 2005. (**)

Queridos amigos, participei do Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo onde


apresentei uma palestra sobre a Tensegridade de Carlos Castaneda, versão moderna dos
“Passes Mágicos”, uma pratica xamânica do México antigo.

Foi um grande prazer estar presente, e ver irmãos de várias vertentes, cada qual com seu
enfoque sobre o que é o Xamanismo. Sem dúvida, foi um momento de discussão de
importantes questões relativas a prática do xamanismo na atualidade. Entre elas,
questões de legitimidade sobre a utilização do saber indígena e de suas medicinas, saber
quem pode ser xamã, o que um xamã faz e como atua.

Pude assistir três mesas redondas cujos títulos eram: “Xamanismo, xamanismo urbano,
xamanismo universal, xamanismo crístico, neoxamanismo: afinal o que é isto?”, “O uso
da ayahuasca no Brasil: vertentes e experiências” e “Xamanismo e neoxamanismo:
continuidades e descontinuidades”, onde essas e outras questões foram discutidas por
xamãs urbanos, pajés indígenas, antropólogos, ayahuasqueiros e daimistas. Todas essas
questões são pertinentes por si só, e também para compreendermos as novas direções
que esse fenômeno toma, sendo muito importantes para o momento em que se funda a
Associação Brasileira de Xamanismo (ABRAX) (***).

Carlos Castaneda é um antropólogo, autor muito discutido e controverso, e as


controvérsias sobre sua obra podem ser muito úteis para tentarmos entender as questões
que foram discutidas durante o encontro.

Não podemos negar o efeito que seus livros tiveram sobre um número enorme de
pessoas, das mais diversas áreas do pensamento contemporâneo, e do seu papel como
divulgador das práticas xamânicas para o público leigo. Sem dúvida, Carlos Castaneda
foi um dos grandes impulsionadores do que hoje chamamos de Neoxamanismo.

Não vou defendê-lo ou tentar provar que ele não era um farsante, vou apenas narrar os
fatos como ele os colocou e esclarecer pontos importantes sobre a tradição que ele
representa e sua função dentro dela.

Devo dizer aqui que Carlos Castaneda representa apenas uma única linhagem, uma
entre as muitas ainda existentes, pertencentes ao que hoje se chama de Nagualismo,
Toltequismo ou Toltequidade. Trata-se de um vasto corpo de conhecimento e de
práticas acumulado durante milhares de anos pelos xamãs da região do atual México e
América Central. Sua linhagem começou há vinte cinco gerações atrás quando os xamãs
da época reorganizaram o conhecimento de homens ainda mais antigos, conhecidos
como “Antigos Videntes” e deram início ao ciclo dos chamados “Novos Videntes”.

Esses xamãs, ou videntes como se autodenominam, colocam-se como herdeiros da


Tradição Tolteca, mas quando falam em “Tolteca” se referem a esse corpo de
conhecimento que mencionei, e não exatamente ao povo histórica e geograficamente
designado por esse nome segundo a antropologia e a arqueologia; embora sem duvida,
foi no período do apogeu desse povo em que o conhecimento herdado dos povos que os
antecederam foi elevado a um novo patamar, o que incluía conhecimentos de
metalurgia, arte em pedras, a destilação, medicina, astronomia e matemática e as
praticas xamânicas...

Tula e os Toltecas transformaram-se em símbolo de um passado idealizado onde se


misturava a história e o mito.
O conceito de in Tolteca Topializ: “O que é de nossa posse, o que nos cabe preservar
dos Toltecas”, se tornou fundamental para os povos que os sucederam. A ideia de que
havia um patrimônio tolteca que devia ser preservado e mantido, continuou viva nos
séculos subsequentes.
É importante que fique claro que, para esses homens e mulheres, Tolteca significa “homens de
conhecimento”, homens empenhados em explorar os limites da consciência e da percepção
humana.

Esse conhecimento está espalhado pelo xamanismo das várias etnias ainda existentes no
México e América Central e em todos os matizes do curandeirismo e feitiçaria locais.
Temos vários autores tratando desse tema com abordagens diferentes, mas sem dúvida
complementares.

