Recife, 2016
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CRÉDITOS
Editora: APPODI
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APRESENTAÇÃO
O Congresso Publius é evento anual realizado por professores da Universidade Católica de Pernam-
buco, com o objetivo de discutir temas pertinentes ao direito público, especiicamente no que se refere aos
vínculos que se estabelecem entre Constituição e Democracia. Na edição 2015 do Publius o tema escolhido
como eixo norteador do evento é “Tutela Multinível dos Direitos”, apontando para a necessária percepção de
que os direitos apresentam níveis distintos de proteção e promoção, tanto no plano interno como em planos
normativos distintos, como acontece com o direito subnacional, o direito supranacional e o direito interna-
cional.
O evento teve duração de três dias de debates com a participação de professores e pesquisadores con-
vidados de várias universidades do Brasil, América Latina e Europa e envolvendo estudantes de graduação e
pós-graduação stricto sensu de diversas universidades da região.
O livro que agora apresentamos é fruto das relexões que aconteceram nos grupos de trabalho do
evento (Direitos Sociais e Judicialização das Políticas Públicas; Justiça Constitucional e Jurisdição Constitu-
cional; (Des)Criminalização de Direitos; Tutela dos Direitos à Liberdade; Hermenêutica, Universalidade e
Multiculturalismo dos Direitos; Direitos de Nacionalidade e Estrangeiros; Os Novos Direitos; Diálogo entre
Cortes e Proteção Multinível; Constituições Subnacionais e Tutela de Direitos: Controle de Convencionali-
dade). Para os diversos GTs o evento contou com cento e vinte trabalhos inscritos, resultando em sua coni-
guração inal, sessenta e cinco trabalhos enviados para publicação após os debates. Estes trabalhos integram
o presente livro eletrônico, juntamente com os trabalhos de autores convidados, mantendo a métrica e a
obediência aos temas propostos pelo evento.
A todos, desejamos uma boa leitura. E que estes escritos possam servir como leituras seminais para a
compreensão dos desaios que uma tutela multinivel de direitos fundamentais exige.
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SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO
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7. COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF
11. A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO
DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
Arthur Albuquerque de Andrade
Ana Catarina Silva Lemos Paz
Luiz Manoel da Silva Júnior 101
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13. O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO
ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Bruna de Oliveira Maciel
Jaqueline Maria de Vasconcelos 116
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19. LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS
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25. DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS:
UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
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32. AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
Paloma Mendes Saldanha 291
10
39. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO
DE PROTEÇÃO
Gessyca Galdino de Souza
Gustavo Ferreira Santos 346
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45. MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS:
TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO
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52. DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS
Maria Alana Calado Capitó
Pedro Victor Montenegro de Albuquerque 464
13
60. A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE:
UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA
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69. A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE
DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
Luize Ivila Santos da Rocha
Larissa Gabrielle Silva de Andrade 619
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A proteção do consumidor e sua reparação por eventuais danos como
garantias constitucionais; 1.1. Da reparação por danos na sistemática da responsabilidade civil do có-
digo de defesa do consumidor; 2. Do dano moral ao social: um quadro de grave comprometimento da
vida humana na relação de consumo; 3. O aparelhamento nocivo e sistemático do “dano eiciente”;
4. O diálogo entre sistemas como forma de aplacar diferenças e fomentar ganhos sociais; Conclusão;
Referências.
INTRODUÇÃO
Diante da permanente necessidade de cuidado ao consumidor, igura, por sua própria condição, frágil
na relação de consumo, desenvolver-se-á este estudo com o intuito de, dentre tantas problemáticas sobrevin-
das, aplacar os enormes prejuízos de ordem moral, em especíico, sofrido pelos consumidores nestas últimas
décadas.
Numa luta até então desigual, atendendo-se à dignidade da pessoa humana, com a expressão de boa
parte dos anseios sociais em nossa Constituição Federal de 1988 e, depois, em sede de código de defesa do
consumidor – lei n.º 8078/90 -, conseguiu-se estampar o direito à reparação de danos - evidente que se ir-
mou aí grande avanço para uma sociedade consumerista, carente de segurança jurídica.
Mas, com as recorrentes constatações de lesões aos consumidores, vê-se que a estrutura jurídica
brasileira ainda apresenta lacunas que oferecem espaços às práticas destrutivas operadas pelos lesantes,
voltadas tão somente à racionalidade econômica.
De modo que, com as experiências exitosas alienígenas, obtém-se, então, base para adequar o modelo
da função punitiva da responsabilidade civil ao sistema brasileiro, servindo tal instrumento para se alcançar
a função social do mencionado instituto, como, também, travar, ou mesmo, de fato, eliminar o dano social.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A Constituição Federal de 1988 garante proteção aos consumidores imputando ao Estado uma
obrigação de promoção de sua defesa. Aliado a isso, terão os consumidores a garantia da possiblidade de
serem reparados por eventuais danos que venham a suportar nas no mercado de consumo.
Ainda, como direito fundamental, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como a norma impe-
rativa o disposto no artigo 5º, inciso XXXII, que institui que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do
consumidor”. Lei esta que deveria ser elaborada dentro de 120 dias a partir da promulgação da Constituição,
conforme artigo 48 dos atos das disposições constitucionais transitórias, na mesma Constituição (MIRAGEM,
2002 - Conferir também (CAVALIERI FILHO, 2008); (DUQUE, 2009); (GRAU, 1993)).
A inserção do artigo 5°, XXXII, entre os direitos fundamentais coloca os consumidores entre os ti-
tulares de direitos constitucionais fundamentais, porque estes não mais se resumem aos direitos de defesa
contra interferência estatal na esfera jurídica particular (CANOTILHO, 1993). Atualmente, os direitos fun-
damentais conferem também aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento
e direitos as prestações sociais.
Entendemos que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais e, assim, proteger um
cidadão perante o outro.
Além disto, o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988, tornou a defesa do consumidor um
princípio da ordem econômica constitucional. Estes dois dispositivos – artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170,
inciso V – legitimam todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. A
defesa dos consumidores pauta-se, em primeiro, nas razões econômicas derivadas das formas, segundo as
quais se desenvolvem, em grande parte, ao atual tráico mercantil e, em segundo, por critérios que emanam
da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos imersos – na chamada sociedade
de consumo em massa1.
Finalmente, a Lei n.º 8078/90, Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, foi promulgada em 1990,
e acarreta importantes mudanças que, no decorrer dos anos 90 e na primeira década do século XXI, tanto nos
1 NUNES, 2012, p. 52: “No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consu-
midor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a igura do consumidor, em larga medida, equipara-se
à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são, também, simultaneamente
extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição
Federal são, no que forem compatíveis com a igura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo
constitucional”.
2 BENJAMIN, 2008, p. 68, que airma: “Se a Constituição Federal de 1988 manda o Estado-juiz, o Estado-executivo, e o Esta-
do-legislativo proteger imperativamente o consumidor em suas relações intrinsicamente desequilibradas com os fornecedores de
produtos e serviços, a CF/88 não deiniu quem é o consumidor – logo temos que recorrer ao CDC, como base legal especial infra-
constitucional para saber quando aplicar o CDC”.
3 Ver também ALMEIDA, 2003; NISHHIYAMA e DENSA, 2011, pp. 432 a 433, que airmam: “o princípio da proteção do con-
sumidor é norma constitucional”; DUQUE, 2009.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mecanismos de proteção, com o surgimento de novas associações civis voltadas à proteção dos consumidores,
como órgãos administrativos também com o mesmo escopo.
Além disso, impôs importantes e gradativas mudanças às relações de consumo, perceptível na me-
lhora na qualidade de fabricação dos produtos e na relação das empresas, de um modo geral, frente os con-
sumidores4.
A lei n.º 8.078/90 adotou uma sistemática própria para garantir a reparação dos danos oriundos das
relações de consumo. Assim, como se percebe claramente da citada lei, a responsabilização dos fornecedores
está dividia em duas partes, em primeiro, a responsabilização decorrente dos acidentes de consumo ocorri-
dos por defeitos nos produtos e serviços, tratada entre os artigos 12 a 14, e, em segundo, a responsabilização
decorrente dos vícios nos produtos e serviços, previstos nos artigos 18 a 20.
A responsabilidade por fato do produto ou do serviço identiica-se pela ocorrência de defeito. O de-
feito que emerge do produto ou serviço disposto ao consumidor é a consequência de um dano provocado por
uma falha no funcionamento regular destes5.
Desse modo, o dano moral emerge imediatamente dos acidentes de consumo, haja vista que não há
que se falar em acidente de consumo se não ocorrer o dano. Assim, a sistemática aplicada pelo Código de De-
fesa do Consumidor atribui a quem idealizou e concebeu o produto ou o serviço o dever de repara eventuais
danos suportados pelos consumidores.
Quando a responsabilidade se trata de vício do produto ou do serviço, regulada pelos artigos 18 e 19,
vício de qualidade e quantidade do produto, respectivamente, e artigo 20, vício de qualidade do serviço, a
ocorrência de dano seria em razão pela demora na reparação do vício. Em outras palavras, havendo vício no
produto ou serviço, há um prazo de 30 dias previsto na lei para resolução da falha, e, em caso de alargamento
deste período por retardo do fornecedor em repará-lo, caso haja dano, então pode ser imputado ao fornece-
dor o dever de pagar indenização, que, repetimos, tem relação a danos gerados pela demora em sanar o vicio
(NUNES, 2012).
A sistemática prevista na Lei n.º 8078/90, apesar de pautada na divisão a partir do entre defeito e
vício, este menos gravoso, intrínseco ao bem ou serviço, com formas de reparação previstas em lei – havendo
a possibilidade de a reparação ocorrer por danos morais e matérias -, e aquele, mais gravoso, e que se dá pela
ocorrência de dano provocado pela exteriorização vício no bem ou serviço.
O consumidor possui um instrumento forte de reparação dos danos que vier a suportar no mercado,
no entanto é comum determinadas práticas abusivas ou perigosas, por vezes lesivas, serem recorrentes, o
que quer nos mostrar que as indenizações pagas talvez não sejam suicientes para alterar as mesmas práticas
empresarias prejudiciais aos consumidores.
Numa perspectiva moderna, nota-se que as relações de consumo tendem a oferecer sempre novas
alternativas com o ito principal de promover os ganhos econômicos. E isso corresponde a fato natural, ine-
xorável aos avanços da sociedade, que precisa atender às suas necessidades, amparada, principalmente, pela
celeridade e pelo desenvolvimento comum.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Não há mal propriamente neste processo. A grande questão que se impõe é saber até que ponto as
citadas relações podem estar revestidas da licitude. Se se ultrapassar esta barreira, dos negócios justos, segu-
ramente sobrevirão enormes prejuízos aos consumidores, que se veem fracos perante o insuportável peso do
poder socioeconômico exercido pelos fornecedores lesantes.
Ou seja, quanto mais lacunas se deixam escapar, mais fortes se tornam os lesantes e, por conseguinte,
o controle de seus atos se vislumbra como demasiado frustrante, sobretudo para os consumidores, que, já
prejudicados, não têm meios para buscar amparo legal.
Fecha-se o seguinte cenário: o consumidor, naturalmente, tem de resolver as questões do dia a dia,
quais sejam levar o ilho a escola, pagar as contas, ir ao médico, dentre outros afazeres prioritários, assim,
vê-se, não tem tempo para buscar amparo no poder judiciário, ainda mais sabendo que tal iniciativa pode não
acabar como desejada, resultando tudo num grave transtorno moral.
O dano moral, antes analisado sob a feição de um só ente, hoje, com tais problemáticas de ordem
consumerista, passa a compreender uma extensão muito maior, às vezes até de difícil avaliação e controle,
o denominado dano social. Segundo o idealizador da teoria do dano social, Antonio Junqueira de Azevedo, o
dano social é aquele mal impelido em face de muitos indivíduos, de uma parcela considerável da sociedade
que se vê achacada em seus elementos mais ínsitos, como a moral, o bem-estar subjetivo, a paz e a seguran-
ça, por exemplo6.
Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (MORAES, 2006, p. 246), o dano moral corresponde
à lesão perpetrada em face da dignidade humana7. Pois bem, nada mais elucidativo que trazer à baila tais
palavras, as quais conirmam o grave mal do dano social. Como o próprio nome já assim o denota, diz res-
peito a uma lesão pratica à dignidade de uma ininidade de pessoas, portanto, mais severa, que merece ser
combatido de modo eicaz.
O dano social subtrai a tranquilidade de toda população8. Deixa-se a impressão que ao lesante é per-
mitido continuar tais atos, ao passo que o lesado se sente atônito e desorientado quanto aos seus direitos.
Acaba, então, a aceitar a situação porque não sabe ao certo como, se ou a quem, ao menos, deve recorrer.
Para descrever melhor, o estado da população se sintetiza em resignação. Aceitar passiva as adversi-
dades é exatamente o que espera o lesante, tendo como base, tão somente, a sua racionalidade económica,
direcionada a compatibilizar, a seu modo, gastos e lucros, sujeitando os consumidores aos mais indignos
tratamentos.
O dano de esfera social vai implantando, velada e sutilmente, uma sensação progressiva de sujeição
aos quadros atuais. Pensa-se: tudo está como deve ser, e pronto. Não se projeta qualquer tipo de solução,
restando, especialmente ao mais hipossuiciente, a submissão, o que pode concorrer para o superendivida-
mento.
Para melhor confrontar ideias, cumpre apresentar a seguinte situação hipotética: acostumado a rea-
lizar seus pagamentos por via bancária, através de débito automático, porque, ocupado, João não tem tempo
para realizar tais atividades diretamente em agências, ica surpreso com a cobrança de uma taxa de serviço,
quando, à época, ao perguntar ao gerente do banco, fora informado que nada seria acrescido a sua conta
6 AZEVEDO, 2004, p. 376: “Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento
de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos
sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as con-
dições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do
índice de qualidade de vida da população”.
7 MORAES, 2006, p. 246: “Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da
pessoa humana”.
8 AZEVEDO, 2004, p. 375: “A segurança, nem é preciso salientar, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais
segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior. Logo, qualquer ato doloso ou gravemente culposo, em que o sujeito ‘A’ lesa o
sujeito ‘B’, especialmente em sua vida ou integridade física e psíquica, além dos danos patrimoniais ou morais causados à vítima, é
causa também de um dano à sociedade como um todo e, assim, o agente deve responder por isso. [...] A ‘pena’ – agora, entre aspas,
porque no fundo, é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
habitual. Após realizar os cálculos de quanto teria desembolsado em três anos, reparou que os gastos mês a
mês não impactavam tanto em seu orçamento – por isso não havia notado a situação velada -, mas que, ao
inal, isso correspondia à importância signiicativa, que poderia ser utilizado para cobrir outras obrigações.
Sentindo-se fragilizado ante o poderio do banco, mesmo questionando seu gerente, não obteve resposta posi-
tiva, restando-lhe o amparo do poder judiciário, que, não se sabe quando, poderá ter tais valores recuperados.
Fatos como este supracitado repetem-se diuturnamente, sem controle prévio e apropriado, deixando
o consumidor convencido que os esforços empregados para tal im podem resultar em algo assaz desgastante.
Tendo sua esfera existencial já fortemente atingida pelo ato em si, ainda pode se ver mais envolvido em razão
das tentativas, digamos, estéreis.
Notórios, nos meios midiáticos, os abusos cometidos por empresas de grande poder socioeconômico,
como é o caso de companhias aéreas, operadoras de telefones, dentre outras. Mais alarmante que isso é sa-
ber que os casos se repetem, que as mesmas empresas mantêm suas atividades desvirtuadas porque não há
controle eicaz9.
O fato é que, por não haver freios legais, acostumam-se a desempenhar suas atividades sem qualquer
apego à vida humana. É dizer que as suas decisões serão sempre orientadas pelos resultados econômicos. Se
os ganhos compensam, descarta-se a condições psicofísicas dos indivíduos envolvidos, podendo os lesantes,
então, submeterem-se às possíveis ações judiciais – quando algum lesado tiver disposição para tal -, e se for
condenado, deverá pagar o quantum arbitrado em juízo, de caráter compensatório.
Vislumbrando as quantias de indenização que porventura surjam, os lesantes têm segurança em sa-
ber o patamar que irá interferir em seu orçamento. Porque as indenizações compensatórias são antecipada-
mente cognoscíveis, estes entes, alheios aos resultados que podem ser devastadores, raciocinam que o lucro
compensa.
É nesse sentido que se opera o “dano eiciente”, na concepção de César Fiúza (FIÚZA apud PIMEN-
TA e LANA, 2010, p. 128)10. O agente lesante encontra campo lacunoso – em legislação – para aplicar o seu
intento, sem se ater ao princípio jurídico mais importante, a dignidade da pessoa humana, insculpida no art.
1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, norma que rege todo o ordenamento
brasileiro.
Por controlar todo o processo danoso, os custos das operações etc., o lesante chega a tranquila con-
clusão que os custos com a readequação do produto, em se tratando, por exemplo, do recall, seria muito
mais dispendioso que manter a situação como está, sujeitando-se, se for a hipótese, às possíveis indenizações
compensatórias, e se condenado for.
Pela insigniicância, e ante o poderio econômico do lesante, na maioria das vezes estas mesmas
empresas pressionam a realização de acordos, e logo no início, sem conferir o potencial lesivo do mérito da
questão, já são encerrados inúmeros casos. Restam, portanto, alguns poucos que, ao inal, não conseguirão
efetivamente exprimir os caráteres dissuasivo, exemplar e punitivo, em face da conduta.
9 FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2014, p. 411: “[...] As estatísticas demonstram que o Poder Judiciário e, especialmente os
juizados especiais, converteram-se em repositórios de demandas de responsabilidade civil. Assombra a reiteração de demandas
contra os mesmos réus, pelas mesmas práticas reveladoras de um profundo descaso com os seus clientes e a sociedade. Há uma
subversão axiológica, haja vista que a lógica puramente patrimonialista e individualista – de uma racionalidade estritamente eco-
nômica -, paira sobre situações jurídicas existenciais e metaindividuais. A eventual reparação de danos será um preço previamente
conhecido e contabilizado pelo lesante”.
10 FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128: “Fala-se, por im, em dano eiciente e dano ineiciente. Ocorre dano eiciente,
quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora veriicar
que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após
alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall, para
concertar o defeito de todos os carros vendidos que forem apresentados, estaremos diante do dano eiciente”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Para melhor aclarar o tema, vale lembrar o emblemático caso Pinto Case em que a Ford produziu car-
ros em formato de pinto, como o próprio nome sugere, onde o arranjo e qualidade das peças não condiziam
com a segurança desejada. Assim, em virtude de acidente no qual houve a morte do condutor, além de graves
lesões nos passageiros, chegou-se ao poder judiciário dos EUA a questão, momento em que icou constatada
a má colocação do tanque de combustível, assim como a fragilidade do material empregado, o que ocasionou
o evento trágico.
Comprovou-se, ademais, inclusive certiicado pelo dono da empresa em audiência, que era do conhe-
cimento da Ford o aludido problema, contudo, em razão da alteração do design do produto para a reformula-
ção, seria melhor se submeter às possíveis indenizações, se fosse o caso, pagando as quantias compensatórias.
Logo, a lei não pode dispor de espaços que facilitem as citadas manobras. De tal modo que se impõe
o auxílio da análise econômica do Direito para dirimir estas falhas, direcionando o estudo, a feitura, e a apli-
cação da norma para eliminar do lesante a visão restrita da racionalidade econômica. Com isso, as atividades
serão enformadas a atingirem a eiciência, sem, contudo, dar margem aos danos11.
Mesmo diante de toda resistência do sistema civil law em acolher tal instrumento, atendendo-se às
reservas e adequações pertinentes, frise-se: não há mais razão para o distanciamento entre sistemas, vez que
o im será sempre a proteção humana, através do reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana.
Além disso, a função punitiva da responsabilidade civil proporciona o versátil enlace social do instituto, que
pode, ao mesmo tempo, servir de controle preventivo e pena civil.
Relexo dessa imprescindível tutela social desponta cada dia mais, sobretudo no poder judiciário bra-
sileiro, soluções voltadas a desestimular tais condutas lesivas, ainda que as condenações hodiernas, nem de
perto, possam ser comparadas àquelas aplicadas, mormente, nos EUA12.
Por sua relevância, expõe-se o inteiro teor de trecho de recente decisão de primeiro grau de jurisdi-
ção, no Estado do Ceará, por meio da qual o magistrado salienta o papel punitivo da indenização pela respon-
sabilidade civil, instrumento regulador da conduta social: “Também, deve a indenização servir de advertência
ao ofensor, evitando-se, dessa forma, a reincidência, exteriorizando seu caráter punitivo e preventivo, através
da ixação de um valor razoável” 13.
11 PIMENTA, 2006, p. 169: “O que pressupõe a análise econômica do Direito é que a conduta legal ou ilegal de uma pessoa é
decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. Parte-se da premissa que os agentes – su-
jeitos de direito – irão conduzir-se diante da legislação de forma a fazer a escolha que incorra em uma melhor relação quantitativa
entre os custos e riscos envolvidos e os possíveis benefícios (escolha baseada no critério eiciência)”.
12 MINAS GERAIS, 2011: “No que se refere ao quantum indenizatório referente ao dano moral, a despeito de não ser expres-
samente adotada por nosso ordenamento jurídico a doutrina norte-americana do punitive damages, é lugar comum na doutrina e
na jurisprudência que a indenização deve levar em conta o dano, a capacidade econômica da vítima e do agente, bem como o viés
pedagógico da indenização, capaz de desestimular a reiteração da conduta social indesejada”.
13 (SENTENÇA, 2015, p. 332).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
CONCLUSÃO
Há de se acolher o que de bom se construiu em tradição alienígena, como bem assevera Nelson
Rosenvald (ROSENVALD, 2014, p. 165), porque os ganhos sociais serão sempre maiores que a precipitada
inobservância14.
Guardadas as proporções regionais e culturais, que devem ser respeitadas, a função punitiva atende-
rá, inclusive, à função social da responsabilidade civil, maior contributo a ensejar que se evitem, preventiva-
mente, a incidência do dano, estando, pois, mais condizente com os ditames da cláusula geral da dignidade
da pessoa humana.
Com a função punitiva, o sujeito sentir-se-á mais seguro, de que haverá a resposta apropriada do po-
der judiciário, além disso, os demais entes de poderio econômico e social saberão o revés legal aposto às suas
más condutas. Concomitante a isso, também, observe-se: o pretenso lesante não terá como calcular possíveis
vantagens econômicas que existiriam se se sujeitasse, eventualmente, às condenações judiciais, como no
caso de indenizações compensatórias, ao invés de conferir ao produto ou ao serviço os ajustes necessários
à segurança do consumidor, porque as indenizações de caráter punitivo não podem ser avaliadas de modo
antecipado.
Assim, icam evidenciadas a eiciência e a segurança jurídica determinadas pela função punitiva da
responsabilidade civil, tendo em conta que o dano eiciente não mais poderá se formar, desmontando, com
isso, o arranjo perigoso inclinado a causar o dano social, grande mal da atualidade.
REFERÊNCIAS
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AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. O Código Civil e sua interdisciplinaridade: os relexos do Código Civil nos demais ramos do Direito /
José Geraldo Brito Filomeno, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior e Renato Afonso Gonçalves, coordena-
dores. 370-377 p. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direi-
to do consumidor. 2 ed., RT: São Paulo, 2008.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008.
DUQUE, Marecelo Shenk. A proteção ao consumidor como dever de proteção estatal de hierar-
quia constitucional. Revista de direito do consumidor, n.º 71. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
pp. 143 a 167, 2009.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito civil
– teoria geral da responsabilidade civil – responsabilidade civil em espécie. – 3. vol. – ed. 2014.
1069 p. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.
14 ROSENVALD, 2014, p. 165: “As fronteiras foram rompidas. Não há como preservar a intransponível dicotomia entre a civil
law (romanística, codiicada e identiicada por um ordenamento legislativo) e a common law (não romanística, não codiicada e
identiicada em um ordenamento judiciário), tal como se fossem universos apartados. A nacionalidade do direito privado se revela
um obstáculo às relações econômicas, cada vez mais intensas, entre cidadãos e empresas de países e sistemas jurídicos diversos.
Ademais, a pureza metodológica icou no passado. As nações da common law recorrem à legislação, assim como os Estados iliados
ao civil law concedem paulatina importância à construção do direito pelos tribunais e pelos costumes”.
22
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 3d., São
Paulo, 1997.
GRAU, Eros Roberto. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: algumas notas. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo, n.º 5, 1993.
LOURENÇO, Paula Meira. A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação. Dis-
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cisão datada de 14/09/2015 e publicada em 16/09/15, no Diário da Justiça, em página de n.º 332.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar as estruturas motoras da hermenêutica tratada por Müller
e a Jurisprudência Hermenêutica para contrastar com o princípio da segurança jurídica. A pergunta norte-
adora dessa pesquisa é se este recente movimento hermenêutico, baseado nas ideias de Heidegger e Gada-
mer, oferece segurança jurídica. Esta pergunta, portanto, não pode ser compreendida como se estivéssemos
abordando uma proposta política, pois a hermenêutica ilosóica não prescreve elementos axiológicos, mas,
descritivos.
Müller se insere no contexto pós-guerra e toma para si o desaio de indagar e romper1 com o positivis-
mo jurídico, especialmente o kelseniano. Isso faz de Müller, necessariamente, um pós-positivista.
A fonte primordial de Müller para desenvolver suas ideias foram bastante profundas, visto que a her-
menêutica ilosóica em seu tempo estava em processo de transformação paradigmática bastante elementar.
Heidegger indou com a hermenêutica ontológica e Gadamer seguiu essa característica. Em uma metáfora
simples, diz-se que a hermenêutica sofreu uma mudança instrumental. O sujeito outrora utilizava de uma
luneta, necessitava enxergar toda a mínima essência daquele objeto para auferir uma verdade sobre este.
Devido às frequentes falhas deste método, a “nova” hermenêutica utiliza espelhos em volta do objeto, pois
não há mais dissociação pura entre sujeito e objeto no processo de compreensão.
1. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA.
O termo “hermenêutica” origina-se do deus grego ‘Hermes’. A este cabia a função de mensageiro
dos deuses, interpretando suas mensagens àqueles que não poderiam compreendê-la. Como rotineiramente
pontua Lênio Streck, nunca se soube o que os deuses realmente disseram, mas o que Hermes interpretou.
Esta alegoria permite-nos concluir a atual função da hermenêutica contemporânea. Sob a ótica desta a on-
tologia é descartada para dar lugar ao analítico, a ““essência” é apenas, ela própria, uma palavra que ganha
sentido num contexto linguístico” (FERRAZ JR., 2015).
1 Este rompimento não signiica total abdicação das ideias contidas na obra Teoria Pura do Direito.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O caráter usado na antiguidade até o século passado tinha a função basilar de descobrir, pois acredita-
va-se que havia um signiicado real e verdadeiro para os componentes da vida, fenômenos e textos. Juridica-
mente estas ideias extremaram no positivismo clássico, onde a lei seria aplicada à determinado caso através
do método dedutivo, sendo a interpretação normativa restrita ao uso de técnicas interpretativas pré-estabe-
lecidas a todo e qualquer processo decisório.
Hodiernamente o fator fulcral está centralizado na ‘compreensão’. Schleiermacher pode ser indicado
como um daqueles que universalizaram a sistemática elaborada por Lutero, buscando o entendimento do
texto com a vinculação do signiicante para com o respectivo autor. Este encarava como arbritrária o acrésci-
mo de conteúdos próprios ao texto pelo intérprete (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH).
Há também a colaboração de Dilthey, com seu enfoque psicológico, porém, apenas a partir de Heide-
gger pode-se falar em compreensão hermenêutica nos moldes desenvolvidos por Gadamer.
O desenvolvimento de Gadamer, destacado repetidas vezes por Müller são as condições de possi-
bilidade da compreensão. Para que esta ocorra faz-se necessário haver a pré-compreensão. Isto porque o
intérprete, no seu processo interpretativo, atrela-se a um fator orientador, cuja essencialidade é histórica e
contextual. Assim, cada interpretação será uma aplicação do estado de consciência do intérprete. Eis porque
a compreensão gadamariana não é um processo descritivo e reprodutivo, mas produtivo e criativo. A circula-
ridade hermenêutica se pauta no ‘embate’ transcorrido entre o texto na sua tradição amparado de signos e a
contribuição da consciência trazida pelo intérprete. “Portanto, o intérprete tem de saber que a interpretação
de um texto é sempre uma aplicação ao presente” (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH apud GADAMER).
A partir desse novo paradigma é que a jurisprudência hermenêutica se estabelece pelas suas raízes da
hermenêutica ilosóica de Gadamer. Noções como “pré-compreensão”, “círculo hermenêutico”, são utiliza-
das pelos teóricos desse movimento. Apesar disso, esta corrente não promulga uma interpretação ilosóica,
mas pela práxis e com o uso da dogmática.
Não se pode confundir o uso de determinados elementos da ilosoia com uma abordagem ilosóica.
Este movimento visa a metodologia prática da interpretação, sendo assim, o tratamento geral do direito, como
encara Dworkin pela sua ilosoia analítica, é destoante com a JH.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Veremos mais adiante que um comportamento comum dos teóricos da JH é a separação herme-
nêutica em determinadas áreas do direito. Müller, em sua teoria estruturante, evidencia sua canalização na
hermenêutica constitucional (Müller, 2007). Para este, a universalização da metodologia interpretativa é um
erro, visto que a natureza de um determinado diploma possui características e celeumas próprios.
3. PRÉ-COMPREENSÃO.
A veriicabilidade objetiva da decisão judicial se perfaz através de um caminho cuja base fulcral é
a racionalidade. A visão da JH sobre a determinabilidade dos elementos compositores dessa racionalidade
está aportada em um copo estrutural denso mais signiicativo e concreto do que aspectos mais especíicos e
divergentes da metódica de cada um dos autores dessa “escola”2.
Tomando a pré-compreensão como elemento indissociável de uma relação entre o sujeito e objeto sob
a qual ideias pretéritas e especíicas de um agente dentro daquilo que se é, aonde é e quando é, a JH adota
como imprescindível não apenas a aceitação desta impossibilidade dissociativa, mas a exposição em cada
tentativa de compreensão (concretização) normativa, o que Esser vai chamar de “tomada de consciência das
condições fundamentais do seu trabalho” (1970).
O caráter axiológico da pré-compreensão não pode ser visto como uma contradição às ideias metódi-
cas e racional da interpretação. Parte-se do princípio de que todo intérprete não pode dissociar seu ser dos
conhecimentos e valores inerentes à sua formação e visão de mundo. Como alude Gustavo Just:
A consciência dos elementos axiológicos não entrega o direito à política, pois, como enfatiza Esser, o
que causa perigo ao direito é o obscurecimento desse elemento. A partir do momento em que há a tomada de
consciência, pode-se exigir maior fundamentação racional do intérprete, levando consequentemente a um
maior controle racional da decisão judicial. Não há como falar em método racional sem objetivar a redução
da subjetividade do intérprete, e a tomada de consciência é um dos primeiros passos para a compreensão do
processo decisório em seu aspecto psicológico e factual. Como bem colocado pelo professor Andreas Krell “o
objetivo do método é reduzir a subjetividade do intérprete, possibilitar o seu autocontrole e “direcionar o seu
agir para caminhos previsíveis” (2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004, p. 139 ss.; STRAUCH, 2001, p.
200 s.).
2 Como já descrito neste artigo, a JH não é considerada como uma escola de pensamento pela ausência de aspectos formadores.
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Direito(s) em debate.
Sob esse argumento que Müller enfatiza o aspecto elucidativo e introducionista dos elementos da
pré-compreensão na fundamentação do intérprete.
4. CIRCULARIDADE HERMENÊUTICA.
A doutrina formalista, sobretudo em seu raciocínio de codiicação e positivismo3 não obteve êxito ao
aplicar medidas de exacerbação de um direito legislado, acreditando na ideia de que poderia complementar
e determinar o direito previamente ao juiz. Kelsen, por sua vez, avançou nesta problemática quando aludiu:
De fato, a jurisprudência dos conceitos demonstrou exatamente como não há possibilidade de prever
com exatidão uma decisão jurídica. Faltou a Kelsen desenvolver o processo decisório hermenêutico.
A medida que se examina os pressupostos e enfoque analítico da JH ica mais notório sua inluência
ilosóica. Gadamer esboçou a respeito da circularidade hermenêutica que ocorre nos diversos campos cien-
tíicos, argumentando acerca da compreensão dialética, formulada pela pergunta e resposta constante no
processo interpretativo.
3 Aqui faz-se importante as recomendações de Norberto Bobbio em não confundir positivismo com positivação. Aquele é uma
“doutrina jurídica segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006). Esta signiica o direito descrito e
posto, particular, temporal e mutável.
4 Nesse caso, a aplicação normativa é chamada por F. Müller de “concretização”.
5 Não confundir o positivismo cientíico com o jurídico. Apesar de alguns aspectos semelhantes, estes dois movimentos possuíam
diferenças signiicativas não apenas no seu objeto, mas em suas ideias também.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sentido, pois o ser (intérprete) é o sujeito mediador entre o objeto e a compreensão. E como já mencionado
no capítulo anterior, o ser é constituído de uma pré-estrutura compreensiva substancial.
Esses elementos sustentam uma posição contrária ao historicismo objetivo sob a ótica aplicacionista.
Em épocas diferentes é comum a compreensão diversa das pretéritas sobre um mesmo texto, visto que o
processo dialógico e questionador remeterá aos problemas presentes, ocasionando uma dependência rígida
entre o signiicado6 e o tempo em que o sujeito o atribui. Para os juristas é importante uma argumentação
neste sentido, ainda que o leitor discorde dessa posição. O argumento historicista causa diversas desconexões
sociais entre o texto legal e a composição real dos fatos presentes. Se compreender é questionar-se sobre um
problema presente, a partir de um intérprete vivente neste presente, a sua compreensão não será capaz de
destoar do entendimento presente.
O teor simultâneo trazido por Gadamer revela-se como corolário de uma compreensão formulada
essencialmente no questionamento. Um enunciado elocutivo trará pressupostos materiais (conteúdo) insu-
icientes para uma compreensão participativa. Haverá simultaneidade quando o agente pensar simultanea-
mente nos pressupostos.
A partir deste panorama torna-se mais clariicado as ideias da JH. Sob a ótica do Direito não é neces-
sário nem recomendado seguir puramente o raciocínio de Gadamer, haja vista que esta fora feita dentro do
âmbito ilosóico. Porém, sem a estrutura ilosóica hermenêutica não é possível compreender a JH.
Esta, por sua vez, utilizou da circularidade e seus pressupostos para superar o entendimento kel-
seniano de que norma e realidade residem em esferas intocáveis. Ou seja, a JH não se preocupou apenas
em conscientizar os pressupostos do raciocínio jurídico, mas em demonstrar que os dois lados jurídicos se
entrelaçam na sua esfera interpretativa. A norma e o fato são, assim, indissociáveis, sendo necessário para
uma compreensão racional a inluência mútua da realidade e o texto normativo. A simultaneidade ocorre
pela análise mútua entre o norma e fato em contraponto a linearidade apresentada por Kelsen. Para ilustrar
melhor, Kaufmann trouxe um exemplo dessa simultaneidade e pré-compreensão no direito penal:
O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segun-
do o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento
da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de
saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta
questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de
roubo qualiicado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porven-
tura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é
uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma
‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos pro-
blemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identiicar, aqui, o ‘círculo’
do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualiicado,
posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualiicado; todavia,
não posso saber o que é roubo qualiicado sem uma análise correcta do caso
concreto (2002).
Como Gustavo Just bem coloca, esse raciocínio desmonta a ideia de que a norma possa ser determi-
nada abstratamente, sendo toda interpretação é aplicação. Seu sentido será buscado a partir da solução do
caso concreto.
A segurança é um fator almejado pelo ser humano sob um espectro global, dentre os quais inclui-se
a modalidade judicial. A estrutura do Estado é articulada sob o enfoque de defender e preservar a segurança
dos que o constituem. Avançando para o Estado democrático de direito este princípio, especialmente na sea-
6 É importante que o leitor tenha sempre em mente a sinonímia entre sentido (compreensão) e aplicação na visão gadermaria-
na. Uma aplicação do sentido é o item inalizador do processo interpretativo.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ra judicial, recebe espaço ainda maior e efetivo. Um Estado sem insegurança jurídica lerta com o Estado de
natureza, haja vista ser o poder judiciário a ultima ratio das soluções de litígios públicos e privados.
Encontrar segurança dentro de um Estado para que seu povo possa prosseguir os atos da vida civil
e proissional é o caminho da civilidade. Por isto, acerta J. J. Calmon de Passos quando profere: “civilizar-se
é colocar imune ao arbítrio e isto só é possível quando deixamos de nos submeter ao governo dos homens e
passamos a obedecer a um conjunto de regras” (1999). Nota-se o fator objetivo almejado pelo autor, isto é, a
vinculação do dever ao direito previamente determinado.
Para ins desta pesquisa, trabalharemos essencialmente com a divisão estabelecida por Tércio Ferraz
Jr, dividida em duas formas, sendo a função-certeza “a determinação permanente de efeitos que o ordena-
mento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a
consequência de suas próprias ações”, e função-igualdade seria “um atributo da segurança que diz respeito
não ao seu conteúdo, mas ao destinatário das normas” (1981).
Um dos requisitos trazidos por Canotilho é o da exigência da clareza das leis, “pois de uma lei obs-
cura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de
alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto” (1993). Esta é uma visão primária de um consti-
tucionalista. Müller adota a metódica como via racional e passível de maior veriicação objetiva da decisão.
Como já exposto em capítulos anteriores, a JH não acredita ser possível a total previsão normativa (da
mesma forma que pensou Gadamer e Heidegger). Isso seria contrastante com a estrutura do seu pensamen-
to. Todavia, como alertou João Maurício Adeodato e o próprio Müller, na contemporaneidade não é mais ca-
bível a pergunta maniqueísta, respaldada em uma mera airmação ou negação da previsibilidade. Atualmente
discute-se o grau de racionalidade, assim como o grau de previsibilidade normativa.
O tracejo da aplicação7 normativa é desenvolvido pela metódica, motivada a “direcionar o seu agir
para caminhos previsíveis” (Krell, 2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004; STRAUCH, 2001). Dessa forma,
o intérprete deve revelar o máximo possível seu processo interpretativo, demonstrando as etapas metodoló-
gicas que seguiu. Esse processo interpretativo, para ser válido, deverá demonstrar a vinculação da produção
substancial decisória com a norma.
Esses argumentos demonstram que a interpretação não pode ser inteiramente racionalizada, visto
que sempre haverá fatores irracionalizáveis. Porém, como já mencionado, importa saber o grau de racionali-
dade possível a ser aplicável na metódica.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Müller identiica também que a metódica não é capaz de alcançar uma racionalidade universal e ab-
soluta, mas, assim como os cânones da interpretação, sua limitação não deve signiicar uma postura radical
de exclusão, mas, de adotá-lo conhecendo os limites do seu alcance e sua relatividade, pois, segundo o autor,
“as iguras de método são indispensáveis como momento da aplicação do direito, que estabilizam, racionali-
zam e facilitam a veriicabilidade” (Müller, 2011).
Dessa forma, todos os meios adotados pelo direito, tanto na linguagem quanto nos elementos mate-
riais, este acúmulo, quando utilizado para marcar as etapas em que o intérprete percorre seu raciocínio, é
indispensável, pois o grau de racionalidade e veriicabilidade tenderá a ser maior.
CONCLUSÃO
Conclui-se dessa pesquisa que a segurança jurídica pode ser saciada menos em termos herméticos que
em graus nivelares. O estudo das estruturas fora imprescindível para o estabelecimento do que se pretende
aprofundar. Apesar da concretização hermenêutica lidar com a práxis jurídica, evitando confundir termos
jurídicos com conceitos ilosóicos, a proposta de Müller está encalcada em uma seara ilosóica por demais
complexa. Como nosso propósito fora questionar, existiu a necessidade de conhecer e expor as características
estruturais da JH.
Dessa forma, pode-se defender que sim, existe segurança jurídica neste contexto hermenêutica. En-
tretanto, esta garantia não ocorrerá de maneira automatizada, mas com demasiado esforço do intérprete e
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31
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
Com essa ampla possibilidade de comunicações, a internet permite que cada um lance suas opiniões,
expresse suas opções artísticas, obtenha informações de seu interesse e crie algo. Justamente nessa última
possibilidade, a de criar algo que esteja aim, é que podem residir problemas com limitações impostas pelo
próprio sistema. Na verdade, a liberdade de expressão proporcionada pelas práticas cibernéticas recebe di-
versos tipos de supressão, seja pelos direitos civis (danos morais e à imagem, por exemplo), pelos direitos
penais (a exemplo dos crimes contra a honra), pelos fundamentais previstos na constituição (como a privaci-
dade) e outros. O problema que envolve o exercício da criatividade em ambiente virtual reside nas questões
de propriedade intelectual e adequação dos modelos legais de direitos autorais para tempos de cultura de
compartilhamento, de convergência, de participação etc.
Este trabalho propõe uma discussão sobre a supressão provocada pelos direitos autorais sobre a liber-
dade de expressão proporcionada pelos mecanismos da internet. A hipótese trabalhada é a de que o modelo
tradicional de direitos autorais não é adequado para novos comportamentos típicos da cibercultura, princi-
palmente aqueles que estão associados a liberdades fundamentais garantidas tanto em plano constitucional,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
quanto em instrumentos de proteção a direitos humanos. O objetivo não é defender uma extinção de direitos
autorais, mas sim uma adaptação destes a novos modelos, a novas culturas. O que é possível, pois já há ins-
trumentos juridicamente permitidos que trabalham com novas tutelas da propriedade intelectual.
Foge das pretensões de um trabalho desta dimensão conceituar objetivamente expressão tão comple-
xa como liberdade, mas é necessário frisar ao menos o caráter ambíguo da dimensão jurídica de liberdade,
pois relete um esquema de liberdades x não-liberdades. Esta palavra vem sendo usada para signiicar a va-
loração dada a ações, políticas, culturas ou instituições, considerando-as de importância fundamental, ainda
que seja um ato de obediência ao direito positivo, ou a satisfação de interesses econômicos. (BOBBIO, 1986,
p. 708).
Por mais complexo que seja a expressão liberdade (do ponto de vista jurídico) relete sempre um
relacionamento entre condutas e tratamentos legais, uma interação entre pessoas e entre pessoas e institui-
ções. Relete um esquema entre comportamentos permitidos (as liberdades) e os proibidos por lei (as não-li-
berdades) e é justamente este esquema que vai caracterizar a sociedade “livre” e a relação que existe entre
liberdade e estado democrático.
Se por um lado as liberdades estão previstas tanto no rol de direitos fundamentais previstos em cons-
tituições federais e nas declarações internacionais de direitos humanos, elas vão encontrar limites em outros
direitos ou outros valores também previstos no direito. É nessa “equação” que encontram-se as dimensões da
liberdade, ou em outros termos, é nesse balanço que serão encontrados as reais possibilidades de comporta-
mentos livres.
Sem entrar na discussão de perspectivas otimistas ou pessimistas, vale ressaltar que dentre os inú-
meros problemas que envolvem as liberdades, dentre elas há as que sofrem consideráveis impactos da con-
temporânea cibercultura e que requer enfrentamentos especíicos para melhor tutela, qual seja, a liberdade
de comunicação e expressão. Dentro do esquema anteriormente mencionado da relação entre liberdades e
não-liberdades, é necessário analisar quais são os comportamentos de comunicação e expressão atualmente
permitidos e quais não o são. Incluindo na análise a questão de identiicar se as não-permissões são compa-
tíveis com as exigências sociais de tempos de sociedade de informação.
Apesar de ser historicamente mais conhecida e de fazer parte, inclusive, do senso comum sobre o
assunto das liberdades individuais, a liberdade de expressão não é a única liberdade associada à livre mani-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
festação do pensamento. O desenvolvimento histórico dos comportamentos sociais e das revoluções tecnoló-
gicas fez serem identiicadas outras liberdades, daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de
informação, além da liberdade de criação. Falar em liberdade de expressão representa o direito que todos têm
de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente
da liberdade de comunicação, pois esta concede o direito de comunicar e ser comunicado, além de divulgar
e receber informações. A liberdade de informação então é uma decorrência da liberdade de comunicação,
porém com ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado. (FARIAS,
2007, p. 172).
Quanto à liberdade de informação, a própria declaração universal dos direitos humanos, em seu ar-
tigo 19, já prevê a liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está
em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que
está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam
as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral. (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez infor-
mados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder
público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade, além
de produzir cultura. E isto pode não interessar a quem detiver poder.
Assim como qualquer modalidade das liberdades, a de informação está sob diversos perigos, seja por
exercício do poder público ou pelas próprias inter-relações entre particulares. Especiicamente as de expres-
são e informação envolvem interesses econômicos, seja por causa do valor da informação, ou por causa dos
direitos que estão em conexão com as formas de expressão, como a privacidade e os direitos autorais. A ques-
tão então residiria em atingir um grau de equilíbrio entre essas liberdades e os demais interesses envolvidos,
ou supravalorizar uma coisa em detrimento de outra (valorizando a produção cultural ainda que diminuindo
questões de direitos autorais, por exemplo). Esta hipótese representaria uma quebra de igualdade, mas “se
deixamos de lado o dogma da igualdade jurídica das vontades privadas e nos voltamos às realidades, a fre-
qüência das situações de dependência que permitem a quem se encontra em posição de superioridade impor
sua vontade ao inferior ica evidente”. (RIVERO, 2006, p. 205).
Se é da própria natureza das liberdades jurídicas conter contradições, criar dogmas, e se submeter
a interesses e forças do poder público e de setores privados, no atual contexto da sociedade da informação,
com sua intrínseca cibercultura, as liberdades de expressão encontram-se ainda mais repleta de problemas.
Isto porque se o ambiente digital cria diversos mecanismos para se expressar e para exercer as liberdades
de informação, diversas também são as barreiras legais e econômicas que, de forma explícita ou implícita,
tolhem o exercício destas liberdades fundamentais.
A expressão cibercultura representa algo além de formas de conexão entre comportamento humano
e novas tecnologias, pois envolve aspirações pela construção de novos laços sociais, não fundados em cir-
cunstâncias territoriais, ou em instituições e poderes, mas baseados em novos interesses coletivos de com-
partilhamento, cooperação e processos abertos de informação e colaboração. (LÉVY, 1999, p. 132). Não são
as novas tecnologias com suas respectivas máquinas que criam a cibercultura, mas sim os usos humanos
dessas e consequentes comportamentos que assim o fazem. O que o desenvolvimento tecnológico permite é
o surgimento de novas exigências sociais, novas formas de interação entre particulares e entre particulares
com poderes públicos.
Com a rede mundial de computadores interligando pessoas e pessoas, e pessoas a informações, cria-
-se um mecanismo hábil a permitir o surgimento de uma nova concepção de inteligência coletiva e uma nova
relação com a produção de conhecimentos. Atitudes como colaborar, compartilhar, cooperar ganham força
com os mecanismos digitais disponíveis, em detrimento de lógicas privadas e individualistas como a sensa-
ção de ter, possuir, disponibilizar etc. Do ponto de vista ideal, se reconhece que o que melhor o ciberespaço
proporciona é a possibilidade de reunir conhecimentos, criações, idéias de pessoas em diferentes locais e
culturas, porém, esse acesso coletivo ao conhecimento representa mais uma fonte de novos problemas do
que especiicamente de soluções. (LÉVY, 1999, p. 133).
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Se por meio da internet qualquer pessoa, usando de blogs, websites e peris em redes sociais, pode
transmitir informações e conhecimentos, pode se expressar com liberdade e pode interagir com a comunida-
de virtual de forma não proporcionada em outros tempos, esta produção de manifestações nunca esteve tão
vigiada e tão valorada.
Os instrumentos proporcionados pela internet permitem que alguém explore uma declinação artísti-
ca especíica sem que precise de intermediários. Alguém pode criar um blog, ou usar de seu peril em rede
social, para divulgar sua linha de confecções, seus utensílios, as obras de arte que realizou. Pessoas podem
usar também das plataformas virtuais para expressar idéias e opiniões, ainda que não seja considerado al-
guém que represente uma empresa de comunicação. Daí, uma das questões a serem enfrentadas seria a
que envolve limites a essas liberdades potencializadas pela cibercultura, ou, até mesmo se não há uma falsa
sensação de que essas liberdades estejam tão amplas assim.
Da mesma forma que a rede é vista como uma plataforma para expressar, para satisfazer exigências
de informação e para exercer liberdades, ela também cria um novo meio a ser explorado comercialmente por
novas formas de fazer negócios e novos desaios ao desenvolvimento de economias. Na sociedade da informa-
ção, a exploração econômica se baseia também em comercializar bens imateriais e aqueles que representam
os interesses econômicos privados vêem na rede um excelente ambiente para fazer negócios, e sendo assim,
as liberdades trazidas pela cibercultura podem sofrer grandes supressões por políticas de censura e por nor-
mas legais de controle da propriedade intelectual, por exemplo. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).
Situações problemáticas surgidas com a cibercultura exempliicam como a internet pode incomodar
o exercício tradicional de poder e a forma de pensar o direito. Casos como os grandes processos que envolvem
de um lado sites que disponibilizam gratuitamente conteúdo artístico-cultural e de outro, representantes
de grandes corporações (napster, soulseek e o mais recente piratebay), bem como os casos que envolvem
punições políticas àqueles responsáveis pela divulgação não autorizada de informações de utilidade pública
(Wikileaks e Julian Assange, ou Edward Snowden e o “escândalo da espionagem”) servem para mostrar que
o tratamento dado às liberdades proporcionadas pela internet pode não estar tão compatível com os ideais da
cibercultura.
Ao mesmo tempo que a rede mundial de computadores oferece liberdades e satisfaz promessas de
inclusão democrática, ela pode servir também para criar uma falsa sensação de liberdade, uma vez que é
possível haver manipulações quanto ao que é disponibilizado na rede, controlando dados, informações ou
qualquer conteúdo a ser acessado. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).
Um dos conlitos que caracteriza esta ambigüidade da internet reside no exemplo que envolve li-
berdade de expressão artística e regras tradicionais de direitos da propriedade intelectual. Os instrumentos
que surgem com o desenvolvimento das tecnologias da informação permitem que cada indivíduo explore
sua criatividade criando conteúdos até então reprimidos por incapacidades técnicas (ausência de recursos,
espaços, repressão de mercado etc.), porém tais criações se submeterão às normas jurídicas de tutela da
propriedade intelectual, que podem não terem se adequado à cibercultura e terminar tolhendo a liberdade
fundamental de participar de forma criativa da produção cultural. São pontos a serem examinados.
A proteção legal dada às criações do espírito criativo humano requereu um tratamento especíico,
mediante disciplina apropriada à tutela jurídica da propriedade imaterial, pois ser proprietário de uma gar-
rafa não é a mesma coisa de ser o responsável pelo desenho dela ou pela marca do produto que está sendo
consumido por meio dela. Assim, os direitos autorais surgem como essa disciplina cujo objeto é as criações e
as manifestações do intelecto.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
preira usar a expressão propriedade intelectual como micro-sistema ao qual os direitos autorais estão liga-
dos, e aqueles que vêem diferenças entre as expressões, preferindo não necessariamente vinculá-las. Seja
por uma idéia ou por outra (usando ou não usando a expressão “propriedade”), é interessante frisar que a
proteção oferecida pelos direitos autorais alcança não somente o aspecto patrimonial do produto cultural,
respondendo questões sobre quem dispõe da obra, pra qual uso, se pode copiar e compartilhar etc., como
também alcança aspectos da relação entre criador e obra mais ligados aos direitos da personalidade, como ser
apresentado ou identiicado como autor.
No entanto, apesar do objeto dos direitos autorais alcançar direitos da personalidade do autor, sua
origem e desenvolvimento prático possuem natureza bastante patrimonialística. A partir do século XVII o
intelectual, bem como o artista, trabalha de forma autônoma, independente de patrões da nobreza ou do cle-
ro, fazendo com que sua luta pela sobrevivência represente uma concorrência intelectual, uma competição
entre criações e criadores. (FRAGOSO, 2012, p. 130). O problema não está na inserção das lógicas capital e
patrimonial na proteção ao conteúdo autoral, mas sim reside no de identiicar a quem isto realmente benei-
cia, se ao autor propriamente dito ou se ao intermediário, aquele cria o elo entre criador e público. Há regis-
tros históricos demonstrando que desde o início da comercialização dos livros, existiam prejuízos ao escritor
porque os negócios envolvendo livros traziam vantagens aos editores, recebendo incentivos reais diferentes e
mais vantajosos do que a remuneração dada aos escritores. (FRAGOSO, 2012, p. 135).
Como o desenvolvimento histórico dos direitos autorais não é objeto de estudo deste trabalho, a
questão a ser enfrentada é a de analisar se os direitos autorais estão atingindo seus objetivos de proteger os
criadores e incentivar a criatividade, ou se eles representam uma espécie de barreira legal para o surgimento
de novas obras e novos exercícios do direito à criatividade.
Em qualquer análise introdutória sobre os objetivos dos direitos autorais, a proteção à criatividade
está sempre inserida dentre eles. A tutela da criação é o que justiica a própria existência do Direito de au-
tor, uma vez que, não sendo identiicada qualquer carga de contribuição criativa na obra, ela não merecerá
a tutela deste direito, icando o autor sem garantias jurídicas da compensação por esta contribuição dada à
sociedade. (ASCENSÃO, 1997, p. 3).
A contradição é identiicada justamente sobre esta “compensação”, pois originalmente ela surge por
meio de garantias de exclusividade de usos, por meio de instrumentos que impedem a abundância do pro-
duto e que oferecem acesso a estes produtos artístico-culturais mediante pagamento hábil. Em tese a socie-
dade aceita a contribuição dada pelo criador garantindo-lhe uma compensação pecuniária, que para ocorrer
deverá provocar justiicados impactos negativos na luidez do acesso à cultura. (ASCENSÃO, 1997, p. 4). Ou
seja, faz parte da concepção original de direitos autorais a sua capacidade de tolher liberdades fundamentais
(acesso à informação, acesso à cultura, liberdade de expressão etc.), em nome da satisfação inanceira do
responsável pela obra, ainda que este responsável não seja o próprio criador.