Carlos era um estudante de antropologia em busca de informantes para o trabalho de


campo de sua tese sobre o uso de plantas psicoativas pelos nativos do México. Em sua
busca por informações, cruzou o caminho de um Xamã…

No encontro, enquanto ele falava besteiras sem parar sobre o uso das plantas, tentando
impressionar, o homem viu sua energia… Assim Carlos entrou no mundo dos xamãs
mexicanos. O xamã viu no ovo luminoso (1) de Castaneda a configuração energética
que buscava em alguém para ser o seu sucessor. Não se importou se ele era índio ou
não; precisava apenas da sua energia. O Intento, o Espírito, estava apontando aquele
homem para ele, indicando-o para formar um novo grupo de guerreiros e guiá-los à
meta final dessa linhagem, um estado chamado liberdade total (2).

Todos os esforços desse xamã, um índio Yaqui chamado don Juan Matus, naquele
momento, o nagual (3) da sua linhagem, foram sempre para Carlos realizasse uma
manobra perceptiva definida por don Juan como “ver a energia”, perceber a energia na
forma ela flui no Universo, ou seja, livre dos processos de interpretação usados pelos
nossos organismos para construir a nossa realidade objetiva. A isso don Juan chamava
simplesmente “Ver”, um processo fundamental para todos os que desejam percorrer o
caminho do conhecimento.
Sabemos que possuir a faculdade de ver o mundo dos espíritos, ver as energias boas e
ruins, é uma capacidade fundamental para que um indivíduo venha a ser considerado
um xamã ou pajé nas culturas xamânicas tradicionais.

Temos aqui a primeira questão que pode ser abordada: como alguém se torna um xamã?
Quem pode se tornar um pajé?

No contexto tradicional das diversas etnias, existem vários processos indicativos e


modos através dos quais uma pessoa pode vir a se tornar um xamã. Temos a indicação
por sonhos, seja do xamã ou do próprio indivíduo, sucessão por parentesco, e
principalmente manifestação de uma crise pessoal – que muitas vezes pode levar a
pessoa próxima à morte – a qual o xamã da tribo verifica ser um chamado. A auto
convocação, ou a auto proclamação, praticamente não existem. Também não é uma
função que seja desejada pela maioria dos indivíduos da tribo; ser um xamã ou pajé
envolve muito mais responsabilidades e restrições do que direitos ou regalias.

É necessário ver com atenção o desejo de ser xamã do homem contemporâneo. O que
realmente ele deseja? Do que precisa? Voltaremos a esse tópico um pouco mais à frente.

Carlos então foi escolhido pelo nagual dessa linhagem como seu aprendiz. Após um
árduo treinamento que envolveu o uso de plantas de poder e as demais práticas dessa
tradição, transformou-se no novo nagual.

O ato mágico de ver a energia e poder verificar por si próprio os fatos energéticos
descritos por don Juan foi à corroboração de todos os esforços de Carlos e o fato que o
habilitou a empreender sua viajem rumo ao conhecimento. Esse ato é o que o legitima
como sucessor de don Juan Matus.

Vamos falar um pouco da polêmica que envolve a obra de Castaneda. Foi dito que don
Juan nunca existiu, que Carlos fez um apanhado de várias tradições, que não viveu nada
daquilo e que seus livros não “fecham” um com o outro…. Não sei se isso são pontos
tão importantes. Claro que o nome de seu benfeitor, o nagual Juan Matus, que também
utilizava o nome de Mariano Aureliano, não era esse mesmo. Carlos também usava
vários nomes, como José Luis Cortez (Joe Cortez), Carlos Aranha, Charles Spider e
Izidoro Baltazar.

Enquanto as pessoas liam seus livros na década de 70, e viajavam ao México para tentar
encontrá-lo, ele passou dois anos fritando ovos em uma lanchonete, uma curiosa tarefa
que exigiu disciplina, autocontrole, fluidez, ausência de auto-importância e abandono.
Nessa tradição se busca fluidez perceptiva – então, a constante auto-reflexão e a auto-
importância são pesos que não precisamos carregar. Essa tarefa prática realizada por ele
está perfeitamente de acordo com uma das principais artes desses xamãs, a Arte da
Espreita, arte de usar nosso comportamento e o mundo em que vivemos para atingir
estados perceptivos de eficiência e atenção não usuais.

Outro conceito dessa tradição é de que não devemos fornecer uma estória muita
definida a nosso próprio respeito aos nossos semelhantes, pois a pressão da energia dos
pensamentos e das ideias das pessoas a nosso respeito limita a nossa liberdade de ação e
de escolha. Os livros foram escritos segundo esses e outros princípios. Qualquer
tentativa de achar um fluxo contínuo de acontecimentos será infrutífera.
Seus livros obedecem a uma didática própria, não linear, que conduz o leitor a processos
perceptivos similares aos que o próprio Carlos experimentou durante seu aprendizado.
Por exemplo, quando na década de 90 ele reapareceu em público ensinando os “Passes
Mágicos” ou, como passou a chamá-los, “Tensegridade”, nós leitores já vínhamos
recebendo pequenas descrições de passes inseridas nos diversos livros, como o famoso
“Passo do Poder”, presente no seu primeiro livro, A Erva do Diabo (1968). Mais de
vinte e cinco anos depois de conhecermos esse e outros movimentos e já termos feito-os
em algum momento, descobrimos que fazem parte de algo muito maior, um conjunto de
práticas chamado “Passes Mágicos”. O próprio Carlos também passou anos aprendendo
os passes sem saber o que eram. Motivado por don Juan a mexer o corpo de modo
específico com a finalidade fictícia de tentar estalar os ossos, Carlos acabou aprendendo
seus primeiros passes. Com os leitores o processo foi muito semelhante.

Sua obra tem momentos que soam completamente fantásticos e isso é outro ponto de
polêmica. Há por exemplo o episódio onde Castaneda pula de um penhasco num deserto
mexicano, mas não chega a completar a trajetória de queda até o solo. Pressionado pela
morte eminente, realiza a façanha mágica de entrar em um mundo paralelo se
desmaterializando e retornando a esse mundo em sua cama em Los Angeles; há ainda
várias descrições de transformações em animais e outros do gênero. Enfim, exemplos de
fenômenos que extrapolam os paradigmas da concepção de realidade de nossa
sociedade que estão, porém, plenamente de acordo com o terreno do xamanismo e com
as descrições tradicionais feitas sobre ele.

Não podemos esquecer que a atuação do xamã se dá dentro de um espaço mágico – é


nele que o xamã navega e atua. Esse espaço mágico pode ter seus símbolos, e esses
símbolos são diferentes nas diversas culturas. Mas isto não quer dizer que o espaço do
xamanismo seja um “espaço simbólico”. É desse reino que provém à sabedoria do xamã
ou do pajé é nele que estão seus “espíritos guias”, seus aliados como se chamam nessa
tradição ou mamaés como se diz entre os Kamayurá. Segundo o Pajé Sapaim, ver a
energia e ter mamaé é características dos Pajés do Sol, pajés que aprenderam
diretamente do espírito. Existem também os Pajés da Lua; esses não têm um mamaé e
não veem a energia ou os espíritos, aprenderam de outro homem e têm uma capacidade
de atuação e cura mais restrita.

Quando digo que esse espaço não é simbólico é porque, para essas culturas e para esses
indivíduos, esse é um espaço real, que é a contra parte energética ou espiritual do
mundo material, um espaço composto por energias e forças humanas e não humanas
com influência e poder de ação sobre a realidade objetiva. Não podemos relegar a
atuação dos pajés e xamãs ao plano da simples autossugestão individual e coletiva. Crer
que a descrição da influência desses xamãs se dá no campo da imaginação dentro de um
universo puramente mítico é desconhecer as concepções de realidade dessas culturas. Se
retirarmos a ideia de influência mágica e dos processos tradicionais de formação de um
xamã, teremos muito pouco de fenômeno original.