Com base nessa última observação indaga-se sobre a necessidade de intermediários e intermediações
em tempos de cultura de compartilhamento na sociedade de informação. A dúvida surgida é a de saber se as
concepções tradicionais dos direitos autorais estão em compatibilidade com novas exigências sociais provoca-
das pela cibercultura ou se elas tolhem a criatividade, que estaria na essência da produção de conteúdo em
ambiente virtual. O que passa a ser examinado.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Até então foi examinada a questão da liberdade de expressão, da liberdade de expressão na internet
e de como os direitos autorais podem representar barreiras ao exercício dessas liberdades. O fato do sistema
tradicional de proteção legal a conteúdo autoral criar limites às liberdades de expressão surge de seu cunho
patrimonial, do fato deste sistema poder ser usado para satisfazer interesses patrimoniais. O copyright, ex-
pressão que representa o sistema norte-americano de tutela legal das criações autorais, deu cabimento a
distorções em sua própria aplicação, já que tem como proposta uma clausura de possibilidades de uso de con-
teúdo cultural. Este modelo de direitos autorais surge como forma representativa de pretensões hegemônicas
de uma classe dominante, resultando não exatamente de uma conquista de criadores, mas da uniformização
dos esforços de livreiros e editores para conter a reprodução descontrolada de obras de arte, e assim preservar
seus interesses econômicos. (FRAGOSO, 2012, p. 156). Então, apesar do conteúdo pessoal, está na essência
do direito de autor, sua natureza econômica.
A conotação econômica dada aos direitos autorais, com seu esquema de autorizações, usos exclusivos
e direitos reservados, interessa a uma determinada classe que, de início detinha os meios necessários para
expressar as manifestações criativas. Os direitos reservados de uso de bens culturais se concentrados indevi-
damente permitem a criação de uma espécie de oligopólio cultural, pois seriam as empresas de transmissão
e distribuição desse conteúdo que ditariam as regras do mercado de culturas, cabendo ao sistema legal não
permitir que qualquer pessoa crie algo próximo, ou derivado do que já está sob “proteção”. Este raciocínio se
enfraquece quando os donos dos veículos de intermédio (editoras, gravadoras dentre outros) enfrentam os
novos meios de divulgação e expressão, como a internet, e novos comportamentos sociais típicos da cibercul-
tura, como o dilúvio de informações e o compartilhamento de dados digitais.
Apesar de sua origem remeter a esquemas de espionagem militar, a internet surge para a sociedade
civil como um instrumento que promete uma quase irrestrita liberdade de acesso à informação e um poten-
cial até então inatingível de participação democrática, seja em discussões políticas, seja em produção artísti-
co-cultural. Numa determinada perspectiva o ciberespaço promete realizar ideais da modernidade, pois nele
a igualdade se manifesta pela possibilidade de cada pessoa, independente de suas características, expressar
informações, a liberdade surge por meio das possibilidades de acesso, navegação e comunicação, e a fraterni-
dade vem como conseqüência das conexões promovidas em ambiente virtual. (LÉVY, 1999, p. 254). É possí-
vel que estas promessas iquem apenas em planos abstratos e não se materializem, até porque para isso seria
necessário que cada cidadão do mundo possuísse meios para acessar a rede, o que não ocorre por causa de
inúmeros problemas envolvendo a inclusão digital. Porém, os impactos da cibercultura nas liberdades de ex-
pressão e criação, bem como na forma de pensar os direitos autorais são bastante manifestos e signiicativos.
Se antes os donos dos meios necessários para se expressar possuíam mecanismos para criar uma
espécie de oligopólio da comunicação, hoje com a internet é consideravelmente mais fácil driblar as grandes
corporações e poder se expressar. Com um simples vídeo posto em um blog individual, um criador pode exibir
sua produção, seja ela um curta, um clipe ou uma animação. Uma banda pode oferecer gratuitamente em
seu website suas composições até então não registradas por uma grande empresa para poderem assim divul-
gar sua arte. Simples exemplos que demonstram que a internet potencializa as possibilidades de se expressar.
Não é apenas nos meios de comunicação que a cibercultura provoca impactos, mas também na
própria forma de comercializar, de disponibilizar e apresentar uma modalidade de expressão artística. Tradi-
cionalmente se entende que uma obra protegida por direitos autorais é aquela “que constitui exteriorização
de uma determinada expressão intelectual, inserida no mundo fático em forma ideada e materializada pelo
autor”. (BITTAR, 2004, p. 23). E que esta obra tutelável pelo direito requer esforço intelectual de seu autor
que produz um bem a ser inserido materialmente na realidade fática. (BITTAR, 2004, p. 23). Porém, como
antes já analisado, esta interpretação tradicional do objeto dos direitos autorais se torna no mínimo proble-
mática na contemporaneidade imersa na cibercultura.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Um dos motivos dessa incompatibilidade seria a própria inexistência de suporte fático para airmar
que a obra deve estar materializada em algo. Isto porque o ambiente digital não requer materialização da
arte para considerá-la como legítima manifestação do espírito criativo. Outro motivo seria o de que o modelo
tradicional de tutela da produção artístico-cultural exigia um intermediário (o que fornecia o intermédio), e
com a internet esta intermediação não é mais necessária, devolvendo ao artista (o criador propriamente dito)
o controle sobre sua obra, caso assim o opte. Diversas características da cibercultura, (participação, coletivi-
dade, conectividade, virtualidade e outras) provocam um declínio do modelo de negócio baseado no esquema
autor e intermediário. (LÉVY, 1999, p. 139).
A internet e a cibercultura demonstram então não apenas um potencial para dinamizar o exercício
de liberdades fundamentais, como também potencial para mexer na produção econômica, na forma como
negócios são feitos, talvez principalmente naqueles negócios cujo objeto seja informação ou arte. A criati-
vidade volta a ser incentivada pelas práticas da cibercultura, tornando-se um grande negócio seja com ins
lucrativos, seja apenas para participar da produção de cultura. A cultura do digital “promete um mundo de
criatividade incrivelmente diversa que pode ser fácil e amplamente compartilhada. E à medida que tal cria-
tividade se aplicar à democracia, será possível que uma vasta parcela de cidadãos utilizem-na para expressar,
criticar e contribuir com a cultura que os rodeia”. (LESSIG, 2005, p. 184). A colaboração propriamente dita,
a participação e cooperação representam hoje objetivos do cidadão, não necessariamente interessado em
obter ganhos patrimoniais com sua contribuição à cultura que o rodeia.
Exemplos como os do Free Software, do Linux, das tecnologias da informação com códigos abertos,
demonstram como há pessoas interessadas em formas de criação coletiva e colaborativa, ainda que isto não
traga benefícios inanceiros. A interatividade promovida pelas tecnologias da informação e exigências sociais
da cibercultura reformulam a relação entre a obra e aquele que tem acesso a ela, permitindo que este seja
também criador em colaboração e exemplos como o do Wikipédia e do Creative Commons demonstram como
há uma demanda social para tal. (SANTOS, 2011, p. 147).
Porém, todas essas promessas de liberdade, criatividade e colaboração vindas da cibercultura en-
frentam uma imensa barreira legal, qual seja, a manutenção das regras tradicionais de proteção aos direitos
autorais. Para que toda essa abertura democrática ao acesso à informação e liberdade de criação ocorra, é ne-
cessário repensar o tratamento jurídico dado ao conteúdo autoral produzido, pois novos modelos de negócio
surgem e assim exigem sua legalidade. Diante dos impactos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico nos
institutos jurídicos duas hipóteses surgem, uma a de que as normas jurídicas não sofrerão mudanças, outra
a de que o sistema jurídico adotará medidas adaptativas, criando novas respostas jurídicas a mudanças de
comportamentos sociais, a exemplo da possível subversão ao modelo tradicional de propriedade intelectual.
(LEMOS, 2005, p. 66).
Essa subversão não é uma eliminação de proteção legal à criação autoral, é apenas uma nova forma
de tutelar, já que a cibercultura trouxe tantas transformações nas formas de se expressar. O que está em
discussão aqui não é a necessidade de uma proteção legal, pois isso é de comum entendimento, mas sim o
modelo de proteção oferecido pelos mecanismos legais tradicionais que podem, ao invés de incentivar a ex-
pressão criativa, reprimir iniciativas de produção de cultura.
Caso sejam mantidas regras de direitos autorais criadas antes da internet e da cibercultura, a mani-
festação criativa pode ser inibida para satisfazer interesses econômicos de grandes corporações que podem
estar interessadas em preservar o modelo de intermediação paga entre cultura e público interessado. Isto
porque as novas formas de expressão e criação padecerão de ilegalidade, ou clandestinidade (como ocorre
com o download gratuito feito pela rede que pode de imediato ser taxado de “pirata” numa visão bem inicial
dos fatos).
Na hipótese da legislação recair num excesso de regulação, prevendo punições excessivas para pe-
quenas violações de direitos autorais, e se os empreendimentos inovadores passarem a ser constantemente
iscalizados ao ponto de requerem gastos volumosos com pagamentos e autorizações, haverá bem menos
inovações e criatividade do que se houvesse uma alternativa à ilegalidade. (LESSIG, 2005, p. 192). Ou seja,
em tempos de economia criativa, incentivos ao empreendedorismo e valoração da informação, a tutela jurí-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
dica tradicional da propriedade intelectual serviria como uma barreira, impedindo parcela considerável da
sociedade civil de cooperar e criar culturas, icando essas atividades (ou permanecendo) reservadas a quem
tiver meios inanceiros capazes de arcar com as despesas necessárias. Não seria adequado que essa parcela
da sociedade civil, querendo participar de seu próprio patrimônio cultural, ique à margem da legalidade,
ou não receba oportunidade de assim cooperar. A resposta para retirar essa ilegalidade passa por escolhas
entre obedecer estritamente a legislação da forma como ela está, ou modiicar a norma jurídica, e quando
os malefícios da manutenção de tradições se sobrepõem a seus próprios benefícios, é caso de considerar a
possibilidade de mudanças. (LESSIG, 2005, p. 201).
Alternativas para mudar a lógica da tutela jurídica da produção autoral já existem. Uma delas são as
licenças Creative Commons. As licenças oferecidas por esta organização procuram atender os diversos inte-
resses e opções da classe de artistas, criadores e produtores em geral, permitindo que o autor interessado
receba a oportunidade de escolher dentre opções de licenças disponíveis. (LEMOS, 2005, p. 85). Com isto,
o Creative Commons criam uma alternativa ao modelo tradicional, satisfazendo exigências da cibercultura de
liberdade de escolhas e democratização das atividades criativas, representando por outro lado uma mudança
que parte não dos representantes do poder estatal, mas sim da sociedade civil. (LEMOS, 2005, p.83).
Havendo alternativas, ainda que criadas extraoicialmente por instituições e vontades privadas, cabe
preservar as liberdades de expressão e criação, ainda que em detrimento das regras tradicionais de prote-
ção aos direitos autorais. Isto porque a manutenção destes pode interessar a grupos de pressão especíicos
(possivelmente não interessados em novos modelos de negócio que venham a prejudicar suas pretensões
econômicas), e ainda porque tais liberdades compõem uma espécie de ideário comum aos praticantes da
cibercultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do trabalho foi o de analisar se as liberdades de expressão sofrem alguma alteração com a
cibercultura e o desenvolvimento de tecnologias da informação que permitem acesso constante à internet,
que por sua vez promete liberdades. Teve como objetivo também o de analisar a forma como os direitos auto-
rais podem se relacionar com o exercício das liberdades para ou tolhe-lo ou garanti-lo, a depender da forma
como é vista e interpretada a tutela jurídica da propriedade intelectual.
No que diz respeito à liberdade de expressão, essa designação já não é mais suiciente para resumir
todo um complexo de liberdades relacionadas com formas de manifestação. Liberdades de comunicação,
de acesso à informação e cultura, e liberdade de criação também são objeto de tutela jurídica diferenciada,
como o são as garantias constitucionais e os direitos previstos em instrumentos de direitos humanos. Apesar
da complexidade, interessou ao trabalho criar uma linha de raciocínio pela qual a liberdade de exercer cria-
tividade faz parte deste rol de liberdades garantidas de forma fundamental. Esta liberdade de criatividade é
potencializada pelas práticas da cibercultura, pois a internet e respectivas tecnologias proporcionam e poten-
cializam formas de participação, criação e quaisquer manifestações do espírito em seus ambientes virtuais.
Assim, é da natureza da internet criar um ambiente livre de barreiras, ou melhor, um ambiente cuja
regulamentação exista, mas de forma compatível com contemporâneas exigências sociais. A vontade de exer-
cer liberdades existe, instrumentos capazes de fazê-las ocorrerem também e um sentimento de regulação
ainda que mínima também. O problema reside quando esta regulação ultrapassa limites da ideologia por trás
da cibercultura, ao ponto de provocar supressões às liberdades legalmente garantidas. Uma destas formas de
suprimir liberdades, especiicamente a de expressar criatividade, está na aplicabilidade dos direitos autorais.
Direitos que surgem como garantias aos criadores, mas que podem servir para satisfazer interesses econômi-
cos de empresas que intermedeiam a relação entre criação e público interessado. Porém, com a internet este
caminho pode ser disponibilizado pelo próprio autor da obra, recaindo sobre ele, o próprio criador do bem
cultural o controle dos usos de sua produção.
O problema está na possível ilegalidade da subversão à tradição da tutela legal da propriedade inte-
lectual, mas que pode ser driblada mediante alternativas, sejam elas estatais, como possíveis reformas da le-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
gislação autoral, ou não-estatais, como iniciativas da sociedade civil (free software, Linux, Creative Commons
dentre outras), que demonstram como alterações podem ocorrer com o objetivo de preservar liberdades e
satisfazer aspirações contemporâneas intrínsecas à sociedade da informação. Enim, há meios de garantir
as liberdades de expressão em tempos de internet, sem que isto represente descontrole absoluto do espaço
virtual, sem que isto represente ausência de direitos autorais, mas sim com alternativas legais e boa vontade
política.
REFERÊNCIAS
FARIAS, Edilsom Pereira de. Estatuto teórico da liberdade de expressão e comunicação. In: LOIS,
Cecília Caballeros e BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto (coordenanores). A constituição como espelho da
realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo:
LTr, 2007. Páginas 156 a 180.
FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológi-
cos. São Paulo: QuartierLatin, 2012.
KRETSCHMANN, Angela. O papel da dignidade humana em meio aos desaios do acesso aberto e
do acesso universal perante o direito autoral. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito
de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 76 a 103.
LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e
controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005.
SANTOS, Manoel Pereira dos. Direito de autor e liberdade de expressão. In: SANTOS, Manoel Pereira
dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 129 a
158.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
A licitação é o meio utilizado pela Administração Pública para se alcançar a proposta mais vantajosa e
consequentemente, a formação do contrato administrativo. Assim, pode-se airmar que a licitação é medida
que se impõe a Administração em decorrência do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988 e,
antecede os contratos administrativos.
Entretanto, as normas infraconstitucionais que regem o procedimento licitatório parecem não suprir
as demandas atuais. Essa deiciência icou evidenciada quando o Brasil foi escolhido para sediar os eventos
esportivos que ocorreriam entre 2013 a 2016 e não conseguiu viabilizar as obras vinculadas a tais eventos
com as normas até então vigentes, provocando a discussão sobre a urgente necessidade de mudanças no
sistema licitatório.
Assim, a necessidade de um regime licitatório mais célere, levou a instituição do Regime Diferencia-
do de Contração (RDC), que é disciplinado pela Lei nº 12.462/11 e, tem como inalidade primordial agilizar
a execução das obras para os jogos da Copa das Confederações 2013, da Copa do Mundo FIFA 2014, das
Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016.
Esse novo regime tinha objeto transitório e limitado aos eventos esportivos sediados no país, sendo
criado para atender situações excepcionais, no entanto, passou a abranger outras situações sem quaisquer
vinculações com as hipóteses originárias. Com isso, percebe-se que há uma grande tendência de expansão
do objeto do RDC, comprovando a relevância e atualidade do tema.
As inovações advindas com essa nova modalidade licitatória provocaram diversas críticas, tanto pela
forma como esse regime foi inserido no ordenamento jurídico, como pelas inovações decorrentes de seus
institutos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Dentre as inovações que provocaram grandes controvérsias jurídicas pode-se destacar o orçamento
sigiloso, que é objeto de estudo desse trabalho, previsto no artigo 6º da referida lei, que dispõe sobre a pos-
sibilidade da Administração Pública não divulgar o valor estimado do objeto licitado, enquanto se processa a
licitação, tornando-se público apenas ao inal do certame. Por isso, acredita-se que este sigilo afronta o prin-
cípio constitucional da publicidade.
Nesse contexto, insere-se a presente pesquisa que tem como objetivos analisar a compatibilidade do
sigilo do orçamento estimado com a Constituição Federal de 1988 e veriicar a efetividade desse instituto
no âmbito da Infraero. Para isso, a pesquisa não se restringiu ao estudo unicamente da lei, mas analisou o
posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, além do estudo dos editais
de licitações no âmbito da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), bem como análise
das ADI’s nº 4.645/11 e nº 4.655/11 que, atualmente aguardam julgamento do STF. Para tanto o método
utilizado foi o hipotético dedutivo, adotando como hipótese que o sigilo do orçamento estimado afronta o
princípio da publicidade. Tal sigilo é analisado com ênfase no aspecto jurídico e o aspecto econômico, para
possível comprovação da constitucionalidade e efetividade desse instituto, bem como a sua repercussão social
e econômica.
Nessa perspectiva, espera-se chegar a um resultado que comprove a viabilidade e os benefícios para
Administração Pública, auferidos pela ausência de publicação do orçamento estimado durante a licitação.
Com isso, ica evidente a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o tema.
A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 37, inciso XXI, estabeleceu que as contratações públicas
devam ser precedidas de procedimento licitatório, ressalvados os casos previstos em lei. A partir dessa impo-
sição, a licitação passou a ser uma exigência constitucional, de observância obrigatória pela Administração
Pública e por outras pessoas indicadas pela lei (OLIVEIRA, 2015, p.25).
Para regulamentar esse dispositivo constitucional foi editada a Lei nº 8.666/93, denominada de Lei
Geral de Licitações e Contratos, que estabelece em seu artigo 3º que este procedimento destina-se a garantir
a observância dos princípios constitucionais e especíicos para seleção da proposta mais vantajosa para Admi-
nistração Pública, (BRASIL, LEI Nº 8.666, 1993).
Atualmente, outras leis têm regulamentado esse procedimento uma vez que a Lei de Licitações e
Contratos não tem conseguido alcançar e nem solucionar situações especíicas, como aconteceu com as
obras e serviços vinculados aos eventos esportivos sediados no Brasil entre os anos de 2013 a 2016, que foi a
mola propulsora para a criação de uma Lei que atendesse as demandas atuais na seara estatal com celerida-
de e efetividade (HEINEN, 2015, p. 9).
Nesse contexto, surge a Lei nº 12.462/11 que, de início, teve seu objeto limitado aos eventos espor-
tivos sediados no Brasil, como a Copa das Confederações que ocorreu em 2013, Copa do Mundo em 2014,
bem como os jogos Olímpicos e Paralímpicos que ocorrerão em 2016 (OLIVEIRA, 2015, p. 185).
Trata-se da Lei do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que segundo Oliveira, (OLIVEIRA,
2015, p.185) segue orientada por parâmetros de eiciência, agilidade e economicidade, com a inalidade de
viabilizar os eventos esportivos mencionados. As primeiras tentativas para se inserir o RDC no ordenamento
jurídico, foram por intermédio das Medidas Provisórias nº 488 e nº 489 de 2010, que perderam a eicácia,
em razão da não votação no prazo constitucional. Ainda assim, airmam Motta e Paolucci, (2012, p. 29) que
as ideias principais de tais Medidas Provisórias sobreviveram e reapareceram por meio da Lei nº 12.462/11,
fruto da conversão da Medida Provisória nº 527/11. (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA Nº 527, 2011).
Foi durante a tramitação de tal Medida Provisória, que o deputado federal José Guimarães (PT/CE)
apresentou em plenário uma emenda com conteúdo diverso do discutido na Medida Provisória. A princípio,
o tema abordado referia-se unicamente, a alteração da estrutura do Poder Executivo Federal, para criação
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da Secretaria de Aviação Civil, bem como conferia autorização para contratação temporária de controlado-
res de tráfego aéreo, enquanto que a proposta de emenda apresentada pelo deputado tratava da inclusão
dos dispositivos que instituíam o RDC. Dessa forma, a Medida foi discutida, aprovada pelas casas do Poder
Legislativo, sancionada pela Presidenta da República e consequentemente, convertida na Lei nº 12.462/11
(ALTOUNIAN, 2014, p.39).
Como mencionado, a inserção da Lei nº 12.462/11 no ordenamento jurídico pátrio veio acompanha-
do de muitas inovações que provocou intensos questionamentos sobre a inconstitucionalidade da Lei e de al-
guns institutos que ela disciplina. Tudo isso, levou ao ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstituciona-
lidade (ADI). A primeira foi a ADI nº 4.645 proposta por partidos políticos que argumentaram a extrapolação
do poder de emendar, bem como a violação ao princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p.18). A segunda
foi a ADI nº 4.655 ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), à época, Roberto Monteiro Gurgel
Santos que, também apontou inconstitucionalidades formais e materiais da Lei nº 12.462/11, referente a não
observância ao devido processo legislativo, bem como a inconstitucionalidade de alguns dispositivos (HEI-
NEN, 2015, p.12).
Entre as inovações apontadas com vícios de inconstitucionalidade, tem-se o orçamento sigiloso que
foi objeto de questionamento da ADI nº 4645/11 ajuizada por partidos políticos, sob o argumento de que nes-
se instituto há uma inversão de regras constitucionais, em que se atribui ao orçamento estimado um caráter
sigiloso, enquanto que, no ordenamento jurídico o sigilo é a exceção e não a regra, violando o princípio da
publicidade, inclusive o da moralidade. Nesse aspecto é importante analisar como o RDC trata o princípio da
publicidade (HEINEN, 2015, p. 38).
A partir deste item, será analisado o tratamento que o RDC confere ao princípio da publicidade uma
vez que tal princípio atribuiu eicácia aos atos administrativos. Assim, percebe-se que o RDC expressamente
invocou esse princípio, conforme redação do artigo 3º da Lei nº 12.462/11:
Desse modo, observa-se que o legislador, ao instituir o RDC, determinou que os procedimentos que
integram esse Regime estão condicionados a observância do princípio da publicidade. Esse princípio também
é reforçado, pelo o caput do artigo 15, da Lei do RDC, que impõe aos órgãos da Administração o dever de dar
ampla publicidade aos procedimentos licitatórios, ressalvado os casos determinados em lei. Também o § 1º do
artigo 15, da citada lei, assegura que a publicidade pode ocorrer de forma direta aos fornecedores cadastrados
ou não cadastrados, sem prejuízo das formas estabelecidas no artigo 15, §1º, incisos I e II, que determina
que a publicação deverá ocorrer por meio do Diário Oicial e internet, de forma cumulativa (BRASIL, LEI
Nº 12.462, 2011).
Como se percebe, a dimensão dada a esse princípio pelo RDC não permite que a publicidade se limi-
te apenas à divulgação em mídia impressa, como faz a Lei nº 8.666/93, mas que se estenda também à mídia
eletrônica, a qual tem custo menos elevado. No entanto, veriica-se que esse meio de publicação também tem
algumas limitações que pode restringir o acesso à informação, como por exemplo, quando os interessados es-
tiverem localizados em áreas sem acesso à internet, ou mesmo quando não tiverem habilidades em manusear
tal veículo de informação (ZYMLER, 2013; p.300).
Todavia, Zymler (2013, p. 300) reconhece que a publicação dos atos licitatórios por meio da internet
proporciona ampla vantagem, pois tal mecanismo consiste na possibilidade da publicação se dar de forma
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
contínua, o que não ocorre com a mídia impressa, em que a publicidade tem efeito instantâneo, ou seja, per-
dura até a retirada de circulação da informação. Outra vantagem desse veículo apresentada pelo autor, diz
respeito ao alcance desse meio de comunicação, pois quando se usa os meios de mídias eletrônicas, há um
alargamento da publicidade, uma vez que tal divulgação alcança todos os interessados pelo certame, além
de abranger todos os atos da licitação, independentemente, do valor do objeto e da localização do licitador
(ZYMLER, 2013; p. 300).
Com isso, é possível veriicar que, a publicação em jornal de grande circulação tornou-se uma fa-
culdade no RDC, sendo exigido apenas a publicação no Diário Oicial e internet. Segundo entendimento da
doutrina, quando a licitação for de grande vulto ou com objeto complexo deve-se proceder a publicação em
jornais de grande circulação, haja vista o acesso à informação corresponder a um direito que não pode ser
mitigado indevidamente (BARIAN JUNIOR, 014, p.121).
Em que pese toda essa discussão, vale salientar que para se concretizar o direito fundamental de
acesso à informação devem-se utilizar todos os meios disponíveis e, existindo pluralidade de formas de divul-
gações capazes de efetivar o princípio da publicidade, deve-se privilegiar a que melhor concretize o princípio
da publicidade (BARIAN JÚNIOR, 2014, p.121). No entanto, é preciso não confundir a publicidade com a
publicação, pois segundo Amaral (2010, p.7), a publicação por si só não assegura a publicidade, pois quando
aquela é realizada de forma deiciente, este é violado. Assim, resta evidente que existem atos que mesmo
sendo publicado, não efetivam o princípio da publicidade.
Assim, diante da importância atribuída ao princípio da publicidade percebe-se que o RDC, em nome
do interesse público, adotou o sigilo do orçamento estimado como regra fundamental para se chegar a pro-
posta mais vantajosa, conforme se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.462/11. Tal inovação tem provocado
intensas controvérsias que remetem ao seguinte questionamento: sendo a publicidade princípio tão relevan-
te, pode ser mitigado pelo sigilo do orçamento estimado do RDC, em nome da proposta mais vantajosa? Essa
temática será analisada com maiores detalhes no tópico a seguir.
O sigilo do orçamento estimado previsto no artigo 6º da Lei nº 12.462/11 é, atualmente, um dos pon-
tos mais discutidos do RDC, por estabelecer que esse orçamento apenas seja publicado ao inal da licitação,
sendo interpretado por muitos como uma afronta ao princípio da publicidade. Por isso, para melhor compre-
ensão do tema faz-se necessário entender inicialmente o que é orçamento estimado.
A deinição de orçamento estimado, proposta por Altounian e Cavalcante (2014, p. 97), consiste na
forma de avaliação do custo da obra ou serviço que se deseja contratar, tomando-se por base os índices que
apontem o custo médio do empreendimento de forma rápida. No entanto, vale salientar que esse tipo de or-
çamento é menos detalhado, em razão da ausência de projeto básico, pois esse orçamento é elaborado ainda
na fase preliminar da licitação (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 97).
Diante da visível inluência que esse orçamento exerce sobre a licitação, o legislador instituiu o sigilo
do orçamento como condição para se chegar à proposta mais vantajosa, incorporando uma prática comum e
já vivenciada nas relações de negócios entre particulares. Com isso, acredita-se que omitindo o valor máxi-
mo que a Administração pública se propõe a pagar, pode-se chegar à melhor proposta. Isso não signiica que
a Administração não elaborará o orçamento estimado, mas que será publicado apenas ao inal da licitação.
(CHARLES; MARRY, 2014, p. 62). Nesses termos, destaca-se que tal sigilo não alcançará os órgãos de con-
trole externo e interno, uma vez que estes terão livres acesso a todas às informações do certame.
Dessa forma, é possível perceber que esse sigilo não é absoluto, nem uma imposição da Lei, mas é
uma opção para o gestor público, que após analisar a esfera de conveniência e oportunidade decidirá se o si-
gilo se adequa ao critério de julgamento escolhido ou as especiicidade do objeto licitado (CHARLES; MARRY,
2014, p. 68-70).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, veriica-se que a própria Lei do RDC relativiza o sigilo do orçamento estimado quan-
do determina que os critérios de julgamento maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artísticos são in-
compatíveis com a natureza do sigilo do orçamento e, portanto, quando a Administração adotar tais critérios
o sigilo não poderá ser adotado por expressa vedação legal e lógica, (CHARLES; MARRY, 2014, p. 71).
O tribunal de Contas da União também entendeu no Acórdão nº 3.011/2012 que esse sigilo não é
absoluto e, portanto, não tem natureza obrigatória. Esse Acórdão tratou de vários assuntos referentes às
licitações com RDC, envolvendo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) que teve
como Relator o Ministro Valmir Campelo que na ocasião entendeu que o sigilo do orçamento estimado não
tem natureza obrigatória, conforme voto que retrata com clareza, a questão:
Entre as intensas discussões e controvérsias que envolvem o sigilo do orçamento, tem-se questiona-
do quais motivos inluenciaram o legislador a instituir o sigilo do orçamento estimado no RDC, visto que no
ordenamento jurídico predomina a publicidade dos atos. A resposta a essa indagação pode ser encontrada
no parecer do Relator do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, decorrente da Medida Provisória nº
527/2011, que apresentou como justiicativa para adoção do sigilo, a necessidade de impedir a formação de
cartéis entre os licitantes, como se extrai do trecho do Parecer do Senado:
Como se percebe, o sigilo tem como inalidade inibir a prática de carteis, além de ser uma recomen-
dação da Organização e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que estabeleceram diretrizes, visando comba-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ter a formação de conluio nas licitações. Para isso, recomendou como garantia da lisura desse sigilo, manter
guardada uma via do orçamento estimado em envelope lacrado, sob a responsabilidade de uma autoridade
pública sem vínculo com o órgão responsável pelo certame (REZENDE, 2015, p. 41). Dessa forma, acredi-
ta-se que não haverá vazamento de informações, inclusive, impedirá a alteração do valor estimado após o
início da licitação.
Nesse aspecto, Heinen (2015, p. 37) entende que, a adoção do sigilo do orçamento nas licitações
aumenta a possibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes serem mais condizentes com suas realidades,
representando a verdadeira situação econômica da empresa, além de exigirem dos participantes maiores
cuidado na hora de elaborarem suas propostas.
Em sentido contrário encontram-se aqueles que declaram que o sigilo do orçamento não será ca-
paz de inibir a formação de conluio e cartéis, devido aos seguintes obstáculos: a) A administração elabora o
orçamento estimado com base nos preços de mercados, que são acessíveis a todos, inclusive, das empresas
participantes dos certames; b) A disponibilidade das informações aos órgãos de controle interno ou externo
produz um risco de vazamento de informações por integrantes dos órgãos (CAMMAROSANO; DALPOZZO;
VALIM, 2014, p. 53); c) O sigilo pode aumentar a possibilidade da licitação converte-se em deserta, diante
da ausência de informações relevantes que auxilie a elaboração da proposta pelo licitante, desestimulando a
competição na licitação (ALTONIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 120).
Extrai-se ainda da redação desse Acórdão que, a auditoria realizada pelo TCU ocorreu na fase inter-
na da licitação, possibilitando o saneamento das irregularidades e promovendo resultados economicamente
elevados. Isso também comprava a disponibilidade de informações aos órgãos de controle, efetivando o que
determina o artigo 6º da Lei do RDC, o qual prevê que as informações relativas às licitações serão disponibi-
lizadas aos órgãos de controle de forma ampla.
A licitação citada por esse Acordão tinha como valor estimado pela Infraero, R$ 257.149.317,80
(duzentos e cinquenta e sete milhões, cento e quarenta e nove mil, trezentos e dezessete reais e oitenta
centavos), no entanto, foi homologada por R$ 199.044.986,52, (cento e noventa e nove milhões, quarenta e
quatro mil, novecentos e oitenta e seis reais e cinquenta e dois centavos), indicando que em termos de eco-
nomicidade o sigilo do orçamento tem apresentado resultados efetivo. (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE
LICITAÇÕES, 2015).
Nesse contexto destaca-se o aspecto econômico do RDC, analisado nessa pesquisa por meio de visita
realizada ao site da Empresa Infraero no dia 18 de maio de 2015, a qual constatou que foram homologados
74 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC, dos quais 69 adotaram o sigilo do orçamento estima-
do. As licitações que adotaram o sigilo do orçamento envolveram um montante de aproximadamente R$
3.175.776.144,35, (três bilhões, cento e setenta e cinco milhões, setecentos e setenta e seis mil, cento e
quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos). Entretanto, o valor total homologado pela Infraero, corres-
ponde a aproximadamente, R$ 2.924.175.738,21 (dois bilhões, novecentos e vinte quatro milhões, cento e
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
setenta e cinco mil, setecentos e trinta e oito reais e vinte um centavo), representando em termos percentu-
ais a diferença de 7,92% (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).
Ressalta-se que, apenas foram contabilizados os valores das licitações homologadas que adotaram o
sigilo do orçamento, considerando os anos compreendidos entre 2011 a 2014 no âmbito da Infraero. Para
melhor sintetizar os resultados analisados nas licitações que adotaram o sigilo do orçamento estimado na
modalidade presencial segue o gráico 1:
As licitações realizadas sob a égide do RDC na modalidade eletrônica também foram objetos de es-
tudos, expostos no gráico 2.
Assim, foi considerado para análise dessa modalidade o período de 2012 a 2014. Percebe-se também
que, a partir do ano de 2014 a Infraero priorizou a modalidade eletrônica, diminuindo gradativamente o uso
das licitações na modalidade presencial, uma vez que no ano de 2014 não houve licitações nessa modalidade
(BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Todo esse panorama retrata no âmbito da Infraero a relevância e efetividade do sigilo do orçamento,
a partir dos resultados economicamente viáveis apresentados na pesquisa. Por im, diante dos dados pesqui-
sados e analisados é possível perceber que em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento estimado
apresentou resultados satisfatórios e relevante efetividade econômica no âmbito da Infraero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Regime Diferenciado de Contratação foi criado, inicialmente, para ser aplicado às obras e servi-
ços relativos aos eventos esportivos, sediados no país entre os anos de 2013 a 2016. Nesse aspecto, o objeto
originário do RDC era transitório e limitado, entretanto, devido aos resultados apresentados, o seu objeto foi
ampliado, alcançando demandas sem nenhum vínculo com o objeto inicial.
Desse modo, as inovações inseridas no ordenamento jurídico com o advento desse regime provoca-
ram intensas discussões e controvérsias, que alcançaram o Supremo Tribunal Federal por meio das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade, nº 4645/11 e nº 4655/11, no entanto, até o presente momento não foram
julgadas.
Entre os diversos dispositivos impugnados pela ADI nº 4645/11 encontra-se o artigo 6º da Lei do
RDC, que disciplina o sigilo do orçamento estimado, estabelecendo que o orçamento da licitação será elabo-
rado, todavia, não será publicado antes do encerramento do certame. A controvérsia referente a esse instituto
reside no fato de que no regime licitatório tradicional, disciplinado pela Lei 8.666/93, a publicação do orça-
mento estimado deve ocorrer juntamente com o edital.
Assim, esse instituto desagradou a muitos, que visualizam no sigilo do orçamento estimado uma
grave violação ao princípio da publicidade. Esse princípio determina que os atos administrativos devam ser
publicizados com transparência, de modo a facilitar o controle tanto pelos órgãos de iscalização como pela
sociedade, favorecendo o Estado Democrático de Direito.
Um dos principais argumentos para adoção do sigilo do orçamento é a de que esse instituto pode ini-
bir as práticas de formações de cartéis, visto que a ausência dessa informação inviabiliza tal conduta, além de
obrigar os participantes a elaborarem propostas mais reais e exequíveis, com a plena efetivação do princípio
da eiciência.
Durante a pesquisa também se percebeu que o sigilo do orçamento não é absoluto, tendo em vista que
algumas situações não se adaptaram ao instituto, como as licitações que adotam os critérios de julgamento:
maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, que devido às peculiaridades desses critérios torna-se
inviável a adoção do sigilo. A outra forma de relativização desse sigilo é a liberdade concedida à Administração
Pública para decidir se adota ou não o sigilo do orçamento estimado.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
REFERÊNCIAS
Legislação
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Livros
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ALTOUNIAN, Cláudio Sarian; CAVALCANTE, Rafael Jardim. RDC e Contratação Integrada na prática:
250 questões fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
BARIANI JUNIOR, Percival José. Da publicidade dos instrumentos das licitações pelo RDC, dos modos e
disputa e dos critérios de julgamento. In: CAMMAROSANO, Márcio; DALPOZZO Augusto Neves; VALIN,
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CAMMAROSANO, Márcio; DAL POZZO, Augusto Neves; VALIM, Rafael. Regime Diferenciado de Con-
tratações Públicas – RDC (Lei 12.462/11; Decreto 7.581/11): Aspectos fundamentais. 3 ed. Belo
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CHARLES, Ronny; MARRY, Michelle. RDC- Regime Diferenciado de Contratações: conforme a Lei
12.980, de maio de 2014. Salvador: Juspodvim, 2014.
HEINEN, Juliano. Regime Diferenciado de Contratações: Lei nº 12.462/2011. Porto Alegre: Livraria
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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos. 16 ed. São
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MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC - Contratações para as copas
e jogos olímpicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
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ZYMLER, Benjamin. Direito Administrativo e Controle. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
Artigos
49
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Acórdãos do TCU
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Sessão27/02/2013. Disponível em: <http://contas.tcu.gov. br/juris/SvlHighLight>. Acesso em: 17/05/2015.
______.______. Acórdão nº 3.011/2012. Plenário. Relator. Ministro Valmir Campelo. Sessão de 08/11/2012.
Disponível em: <http://contas.tcu. gov.br/juris/SvlHighLight>. Acesso em 16/05/2015.
Documentos Oiciais
______. Senado Federal. Projeto de Lei de Conversão nº 17/11. Relator- Revisor: Senador Inácio
Arruda. Brasília, DF, 18/03/2011. Disponível em:< http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.as-
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Direito(s) em debate.
SUMÁRIO: Introdução; 1.A importância dos princípios para o processo civil; 2. O princípio do con-
traditório; 3. Os embargos de declaração e o efeito infringente; 4. O princípio do contraditório nos
embargos de declaração na perspectiva do novo CPC; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
A função primordial do direito é manter a paz social, solucionando conlitos por meio de decisões judi-
ciais. Para isso, tais decisões precisam ser claras e objetivas para serem compreendidas e consequentemente,
executadas. Ocorre que, em determinadas situações as decisões judicias podem apresentar algum vício que
impossibilite a execução da decisão pelo jurisdicionado. Por isso, o legislador instituiu no rol dos recursos os
embargos de declaração, que consiste no instrumento hábil para impugnar decisões com vícios de omissão,
contradição, obscuridade ou erro material, conforme prevê o artigo 1022 do novo CPC.
Assim, em determinadas situações, ao se tentar corrigir esses vícios, a decisão embargada pode ser
modiicada, alterando-se totalmente a decisão inicial. Diante dessa possibilidade discutia-se na doutrina se
haveria a necessidade de aplicação do princípio do contraditório, tendo em vista a Constituição Federal, no
artigo 5º, inciso LV, prevê a obrigatoriedade de observância do contraditório tanto nos processo judiciais como
administrativo, enquanto que o CPC de 1973 não fazia referência a tal necessidade. Essa discussão histórica
se evoluiu em decorrência dessa omissão legislativa, que embora boa parte da doutrina e da jurisprudência
dos Tribunais Superiores ventilasse a necessidade de contrarrazão diante dos efeitos infringentes dos embar-
gos de declaração, outra parte da doutrina acreditava que não haveria a necessidade do contraditório, pois o
conteúdo da decisão já havia sido abordado durante a fase de conhecimento.
O novo Código de Processo Civil acabou com essa discussão, estabelecendo no artigo 1023, §4º que,
quando o acolhimento dos embargados modiicar a decisão embargada, o juiz concederá a oportunidade para
o embargado apresentar contrarrazão no prazo de 5 (cinco) dias, efetivando expressamente o princípio do
contraditório.
Com isso, ica evidente a importância atribuída aos princípios constitucionais, notadamente quando
se refere ao princípio do contraditório que atualmente, encontra-se presente em vários dispositivos do novo
Código de Processo Civil, o qual absorveu a nova leitura dada a esse princípio pela doutrina e jurisprudência.
Tal princípio é atualmente compreendido como um legitimador das decisões judiciais, visto que no atual Es-
tado Democrático de Direito as decisões não só precisam ser analisadas dentro do campo da legalidade, mas
também dentro do campo da legitimidade e, o princípio do contraditório atribui essa legitimidade as decisões
judiciais.
Percebe-se então que ao longo dos anos esse princípio tem ampliado o espaço de participação do cida-
dão nas decisões judiciais, uma vez que ele traz em seu conteúdo a oportunidade de participação, inclusive,
atribui às partes o poder de inluenciar no resultado inal do processo, pois é predominante na doutrina o
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
entendimento de que não existe processo sem o contraditório, permitindo que o cidadão não apenas apre-
sente ao judiciário o objeto para decisão, mas participe inluenciando ativamente no resultado do processo.
Desse modo, ica evidente a relevância e atualidade do tema, visto que o novo CPC por meio dos em-
bargos de declaração concretiza o modelo de processo previsto pela Constituição Federal de 1988, atribuindo
à parte embargada o direito de exercer o contraditório em sua plenitude, para produção de decisões legítimas,
pois como já mencionado, uma das inalidades do princípio do contraditório é atribuir legitimidade às deci-
sões judiciais, para materialização do Estado Democrático de Direito. Com isso, a efetividade do princípio do
contraditório nos embargos de declaração do novo CPC merece ser analisada minuciosamente.
Assim sendo, a pesquisa se iniciará com a análise sobre a importância dos princípios para o processo
civil, especiicamente o princípio do contraditório. Em seguida analisará a efetividade desse princípio nos
embargos de declaração sob a perspectiva do novo CPC, com respaldo da doutrina e jurisprudência referente
à nova processualística desse recurso.
Nesse aspecto, é possível perceber que os princípios atuam como norteadores e inspiradores do le-
gislador, bem como do aplicador do direito, tendo em vista exercerem a função primordial de abreviar o dis-
tanciamento entre a norma e a Justiça, agindo como nexo entre o Texto Constitucional e a realidade social.
Isso não signiica que, eles são imposições de aspectos sociais, morais ou econômicos, mas elementos incor-
porados ao conhecimento jurídico que se transformam em componentes do direito, (AGRA, 2012, p.104).
Desse modo, pode-se airmar que os princípios desenvolvem um papel importante na concretização
dos direitos, indicando as diretrizes a serem seguidas com o intuito de se alcançar um determinado im. A
este propósito são imprescindíveis as lições de Barroso (2009, p.13) que, de forma clara e precisa airma que
os “princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão políti-
ca relevante e, indicam uma determinada direção a seguir”.
Ainda assim, Theodoro (2015, p. 41) alerta para o cuidado de não se aplicar princípios sem relação
normativa, pois para invocação de um princípio não basta apenas à presença de argumentos lógicos, morais
ou pragmáticos, mas também a análise minuciosa do caso concreto.
Por isso, diante das alterações e inovações inseridas no novo CPC, notadamente no sistema recursal,
ica nítida a intenção do legislador em homenagear os princípios de modo a assegurar uma prestação jurisdi-
cional eiciente. Para tanto, o princípio do contraditório foi invocado a partir de uma leitura predominante-
mente constitucional, que impõe não apenas a participação do jurisdicionado, mas também a capacidade de
inluenciar na decisão judicial, com a inalidade de garantir um processo justo.
Diante da nova dimensão conferida ao princípio do contraditório é interessante analisar a nova faceta
assumida por esse princípio que será abordado no tópico a seguir.
2. O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO.
A Constituição Federal de 1988 é o marco regulatório para o Estado Democrático de Direito, que atribuiu ao
princípio do contraditório o status de direito fundamental das partes no processo, inserido no rol de direitos fundamen-
tais, previsto no artigo 5º, inciso LV, que garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
em geral o direito ao contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, concretizando o Estado
Democrático de Direito que assegura a todos um processo pautado na isonomia das partes (FIORATTO; DIAS, p.113).
Nessa perspectiva, pode-se veriicar que o princípio do contraditório que decorre do princípio do devido pro-
cesso legal traz em sua essência o direito da parte ser informada de todos os atos do processo e se manifestar ao ponto
de inluenciar no resultado inal. Isso tem fundamento na democracia participativa, que garante um processo justo, con-
forme airma Didier (2013, p. 56):
Veriica-se que atualmente, esse princípio é elemento primordial e essencial para o resultado do pro-
cesso, integrando o próprio conceito de processo, pois não existe processo onde não haja o contraditório, uma
vez que o processo pode ser conceituado como um conjunto de procedimentos alicerçados em contraditório
(DIDIER, 2013, p.56).
É possível perceber que esse princípio sofreu ao longo dos anos consideráveis alterações, que de for-
ma sistemática a doutrina separou em três fases: i) Fase formal, fundada na necessidade de informar; ii) Fase
material, caracterizada pela oportunidade das partes se manifestarem no processo, iii) Fase constitucional,
que efetivou o direito de inluenciar a decisão inal do processo, (RIBEIRO, 2014, p.20).
Por isso, atualmente o processo deve ser interpretado dentro dos parâmetros democráticos, com a
participação ativa das partes em todas as fases, inclusive na fase recursal, com a efetivação do princípio do
contraditório, que tem como característica predominante o poder de inluenciar no resultado do processo.
Tal qualidade deriva das democracias construídas após a segunda guerra mundial e a observância dessa ca-
racterística eleva o cidadão, reconhecendo-o como sujeito de direito (BODART, 2012, p.2).
Ocorre que, nem sempre o processo foi compreendido com essa amplitude constitucional, visto que
inicialmente, o contraditório era entendido apenas como a oportunidade de as partes tomarem ciência dos
atos praticados no processo, alcançando uma mera formalidade, denominada pela doutrina como bilate-
ralidade da audiência, que consistia no direito de igualdade das partes de receberem informações sobre o
andamento do processo. Entretanto, tal inalidade restou ultrapassada, sendo acrescentada também, a possi-
bilidade das partes inluenciarem na formação do resultado inal, com o objetivo de impedir o surgimento de
decisões surpresas, também conhecidas como decisões de terceira via (THEODORO, 2015, p.69).
Com isso, atualmente, pode-se veriicar que o princípio do contraditório apresenta dois aspectos
importantes: a) o aspecto formal representado pela garantia de participação; b) o aspecto substancial como
a possibilidade das partes inluenciarem na decisão (DIDIER, 2013, p.57). O aspecto formal consiste na
garantia de participação que pode ser interpretada como o direto de simplesmente, dizer e ser ouvido, favo-
recendo a bilateralidade da audiência, com a possibilidade de o juiz utilizar seu livre convencimento e decidir
da forma que melhor entenda, conigurando um contraditório estático, que representa a face limitada e tra-
dicional do princípio do contraditório. Segundo a doutrina atual, a simples oportunidade concedida às partes
para manifestação não efetiva o contraditório, sendo necessária a participação com poder de inluência. Em
relação ao aspecto substancial, observa-se um contraditório dinâmico, que compreende a oportunidade de
se manifestar, além do poder de inluenciar no resultado do processo, impedindo o surgimento da decisão
surpresa. Tal manifestação proporciona um sistema processual constitucional que torna a decisão legítima e
com maior aceitação das partes. (DIDIER, 2013, p. 57)
Desse modo, o princípio do contraditório legitima o provimento jurisdicional, pois no Estado Demo-
crático de Direito não é suiciente apenas analisar a legalidade das decisões jurisdicionais, mas também é
necessário que as decisões sejam legítimas. Com isso, ica evidente que toda atividade exercida pelo Estado
só será legítima quando as decisões estiverem fundamentadas em argumentos discutidos pelas partes, atri-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
buindo às decisões, legitimidade por meio do exercício do contraditório, evitando o aparecimento de decisões
de terceira via, (CÂMARA, 2011, p. 64).
Vale ressaltar, que sendo concedida a parte o direito de exercer o contraditório e vindo a parte a negli-
genciar, sem comparecer para exercer tal direito não haverá afronta a esse princípio, pois o contraditório se
efetiva com a oportunidade de manifestar e inluenciar e não com exercício desse direito. (RIBEIRO, 2014,
p. 19).
Como se percebe, o novo Código de Processo Civil - CPC, por intermédio do princípio do contraditó-
rio nos embargos de declaração, relete o modelo de processo idealizado pela Constituição Federal de 1988,
(BODART, 2012, p.2). E a importância da concretização plena desse princípio é fator imprescindível para
coniguração do Estado Democrático de Direito, por isso, o novo CPC, atribuiu relevante valor para tal prin-
cípio, reairmando em seu artigo 10 a necessidade de observância ao princípio do contraditório, a partir de
uma nova concepção, estabelecendo que não será possível decidir, em grau algum de jurisdição, com base
em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se
trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
A importância atribuída ao princípio do contraditório pelo novo CPC atingiu o sistema recursal, preci-
samente no artigo l023, §2º, determinando que: “O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se,
no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a modiicação
da decisão embargada. (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015).
É nítida a relevância desse princípio para o processo, no entanto, cumpre ressaltar que no Estado De-
mocrático de Direito, faz-se necessário efetivar também, outros princípios que compõem o devido processo
legal e não apenas o princípio do contraditório, para produção de uma decisão justa com maior efetividade,
decorrente de um processo totalmente democrático.
Dessa forma, percebe-se que, o contraditório favorece o Estado Democrático de Direito, garantindo a
participação das partes em todas as fases do processo, principalmente quando ocorre o efeito infringente nos
embargos de declaração que será tratada no próximo tópico.
É sabido que o Estado tem como uma de suas funções o dever de dizer o direito, denominada de
função jurisdicional. O exercício dessa função ocorre por intermédio de decisões judiciais que, devem ser
prolatadas de forma clara, completa e coerente para que os jurisdicionados compreendam e a executem
(WAMBIER, 2005, p. 18).
Assim, quando as decisões judiciais forem imprecisas e incompreensíveis em decorrência dos vícios
de omissão, obscuridade, contradição ou até erro material, que impossibilitem a execução da decisão será
possível impugná-la com o recurso de embargos declaratório, que tem a inalidade de conceder ao juízo que
prolatou a decisão a oportunidade de esclarecê-la, corrigindo o erro improcedendo, que abrange os erros de-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
correntes da atividade que, se manifestam quando as normas de procedimento são desrespeitadas, (DIDIER,
2013 p.82).
Nesse sentido Araken (2014, p.630) apresenta com clareza a inalidade dos embargos de declaração:
É certo que, em regra, os embargos de declaração não têm caráter modiicador, mas apenas natureza
de integrar e esclarecer uma decisão, podendo, assim, ser classiicado como um recurso de fundamentação
vinculada, visto que a lei restringe as matérias que podem ser impugnadas por meio de tal recurso, como a
omissão, obscuridade, contradição e erro material, conforme se infere do artigo 1022 do novo CPC.
Nesse aspecto, Didier (2013, p.200), conceitua o vício de omissão como a decisão que não se mani-
festa sobre o pedido ou sobre pontos importantes abordados pelas partes, inclusive sobre questões de ordem
pública. Em relação ao vício da obscuridade, o mesmo autor deine como sendo uma decisão ininteligível. Já
o vício da contradição surge quando a decisão é composta de conjecturas contraditórias.
Ocorre que, como já salientado, a inalidade típica dos embargos de declaração não é a reforma da
decisão judicial, mas a correção de erro improcedendo. Entretanto, há determinadas situações em que o
acolhimento desse recurso pode alterar a decisão embargada, provocando o efeito modiicativo, também
denominado pela doutrina como efeito infringente. No entanto, no Código de 1973, não havia previsão legal
expressa, sobre a necessidade de se intimar a parte embargada para participar efetivamente da produção do
resultado inal da decisão, por meio do contraditório, quando a decisão embargada fosse alterada, embora os
tribunais se posicionassem no sentido de ser obrigatória a efetivação desse princípio diante do efeito infrin-
gente dos embargos (BRASIL, LEI Nº 5869, 1973).
Essa omissão legislativa remetia a seguinte indagação: ocorrendo a modiicação da decisão embarga-
da haveria realmente a necessidade do contraditório? Esse questionamento dividiu opiniões.
A doutrina minoritária encampada por Daniel Assumpção (2011, p.726) e outros, entendia que era
preciso classiicar os efeitos decorrentes da alteração da decisão embargada em dois tipos: a) efeitos modiica-
tivos; b) efeitos infringentes. Para essa corrente diante do efeito modiicativo dos embargos não era necessá-
rio aplicar o contraditório, visto que não havia alegação de matéria nova no processo, mas a análise de matéria
já discutida no processo, com o pedido de saneamento de omissão ou contradição, por isso, não haveria a
necessidade da concessão dos 5 (cinco) dias para o exercício do contraditório. Em relação aos efeitos infrin-
gentes derivado dos embargos de declaração, os defeitos eram teratológicos, portanto, não integravam nem
esclareciam, mas promoviam a reforma ou anulação da decisão embargada, nesse caso o contraditório seria
necessário, pois a decisão embargada era alterada ao sanar um vício, (NEVES, 2011, pp.726-728).
A doutrina majoritária, que tinha como representante Fredie Didier (2013, p. 226) por sua vez, não
fazia a distinção entre os efeitos modiicativo e infringente, entretanto, considerava que qualquer alteração
na decisão embargada produzia o efeito modiicativo que correspondia ao efeito infringente e, portanto de-
via-se invocar o princípio do contraditório, visto que a ofensa a tal princípio acarreta a invalidade da decisão.
A jurisprudência também entendia que era necessário oportunizar o contraditório quando houvesse o acolhi-
mento dos embargos de declaração com a alteração da decisão embargada. Isso é o que se percebe no julgado do Su-
premo Tribunal Federal (BRASIL, STF, AI: 813184 RJ, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno
DJe-229 DIVULG 20-11-2014 PUBLIC 21-11-2014):
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A justiicativa para tal controvérsia residia no fato de que, a inalidade dos embargos de declara-
ção, consistia em esclarecer as decisões e não redecidi-las, como também não havia no Código de Processo
Civil de 1973 nenhum dispositivo determinando a necessidade da parte embargada apresentar contrarrazão
(DINAMARCO, 2013, p.186). Nesse contexto, é importante destacar que para muitos a efetivação do prin-
cípio do contraditório nos embargos de declaração impede que no futuro a parte embargante ajuíze ação
rescisória (SOUZA, 2014, p. 474), visto que foi concedido a parte, o direito de inluenciar no resultado do
processo.