Existem vários métodos de indução do transe, e indivíduos dotados de maior ou menor


capacidade de manifestar esse fenômeno. Tradicionalmente, o xamã justamente um
indivíduo com uma grande capacidade de entrar em estados alterados de consciência.
Talvez essa seja uma maneira de tentar responder a questão de quem pode ou não ser
um xamã ou pajé. E Carlos sem dúvida tinha este poder.
Uma das questões que foram levantadas no encontro é sobre como fazer um uso
legítimo do saber indígena e de seu xamanismo nos dias de hoje. Para respondermos a
essa questão, acredito que possa ser útil verificar o que ocorreu com a linhagem de
Castaneda.

Após anos de aprendizado, Carlos passou a ser o novo nagual de sua linhagem e,
seguindo a tradição, começou a organizar seu próprio grupo. A forma tradicional dessa
linhagem era a de um grupo fechado, de poucas pessoas que mantinham suas práticas
em absoluto segredo. O grupo agia como um organismo onde cada parte tinha uma
função. Era concebido energeticamente como uma estrutura piramidal com cada
elemento ocupando sua posição específica. Mas, para dar continuidade a sua linhagem,
Carlos precisou modificar aparentemente a forma tradicional de transmissão do
conhecimento – que, aliás, caso tivesse sido mantida, jamais teria permitido que a parte
prática desses conhecimentos tivesse vindo a público.

Porque Carlos não pode manter a tradição nos moldes originais? Veremos a seguir
como as coisas se passaram.

Inicialmente, Carlos, ainda seguindo os moldes originais da tradição, passou a reunir um


novo grupo de guerreiros, que deveria ser composto de dezesseis indivíduos: oito
guerreiras, quatro guerreiros, três mensageiros e uma mulher nagual. A esse grupo
poderiam ser acrescentados membros em múltiplos de quatro. Num primeiro momento,
tudo segue como esperado: Castaneda reúne os primeiros membros do seu grupo e
segue dando continuidade à linhagem nos moldes originais. Mas, em certo ponto, os
membros do grupo, percebendo que ele não era o tipo de nagual que esperavam, o
deixam, sob a acusação de que ele não seria capaz de guiá-los. E, assim, o grupo se
dispersa.

Castaneda não pode manter a forma original da linhagem devido às características


energéticas do seu ovo luminoso. Para se tornar um nagual, o indivíduo deve possuir um
ovo luminoso com características especiais. Enquanto as pessoas comuns têm seu ovo
luminoso dividido ao meio no sentido vertical, formando duas sessões, chamados de
“corpo direito” e “corpo esquerdo”, o nagual tem essas duas sessões subdivididas em
outras duas. Ou seja, enquanto o homem comum tem seu ovo luminoso dividido ao
meio em duas partes, o de um nagual é dividido em quatro partes – é esse ovo luminoso
duplicado que o habilita a ter energia para atuar como um guia para os outros membros
do grupo.

Don Juan reconheceu em Castaneda seu sucessor, e um nagual, embora ocasionalmente


fizesse a ressalva de que Castaneda era de algum modo energeticamente diferente do
esperado. Posteriormente, ele verificou que Castaneda era dividido em três partes e não
em quatro, e é essa divisão do seu ovo luminoso que conferiu a Castaneda uma função e
características diferentes das de D. Juan. Por isto, Carlos não chegou a concluir sua
tarefa de criar um novo grupo nos moldes tradicionais. Esta foi a razão que fez com que
a linhagem tenha tomado o rumo que tomou, dando início ao um novo momento dentro
dela.

Após algum tempo, Castaneda organizou uma nova unidade com as discípulas de don
Juan: Florinda Donner, Taisha Abelar e Carol Tigs, a mulher nagual.
Entretanto, essa nova unidade, composta por apenas quatro pessoas, não poderia dar
continuidade à transmissão do conhecimento do modo que havia sido feito até então.
Nos moldes tradicionais, como vimos, havia dezesseis guerreiros que formavam um
modelo energético preciso e integrado, que necessitava de todas as partes para funcionar
e poder conduzir o grupo à liberdade total.