Para resolver essa celeuma o novo Código de Processo Civil determinou expressamente, a efetivação
do princípio do contraditório quando ocorrer a alteração da decisão embargada com a produção do efeito
infringente.
O princípio do contraditório é reletido em vários dispositivos do novo Código de Processo Civil (CPC),
especiicamente no artigo 1023, §2º, que determina que “o juiz intimará o embargado para, querendo, ma-
nifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique
a modiicação da decisão embargada”. Esse dispositivo apresenta-se como uma forma de garantia do direito
fundamental das partes de participarem do resultado do processo (BRASIL, LEI Nº 13.105, 2015).
Com isso, veriica-se a relevância do princípio do contraditório nos embargos de declaração do novo
CPC, que foi aplicado pelo legislador dentro dos parâmetros constitucionais que abrange tanto a participa-
ção, como o poder das partes de inluenciarem no resultado da decisão. Esse mesmo raciocínio é expresso
no enunciado nº 3, aprovado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrado – ENFAM,
que também indica a necessidade da parte se manifestar e de exercer inluência na solução da causa.
Assim, como se vê, a alteração concentrada no regramento dos embargos de declaração indica que o
legislador ordinário, além de efetivar o contraditório, acabou com uma discussão que se estendia ao longo dos
anos, admitindo expressamente o efeito infringente dos embargos de declaração.
Nesse contexto é importante ressaltar que o efeito infringente, pois em regra, os embargos de decla-
ração não têm caráter modiicador, mas apenas natureza de integrar ou esclarecer omissão, contradição ou
obscuridade e corrigir erro material, como prever o artigo 1022, incisos I, II, III do novo CPC:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
deve-se atentar para o que dispõe o artigo 1023, §4º, do novo CPC dispõe que: “O juiz intimará o embargado
para, querendo manifestar-se, no prazo de cinco dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhi-
mento implique a modiicação da decisão embargada”.
Assim, extrai-se da redação desse dispositivo que o novo CPC disciplina expressamente os efeitos
infringentes nos embargos de declaração, regulando a necessidade do contraditório. Com isso, comprova-se
que esse novo código se pauta por um processo moderno que busca a efetividade das decisões, oferecendo
um provimento justo e eliminando as contradições, omissões e obscuridade dos provimentos jurisdicionais.
Nesse aspecto, Mazzei (2015, p.2278) atenta para o dever de se aplicar o contraditório a todo e qual-
quer capítulo da decisão e não apenas aos temas principais da decisão embargada, como entendia boa parte
da doutrina. Atualmente, entende-se que o contraditório deve ser observado em toda fase de processo.
Por isso, as alterações efetuadas pelo novo CPC no sistema recursal no que tange aos embargos de
declaração alcançaram também outros dispositivos, como as que se concentram no artigo 1024, §4º estabe-
lecendo que, quando o acolhimento dos embargos de declaração implicar a modiicação da decisão embar-
gada e o embargado já tiver interposto outro recurso contra a mesma decisão, os embargos serão julgados
primeiros e ocorrendo o efeito infringente a parte embargada terá direito de: a) complementar as razões do
recurso, inclusive alterar seu conteúdo. Isso se constitui como direito lógico, pois se a decisão foi alterada,
as razões do recurso mostram-se sem sentido e por isso, a parte terá direito a adaptar as razões do recurso a
atual decisão prolatada decorrente do efeito infringente. Ressalta-se que o dispositivo legal alerta para a ne-
cessidade da alteração das razões serem feitas dentro dos limites da modiicação. b) Não havendo alteração
da decisão embargada quem recorreu não precisará ratiicar o recurso para que ele seja julgado (BRASIL,
LEI Nº 13.105, 2015).
Esse novo regramento, que apresenta a desnecessidade de ratiicação do recurso implicará o cancela-
mento da Súmula 418 do Superior Tribunal de Justiça que determinava ser “inadmissível o recurso especial
interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratiicação”. Nesse
sentido o enunciado 23 do Fórum Permanente de Processualista – FPPC estabelece que:
“(art. 218, § 4º; art. 1.024, § 5º) ica superado o enunciado 418 da súmula
do STJ após a entrada em vigor do CPC (“ É inadmissível o recurso especial
interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem
posterior ratiicação”). (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Ge-
ral dos Recursos, Apelação e Agravo).
Desse modo, a alteração inserida no âmbito dos recursos, principalmente, nos embargos de declara-
ção foi relevante e necessária, pois se buscou efetivar o princípio do contraditório nas decisões embargadas
com possibilidade de modiicação da decisão. Com isso, concede-se a parte a oportunidade de exercer seu
direito ao contraditório, além do direito de complementar ou alterar as razões do recurso e a desnecessidade
de ratiicá-lo, quando for interposto concomitantemente aos embargos de declaração. Tudo isso representa
um grande avanço para o Estado democrático de Direito, como bem diz Teresa Wambier (2005, p.15) “Hoje,
parece poder-se sustentar sem sombra de dúvida que os embargos de declaração têm raízes constitucionais”,
por isso, o novo CPC invocou expressamente o princípio do contraditório, consolidando o modelo constitu-
cional de processo.
CONCLUSÃO
É bem verdade que atualmente os princípios vêm conquistando espaço no ordenamento jurídico e
exercendo relevante inluência dentro do processo civil, em razão de desempenharem um papel importante
na efetivação dos direitos fundamentais.
Assim, dentre os princípios que compõem o modelo constitucional do processo, destaca-se o princípio
do contraditório que diante de sua relevância para o processo civil, o legislador ordinário determinou sua
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
aplicação em diversos dispositivos do novo Código de Processo Civil, notadamente no artigo 1023, § 2º que,
trata do recurso de embargos de declaração.
Esse recurso é classiicado pela doutrina como recurso de fundamentação vinculada, pois é cabível
apenas quando ocorrer omissão, contradição, obscuridade e erro material, com a inalidade especíica de es-
clarecer uma decisão judicial. No entanto, é possível que diante de determinada situação a correção desses
vícios altere a decisão embargada, produzindo o efeito infringente, também denominado pela doutrina de
efeito modiicativo.
O efeito infringente nos embargos de declaração é aceito pela doutrina e jurisprudência como efeito
excepcional, uma vez que tal recurso tem como inalidade precípua a correção de um erro improcedendo e,
não a reforma da decisão.
Durante muito tempo existiu uma discussão sobre a necessidade de se efetivar o contraditório se a
decisão embargada fosse modiicada. O Código de Processo Civil de 1973 não fazia referência sobre a neces-
sidade de se intimar a parte embargada para apresentar contrarrazão, quando surgisse o efeito infringente,
embora boa parte da doutrina e da jurisprudência se posicionasse no sentido de aplicar o princípio do contra-
ditório quando o acolhimento desse recurso modiicasse a decisão embargada.
Essa omissão legislativa provocou intensas discussões e o novo CPC vem acabar com tal celeuma e
reairmar o que boa parte da doutrina e dos tribunais já airmavam sobre a necessidade de se conceder opor-
tunidade para parte embargada, querendo, apresentar contrarrazões.
Cumpre destacar que o princípio do contraditório traz em seu conteúdo não apenas o direito das par-
tes se manifestarem, mas de exercerem inluência na formação do resultado inal do processo, como garantia
de um processo justo, pois se sabe que atualmente esse princípio é compreendido como um legitimador das
decisões judiciais, visto que no atual Estado Democrático de Direito as decisões devem ser analisadas tanto
no campo da legalidade como no da legitimidade e o princípio do contraditório previsto nos embargos de de-
claração do novo CPC promove essa legitimidade.
Desse modo, ica evidente que essa alteração inserida no novo CPC buscou aperfeiçoar as decisões
judiciais, garantindo uma prestação jurisdicional objetiva e precisa sem afrontar o direito das partes ao con-
traditório, pois a violação a tal princípio macula o Estado Democrático de Direito.
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SOUZA, Bernardo Pimentel. Introdução aos recursos cíveis e a ação rescisória. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/DF
Virginia Colares
Mestre e Doutora em Linguística pela UFPE. Presidente da ALIDI. Membro do ILLA.
Professora da Graduação e do Programa de Pós graduação em Direito da UNICAP e
orientadora da bacharelanda no PIBIC.
INTRODUÇÃO
Este trabalho integra o plano de trabalho “Os modos de operação da ideologia no discurso de fun-
damentação nas decisões do STF sobre os direitos dos negros” a ser desenvolvido no PIBIC 2015/2016 da
Universidade Católica de Pernambuco, sob responsabilidade das autoras.
Com o objetivo de identiicar, nas peças processuais, as estratégias linguístico-discursivas dos modos
de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que
concerne aos direitos dos negros, a metodologia utilizada será a da Análise Crítica do Discurso Jurídico, res-
saltando efeitos ideológicos e políticos do discurso, a partir dos modos de operação da ideologia postos por J.
B. Thompson. A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem por escopo a abordagem das relações entre lingua-
gem, direito e sociedade.
Para tal analisa-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186/DF, aprovando as cotas
raciais, o qual evidencia as mudanças nas relações entre direito e sociedade, que tradicionalmente foi de
imperativa ratiicação do poder das classes dominantes frente às minorias e atualmente vem adotando uma
postura em prol da justiça social na contramão de seu uso tradicional. O foco da análise é a identiicação dos
modos de operação da ideologia nesse discurso de fundamentação da ADPF 186/DF.
Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica necessariamente a sua utiliza-
ção como algo que oculta a verdade e leva a uma falsa consciência em contraste com algo que é considerado
verdadeiro e real, já que comumente a ideologia é retratada como uma via alienante para a manutenção de
poderes; o que se pretende é evidenciar que a ideologia opera por intermédio da linguagem que viabiliza a
ação social, sendo parcialmente constitutiva daquilo que na nossas sociedades é denominado “a realidade”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
da forma como ele é produzido, distribuído e consumido e das relações sociais construídas entre negros e
outras raças, a partir de um contexto histórico de dominação e inferiorização do povo negro em relação aos
demais, é que se torna possível enxergar a discriminação positiva entre essas pessoas negras e não negras
como cabível, no momento em que se constitui o argumento para a ocupação das vagas universitárias e por-
que a construção deste argumento dada a partir apenas da nota numericamente constituída através da fria
avaliação de conhecimento se traduz em injustiça.
As fronteiras entre direito e política tem-se demonstrado bastantes lexíveis em diversas decisões do
STF, tais como: aborto anencefálico, casamento civil igualitário, as cotas, entre outras, nas quais o STF tem,
frente aos demais poderes e a sociedade, concedido e até mesmo criando novos direitos sociais; como as cotas
raciais tratadas no voto que este trabalho analisa, que objetivam alcançar a igualdade -material- presente na
carta magna e suprir uma dívida histórica que o Brasil tem com tal minoria, após um passado vergonhoso de
escravidão e uma realidade permanente de exclusão destes, através de uma verdadeira justiça distributiva.
Tentando alcançar assim, o objetivo primário de toda a estrutura do poder judiciário que consiste
em promover a justiça e a paciicação social, intermediando por meio de peças fundamentadas tais conlitos
presentes na sociedade brasileira. A fundamentação jurídica presente nas decisões condensa as práticas so-
ciais de todo um contexto histórico-social em seus textos. Portanto, todo discurso é uma construção social
e somente pode ser analisado ao se considerar a realidade em que esta imerso. Uma realidade de luta de
classes em que o judiciário tem se colocado ao lado dos interesses das minorias que compõe o povo. Assim,
decifrando-se o discurso jurídico, pretende-se também obter toda uma compreensão da realidade vivida
podendo, com isto, compor novas perspectivas de, não apenas novos direitos sociais, mas de toda uma nova
estrutura jurídica.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.
A análise crítica do discurso, idealizada por Norman Fairclough da década de 70, é uma espécie de
investigação dos emaranhados compositivos do discurso que considera a linguagem como uma forma de prá-
tica social; tem como centro da análise o contexto no qual o discurso é feito assim como a ideologia presente,
ou seja, foca nas relações entre linguagem e sociedade.
A ACD de Fairclough postula que o discurso tem três áreas fundamentais a serem decifradas para
compor a análise crítica a qual se propõe, ou seja, faz-se um estudo tridimensional do discurso; São essas:
análise de textos, que podem ser falados ou escritos; análise da prática discursiva, que observa os processos
de produção, distribuição e consumo dos textos e a análise da prática social do discurso que seria todo o
contexto sócio cultural da sociedade da qual o discurso provém, já que não existe prática discursiva inerte ao
ambiente na qual é constituída. Ter destacado esses três aspectos não implica dizer que Fairclough propunha
uma análise isolada de cada uma delas, pelo contrário, em sua obra destaca que tal distinção é ilusória, por
que ao analisar um texto sempre se examinam concomitantemente questões de forma e de signiicado.
Na primeira dimensão, no discurso como texto, destacam-se aspectos formais da construção textual,
considerando que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar certos sig-
niicantes a certos signiicados. Assim, a análise textual pode ser organizada em quatro tópicos: vocabulário,
gramática, coesão e estrutura textual. Vocabulário trata das palavras postas individualmente; gramática das
palavras estruturadas em orações e frases; a coesão evidencia a ligação entre orações e frases; e a estrutura
textual trata das propriedades organizacionais de larga escala dos textos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O consumo também pode ser diferenciado a partir de aspectos sociais diversos, que se relaciona com
a capacidade interpretativa do publico alvo e os modos de interpretação disponíveis. No que se refere a dis-
tribuição, pode ser simples ou complexa, cada texto possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias
para a reprodução e transformação do texto. Fairclough elenca ainda o que seriam:
Três dos principais itens sociocognitivos que integram a pratica discursiva são: a força dos enuncia-
dos(tipos de atos de fala); a coerência do texto que é uma propriedade das interpretações na qual um texto
coerente seria aquele que mantém uma relação de perfeita harmonia entre as partes integrantes do texto
e o sentido objetivado; e a intertextualidade trata da propriedade que determinado texto tem de ser cheio
de fragmentos de outros textos, característica bastante frequente no fragmento da peça que este trabalho
analisa.
Na ultima dimensão o discurso é tido como uma prática social, em que o autor:
Nesta dimensão o autor entende que ideologias são construções da realidade em que são construídas
varias formas das práticas discursivas que contribuem para a produção ou transformação das relações de
dominação. Já hegemonia diz respeito ao poder e domínio exercido em determinada sociedade, e no que diz
respeito à análise discursiva, avalia-se não só o exercício deste poder, mas toda a estrutura de luta hegemô-
nica que se trava entre os detentores e submissos.
O termo ideologia carrega em si o peso de seu uso ao longo do tempo, assim, a compreensão histórica
do termo é essencial para entender sua aplicação usual no senso comum e contrapropostas a esse uso e tam-
bém tentar traçar uma deinição mais condizente com sua real dimensão na linguagem, portanto, será posto
os principais conceitos e usos históricos da ideologia e o conceito adotado neste trabalho.
Destutt de Tracy introduziu o conceito de ideologia como uma deinição para o que seria uma ciência
das ideias, sendo inicialmente posto como um sistema de análise das ideias e sensações, acreditando que
as coisas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas apenas as ideias formadas pelas sensações que se
tem delas. Ao passo em que a expressão começou a ser utilizada em meio político, seu conceito sofreu uma
reviravolta e foi usado por Napoleão contra os ilósofos, não para se referir a uma ciência positiva e eminente,
mas a um corpo de ideias apartadas da realidade, assim, ideologia corresponderia a ideias utópicas e ilusó-
rias. Nas obras de Marx é possível lagrar vários signiicados distintos atribuídos ao mesmo termo- ideologia-,
primeiramente tem-se um conceito dito polêmico na obra a ideologia alemã, na qual denota, ao criticar as
ideias dos jovens hegelianos, que ideologia seria uma concepção teórica que acredita utopicamente nas ideias
como auto-suicientes e que não consegue compreender as características históricas e sociais da realidade
física, conceito que muito se assemelha ao uso que Napoleão fez do termo, ao postular que ideologia seria a
ideia afastada da política pratica, e por isso deveria ser desprezada. Já na concepção epifenomênica, Marx
concebe ideologia como um conjunto de ideias que expressam os interesses da classe dominante e que re-
presenta as relações de classe de forma ilusória. Há ainda uma concepção que J. B. Thompson nomeou de
concepção latente, na qual:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Após os três usos de Karl Marx: polêmica, epifenomênica e latente, o conceito de ideologia emergiu
com certa importância no meio das disciplinas sociais e chamou para si a atenção de vários outros ilósofos
e sociólogos abordaram a temática da ideologia em duas concepções, a crítica, onde se insere a concepção
marxista e também a de Thompson, que baseado na concepção latente de Marx, nega que a ideologia teria
que necessariamente ser algo ilusório, que oculte a realidade, mas mantém como característica o objetivo
de manter as relações de dominação, postulando que: “ideologia são as maneiras como o sentido serve para
estabelecer e sustentar relações de dominação” ( J. B. THOMPSON, 1998, pág.76). Em relação a Marx,
Thompson também diverge quando diz que as relações de dominação estão aquém das relações de classe, in-
cluindo gênero, raça e outras. Já a concepção neutra, concebe ideologia como sendo uma espécie de visão de
mundo, a qual não serve necessariamente a manutenção de um discurso dominante, já que as minorias, por
exemplo, teriam sua visão de mundo, sua ideologia própria, tal qual o discurso feminista frente ao discurso
machista patriarcal dominante. Lênin, quando argumenta em favor de uma “ideologia socialista”, contribui
bastante para a neutralização do termo.
Quando uma pessoa apresenta-se ao publico no inicio de um discurso, têm-se duas escolhas ao abor-
dar a plateia, que seriam: senhores; ou senhores e senhoras. Em qualquer uma das escolhas se faz presente
a ideologia de um grupo, seja ele dominante ou dominado, em que se demonstra ou a preocupação com o
frequente apagamento do gênero feminino da língua portuguesa ou a ratiicação deste apagamento. Sendo
assim, a ideologia esta sempre presente, pois, por mais que o individuo se proponha a ser neutro, o ser hu-
mano que discursa esta imbuído de suas próprias crenças e concepções, transparecendo-as sempre na sua
produção intelectual.
A premissa de que todo discurso é ideológico é de suma importância para o desenvolvimento deste
trabalho, considerando que a análise crítica empenhada na ADPF 186, que trata das cotas, pode sugerir que
as cotas estão sendo aqui criticadas, quando na verdade, por trata todo discurso como impregnado por ideolo-
gia, nos propomos apenas a identiicar tais estratégias linguísticas no trecho em questão e não fazer qualquer
juízo de valor negativo acerca deste direito social conquistado pelos negros.
Compreendido o sentido de ideologia, para a análise crítica do discurso jurídico serão considerados os
seus modos de operação, propostos por J. B. Thompson( ....) que são estratégias típicas de construção simbó-
lica, as quais serão compiladas e transcritas a seguir:
63
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
• Narrativização: histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição
eterna e aceitável.
A proposta de Thompson de categorizar os modos de operação da ideologia está, nos seus conceitos,
mergulhados na própria deinição de ideologia do autor, que em sua concepção crítica, a considera apenas
para a manutenção das relações de poder. Como a deinição que este trabalho aborda é outra, considerando
ideologia como intrínseca a qualquer discurso iremos utilizar tais modos de operação para decifrar a ideologia
permeada na peça, mesmo que não seja um discurso utilizado para manter uma relação de poder pré-exis-
tente, já que a peça analisada concede um direito a uma minoria historicamente oprimida, portanto, não é
um discurso que se proponha a manter uma relação de poder já consolidada, mesmo assim esta repleto de
ideologia, como qualquer outro discurso. Ideologia essa que temos como escopo tentar decifrar.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Este trabalho propõe a análise do trecho “igualdade formal versus material” retirado da ADPF 186,
recorrendo aos modos de operação da ideologia bem como a tridimensionalidade do discurso para evidenciar
as estratégias discursivas que sustentam a decisão de Lewandowski.
Para começar a análise do texto, faremos observações com ênfase na dimensão prática do discurso,
segunda dimensão proposta por Fairclough, que trata da produção, distribuição, consumo; aspectos que
podem ser examinados como exteriores ao corpo físico da decisão. Quanto à produção de uma decisão do
STF acerca do controle de constitucionalidade, temos um procedimento formal descrito na constituição
brasileira. O rito da produção de uma decisão inicia-se apenas quando o judiciário é provocado, e neste caso,
tem que ser provocado acerca da suposta colisão com a constituição federal, já que o STF é o órgão guardião
desta. Quando o DEM impetrou a ADPF 186, alegando inconstitucionalidade das cotas, justiicando que es-
tas iriam contra o principio da isonomia, presente no artigo 5° CF, o judiciário teve que se manifestar sobre, e
daí advém a explicação de Lewandowski sobre a igualdade da qual trata o referido artigo. Assim, descrito um
rito estritamente formal de produção, prolatado pela mais alta corte do país, temos um discurso tido como
de autoridade, respeitável, visto como sólido e coniável. Quanto à distribuição e consumo, decisões não são
textos acessíveis à maioria da população, sendo um conteúdo tido como erudito o qual, dada a formatação do
texto, apelidada como “juridiquez”, revela uma identidade unitária entre os produtores e consumidores, sen-
do necessária o mínimo de conhecimento jurídico para a compreensão da sentença prolatada, a capacidade
interpretativa restringe os consumidores e a maioria da população ica a mercê de meios que “mastiguem a
informação” pra si, passando a impressão de que quem produz tal conteúdo é dotado de grande saber.
98. De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais
99. perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão
102. de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre
Fragmento 01
Neste fragmento é notável a presença da ‘intertextualidade’, descrita como estratégia que traz ao
texto recorte de outros textos, geralmente discursos famosos, como forma de solidiicar a argumentação que
se pretende construir. Além dos recortes, têm-se também datas e fatos históricos, que corroboram para a
construção da percepção de coniabilidade na ideia que se pretende defender.
1 “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é a disciplina oferecida por Virginia Colares no Curso de Mestrado do Programa de Pós-
-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório
de pesquisa, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais
Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
112. que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por
116. sociais.
Fragmento 02
Na linha 111 do recorte acima é perceptível o uso da ‘universalização’, estratégia típica que apresenta
o interesse de uma classe ou categoria como se fossem um interesse coletivo, comum a todos, quando na
verdade a igualdade material á qual o texto remete só beneicia, neste caso, os detentores dos direitos a cotas,
ou seja, os negros. A partir da linha 112 também temos uma ‘fragmentação’, modo de operação que separa
grupos que poderiam apresentar um real desaio ao poder dominante, caso atuasse juntos, são fragmentados
em detrimento de suas características únicas. Tem-se ainda nas linhas 114, 115 e 116 uma ‘eternalização’,
ou seja, fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes.
118. levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho
124. particulares.
Fragmento 03
Na linha 118 temos uma ‘eufemização’, estratégia que legitima instituições e suas ações. Neste caso,
o quando se diz que o estado pode lançar mãos de um determinado tipo de política para se alcançar um bem
maior-igualdade material-, tem-se uma valoração positiva desta instituição e de sua ação. Na 121 novamente
temos uma ‘segmentação’, ao tratar de grupos sociais determinados, legitimando a atribuição de tratamento
especiico a estes grupos em detrimento de características particulares. Já nas linhas 123 e 124, é lagrante
a ‘narrativização’ na qual histórias do passado justiicam o presente e novamente a ‘eternalização’.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
128. (...)
134. (...)
141. indivíduos que não mais podem ser alcançados por políticas
145. (...)
Fragmento 04
Todo este fragmento se trata de um recorte de outro texto, ou seja, novamente presente a ‘intertex-
tualidade’ usada para sustentar a posição do autor. Nas linha 127 segmenta-se novamente a minoria negra
para justiicar o direito social a cotas e postular a injustiça presente num modo de acesso a educação superior
que ignore as diferenças sociais entre os concorrentes. Já na linha 131, ao se falar em identidade e contexto,
tem-se uma ‘uniicação’ em que se constrói uma identidade simbólica coletiva, no caso- negros.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
156. “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos
Fragmento 05
Na linha 154, ao relacionar tais políticas ao próprio cerne da democracia temos um discurso que pos-
tula a evolução das relações de poder como luta hegemônica, estratégia postulada na terceira dimensão- aná-
lise do discurso como prática social- e que diz repeito a luta de classes historicamente oprimidas pela atuação
no poder. Ou seja, quando se coloca um direito de uma minoria ao alcance da possibilidade de um curso que
pode ser sua chance de alternar de classe social como alvo do regime político e econômico vigente no país,
que em tese sempre favorece a classe dominante, temos uma lagrante luta contra as relações de dominação
vigentes no regime atual. Já a partir da linha 155, temos novamente a ‘intertextualidade’, utilizando-se de
um famoso discurso no ambiente jurídico.
161. Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a
162. ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção
Fragmento 06
Todo este trecho se compõe através da ‘intertextualidade’. Nas linhas 164 e 165, na contraposição dos
conceitos de “igualdade” e “possibilidade” temos uma ‘metáfora”, uma vez que aplica-se um termo a uma
signiicação ao qual ele não poderia ser aplicado, considerando que igualdade e possibilidade são signiicantes
totalmente distintos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho analisa o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF/186-DF, no que concerne
a “igualdade formal versus material”. A tese do DEM de que as cotas seriam inconstitucionais por ferir o
princípio da isonomia, presente no caput do artigo 5º da carta magna, é contestada pelo relator no que se
refere às cotas como direitos sociais dos negros. A metodologia adotada é a análise crítica do discurso jurídi-
co(ACDJ), em especial os modos de operação da ideologia, propostos inicialmente por J. B. Thompson. Como
resultados identiica-se o uso reinterado da estratégia de intertextualidade.
Ao longo da análise proposta, percebe-se o uso de diversas estratégias e modos gerais de operação da
ideologia, mas, diferentemente das analises clássicas em que tais estratégias são utilizadas para fundamentar
discursos atuantes em prol da classe detentora do poder, desta vez são empregadas para conceder um direito
social a uma minoria, ou seja, em uma lagrante luta hegemônica em prol de uma coniguração social mais
justa.
REFERÊNCIAS
PIMENTEL, Alexandre Freire; BARROSO, Fábio Túlio; DE GOUVEIA, Lúcio Grassi. Processo, hermenêutica e efe-
tividade dos processos. Recife: APPODI, 2015.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9.
ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a discussão acerca da deinição de entidade familiar,
mais precisamente devido à sua repercussão no reconhecimento da união estável e do casamento homoafe-
tivos.
É sabido que, sob a perspectiva do constitucionalismo democrático, um dos mais relevantes papéis
atribuídos aos Tribunais consiste na proteção dos direitos das minorias. Essa proteção vem sendo intensiicada
no âmbito nacional, sobretudo perante o Supremo Tribunal Federal (STF), e também em âmbito supranacional,
considerando a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa dos direitos humanos
diante dos países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade direto, através da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o STF
reconheceu a extensão do conceito jurídico de união estável para os casais do mesmo sexo, o que, conse-
quentemente, viabilizou-se o casamento igualitário.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse diapasão, são analisadas as possíveis repercussões da aprovação do referido projeto no que tan-
ge ao fato de contrariar decisão já prolatada pelo STF, trazendo à tona questões como a supremacia judicial
na interpretação da constituição e a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso para a atividade
parlamentar, quando direitos de minorias estão sob ameaça.