Como isso não tinha sido possível, pois o grupo original feito por Castaneda se
dissolvera, perceberam que seriam os últimos elos daquela linhagem e que a função de
Castaneda era fechar aquele ciclo. Nesse momento, começaram a decidir o que fazer
com o conhecimento que possuíam. Uma busca mais atenta nos fundamentos dessa
tradição revelou que a cada ciclo de cinquenta e dois naguais, vinte e seis de
continuidade e estabilidade, e vinte seis de crescimento e expansão, surge um nagual de
redirecionamento e atualização. Verificaram que Carlos era um tipo diferente de Nagual
e que sua função era de renovação.

Nos moldes originais da linhagem os Passes Mágicos eram ensinados pelo nagual
apenas para os membros da linhagem, que o realizavam individual e secretamente.
Neste novo momento, Castaneda decide tornar pública a parte prática dos ensinamentos,
alterando o rumo da linhagem. Como isto se deu?

Numa primeira etapa, Castaneda e as suas quatro companheiras começam a ensinar os


passes a pequenos grupos de pessoas, mas de forma muito reservada. Posteriormente, os
seminários passam a serem ministrados por um grupo de instrutores, discípulos diretos
de Castaneda e das Bruxas como são conhecidas, designados para essa função. A partir
daí, os passes mágicos passam a ser acessíveis para um grupo maior de pessoas.

Para tornar os passes públicos, Carlos os organizou em grupos ou séries, separados por
finalidade, tornou os movimentos mais simples e retirou totalmente o ritual e o segredo
associados a eles durante séculos. Carlos deu o nome “Tensegridade” para designar esta
forma moderna dos Passes Mágicos, termo foi tomado por ele da arquitetura, o qual
designa a propriedade dos elementos de uma estrutura trabalhar com a máxima
eficiência e o mínimo desgaste. Assim, a partir de 1995, foram realizados os primeiros
seminários públicos de Tensegridade e, em 1998, é lançado o livro “Passes Mágicos”.

Porque Carlos decidiu tornar público os passes mágicos?

Os naguais anteriores, don Juan e o próprio Carlos, puderam observar através da sua
faculdade de ver a energia, que o mais importante nos passes mágicos é movimentação
e a redistribuição da nossa energia que proporcionam dentro de nosso ovo luminoso.
Durante as práticas que orientava, Carlos pode verificar que o efeito dos passes
realizados em conjunto por um grupo maior de praticantes é o de um grande incremento
de energia. Chamou a isso de “Efeito de Massa”.

Isso, além de intensificar os efeitos dos passes, contribuía para uma maior facilidade dos
praticantes em aprendê-los e em alcançar momentos de silêncio interior. A percepção do
“Efeito de Massa” foi fundamental para determinar o rumo desse conhecimento, assim
como o modo como é ensinado hoje em dia. Hoje praticantes ao redor do mundo
testaram e verificam cada uma das ferramentas que foram dadas.
A decisão de criar a “Tensegridade” e torná-la acessível a todos foi uma decisão de
Carlos, como autoridade de sua linhagem; decisão que tomou ao observar o fluxo da
energia de nosso tempo. Nesse momento, Carlos re-contextualiza seu saber, e o torna
contemporâneo e acessível, garantindo a sobrevivência da tradição.

Ao mesmo tempo, o aparecimento da Tensegridade foi resultado da nova configuração


da linhagem, composta não por dezesseis guerreiros, mas por quatro. Como vimos, isto
ocorreu devido às características do ovo luminoso de Carlos e da própria estrutura da
linhagem, a qual se renova periodicamente.

O movimento de criar a Tensegridade e tornar os passes públicos não deixa de ser um


movimento natural, embora não estivesse previsto originalmente – já que o processo de
tornar público os conceitos da tradição já havia começado com os livros, os quais Carlos
escrevera a partir de uma sugestão inicial do próprio don Juan.

Temos aqui a ideia de uma tradição viva e aberta à mudança, preocupada com sua
continuidade, mas também atenta à renovação. Poderia ser esse o caminho para as
respostas às questões que estamos discutindo? Um olhar atento para as culturas
xamânicas ainda existentes e uma estratégia de dar continuidade para esse saber dentro
de seu contexto original?

Existem acusações de que Carlos estaria desvinculando os passes de seu contexto


cultural original. Essa afirmação é equivocada porque ele não detém a posse desses
passes, apenas os codificou numa forma que fosse adequada para ser praticada pelas
pessoas de nosso tempo. Acredito que seja importante mencionar que não houve
nenhuma reação contrária a Tensegridade por parte de qualquer grupo étnico ou pelos
xamãs mexicanos, e que é no México que se encontra o maior número de praticantes de
Tensegridade.

Se esse movimento transcultural entre o xamanismo das sociedades tradicionais e a


nossa sociedade não pode ser revertido, então seria ótimo ele contribuísse para o
fortalecimento dessas tradições em suas formas originais também. Não seria esse o
caminho?

No caso dos Passes Mágicos, da Ayahuasca, e de outras práticas de expansão da


consciência, existe toda uma vasta tradição a ser preservada e pesquisada. Em ambos
casos, há uma tecnologia da consciência, que é diferente da nossa, mas igualmente
precisa e funcional.

Castaneda não propõe nenhuma verdade pronta, ele propõe que se pratique, e que se
verifique a validade dessas ferramentas. Acredito que verificar por si próprio seja
fundamental para todos os que se aproximam das práticas xamânicas.

Um dos focos atuais das práticas é a atenta observação de si próprio e dos momentos em
que ganhamos ou perdemos energia, dos momentos em que estamos alinhados e em
harmonia e das coisas ou situações que nos tiram desse estado de alinhamento e
equilíbrio.

Aprendemos a observar a repetição entediante dos nossos velhos e equivocados


comportamentos que só nos trazem dor, conflitos interiores e com os nossos
semelhantes, e principalmente o que podemos fazer para mudar isso. Praticar
Tensegridade é a busca de um estado de atenção, eficiência e silêncio conhecido como o
caminho do guerreiro.

Busquei até aqui tornar mais claro algumas das práticas e princípios da tradição que nos
foi apresentada por Carlos Castaneda para comentar alguns pontos polêmicos de sua
obra, mostrando como ela se relaciona com as práticas xamânicas tradicionais.

Hoje o grupo de guerreiros do nagual Carlos Castaneda é formado por homens e


mulheres, que estão juntos em uma envolvente aventura, uma aventura como seres
mágicos, que sabem que em algum ponto do caminho retornaram para aquela imensidão
lá fora, da onde vieram. Um grupo de praticantes explorando as possibilidades dessa
nossa estranha e empolgante viagem perceptiva como consciências encarnadas.

Agora podemos voltar ao tópico que abordei no inicio do texto sobre essa busca do
homem contemporâneo pelo xamanismo: o que realmente ele deseja e do que precisa?
O que estamos buscando quando nos aproximamos do xamanismo?

O homem moderno, talvez mais do que em qualquer outra época, sente um grande
vazio, uma falta de completude e paz interior que deriva de nosso quase total
desligamento com a teia da vida, da natureza e de suas energias. Pressionado pelas
preocupações do dia-a-dia, vive em um nível de consciência que vai muito pouco além
da satisfação de suas necessidades mais imediatas de conforto e de gratificação. Nossa
consciência impulsionada por seus medos e anseios e, principalmente, conflitos, muitas
vezes, se vê envolta num diálogo caótico e frenético que em nada contribui para a
percepção de nossas possibilidades enquanto consciências individualizadas e
manifestações da energia criativa da vida.

O xamanismo surge então como uma possibilidade na busca dessa ligação com o
sagrado, como um conjunto de práticas que tem a capacidade de restabelecer a conexão
com o mágico e com o mundo espiritual, livre do peso das religiões institucionalizadas e
principalmente sem intermediários.