A tarefa de deinir Direitos Humanos não é fácil. Alguns doutrinadores entendem que direitos huma-
nos e direitos fundamentais seriam sinônimos, uma vez que ambos são inerentes aos seres humanos, intima-
mente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, e ainda, ambos possuem o condão de limitar a ação do
Estado. São exemplos dos que seguem essa concepção: Paulo Gustavo Gonet Branco (2002), Alexandre de
Morais (2013), e João Baptista Herkenhoff (1994).
Há, entretanto, aqueles que entendam que embora sejam comumente utilizadas como sinônimas, as
duas expressões guardam entre si importantes diferenças a serem apontadas. José Joaquim Gomes Canotilho
(1998, p.59) aponta distinções no que tange às origens e aos signiicados, pois que Direitos Humanos (ou
Direitos do Homem, como coloca o autor) são aqueles inerentes a todos os povos e em qualquer espaço de
tempo. Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem que possuem resguardo jurídico-institu-
cional, e são percebidos num determinado espaço de tempo. Assim, os direitos humanos seriam aqueles os
quais originam-se diretamente da natureza humana, enquanto que os direitos fundamentais dependem de
uma ordem jurídica vigente.
Como se pode perceber, portanto, embora guardem alguma semelhança, Direitos humanos e Direitos
fundamentais não se confundem, pois este é referente ao direito positivado, ao direito garantido constitu-
cionalmente pelos estados em seus diplomas legais, enquanto que aquele refere-se ao direito inerente ao
homem por ser homem, e guarda cunho universal, intertemporal e inviolável (CANOTILHO, 1998, p.59),
não dependendo de positivação em nenhuma ordem jurídica.
Desta forma, a expressão direitos humanos é comumente utilizada para referir-se ao homem sujeito
de direitos na ordem internacional, conotação que ganhou força no pós-guerra.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ções primordiais do movimento eram: (i) universalizar e internacionalizar o tema, a im de que fosse possível
uma normatização internacional dos direitos; (ii) marcar a concepção contemporânea de direitos humanos
como aquela que advém da dignidade humana como fundamento de proteção. Inicia-se assim a “era dos
direitos”. (BOBBIO, 1992; p. 49)
Dessa forma, a proteção aos direitos humanos deixou de ser apenas de carácter regional e passou a
ser objeto de proteção da comunidade internacional, sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU (DUDH), de 1948, seu maior expoente (PIOVESAN, 2010, p. 121-122).
Em sequência à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, diversos outros diplomas nor-
mativos internacionais foram editados, como os tratados e as convenções de direitos humanos. Todos esses
diplomas contavam, também, com a natureza de iscalização e promoção dada pela declaração. São bons
exemplos: o Pacto Internacional dos direitos civis e políticos; o Pacto Internacional dos direitos econômicos,
sociais e culturais; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Ra-
cial; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (PIO-
VESAN, 2010, p. 161-237).
Além dos tratados e convenções, também surgiram outros sistemas de proteção dos direitos humanos,
onde podemos citar o sistema africano, o europeu e o interamericano, como complementares do sistema
global.1
A Convenção Americana de Direitos Humanos - também denominada Pacto de São José da Costa
Rica - é um dos principais instrumentos normativos do SIDH e foi assinada em São José da Costa Rica em
1969, entrando em vigor apenas em 1978.2 O Brasil é seu signatário desde 19923. É o mais extenso instru-
mento internacional de proteção aos direitos humanos, contando com 82 artigos (VASAK, 1982; p. 558 e
559). Dentre eles, podemos achar bastante semelhança com aqueles elencados pelo Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, como por exemplo: direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento humano,
à liberdade pessoal, à privacidade.
Os direitos sociais, culturais e econômicos não estão enunciados de forma especíica na convenção,
esta apenas limita-se a determinar que os Estados busquem meios de alcançar, progressivamente, a plena re-
alização desses direitos. Esses meios podem ser medidas legislativas ou outras apropriadas para a persecução
1 A temática da orientação sexual e da identidade de gênero era ainda incipiente, possuindo abordagem bastante pontual. Uma
maior discussão sobre o tema, entretanto, foi possível após a apresentação da Resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e
Identidade de Gênero” na ONU, em 2003. Mesmo retirada posteriormente por pressão de países islâmicos, dos EUA e do Vaticano
(PAZELLO, 2004, p. 29-30), foi novamente reintegrada em 2011, demonstrando seu importante valor no que consta sobre a dis-
cussão do tema em âmbito mundial.
2 Disponível em: <http://www.cidh.org/comissao.html>. Acesso em: 25 de janeiro de 2016. Importante assinalar que apenas os
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos possuem o direito de aderir à Convenção. Até janeiro de 2014, a OEA
contava com 24 Estados- partes. (PIOVESAN, 2015; p. 340)
3 Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível com a tradução em português em: <http://www2.mre.gov.br/
dai/m_678_1992.html>. Acesso em: 25 de janeiro de 2016.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
do objetivo inal. Posteriormente a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Pro-
tocolo de San Salvador, que concerne, justamente, aos direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN,
2015; p. 341).
Dessa forma, é possível perceber que, embora a convenção elenque direitos e garantias que não de-
vem ser violados pelos Estados-membros, ela também cuida de mecanismos que visam a garantir a efetiva
realização desses direitos. Sendo assim, ao mesmo tempo que os Estados-membros respeitam os direitos e
garantias prescritos na convenção, eles também devem assegurá-los e, assim sendo, a convenção estabelece
dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação dos direitos nela elencados: a comissão inte-
ramericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos.
A comissão é composta por sete membros os quais podem ser de qualquer Estado-membro da OEA.
São eleitos por assembleia geral, podendo ser reeleitos apenas uma vez e devem ser dotados de reconhecido
saber jurídico no que tange aos Direitos Humanos e também alta autoridade moral.
A Corte interamericana de Direitos Humanos é o outro aparato trazido pelo SIDH com função de
monitorar e viabilizar o cumprimento dos direitos expostos na convenção. Órgão jurisdicional do sistema
regional, é composto por juízes dos Estados-membros da OEA em número de sete. Possui competência
tanto consultiva como contenciosa. Ou seja, quanto à sua competência contenciosa, a Corte IDH pode
responsabilizar o Estado-parte pela violação dos direitos os quais ratiica a convenção, isso porque os signatários
comprometeram-se a não só respeitar, como também garantir esses direitos, usando de todos os seus recursos
para punir os infratores de acordo com suas normas internas. Quanto à sua competência consultiva, a corte
emitirá pareceres, à pedido dos Estados-parte, manifestando-se sobre a compatibilidade entre qualquer das
normas elencadas na convenção a as leis dos respectivos Estados (GUERRA, 2010; p. 05-07).
Dessa forma, no âmbito procedimental, a comissão recebe uma petição fazendo o juízo de admissi-
bilidade6 e, em seguida, solicita informações do Governo denunciado. Uma vez recebidas as informações ou
transcorrido o prazo para tal, é veriicada existência ou subsistência dos motivos arrolados na petição. Em
seguida, a comissão decide pelo arquivamento ou pelo prosseguimento do exame do assunto, o qual, após
4 Para mais informações vide Héctor Fix-Zamudio, Proteccíon jurídica de los derechos humanos, p. 152.
5 A convenção americana, diferente das outras convenções e tratados de direitos humanos, não estabelece à vítima, exclusi-
vamente, o direito de peticionar junto à comissão. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou qualquer organização poderá
fazê-lo. (BUERGUENTHAL, 1981; p. 148)
6 O juízo de Admissibilidade é feito segundo o artigo 46 da CIDH, assim prescrita:
1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será ne-
cessário:
a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional
geralmente reconhecidos;
b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha
sido notiicado da decisão deinitiva;
c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e
d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a proissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pes-
soas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:
a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se
alegue tenham sido violados;
b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido
ele impedido de esgotá-los; e
c. houver demora injustiicada na decisão sobre os mencionados recursos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
realizado, será depreendido esforço no sentido de buscar uma solução amigável entre as partes, ou seja, entre
o peticionante e o Estado. Caso essa negociação não seja bem-sucedida, a comissão elaborará um relatório,
apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e o enviará ao Estado-parte para que no período
de três meses possam ser tomadas as devidas providências. Dentro desse príodo de tempo, o caso pode ser ou
solucionado plas próprias partes, ou então poderá ser remetido à Corte IDH.
A OEA, vem, repetidamente, através dos anos, editando resoluções em sua assembleia geral, que
visam assegurar os direitos humanos da população LGBTI, assim como reprimir qualquer tipo de discrimina-
ção e violência que possam incorrer devido à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. A primei-
ra, a Resolução nº 2435/2008 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero –, foi aprovada
pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. O documento foi fruto de iniciativa do Estado brasi-
leiro e apoiou-se nas disposições normativas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração
Americana dos Direitos do Homem e na Carta da OEA. Em sequência, foi aprovada a Resolução nº2504 em
2009, com as mesmas fundamentações normativas da anterior, mas levando também em consideração a nota
da Declaração da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero7, e inova ao sugerir que os Estados
membros considerem a adoção de medidas que enfrentem o tratamento discriminatório motivado por orien-
tação sexual e identidade de gênero, e que a Comissão IDH faça um estudo temático sobre discriminação
e violência contra a população LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010, p. 02). Na
mesma linha seguiram a Resolução nº 2653/2011, aprovada em 07 de junho de 2011, estabelecendo o plano
de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011b, p. 01-
02); a Resolução nº 2721/2012, de 04 de junho de 2012, a qual propõe a criação junto à Comissão IDH da
Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI) (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012b, p. 02); e, por im, a Resolução nº 2807/2013, de 06 de junho de
2013, a qual incentiva os Estados-membros a fazer o levantamento para políticas públicas de proteção pesso-
al LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013b, p. 02-04).
O primeiro caso levado à comissão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi o caso Marta
Alvarez vs. Colombia. Esse caso trata sobre a negação ao tratamento igualitário por parte do denunciado con-
tra a denunciante, uma vez que esta teve por proibidas suas visitas conjugais no sistema prisional por causa
da sua orientação sexual. Houve, portanto, a inobservância dos arts.5º (integridade física, psíquica e moral),
8º (respeito à dignidade enquanto pessoa privada de liberdade), 11 (direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta), em razão da recusa
das autoridades prisionais em autorizar o exercício do seu direito à visita íntima por causa de sua orientação
sexual. O caso ainda aguarda decisão deinitiva (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS, 1999).
Outro caso emblemático sobre direito LGBT levado à comissão, foi o caso Atala Riffo y niñas vs. Chile.
De acordo com a comissão, houve o descumprimento dos arts.11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1
e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e
25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Isso porque
se alega a responsabilidade internacional do Estado pelo tratamento discriminatório, interferindo, arbitraria-
mente, na vida privada e familiar das denunciantes, observadas no processo judicial que resultou na retirada
da custódia das ilhas da senhora Atala. O Estado foi condenado a adotar de medidas de reparação. (ORGA-
NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012a).
Por im, é de suma importância citar o caso José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001), o qual, embora rejeitado no juízo de admissibilidade por não preen-
cher o requisito do esgotamento dos recursos internos, além de não veriicar tratamento discriminatório no
julgamento do reconhecimento da sociedade de fato, vez que trata-se do único caso que chegou até a corte
tratando especiicamente do reconhecimento de uniões homoafetivas, o então objeto desse estudo. No caso
7 Declaração nº A/63/635 – Direitos humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”, de 22 de dezembro de 2008. (OR-
GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
em questão o peticionante tentara ter reconhecida sua sociedade com o seu falecido companheiro homoafe-
tivo. Apesar dos esforços empenhados, não restou comprovada a união de fato, quando, então, o peticionante
resolveu pleitear nas instancias internas o reconhecimento de união homoafetiva. Cuida que tanto o Código
Civil paraguaio quanto a Constituição, expressamente proíbem a união e casamento entre pessoas do mesmo
sexo, prevendo apenas a existência desses institutos quando se tratando de homem e mulher. Ao apresentar
à comissão o caso, José Alberto Pérez alegou a inobservância dos artigos 24 (igualdade perante a lei e igual
proteção desta) e 25 (direito ao acesso à justiça eicaz e em prazo razoável) do Pacto de São José da Costa
Rica. Entretanto, conforme falado anteriormente, a CIDH julgou pela inadmissibilidade do caso por questões
técnicas, mas não de mérito.
Como será demonstrado adiante, se a petição tivesse sido admitida, era possível fazer um paralelo
entre as decisões em sede de controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro
e uma possível sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, assim como o
ordenamento jurídico brasileiro, a CADH não prevê proibição expressa à união homoafetiva, no que, pelo ou-
tro lado, expressamente proíbe qualquer forma de discriminação perante a lei. Poderia ser um caso bastante
importante no que tange tanto aos Direitos LGBTI, quanto ao estudo do diálogo entre corte, no que tange à
tutela Multinível dos Direitos Humanos.
A Constituição Federal e o Código Civil brasileiros tratam de entidade familiar como aquela formada
por um homem e uma mulher, excluindo, a princípio, qualquer outro tipo de relação afetiva que não se en-
quadre neste contexto. Assim prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o ho-
mem e a mulher, conigurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada
se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da
união estável.
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos também faz menção à família e coloca-a como
um dos principais pilares da sociedade. Assim prescreve:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Esses artigos não devem, entretanto, ser interpretados de forma isolada. É preciso contextualizá-los
dentro dos diplomas normativos nos quais estão inseridos. Nesse diapasão, deve-se observar a importância
de dois princípios fundamentais no estudo dos direitos humanos: o princípio da igualdade e o princípio da
não-discriminação. Ambos estão codiicados tanto na Constituição brasileira (arts. 3º, IV e 5º)8, como na
Convenção Americana (arts. 1.1 e 24)9.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº. 18, expressou que o
princípio da igualdade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois os dois
advém do próprio gênero humano. Sendo assim, seria incompatível a supremacia ou inferioridade de um
determinado grupo perante outro, se de qualquer forma esse tratamento enseje hostilidade ou discriminação
no gozo dos direitos de ambos. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados.
Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, § 87).
Dessa sorte, mesmo não havendo proteção expressa à união homoafetiva em nenhum dos dois sis-
temas jurídicos - nem na convenção americana e nem no ordenamento jurídico brasileiro - eles acabam por
proteger, de outra forma esse direito da população LGBTI. Garantir e promover a igualdade signiica tratar
igual os grupos iguais e desigual os grupos desiguais. Convém lembrar, contudo, que a diferença de tratamen-
to deve ser pautada em motivos objetivos e razoáveis. Advém Robert Alexy (1997) que o tratamento igual deve
ser depreendido a todos sempre que o tratamento desigual não for pautado em nenhuma razão suiciente.
Nesse contexto, não há fundamentação nem fática nem jurídica que corrobore para a diferença de
tratamento entre casais hétero e homoafeitvos no que tange à união estável. Muito pelo contrário. É certo
dizer que o entendimento acerca da temática é que mesmo não havendo menção expressa a entidade fa-
miliar formada por casais homoafetivos, o que se encontra disposto não é taxativo, mas sim exempliicativo,
englobando, portanto, outros tipos de família, não só aquela formada por um homem e uma mulher.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Essa mudança se dá no momento em que o direito acompanha a nova realidade da sociedade mun-
dial. Novos padrões e novas práticas éticas e morais vêm surgindo, e com elas, uma nova forma de ver a nor-
ma jurídica, uma forma que atribui aos direitos um carácter mais “prático e efetivo, não teor ético e ilusório”.
(Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03
de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, §120)
Há muito que as uniões homoafetivas são cada vez mais comuns no cenário não só brasileiro, como
mundial. A falta de regulamentação jurídica dessa situação corresponde à violação de direitos fundamentais
importantes, vez que esse direito é ao mesmo tempo individual, social e difuso.
O ordenamento jurídico brasileiro não possui proteção legal expressa à união homoafetiva. Outros
países já reconhecem a união civil entre casais homossexuais, como é o caso da Dinamarca (1989), Noruega
(1993), Suécia (1994), Holanda (1995) e Reino Unido (2001).
Diversos projetos de Lei versando sobre a regulamentação da situação da união homoafetiva, desde o
primeiro em 1995, não chegam ao plenário da câmara. Esse descaso acerca da matéria demonstra a inércia
de parte do legislativo em se envolver, tanto por questões políticas, como também religiosas.
A primeira decisão judicial brasileira reconhecendo a união entre casais do mesmo sexo ocorreu na
década de 90, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.10
O Supremo Tribunal Federal, em cinco de maio de 2011, analisa a temática das uniões homoafetivas,
através da conjugação das questões vertidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 427711, de
propositura da Procuradoria Geral da República, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de janeiro12.
As duas ações foram relatadas pelo então Ministro Ayres Britto, e objetivavam, mediante interpreta-
ção conforme a constituição, a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável, a im
de adquirirem status de entidade familiar, assegurada, no artigo. 226, §3º.
A falta de reduto positivo no que concerne à união entre pessoas do mesmo sexo, não signiica que
não haja tal proteção por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes,
o fato de que tanto a Constituição quanto o Código Civil apenas fazem menção à entidade familiar formada
por casais heterossexuais, não signiica a negativa da proteção à união homoafetiva.
Ainda segundo os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia, o supracitado art. 226,
§3º da Constituição deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 3º, IV e 5º. Portanto, na inexis-
tência de proibição expressa e consagrando a constituição so princípios da igualdade e da não discriminação,
deveriam ser reconhecidas as uniões homoafetivas como equiparadas às uniões civis. Assevera o Ministro
Luiz Fux que o conceito ontológico de família engloba as uniões marcadas por afetividade, estabilidade, con-
tinuidade, publicidade e identiicação recíprocas de seus integrantes como formadores de uma família.
Assim, seguindo o exposto pelo Ministro Relator, o pleno do STF, por unanimidade, decidiu por dar
provimento às pretensões expostas nas duas ações supracitadas.
10 TJRS, AI 599075496, 8ª. Câm. Civ., j. 17.06.1999, rel.Des. Breno Moreira Mussi.
11 Era inicialmente ADPF 178, na qual se intentava o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar, esten-
dendo-se a elas, portanto, o mesmo tratamento jurídico da união civil.
12 Nesta ação intentava-se aplicar o regime de união estável aos casais homoafetivos funcionários públicos civis do estado com
base no argumento de que a negativa de tal feito contrariava preceitos constitucionais fundamentais.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
As mesmas teses poderiam ter sido alegadas no caso do José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay, basea-
das nos artigos 11 (proteção da honra e da dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção por parte
desta) da CADH, uma vez que esta também não proíbe expressamente a união civil entre pessoas do mesmo
sexo. É certo dizer que representaria um avanço hermenêutico de grande importância histórica, levando em
consideração o contexto sociopolítico atual.
O judicial review teve início no emblemático caso Marbury vs. Madison, e desde então, tem sido
adotado por diversos ordenamentos jurídicos13, inclusive pela nossa atual Contituição. Desde então, o dualis-
mo existente entre constitucionalismo e democracia tem tomado forma e representa um dos assuntos mais
discutidos até hoje na área acadêmica.
Sem pretensões de encerrar o assunto, teceremos alguns comentários sobre essa controvérsia.
A jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos, e portanto se fundamenta em moldes de uma
sistemática deinida por James Madison. Esse sistema assenta a constante e permanente necessidade de re-
concialiação entre dois princípios opostos: o de autogoverno - ou governo da maioria -, e o de abstaenção da
maioria quando as ações por ela adotadas possam ser ofensivas a direitos das minorias. (BORK, 1991; P.139).
É baseado nesse contexto que Bickel (1986), o principal teórico a enfrentar o dilema Madisoniano, descreve
o que ele chama de diiculdade contramajoritária. em sua obra ele tenta explicar como o controle de consti-
tucionalidade, uma insittuição não democrática, pode ser justiicado num governo baseado em legitimidade
democrática dos representantes. Em verdade, a crítica de Bickel é demasiadamente paradoxal, e foi bastante
criticada, por basear-se em deixar a cargo dos juízes da Suprema Corte decidirem pautados em ideais de
sabedoria e imperativos morais.
Outro importante doutrinador que tentou justiicar a legitimidade da jurisdição constitucional foi
Ronald Dworkin. Para ele, o direito é naturalmente interpretativo e apenas pode ser conhecido através do
processo de interpretação das normas. O direito, como um todo, só pode ser entendido, portanto, dentro de
casos concretos, onde o juíz irá interpretar a lei segundo a situação que ali se encontra. (DWORKIN, 2009;
p.14-15).
Já a democracia é um ideal a ser seguido, não bastando apenas democracia de carácter procedimental
- leia-se eleições majoritárias - para que num Estado possa haver o autogoverno. Antes, é preciso que o povo
sinta-se parte de determinada comunidade para se autogovernar e isso só ocorre quando o tratamento entre
os membros de uma mesma comunidade é igualitário. (DWORKIN, 2002, p. 305-369).
Nesse contexto que encontramos o papel e a legitimidade da juridicção constitucional. à ela cabe
o papel de evitar que maiorias eventuais sobreponham seus desejos e vontade sobre todos, prejudicando o
direito das minorias.
É certo que, apesar das controvérsias existentes acerca do controle de constitucionalidade e sua
legitimidade, a Constituição Federal brasileira adota essa prática jurídica e prevê, portanto, a função do
judiciário como intérprete da constituição. Ou seja, (CITTADINO, 2009; p.62) o Ordenamento Constitucional
Brasileiro, apesar de não ter transformado o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional
propriamente dita, veio por restringir sua compêntica à matéria de cunho constitucional - assim, cabe ao STF
a guarda da Constituição. Essa função de guardião, nada mais é do que a expressão do carácter político que
assume o Supremo nesse novo desenho constitucional, uma vez que função de interpretar e, portanto, decla-
rar o alcance e o sentido de normas jurídicas é ação - se não política - de grande repercursão politico-social.
13 O controle de constitucionalidade, apesar do grande perído que passou inerte nos Estados Unidos, passou a ser uma prática
comum nas cortes de todo o mundo, tendo início com a sua adoção pelas novas repúblicas da antiga união soviética, posteriormen-
te na europa ocidental no pós- Segunda Guerra e então pelos países da América Latina e península ibérica após os seus períodos
de governos ditatoriais. (VICTOR, 2008; p. 87 e ss)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, com o passar dos anos o STF tem assumido diversos posicionamentos políticos acer-
ca de assuntos14 das mais diversas ordens, tomando por base, em alguns momentos especíicos um posicio-
namento ativista. Isso se deve a diversos fatores, como por exemplo, o fortalecimento do judiciário diante da
atual desconiança nacional no que se refere ao legislativo - principalmente pelos recorrentes escândalos de
corrupção; mas também ao posicionamento inerte do órgão legislativo, vez que se exime de discutir algumas
questões “polêmicas”, deixando sua resolução à cabo do judiciário uma vez que este não passa pelo processo
eleitoral.
Essa prática demonstra a relação existente entre o legislativo e o judiciário brasileiro. Pois de um lado
encontramos uma instituição que, por diversas vezes ampliou sua esfera de atuação, buscando legitimar-se
democraticamente; enquanto de de outro lado, há o poder político organizado, sofrendo uma grave crise de
legitimidade democrática, experimentando um descrédito recorrente e suas próprias limitações políticas em
uma sociedade fragmentada pelos interesses conlitivos (SILVA et al , 2010, p. 14).
te não têm demonstrado um o exercício de um poder contramajoritário, pelo menos não de forma relevante.
Sempre que possível, são aproveitadas partes das leis que sofreram o controle de constitucionalidade, ou, em
caso de omissões legislativas, o Tribunal procurou conceder prazo para que o congresso suprimisse a irnércia.
Ocorreu diferente, porém, no caso das uniões homoafetivas. Diante do já mencionado silêncio legis-
lativo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, através de interpretação conforme a constituição, o status
de entidade familiar às uniões formadas por casais do mesmo sexo.
Em resposta à atuação do guarda da constituição, foi proposto na câmara dos deputados o Projeto de
Lei nº 6583 de 2013, também conhecido com Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal anderson
Ferreira do PR/PE16. Essa reação parte da bancada religiosa tradicionalista do congresso nacional, e tem por
im a restrição do signiicado de “entidade familiar” para aquela formada apenas pela união entre homem e
mulher, e também das unidades monoparentais - dái o nome ser “Estatuto da Família”, no singular, defen-
dendo a existência de apenas uma forma de família.
Ora, o diálogo institucional não é institucionalizado no Brasil, o que não signiica que não ocorra. O
Supremo Tribunal Federal, embora seu eminente caráter político - principalmente em questões controversas
14 O supremo Tribunal Federal já analisou caso referente ao uso de armas de fogo ((ADI 3112/DF), à pesquisa com células-
-tronco embrionárias (ADI 3510/DF), à liberdade de expressão e os discursos com conteúdo racista (HC 82424/RS), à liberdade
de informação jornalística (ADPF 130/DF), a processos seletivos diferenciados para pessoas de origens sociais e raciais diferentes
(ADI 3330/DF), e à interrupção da gravidez de feto anencéfalo (ADPF 54/DF).
15 Para informações e dados completos da pesquisa, vide POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação?: Política,
direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
16 Para leitura do tero completo do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ichadetramitacao?idProposicao=597005.
17 Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garan-
tida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção ilosóica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, ixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de en-
sino fundamental.
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Direito(s) em debate.
como aborto de feto anencéfalo, entre outros - em diversos casos também houve recalcitrância do judiciário
em airmar-se o último intérprete da Carta Magna.
No entanto, o direito de constituir família é direito fundamental e está resguardado pela nossa conti-
tuição. Assim como demostramos acima, os direitos à igualdade e não discriminação são direitos humanos de
suma importância e o fundamento principal de diversos diplomas jurídicos, entre eles a nossa constituição e
a CADH.
Assim, o direito objeto de estudo, aqui, constitui direito de uma minoria frente ao possível desejo de
uma maioria representada no congresso. Nesse caso, qual deverá prevalecer? Entramos novamente na dis-
cussão acerca da jurisdição constitucional e do constitucionalismo, essa problemática interfere diretamente
na questão do poder contramajoritário do Tribunal.
Entretanto, defendemos que deva haver uma supremacia judicial na questão, pautados nos seguintes
argumentos: (i) A proteção dos direitos das minorias é ethos da jurisdição constitucional; (ii) pelo fenômeno
que icou conhecido como “leis in your face” (VICTOR, 2013; p.169); (iii) pelo princípio da poribição ao
retrocesso.
Apesar de já discutida acima, faz-se mister frisar que o mais importante papel do Supremo Tribunal
Federal é o de guardião da constituição. é no contexto de seu exercício que existe o Estado de Direito, pois
este depende da efetivação de direitos e garantias fundamentais.
Nesse diapasão, a im de garantir o cumprimento desses direitos, o papel da corte não possui o con-
dão de interferir nas atividades do legislador democrático. Não há, portanto, que se falar que o judiciário, ao
exercer a jurisdição constitucional age em detrimento dos demais poderes, mas garante o ral funcionamento
da democracia, pois é a tensão entre esta e o controle de constitucionalidade “ que alimenta e engrandece
o Estado Democrático de Direito tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade
aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, 2001)
A própria Carta Magna, ao deinir procedimentos especíicos para a atuação do legislador, prevê que
os atos praticados pelos orgão de representação possam ser criticados e controlados. (MENDES, 2001) As-
sim, o judicial review seria uma espécie de “iscalização democrática” no que tange a guardar os direitos das
minorias frente as maiorias tiranas.
Quanto à questão do “leis in your face”, é um fenômeno que representa a reação do legislativo, com
edição de lei que contraria entendimento já estabelecido pelo judiciário. Nesses casos, é comum que este
útlimo reaja. Um bom exemplo foi no caso da edição da Súmula 394, o qual estendia o foro por prerrogativa
de função para o julgamento de processos criminais relativamente aos atos praticados no exercício da antiga
função pública. Proposta uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2860), o Supremo entendeu por
declarar inconstitucional a prerrogativa no caso referido acima, sem, no entento, alteração do texto.
A Lei nº 10.628 foi aprovada pelo congresso nacional no inal de 2002, revertendo o entendimento do
Supremo Tribunal Federal e extendendo, novamente, o foro por prerrogativa de função para os ex-detentores
de cargos públicos. Essa lei foi impugnada, posteriormente, através da ADI 2797, na qual o STF declarou, por
maioria de votos, a incostitucionalidade da lei, por tentar superar uma interpretação constitucional da Corte.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Diante disso, é possível que, caso aprovado, o Estatuto da Família venha a sofrar impugnação através
de ação direta de inconstitucionalidade, e pode o Supremo Tribunal Federal decidir por manter o seu en-
tendimento e declarar inconstitucional a lei por ir de encontro com interpretação constitucional já irmada.
Um outro motivo pelo qual deve haver a supremacia judicial no caso do casamento igualitário, refe-
re-se ao princípio da proibição ao retrocesso. A proibição ao retrocesso se perfaz no contexto da segurança
jurídica, corolário do Estado de direito e protegido em diversos diplomas constitucionais, inclusive na nossa
Carta Magna de 1988.
O direito Fundamental (e humano) à segurança, possui várias faces. Ele possui a condição de direito
fundamental da pessoa humana (em seu âmbito pessoal e social) e, simultaneamente, é princípio fundamen-
tal da ordem jurídica estatal e internacional - já que se encontra irmada tanto nos diplomas nacionais como
também em vários diplomas supranacionais (SARLET, 2008; p. 5-6).
Em verdade, a idéia de segurança jurídica e proteção da coniança (do cidadão e da sociedade) está
intimamente ligada à ideia de dignidade da pessoa humana. Ora, O princípio da dignidade da pessoa huma-
na, como já explicitado nesse estudo , é o berço e o fundamento dos direitos humanos, e estes de concretizar
através da eicácia e eiciência dos direitos fundamentais em cada Estado e da proteção da ordem internacio-
nal. Assim sendo, só é possível vizualizar a realização dos direitos fundamentais em um estado que forneça o
mínimo de segurança (aqui em sentido amplo, pois não envolve apenas a jurídica, mas também a econômica,
a pessoal e a social, entre tantas outras) aos seus cidadão. É preciso que o cidadão conie no ordenamento
jurídico e no Direito do seu Estado, que não se sinta refém e não seja apenas manipulado pelo Estado para
fazer o que esse bem entender.
Assim, o direito à segurança encontra-se ligado (e nesse sentido também a proibição ao retrocesso)
ao Estado não apenas em seu sentido formal - na proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da
coisa julgada -, ou seja, um Estado Liberal de Direito, mas também em sentido material, sendo, de fato, um
Estado Democrático de direito. A ação do Estado, portanto, - no que diz respeito aos direitos sociais - deve
ser de carácter positivo - no que se refere à prestação de serviços essenciais a garantir o direito à segurança
-, mas também de carácter negativo - no que tange a não violar os direitos humanos e fundamentais de seus
cidadãos. (SARLET, 2008; p.7-8).
Neste diapasão, também a proibição do retrocesso encontra-se devidademente prevista em nosso or-
denamento jurídico. Exemplos são os já mencionados ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada,
mas não deixam de ser importantes - e na realidade de extrema relevância para esse estudo - as restrições
legislativas dos direitos fundamentias, e até mesmo as limitações feitas ao poder constituinte reformador (li-
mitações materiais e também formais18).
E, da mesma forma como na segurança jurídica, como bem colocar Ingo Sarlet (2008, p. 9), a proibi-
ção ao retrocesso não se restringe, tão somente, a atos passados, mas também a atos futuros:
Com efeito, na esteira do que tem sido reconhecido na seara do direito cons-
titucional alienígena e, de modo particular, em face do que tem sido experi-
mentado no âmbito da prática normativa (muito embora não exclusivamente
nesta esfera), cada vez mais se constata a existência de medidas inequivoca-
mente retrocessivas que não chegam a ter caráter propriamente retroativo,
pelo fato de não alcançarem posições jurídicas já consolidadas no patrimônio
de seu titular, ou que, de modo geral, não atingem situações anteriores. As-
18 Vide SARLET, Ingo. A Eicácia dos Direitos Fundamentais,5a ed., especialmente p. 371 e ss., para maiores informações sobre
os limites materiais à reforma constitucional.
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Direito(s) em debate.
sim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também
pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos.
A união homoafetiva e o direito de constituir família, é direito humanos e fundamental, o qual perpas-
sa tanto os direitos individuais, como os sociais. Sendo assim, uma possível violação desses direitos já asseru-
garados pelo STF, representaria uma afronta tanto à segurança jurídica, quanto principal e especiicamente
ao princípio da proibição ao retrocesso.
Isso porque, mesmo representando ato futuro do poder legislativo - uma vez que ainda não foi apro-
vado o projeto de Lei do Estatuto da Família - este representa uma retrocessão ao estado anterior, já que os
indívios da comunidade LGBTI estariam privados de exercer a união estável e todos os direitos que advém da
sua realização. Isso seria uma falha na eicácia protetiva dos direitos fundamentais.19
Portanto, no que tange ao casamento igualitário, defendemos a idéia de supremacia judicial primeiro
porque a aprovação e efetivação do Estatuto da Família representaria um retrocesso, o que claramente não
é aceito pelo nosso ordenamento jurídico. Em segundo lugar, porque cabe à jurisdição constitucional a pro-
teção ào direito das minorias, e dessa forma, não estaria o Supremo Tribunal Federal usurpando a função do
legislador, mas sim exercendo a sua própria função em prol de um grupo marginalizado. Em terceiro lugar,
porque é esperada uma reção do pretório excelsior frente à possível “violação” do legislativo no que se refere
à entendimento já paciicado no judiciário. O Projeto de Lei (PL) nº 6583 de 2013, também conhecido como
Estatuto da Família, foi proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira do PR/PE. A propositura desse PL
é consequência direta do reconhecimento da união homoafetiva e sua posterior conversão em casamento,
por parte da banca evangélica tradicionalista que compõe o congresso nacional.
CONCLUSÃO
A equiparação da união entre casais do mesmo sexo à união civil para ins de entidade familiar foi um
avanço e um ganho no ordenamento jurídico brasileiro. Em duas ações emblemáticas o Supremo Tribunal
Federal agiu no sentido de defender a constituição e efetivar os direitos fundamentais, exercendo seu papel
de guardião da constituição através da jurisdição constitucional.
Da mesma forma, a CADH não dispõe proibição referente ao casamento igualitário, mas assim como
a nossa carta magna, proíbe a discriminação e pressa pela igualdade. Baseado nisso, é provável que diante
de um caso de violação de direitos humanos, como seria a provação do Estatuto da Família pelo congresso
brasileiro, a corte pudesse agir no sentido de punir o Estado, aproveitando para atualizar seu entendimento
sobre questões desse gênero, como aconteceu com o emblemático caso Atala Rifo e ninãs vs. Chile.
A aprovação do Estatuto da família representaria uma ação retrógrada movida por setores conserva-
dores e tradicionalistas do congresso nacional. Seria uma afronta não só à própria constituição brasileira, mas
também a diversos diplomas internacionais e supranacionais sobre direitos humanos, diplomas normativos
dos quais o brasil é signatário, ensejando penalização.
Por todas essas razões, esperamos uma reação do Supremo Tribunal Federal caso o projeto de lei do
Estatuto da Família seja aprovado pelo congresso. Esperamos pela declaração de inconstitucionalidade da
referida lei, e pela prevalência da interpretação feita pelo pretório excelsior, assegurando o direito de todas as
pessoas em constituírem família.
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Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
A pesquisa busca promover a discussão sobre a tutela judicial do direito ao protesto a partir do pro-
cesso de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, de maio de 2015, envolvendo a ocupação da Rua Neto Campelo, na
capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), após aprovação
e sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015, relativa ao plano urbanístico apresentado pelo Consórcio Novo
Recife para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga.
Para tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa do estudo de caso, exatamente porque são as singu-
laridades do caso que puderam indicar se o Poder Judiciário atuou (ou não) como poder contramajoritário
em amparo à efetivação de direitos fundamentais das minorias. A abordagem volta-se a discutir o direito ao
protesto e as interações entre o espaço público e o privado no processo analisado quando houve a ocupação
da Rua Neto Campelo, endereço do Prefeito, e posterior desocupação determinada pelo Poder Judiciário nos
autos do processo supracitado, ajuizado pela Procuradoria do Município de Recife.
A relexão construída envolve os confrontos práticos entre os direitos fundamentais relativizados atra-
vés da realização dos protestos, de um lado, e as formas de representação dos protestos com vistas a alcançar
impacto na sociedade, por outro, que também não deixam de constituir direitos fundamentais tutelados. Esse
cuidado no trato da matéria faz-se necessário para garantir que a suposta defesa da sociedade não se volte
contra ela própria, oprimindo-a e constituindo instrumento ilegítimo de manutenção de forças políticas no
poder.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Desta feita, o propósito desse artigo não é realizar um juízo de valor peremptório da decisão que
ordenou a desocupação da rua onde o Prefeito reside. Como se estava diante de um conlito de direitos fun-
damentais, múltiplas poderiam ser as interpretações para a resolução do caso. A pergunta de partida, pois,
pode ser sintetizada da seguinte forma: em que medida o magistrado contemplou a discussão sobre direitos
fundamentais no caso da ocupação e desocupação da Rua Neto Campelo? Assim, independentemente do re-
sultado inal da decisão, o objetivo a que se busca é analisar se os caminhos percorridos pelo juiz contemplam
a discussão dos protestos como arena de construção democrática, conforme indicado pela Constituição, ou
não.
Com este intuito, adotou-se como marco teórico a perspectiva de Roberto Gargarella sobre o direito
ao protesto como um direito fundamental de liberdade coletiva. Neste contexto, o trabalho propõe-se, inicial-
mente, a compreender as manifestações populares de rua como um direito constitucionalmente protegido,
mormente em tempos de crise da democracia representativa, envolvendo ainda a proteção dos direitos de
reunião e de liberdade de expressão coletiva, tidos com essenciais para que haja a proteção da crítica feita
ao poder.
Após, com o ito de construir as relexões sobre o tema, como já indicado, são apresentados os ensi-
namentos de Gargarella, especialmente a doutrina do foro público, que aduz serem as ruas, as praças e as
avenidas os locais historicamente vocacionados para a expressão coletiva de opinião.
A partir do caso escolhido, tendo como pano de fundo o conturbado cenário recifense envolvendo
a pauta sobre o direito à cidade, é fundamental compreender a diretriz adotada quando há o conlito entre
interesses diversos e o direito ao protesto, velando para que a discussão e o dissenso, imprescindíveis à demo-
cracia, não sejam tolhidos pelo Judiciário sob a justiicativa de proteção de direitos supostamente prevalentes.
A busca pelo propósito do Movimento Ocupe Estelita é feita, precipuamente, a partir de ocupações
urbanas organizadas e não violentas – realizadas em espaços públicos, em sua maioria, e concentradas no
entorno do Cais José Estelita –, como símbolo na busca pela efetivação dos direitos urbanos. A forma de apre-
sentação do movimento, entre a ocupação e o manifesto, exteriorizada e propagada pelas mídias sociais, é um
dos diferenciais do movimento, permitindo a sua análise contextualizada ao direito ao protesto e ao direito de
resistência, destacando a sua relevância no cenário nacional, entre outras razões, por sinalizar a decadência
do regime democrático representativo e o anseio por participação na política de forma direta e ativa, onde
todos podem ser ouvidos e respeitados em suas subjetividades.
No dia 04.05.2015, foi aprovado pela Câmara Municipal de Recife o Projeto de Lei 008/2015, em uma
situação peculiar de violação do acesso do povo ao debate político. Na ocasião, a Câmara Municipal convocou
às pressas uma audiência para aprovação do Projeto, desconsiderando a recomendação do Ministério Público
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Estadual de que o PL precisaria ser primeiramente discutido pelo Conselho da Cidade antes de ser inserido
na pauta da Câmara dos Vereadores. Apesar das críticas dos poucos vereadores oposicionistas, e apesar do
restrito acesso à casa legislativa ofertado ao povo para a sessão indicada, o Projeto foi aprovado e encaminha-
do ao Prefeito Geraldo Júlio para sanção, cujo ato também ocorreu no mesmo dia.
Na noite do dia 07.05.2015, uma quinta-feira, manifestantes apoiadores do Movimento Ocupe Este-
lita decidiram, de forma espontânea, ocupar a rua onde reside o Prefeito da Cidade do Recife, Geraldo Júlio,
como forma de protesto contra a sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015. A mensagem que os manifestan-
tes tentaram passar com esse ato foi bastante simbólica: se o Prefeito estava supostamente imiscuindo os
interesses públicos com os privados na condução do plano urbanístico dos Cais de Santa Rita, José Estelita
e Cabanga, os manifestantes, de forma análoga, iriam adentrar na seara privada do Prefeito, acampando na
frente do prédio onde reside, a im de pressionar pela prevalência dos interesses públicos.
Durante a ocupação, os manifestantes foram acusados de jogar ovos no prédio, fazer bastante ba-
rulho, bater latas no local, fazer ameaças, impedir o livre trânsito dos moradores e daqueles que passavam
naquela rua. Mesmo que se possam levantar ressalvas éticas e morais contra a atitude dos manifestantes,
que não atrapalharam apenas a vida do Prefeito, mas a vivência de moradores de toda uma rua, estava-se
diante de um caso de exercício do direito de protesto em via pública. Diante da repercussão, a Procuradoria
do Município do Recife ingressou com Ação de Obrigação de Fazer contra os integrantes do Movimento Ocu-
pe Estelita e do Grupo Direitos Urbanos, sob o fundamento de que a ocupação da Rua Neto Campelo, como
bem público destinado à circulação e ao lazer das pessoas em geral, deveria ter sido precedida de licença ou
autorização por parte da Administração Pública.
Se de um lado o Executivo Municipal não é capaz de atender as demandas sociais e volta-se à satisfa-
ção de interesses alheios à sociedade para viabilizar o atendimento de interesses de grandes grupos econômi-
cos – normalmente grandes inanciadores de campanhas –, de outro, o Legislativo Municipal, composto pela
base governista, é instrumento de airmação e continuidade dos projetos tocados pelo Executivo. O Poder
Judiciário, neste contexto, como terceiro e independente poder, deveria se airmar como poder contramajo-
ritário, tutelando as garantias e direitos fundamentais, mas há grande distinção entre o discurso e a prática,
escancarando a falácia do discurso democrático apresentado à população.
Daí surge o interesse para a utilização da metodologia do estudo de caso. Por mais que este método
seja, em tese, passível da crítica da diiculdade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exata-
mente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses que precisam ser en-
frentados pelo Poder Judiciário ao julgar o conlito de direitos fundamentais existentes em qualquer protesto.
Ainal, está-se diante de um exemplo de judicialização do direito ao protesto, com uma farta discussão sobre
os limites de utilização do meio público como forma de exercício democrático. Se porventura há críticas
quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que:
Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da proble-
mática envolvendo o respeito ao protesto como um direito constitucionalmente tutelado. Isso porque, a partir
de um caso extremado, em que manifestantes ocupam a calçada em frente ao prédio do Prefeito, é possível
extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos (VENTURA, 2007, p. 386), fortalecendo-se
a hipótese de que ainda falta amadurecimento do Judiciário para compreender os protestos como instrumen-
tos legítimos de participação democrática popular e, por conseguinte, como verdadeiro direito que, em um
caso concreto, pode vir a colidir com outros, fazendo-se necessária a ponderação.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O direito ao protesto tem se mostrado, nos últimos anos, muito importante para a compreensão do
Direito como instrumento para a solução de conlitos, ganhando destaque tanto na seara do Direito Consti-
tucional quanto do Direito Penal. Roberto Gargarella, desenvolveu vasta obra acerca do derecho a la protesta
social, demonstrando o quanto se faz necessário reletir acerca desse direito que pode ser considerado como
o “primeiro direito”.
Quando Gargarella (2012) fala da relação do direito com o protesto, está se referindo às respostas do
poder público diante dos protestos sociais e, muito especialmente, das respostas conferidas pelo Poder Judici-
ário. Inclusive, Gargarella dedica muito dos seus textos a abordagem do papel que o Judiciário, especialmente
o Judiciário argentino, vem desenvolvendo na temática do direito ao protesto.
Por sua vez, quando tal autor menciona “protestos”, está se referindo às reclamações/reivindicações
feitas por determinados grupos de pessoas, que veem suas necessidades básicas constantemente insatisfei-
tas. Essas reivindicações, por conseguinte, referem-se a problemas envolvendo a carência de trabalho, de
moradia digna, de assistência sanitária, de proteção social, dentre tantas outras violações a direitos básicos
do cidadão (GARGARELLA, 2012).
De acordo com Gargarella (2012), ao pensar sobre os protestos sociais, experimenta-se uma tensão
entre as aspirações democráticas, de um lado, e as preocupações com os direitos de cada indivíduo, do outro.
Uma Constituição, por seu turno, convida a pensar numa maneira de como pensar essas duas preocupações
de forma conjunta. Contudo, quando o protesto social chega ao âmbito do Judiciário, o autor aponta o se-
guinte:
Com isso, o autor chama atenção para a necessidade de o Poder Judiciário aprofundar as relexões
acerca dos conceitos de democracia, direitos, justiça, interpretação constitucional, enim, acerca dos assun-
tos que envolvem muitos tópicos centrais da Filosoia Política e da Teoria Constitucional, para que se possa
debruçar sobre a questão dos protestos sociais de modo mais acurado, e não genericamente, como vem ocor-
rendo (GARGARELLA, 2012).
Citando o artigo 22º da Constituição da Argentina, segundo o qual “o povo não delibera nem governa
senão por meio dos seus representantes” 2, Gargarella atenta para o fato de que, nos casos concretos envol-
vendo os protestos sociais, os juízes argentinos, de um modo ou de outro, acabam efetuando uma interpreta-
ção acerca do signiicado daquela norma constitucional, demonstrando diferentes graus de aprofundamento.
Sobretudo, o que icou em evidência foi o fato de que os juízes, em sua maioria, seguiram a tendência de
uma interpretação mais restritiva, limitada e elitista acerca da democracia, movendo-se em direção do que
Gargarella (2012) denomina de princípio da desconiança.
Essa desconiança estaria exatamente na discussão pública e no que os cidadãos poderiam realizar
através dela e iria de encontro ao que Gargarella (2012) chamou de princípio alternativo da coniança,
segundo o qual a coniança estaria depositada “no cidadão, em nossas capacidades coletivas, na discussão
pública” 3 (GARGARELLA, 2012, p. 23).
1 Tradução livre.
2 Tradução livre.
3 Tradução livre.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Sem dúvidas, interpretar a democracia de modo restritivo, acreditando que aquela se encerraria com
o sufrágio, é uma visão muito pobre acerca da democracia e do que ela pode proporcionar aos cidadãos de
qualquer país. Se comportando dessa maneira, o poder público e os juízes acabam não auxiliando a popu-
lação nas suas aspirações coletivas e terminam por espalhar o medo oriundo das possíveis consequências
penais da participação em uma greve ou manifestação, por exemplo.
Para Gargarella, a ideia de democracia deveria estar associada à ideia de um processo de discussão
coletiva, no qual todos os envolvidos pudessem intervir e expressar suas opiniões em face do que se está por
decidir, principalmente, aqueles cidadãos que seriam mais afetados por tais decisões. A participação da popu-
lação em expressões diretas de democracia, como manifestações e greves, por exemplo, pode ser um meio de
os cidadãos cobrarem dos seus representantes eleitos ações condizentes com os motivos que levaram aqueles
a escolher estes como seus porta-vozes.
No que diz respeito às reivindicações por necessidades básicas insatisfeitas, há, ainda, outro fator que
as tornaria mais graves, qual seja: o fato de que, não apenas na Argentina, mas em diversos outros países,
como salienta Gargarella, o espaço concedido nos meios de comunicação para reclamações não depende da
urgência destas, por exemplo, mas sim, e, sobretudo, da capacidade econômica de quem pretende ser ouvido
(GARGARELLA, 2012).
Por outro lado, se o Poder Judiciário se põe contra as minorias, perseguindo-as ou penalizando suas
reivindicações, isso pode ter um resultado extremamente negativo, tendo em vista que alguns grupos mino-
ritários já não gozam de popularidade, o que deveria levar o Judiciário a tomar atitudes que os protegessem.
Entretanto, parece que os juízes, ao promoverem suas decisões, revelam-se de acordo com as opiniões de
uma maioria hostil.
Com relação à interpretação que é conferida ao texto de uma Constituição, pode-se airmar, desde
já, que se trata de uma tarefa delicada, tendo em vista que o próprio ponto de partida, onde se encontra o
intérprete, já revela diiculdades, pois os textos constitucionais normalmente são repletos de conceitos vagos
e genéricos, como por exemplo, justiça, igualdade e liberdade, fazendo tortuoso o trabalho do hermeneuta.
O que Gargarella aponta é para o fato de um juiz poder livremente se amparar em qualquer doutrina
existente para justiicar algum entendimento proferido através das suas decisões e, com má fé ou não, acabar
cometendo alguns abusos.
Certamente, a tarefa de interpretar as normas constitucionais e aplicá-las aos casos concretos não é
fácil, e ações judiciais envolvendo a colisão de certos direitos demandam um esforço relexivo maior por par-
te do juiz, o qual, ao invés de airmar, simplesmente, que o direito de um termina onde começa o direito do
outro, deveria questionar-se acerca de onde está, mais especiicamente, esse limite ou quais os fundamentos
nos quais se lastreia para dizer que determinado direito termina aqui, ao passo que outro direito começa ali.
Gargarella ainda traz, com relação à forma como as manifestações acontecem, a distinção entre “ex-
pressão pura” (que inclui escritos políticos e panletos, por exemplo) e “expressão com agregados” (o plus
speech), a qual faz referência a marchas, por exemplo, utilizada em alguns países, como nos Estados Unidos.
Essa distinção vem sendo utilizada para proteger as chamadas “expressões puras”, deixando sem proteção
as manifestações com agregados. Por sua vez, Gargarella (2007) propõe o desfazimento dessa dicotomia,
citando a posição de Harry Kalven, segundo o qual toda manifestação/expressão inclui, necessariamente, o
chamado plus speech (GARGARELLA, 2007).
Por mais que seja trabalhoso, o que Gargarella sugere é que, apesar das críticas, deve ser preservado o
conteúdo das manifestações, o que ele chama de el componente expressivo (o componente expressivo) (GAR-
GARELLA, 2007). Assim, o ato de queimar uma bandeira ou de arremessar um ovo em algum político, tem
obrigado os doutrinadores a pensar com mais cuidado sobre esse tipo de atitude por parte dos manifestantes,
levando em consideração a potencialidade das mensagens que tais atos carregam. Para Gargarella (2007),
não prestar a devida atenção a esse ponto signiica desconsiderar uma questão crucial.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Com relação à chamada doutrina do foro público, a doutrina e a jurisprudência internacional tem se
posicionado em sua defesa. Segundo o foro público as ruas, praças e avenidas são lugares tradicionalmente
utilizados para protestos e que merecem, por esse motivo, uma proteção especial (GARGARELLA, 2012, p.
28).
Assim, pode-se perceber o quanto é atual e extremamente necessário o debate envolvendo o direito
ao protesto, pois as manifestações se tornaram comuns nos últimos tempos. Insatisfações variadas motivam
as pessoas a saírem de suas casas e trabalhos para reclamarem nas ruas tudo o que lhes causa incômodo. É
por isso que o papel do Poder Judiciário se torna tão essencial4, tendo em vista que, no âmbito legislativo, o
direito ao protesto não encontra respaldos. Da mesma forma, a doutrina ainda é tímida quando o assunto é
protesto social.
O Poder Judiciário trata-se de um Poder com ampla liberdade para decidir os rumos do Direito Cons-
titucional de um país, porém, é justamente aquele que temos menos possibilidades institucionais de contro-
lar. Além disso, a própria composição do Judiciário é seletiva demais (homens brancos e de classe média).
Como, então, esperar decisões não segregadoras e elitistas por parte dos magistrados?
Por mais que a decisão de um juiz esteja claramente fundamentada em normas e princípios, acres-
cidos da doutrina mais especializada no assunto, inocência não atentar para as convicções pessoais dos
magistrados que, embora não apareçam de modo explícito na fundamentação de uma decisão, certamente
determinam esta.
Se, de um lado, é a polícia quem censura uma manifestação, utilizando-se de meios exageradamente
violentos, por outro, o Judiciário parece não saber lidar com o tema do direito ao protesto, oferecendo tam-
bém decisões que aproximam as manifestações à prática delituosa ou, simplesmente, proferindo relexões
genéricas e rasas acerca desse importante direito.
Em breve síntese, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, a im de que houvesse
a imediata desocupação da rua e seus entornos, cuja circulação estava sendo impedida pelos manifestantes,
chegando, inclusive, a arbitrar multa diária de dois mil reais por pessoa por descumprimento da decisão. Em
virtude do pronunciamento judicial, os ocupantes saíram paciicamente da localidade.
A questão que se impõe, todavia, é a pobreza da decisão no que tange aos debates sobre direitos fun-
damentais. Em verdade, por mais que o magistrado tenha feito referência ao art. 5º, inc. XVI, da CF/88, o
qual institui o direito de reunião para ins pacíicos (albergando, pois, o direito ao protesto), trata-se de uma
citação meramente pró forma, tanto que se ignorou por completo o fato de que, para um protesto, não há
necessidade de autorização administrativa.
4 Segundo Gargarella, o Judiciário, ao enfrentar casos relativos a protestos, deveria atuar com base em dois princípios: o princípio
da imparcialidade ou distância deliberativa, e o princípio das violações sistemáticas (2007, p. 42/45). O primeiro princípio estabelece
que, quando os manifestantes não são membros plenamente integrados na sociedade deliberativa, o Judiciário deve ser mais
sensível às demandas desse grupo, de forma a conferir maior proteção às formas de comunicação eleitas para expor as demandas.
O segundo princípio, por sua vez, indica que as autoridades públicas devem dar atenção especial aos protestos decorrentes de
sistemáticas violações a direitos básicos, sopesando este fator ao analisar as circunstâncias de realização do protesto. Assim, quando
a injustiça é particularmente grave e persistente, os juízes deveriam estar mais abertos a tolerar ações que, em outras situações,
poderiam ser reprovadas.