Mas essa aproximação se dá muitas vezes de forma romântica, e esse anseio por
transformação, equilíbrio, harmonia e bem-estar, acaba se confundindo com o anseio
por tornar-se um xamã. Não sei se tornar um xamã é tão importante assim.

Acredito que a utilização das praticas xamânicas, a compreensão de seu modus


operandi, e o estudo das tradições que as originaram poderiam constituir uma
abordagem bem mais adequada e sóbria. O contato respeitoso coma as tradições
xamânicas pode ser muito positivo e frutífero para a busca do homem contemporâneo e
para a sobrevivência dessas tradições.

Nesse momento do Primeiro Encontro Brasileiro de Xamanismo em que nos


aproximamos uns dos outros, na busca de troca de experiências e da formação de novos
laços de amizade e de convivência, vivenciando o conceito xamânico de que “tudo está
interligado”, e que acabamos verificando que existe uma grande teia de pessoas
envolvidas com o trabalho xamânico hoje, é importante que essas questões sejam
colocadas e discutidas.
O clima de respeito e compreensão que presenciamos durante todo o encontro, aliado a
discussão de ideias e questões pertinentes é a forma ideal para que possamos realmente
nos capacitar para ser úteis aos que se aproximam de nós em busca desse caminho.

_______

(*) Estudioso do xamanismo e da obra de Carlos Castaneda há trinta e seis anos.


Praticante de Tensegridade, coordenador do grupo de praticantes do Rio de Janeiro.
Quirólogo, Reiki e Sekim Máster. Membro a vinte anos da Irmandade Espiritualista
Verdade Eterna (I.E.V.E.), no Rio de Janeiro (RJ) onde atuou como médium e exorcista.

(**) No dia 15 de março de 2005 Nelson Neraiel apresentou a palestra “Tensegridade –


os passes mágicos de Carlos Castaneda”. Bia Labate, que prestou consultoria para a
realização do evento, pediu que Nelson redigisse um texto relacionando o tema de sua
fala à mesa redonda: “Xamanismo, xamanismo urbano, xamanismo universal,
xamanismo crístico, neoxamanismo: afinal o que é isto?”, que ocorreu dia 14 de março
de 2005. A mesa pretendia discutir os seguintes temas:
- Como definir o “xamanismo”?
- Qual seria o melhor termo para classificar as práticas contemporâneas?
- Quais são critérios que permitem classificar quais atividades são ou não “xamânicas”?
- Quais são as fronteiras e limites entre o xamanismo “tradicional” e o
“contemporâneo”?
- Como lideranças ou xamãs indígenas veem os xamãs brancos?
- Como os xamãs urbanos compreendem o discurso acadêmico que critica o
“neoxamanismo”?
- Como separar “verdadeiros” e “falsos” xamãs?
- Que princípios éticos norteiam ou deveriam nortear as práticas xamânicas?

(***) A ABRAX foi fundado dia 20 de março de 2005, último dia do encontro. Léo
Artése foi nomeado presidente.

(1) Ovo luminoso é o campo energético que nos envolve e que se estende à distância de
um braço ao redor de nosso corpo físico; é o equivalente ao que nós chamamos de
“Aura”. É a contraparte energética de nosso organismo.

(2) Liberdade total é um estado de consciência e percepção para o qual os praticantes


dessa tradição se preparam para entrar no momento da morte ou da sua partida desse
mundo. Ao contrário do que ocorre com o homem comum, para o guerreiro, a morte
permite que a sua consciência parta em uma jornada perceptiva definitiva pelo
Universo, mantendo assim a sua totalidade e individualidade. Do ponto de vista dessa
tradição, ao fim da existência humana há uma reabsorção da energia vital e da
consciência do individuo pela Consciência Universal, cessando assim a existência
individual. Não existe nessa tradição a ideia de reencarnação e nem de a ideia de algum
céu ou plano paradisíaco ou infernal no pós-morte.

(3) Nagual, do termo nahual, da língua nahuatl. Aqui o termo é usado para designar um
guia, um homem que por suas características energéticas é uma porta, uma ponte, entre
esse e outros mundos. O nagual é o guia de cada grupo de guerreiros.

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