5 Os trechos entre aspas foram extraídos da decisão interlocutória em comento.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A decisão, de forma simplória, reduziu toda a questão a uma querela meramente administrativa,
como se a ocupação da Rua Neto Campelo fosse uma simples utilização irregular de bem público, e não um
protesto, com proteção constitucional diferenciada, portanto. Nos termos do douto juiz, “a Rua Neto Cam-
pelo e demais ruas e calçadas em seu entorno, por serem espaços utilizados para a circulação e lazer das
pessoas em geral, são consideradas juridicamente como bens públicos, e como tal, qualquer ocupação delas,
(sic) está sujeita a licença ou autorização por parte da Administração Pública”.
Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o modelo do Estado Democrático
de Direito, seguindo a tendência dos Estados Ocidentais, mas também como reação aos abusos e arbitrarie-
dades cometidos durante a ditadura militar. Nada mais natural, portanto, que tenha se dado bastante ênfase
aos direitos e garantias fundamentais, dentre eles os direitos de expressão e participação política, a im de
possibilitar a construção de uma sociedade pluralista, em que múltiplas opiniões tenham vez e voz. Só assim
é possível constituir uma verdadeira democracia, pois, sem que haja um debate livre de ideias e amplas in-
formações, não há como os cidadãos, exercendo a sua autodeterminação, posicionarem-se livremente.
Diante disso, por mais que a CF/88 não tenha falado expressamente em um “direito ao protesto”, há
um desenho institucional que garante essa dimensão coletiva da liberdade de expressão (SANTOS; GOMES,
2014, p. 590-591). Ainal, se o exercício democrático demanda opiniões públicas diversas, é necessário per-
mitir que as pessoas, mesmo que não tenham acesso aos meios usuais de comunicação, possam expor ideias
contrárias ao status quo, o que pode se dar via manifestações de rua. Só assim a opinião pública será, efeti-
vamente, constituída pelo cruzamento de inúmeras fontes, para que os cidadãos possam tomar as decisões
fundamentais da comunidade de forma embasada, em um verdadeiro espaço público de discussão.
Com o objetivo de proteger essa participação do cidadão na sociedade civil, pode-se airmar que a
CF/88 consubstanciou o direito ao protesto, primeiramente, na defesa do pluralismo como fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. V), bem como no âmbito do exercício das liberdades (SANTOS;
GOMES, 2014, p. 593). Têm-se, assim, a liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI) e a liberdade de expressão
(art. 5º, inc. IX, e art. 220) conferindo o substrato para a defesa do exercício coletivo da manifestação do
pensamento.
Muito embora o art. 5º, inc. XVI, da CF/88, diga explicitamente que, para o direito de reunião, não se
faz necessária autorização administrativa, toda a decisão é construída sobre o fato de que, não tendo havido
solicitação prévia para o uso do espaço, a ocupação seria ilegal, o que contraria em absoluto as disposições
constitucionais.
A impressão que ica é a de que o magistrado ignorou o fato notório de que a ocupação tratava-se
de um protesto, e, assim atuando, deixou de exercer o caráter contramajoritário que deveria ser a marca
do Poder Judiciário. Tão raso foi, que sequer fez considerações sobre o fato de que não houve comunicação
prévia da reunião às autoridades públicas, este sim requisito constitucional para o exercício do direito de
reunião. Neste ponto, cumpre destacar, todavia, que ainda sim há críticas quanto à peremptoriedade deste
mandamento, o qual tolheria o caráter espontâneo e imprescindível de muitos protestos. Como nos relembra
Gargarella, seria necessário um esforço para identiicar o “componente expressivo” dessas ações (2007, p.
34), que pode estar exatamente em sua espontaneidade.
Talvez, a ideia de comunicação prévia possa ser interpretada no sentido apenas de evitar que se
frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, e não como uma forma de tornar ilegal
todo e qualquer protesto que não tenha sido comunicado às autoridades, sob pena de tolher de forma des-
proporcional e impedir o exercício da liberdade de expressão coletiva. De toda forma, trata-se de assunto o
qual ainda precisa de elaboração doutrinária (conforme aduz SANTOS; GOMES, 2014), a qual não é o foco
do presente trabalho.
Após toda a explanação sobre a importância do direito constitucional ao protesto, é preciso deixar
claro que, por evidência, não se trata de um direito absoluto, havendo condições para o seu exercício. Com o
pós-positivismo e a declaração da força normativa dos princípios constitucionais, eis que a subsunção cedeu
espaço para outro método de aplicação de normas, a ponderação, segundo a qual, num conlito de princípios,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
se deve efetuar um balanceamento, a im de identiicar qual o princípio que irá prevalecer no caso concreto,
bem como as suas consequências normativas. Desta feita, a depender da circunstância, o direito ao protesto
pode, em tese, ser legitimamente restringido.
Se o conlito de regras se resolve no plano da validade, o mesmo não ocorre com o conlito de prin-
cípios. Pelo fato de eles serem mandamentos ou comandos de otimização, eles jamais podem ser realizados
completamente6. Portanto, em uma colisão de princípios, como ambos os comandos normativos apresentam
a mesma hierarquia e o mesmo valor, o objetivo da ponderação seria restringir o mínimo possível um princí-
pio, para que o outro seja protegido (CAMBI, 2011, p. 92/93), o que se dá por meio do postulado da propor-
cionalidade e seus deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2001).
Mesmo que haja críticas a essa forma de interpretação das disposições constitucionais, no caso em
análise, o magistrado não considerou o direito ao protesto como um direito fundamental, empobrecendo por
demais a discussão jurídica e ignorando o conlito de direitos entre a livre circulação e a manifestação popu-
lar. Independentemente de o momento ser ou não de retirada dos manifestantes do passeio público, a ausên-
cia de cotejo sobre o caráter democrático dos protestos reforça a hipótese de que ainda há muito para que o
direito ao protesto seja plenamente efetivado e respeitado. Tem-se, assim, uma situação em que a prática do
sistema não raro opera em total desrespeito às diretrizes constitucionais, com a repressão desproporcional
aos manifestantes, por mais que as manifestações de rua sejam constitucionalmente protegidas. Está-se,
pois, numa situação de desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante, nos termos
utilizados por Marcelo Neves (1996). Em outras palavras, signiica que o texto constitucional é uma referên-
cia distante dos agentes estatais e dos cidadãos, de forma que a prática desenvolve-se à margem do modelo
estabelecido na Constituição. A constitucionalização simbólica funcionaria, assim, “como álibi em favor dos
agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 1996, p. 327).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocu-
pe Estelita (#OcupeEstelita), apresenta-se como peculiar na medida em que permite a relexão sobre os es-
paços de atuação política destinados aos cidadãos na democracia representativa contemporânea. Ao ter sido
6 Não obstante as diiculdades de conceituação dos princípios, traz-se a deinição elaborada por Humberto Ávila: “[...] pode-se
deinir os princípios como normas que estabelecem diretamente ins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão
qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por isso
dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a
determinação da conduta devida” (2001, p. 21).
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vedado o acesso à Câmara Municipal de Recife, manifestantes do movimento dirigiram-se à rua onde se situa
a residência do Chefe do Executivo Municipal, forçando a relexão sobre os limites entre o público e o pri-
vado, entre o direito de protestar e resistir dos cidadãos manifestantes e a liberdade daqueles cidadãos even-
tualmente prejudicados pelo processo de ocupação urbana, ainda que pacíica. O processo de nº 0024756-
03.2015.8.17.0001 criava expectativas acerca deste debate, envolvendo direitos e garantias fundamentais.
Todavia, após a leitura da decisão em análise, que tem por fundamentação uma citação doutrinária
descontextualizada sobre poder de polícia, autorização e licença, ica a frustração pela ausência de debate
sobre direitos fundamentais, logo quando se está diante de um caso de exercício democrático via pressão
popular na rua da residência do Prefeito.
Em tese, protestos “desarrazoados” são reprimidos tendo por base o exercício legítimo da força pelo
Estado. Todavia, cabe o questionamento sobre até que ponto esse uso da violência institucional é cabível,
para que o Estado não sirva, em verdade, à perpetuação de situações de dominação, mormente ao ignorar o
caráter fundamental do direito de reunião.
Quando os casos chegam ao Judiciário, este ica diante de duas concepções de democracia: uma
mais restritiva, em que se tolhe o direito ao protesto, e outra mais inclusiva e ampla. Ora, por se estar em
uma democracia representativa, o Judiciário deveria ser mais atento às manifestações de crítica ao poder
constituído, até porque o poder emana do povo. Não obstante, não é incomum que os magistrados punam
os supostos excessos cometidos em protestos com base no argumento de que “todo direito tem limites”, sem
qualquer fundamentação mais aprofundada sobre que limites seriam esses. Não se cumpre, pois, o dever do
ônus argumentativo do intérprete, mais acentuado em se tratado de cláusulas abertas como a referida.
No estudo de caso analisado: a casa do povo (Legislativo) deixa de ser de acesso público e de parti-
cipação da sociedade; o Judiciário deixa de analisar a importância e o contexto das manifestações e o argu-
mento dos excluídos; e a ordem é para desocupar as ruas. É tempo de reletir sobre os espaços destinados à
participação dos cidadãos e o direito fundamental de oposição ao sistema, pilares de um regime político dito
democrático.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
SUMÁRIO: introdução; 1. Revisão judicial como elemento da democracia (ou não): as visões de Ro-
nald Dworkin e Jeremy Waldron; 2. O judiciário seria realmente neutro e imparcial? A visão de Robert
Dahl; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Judiciário ou legislativo? Quem tem direito à última palavra em questões políticas relevantes e con-
troversas é assunto sobre o qual, desde a obra histórica de Dahl, escrita em 1957, vários teóricos políticos,
juristas e constitucionalistas têm se posicionado.
Primeiramente é explorada a visão de Ronald Dworkin - que se opõe claramente à de Dahl e Waldron
– que defende ser o Judiciário a instituição competente para decidir questões políticas que envolvam morali-
dade. Igualmente, defende que a Corte estaria mais apta a proteger a minoria contra a “tirania da maioria”,
uma vez que a premissa majoritária não implica democracia. O procedimento democrático também não de-
iniria qual autoridade é a legitimada para proteger direitos, importando mais o conteúdo da decisão do que
“quem decide”.
Igualmente, é abordada a visão de Jeremy Waldron - o maior crítico de Dworkin – quem considera
que, no que diz respeito às questões morais, sempre haverá discordância, não havendo uma resposta corre-
ta. A única forma, portanto, de se garantir uma decisão democrática seria através do procedimento, não do
conteúdo. Seria o Judiciário não-responsivo perante os eleitores e, portanto, ilegítimo para decidir questões
políticas, que só poderão ser plenamente debatidas, com igualdade, no âmbito legislativo.
Por im, faz-se uma breve conclusão, contrapondo a visão dos autores trabalhados.
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Direito(s) em debate.
Para os defensores da revisão judicial, como Ronald Dworkin, dito instrumento aprofundaria a de-
mocracia, ao proteger os direitos das minorias contra a “tirania da maioria”. Dworkin defende que a leitura
moral realizada pela Suprema Corte é extremamente necessária. Como exemplo, cita o caso Brown, em que
a atuação da Corte foi necessária para que se pudesse extinguir a segregação oicial nas escolas. O autor,
igualmente, defende que uma alternativa intermediária é impossível, e que resta aos juristas e constitucio-
nalistas aceitar a leitura moral realizada pelos juízes (DWORKIN, 2006, p. 18-21).
A tese principal de Dworkin ataca a premissa majoritária, ou seja, a premissa de que as decisões
políticas a que se chega devam ser as favorecidas pela maioria dos cidadãos. Tal premissa não implicaria de-
mocracia. Conforme sua concepção comunitária - segundo a qual as decisões políticas deveriam ser tomadas
pelo “povo” enquanto tal, e não por “indivíduos encarados um a um” - “uma sociedade em que a maioria
despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima” (DWORKIN, 2006,
p. 24-26/ 31/ 38-39).
A Corte, então, seria considerada o “fórum do princípio”, de modo que não haveria necessidade de
representação nos moldes tradicionais, ao contrário do que defendem os que se opõem à revisão judicial,
como Waldron. Para evitar que a maioria se torne juíza da própria causa, não deveria ser ela quem decide
quais decisões majoritárias devem ser aceitas (DOWRKIN, 2010, p. 222-223).
As decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que de-
vam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria. O constitucio-
nalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados
para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa
ou má, mas foi adotada pelos Estados Unidos, e não parece justo ou coerente
permitir que a maioria julgue em causa própria. Dessa forma, os princípios
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Uma das principais críticas feitas à revisão judicial, e que será feita por Waldron, é justamente essa
aparente falta de legitimidade dos juízes. No entanto, para seus defensores, como é o caso de Dworkin, a
proteção aos direitos individuais, ou seja, ao conteúdo, compensa. Além do mais, teriam os juízes melhor
formação técnica e não estariam subordinados às pressões políticas (LEIBIR; DUTRA, [s.d], p. 8-9). Nas pa-
lavras de Dworkin (2005, p. 17): “os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões
que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”.
Conclui Dworkin que os tribunais devem ser ativistas, de modo que estejam preparados a formular e
dar respostas a questões de moralidade política.
Dahl, como veremos, irá derrubar esse argumento de Dworkin, ao provar que o Judiciário sempre se
alia à aliança nacional dominante, logo, não seria neutro.
Contrariamente a Dworkin, Jeremy Waldron se opõe à chamada revisão judicial “forte”, que é a exis-
tente nos Estados Unidos da América (e no Brasil), em que os tribunais têm autoridade para declarar que
determinada norma não será aplicada, transformando-a em letra morta. Waldron parte do pressuposto de
que existe um compromisso por parte da maioria dos membros da sociedade e da maioria de seus funcio-
nários em respeitar os direitos individuais e das minorias (WALDRON, 2006, p. 1354/ 1360). Pergunto-me
em quantos países ocidentais a maioria da população os respeita e os leva em consideração para tomar suas
decisões. Acredito que em poucos.
Assim, Waldron, diferentemente de Dworkin, acredita que os membros de uma sociedade sempre
irão discordar a respeito de se determinada decisão viola ou não direitos, não existindo uma única decisão
correta. Como resposta a esse problema de desentendimento moral, Waldron defende a legitimidade do pro-
cedimento, contrapondo-se à visão de Dworkin, que preza pelo conteúdo (WALDRON, 2006, p. 1369- 1370).
Waldron salienta o insulto que é considerar que os cidadãos não deveriam dirimir seus conlitos por
meio do procedimento majoritário, outorgando a um seleto grupo de juízes a autoridade de fazê-lo. Na verda-
de, o procedimento adotado pelos tribunais para se chegar a uma decisão é o mesmo: a votação majoritária.
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Direito(s) em debate.
que juízes discordam entre exatamente pelas mesmas linhas que cidadãos e
representantes, e que juízes tomam suas decisões, também, por votação ma-
joritária. Cidadãos podem sentir que, se desacordos nesses assuntos devem
ser resolvidos pela contagem de cabeças, então são as suas cabeças ou as de
seus representantes que deveriam ser contadas (WALDRON, 2001, p. 15).
Assim, já que ambos decidem de forma majoritária, antes todos os cidadãos decidindo por maioria do
que um seleto grupo de juízes fazendo o mesmo. Dessa forma, para o Waldron, a Suprema Corte não seria
uma instituição contramajoritária. Tampouco teria o argumento dos juízes ou a qualidade de suas decisões,
peso no seu voto (MENDES, 2008, p. 102).
A defesa do procedimento como melhor maneira de se obter uma decisão democrática levaria a duas
perguntas fundamentais: “por que eles? Por que não eu?” e “no procedimento decisório, por que não foi dado
maior peso aos pontos de vista dos legisladores que concordam comigo sobre o assunto?”. Primeiramente,
seriam os legisladores quem decide, pois foram eleitos diretamente pelo povo, logo, são responsivos perante
este. Nas eleições, os cidadãos decidem, em condição de igualdade, quem deverá assumir o posto privilegia-
do de representá-los na tomada de decisões. Em segundo lugar, o princípio majoritário garantiria justiça e
tratamento igualitário a todos. Assim, todas as opiniões têm peso igual (WALDRON, 2006, p. 1387-1388).
Ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar
que mesmo as decisões que contrariam os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita,
serão consideradas democráticas. Assim, uma decisão que fosse contrária ao matrimônio igualitário continu-
aria sendo democrática, uma vez que passou pelo debate legislativo. Já para Dworkin, uma decisão legislativa
que não reconhecesse esse direito estaria ferindo o direito de uma minoria e precisaria passar pelo crivo do
Judiciário.
Waldron, igualmente, deveria levar em consideração que, embora a deliberação legislativa suposta-
mente deixe todos em situação de igualdade, nem todos possuem a mesma capacidade de inluência, restan-
do claro que o legislativo também sofre pressões políticas e econômicas. Este foi um dos argumentos trazidos
por Dworkin em seu livro “A virtude soberana”, em que reconhece que há uma diferença de inluência, no
processo político, que determinados grupos possuem em relação a outros. Dessa forma, embora o voto dos
eleitores tenha o mesmo impacto, nem todos conseguem exercer a mesma inluência no processo político
(DWORKIN, 2005, p. 270-271). Assim, considerando que o parlamento pode traduzir uma desigualdade
considerável de representação, defende Dworkin que a revisão judicial.
Quanto ao argumento de que a revisão judicial seria eiciente para proteger direitos das minorias
contra a tirania da maioria, Waldron argumenta que tirânico é sempre algo relativo. Sempre que um lado
discordar de algo, achará que o lado a favor estará sendo tirânico. Como exemplo, o autor cita a lei que regula
o inanciamento de campanha. Os que se opõem à referida lei sempre a acharão tirânica (WALDRON, 2006,
p. 1395-1396).
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Direito(s) em debate.
Dahl inovou ao ter sido o primeiro a reconhecer a Suprema Corte norte-americana como sendo,
também, uma instituição política. Ainal, é comum que a Suprema Corte tenha de decidir casos em que há
severos desacordos dentro da sociedade, como nos casos em que estão em questão a regulação da economia
pelo Estado ou a segregação racial. Nesses casos, a decisão da Corte é política, e a sociedade precisa aceitar
esse fato (DAHL, 1957, p. 279-280).
Dahl demonstra que o entendimento da Suprema Corte está sempre alinhado com o da aliança
nacional dominante. Ainal, os ministros são indicados pelo presidente, que não indicaria um juiz que fosse
hostil a suas políticas públicas. Dessa forma, estaria a Corte menos propensa a obter sucesso se a iniciativa
bloqueada for a de uma maioria. Inclusive, uma maioria legislativa forte sempre conseguiria superar o veto
da Corte. Conclui alegando que a Corte não é eiciente protegendo direitos fundamentais e que tem poucos
poderes para afetar o curso da política nacional (DAHL, 1957, p. 284-286/ 288/ 292-293).
Como as investigações de Dahl se deram em 1957, questiono se ele teria tido as mesmas conclusões
se dita pesquisa tivesse sido levada a cabo nos dias atuais. Decisões como a aprovação do casamento iguali-
tário e a reforma da saúde afetaram fortemente o curso da política nacional norte-americana e protegeram
direitos de minorias, mas são decisões que também estavam totalmente alinhadas com as políticas do exe-
cutivo, o que talvez comprove a tese de que o judiciário se alia à aliança nacional dominante. É possível que
a Suprema Corte apenas tenha protegido direitos fundamentais de minorias, nesses casos, porque a aliança
nacional dominante tem viés progressista.
A teoria de Dahl também põe, por água abaixo, o argumento dos defensores da revisão judicial - como
Dworkin - de que seria melhor que o Judiciário decidisse as questões importantes, pois seria uma instituição
neutra, diferentemente do legislativo, que sofre pressões políticas e econômicas. Ao demonstrar que o enten-
dimento da Suprema Corte tende a se alinhar com o da aliança nacional dominante, o status de “neutralida-
de” da instituição é posto, claramente, em cheque.
CONCLUSÃO
É difícil se posicionar quanto a quem deve dar a última palavra, se o judiciário ou o legislativo. Tanto
os argumentos de Dworkin a favor da revisão judicial, como os argumentos de Dahl e Waldron, contrários a
dito instituto, são bastante convincentes.
Talvez os que defendam a revisão judicial, como Dworkin, em boa medida, estejam insatisfeitos com
a democracia representativa. Para que se possa defender vigorosamente os legisladores, é preciso acreditar
que eles realmente estão sendo representativos. É evidente que, em uma grande quantidade de casos, foi o
Judiciário quem protegeu o direito das minorias, como recentemente, quando a Suprema Corte norte-ame-
ricana reconheceu o matrimônio igualitário.
É verdade, igualmente, que, no citado caso do matrimônio igualitário, dita decisão estava totalmente
alinhada com as políticas do presidente, o que favorece a tese de Dahl de que o Judiciário tende a se alinhar
à aliança nacional dominante. Talvez a revisão judicial passe a ser mais bem vista, aceita e preferida, em
tempos em que o executivo e o judiciário têm viés mais progressista, situação em que irão tender a, de fato,
proteger os direitos das minorias não reconhecidos pelo legislativo.
No que diz respeito à legitimidade democrática, difícil contestar o argumento de Waldron de que os
legisladores são os legitimados, uma vez que foram eleitos diretamente pelos cidadãos e, portanto, são res-
ponsivos perante estes. Por outro lado, ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa
forma, termina por considerar que, mesmo as decisões que contrariem os direitos das minorias, se delibera-
das por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas.
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Por im, não pretendo posicionar-me em favor ou contrariamente a nenhuma das posições. Os argu-
mentos dos três autores estudados demostram como, a depender do aspecto a ser observado, uma das posi-
ções parece mais acertada que a outra, o que torna difícil a construção de um posicionamento inal.
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Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
De acordo com Luhmann, a formação do Estado moderno ocorreu mediante a diferenciação funcio-
nal da sociedade. Manifesta-se, inicialmente, no sistema político e a posteriori, no econômico e no jurídico.
A partir da distinção sistêmica, são construídos os paradigmas modernos: a soberania (“staatgeralst”), a eco-
nomia de mercado e o monismo jurídico (GALINDO, 2006).
Na lição de Wolkmer (1994), os mais prejudicados pela falência das instâncias política e jurídica são
os grupos vulneráveis. Estes passam a exigir o reconhecimento de um soberano jurídico para cada cultura,
no intuito de reverter o contexto de exclusão no qual se encontram devido à explanada falência.
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Direito(s) em debate.
Funda-se, destarte, o pluralismo jurídico, um dos paradigmas contemporâneos do direito. Para ser
concretizado, explica Raquel Fajardo (2015), deve haver uma ruptura com o constitucionalismo monista
liberal do século XIX e com o constitucionalismo integracionista do século XX. Estabelecido o pluralismo
jurídico, diversos questionamentos vêm à tona.
1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO.
Segundo Marcelo Neves (2010), na sociedade hodierna, a partir da globalização, os problemas de di-
reitos humanos e regulamentação do poder, por exemplo, interessam a diversos ordenamentos jurídicos: na-
cionais, locais, transnacionais, supranacionais e internacionais. O pluralismo jurídico, ao reconhecer novas
ordens normativas, acentua a rede de tutela multinível de direitos (fundamentais) exposta. Nesse contexto,
César Garavito (2015) questiona: qual(is) o(s) método(s) para compatibilizar os inúmeros ordenamentos,
posto a diversidade e, por vezes, a incompatibilidade entre eles? O presente artigo destaca a teoria de Neves,
o transconstitucionalismo.
No que tange à América Latina, sobressaem-se as relações transversais estabelecidas entre as ordens
locais indígenas e os Estados. Isto porque, na última década, há surgido, no continente, um movimento
constitucional denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, pelo qual se intenciona garantir a
autonomia das tribos indígenas perante os tribunais estatais: propósito semelhante ao do transconstituciona-
lismo referente à problemática. O vínculo aludido, então, esclarece a possibilidade de estudar o método e o
movimento conjuntamente.
No supracitado estudo, entretanto, notam-se pontos divergentes. É interessante, tanto para o trans-
constitucionalismo, como para o novo constitucionalismo, o alcance de uma compatibilização dos menciona-
dos pontos, a im de que possam se fortiicar reciprocamente.
Na América Latina, a inclusão almejada pelas tribos indígenas visadas pelo Novo Constitucionalismo
pressupõe o reconhecimento de um ordenamento jurídico próprio para cada cultura presente dentro dos
Estados. Diante dessa nova coniguração, os Estados nacionais são substituídos pelos plurinacionais.
Na realidade fática da região, esse projeto não aconteceu igualmente. Ao ponderar o reconhecimento
da diversidade étnica nas Constituições vigentes da América Latina, Rodrigo Uprimny (2011) as categoriza
em três diferentes tipos. O primeiro reúne as adeptas de um “pluralismo liberal”, as quais não reconhecem
nenhum direito especial às comunidades discriminadas. Entre outros Estados, incluem-se nesse grupo o
Chile, o Uruguai e a Costa Rica. O segundo promove o multiculturalismo, máxime através da jurisprudência
dos Tribunais constitucionais. A Colômbia é um exemplo nítido. Quanto aos dois primeiros grupos, é frequen-
te o debate concernente à autenticidade dos processos constitucionais. Indaga-se se os citados ordenamentos
jurídicos foram construídos como resposta às demandas e aos desaios sócio-políticos das regiões nas quais se
encontram; ou se são uma tentativa de copiar ideais eicazes na conjuntura europeia, contudo ineicazes na
complexa realidade latino-americana (GARAVITO, 2015).
O terceiro tipo de Constituição, por im, remete ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano e, por
conseguinte, ao Equador e à Bolívia. Estas não se restringem a promulgar direitos característicos de um Es-
tado multicultural, porém ainda unitário, precipuamente no tocante às diversas nações nele presentes. Inau-
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Direito(s) em debate.
guram, pois, um Estado plurinacional e intercultural. Em termos práticos, essas Constituições reconhecem
a autodeterminação dos povos indígenas, ao atribuir-lhes circunscrições próprias de representação política e
judiciária. Ademais, institucionalizam as línguas e os elementos da cultura nativa (UPRIMNY, 2011).
Isto posto, vale salientar a existência de outras classiicações com critérios deveras semelhantes, tal
qual a elaborada por Raquel Fajardo (2011). Analogamente, a jurista divide as Constituições em três ciclos.
A ideia é situar os Estados de acordo com o grau de avanço nas questões relacionadas ao pluralismo. Nessa
linha, o primeiro ciclo apresenta as Cartas com menor propensão às demandas das comunidades ora trata-
das. O terceiro, por sua vez, dispõe os Estados com o maior reconhecimento às problemáticas advindas da
diversidade cultural.
No próximo tópico, serão narrados litígios cuja resolução valeu-se do transconstitucionalismo e nos
quais um dos litigantes tratava-se de grupo(s) nativo(s). O intuito é sobrelevar a simbiose apontada, para
suscitar discussões sobre essa hipótese aos interessados tanto na efetivação do método transconstitucional
como no fenômeno do novo constitucionalismo no continente. Antes da narrativa, no entanto, salienta-se a
necessidade de aplicar o método de modo distinto. O motivo é a desigualdade de expor normas válidas entre
os indígenas e as demais ordens. Como atenta Neves (2010), há um risco destas se imporem àquelas. Ou
seja, o transconstitucionalismo, nesses casos, deve funcionar como um instrumento de empoderamento do
coletivo indígena, para que se consiga preservá-lo, assim como se faz com os demais.
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Nesse ponto, discute a questão do relativismo e do universalismo dos direitos humanos. Como per-
cebe-se, é um debate comum tanto ao transconstitucionalismo, como ao novo constitucionalismo, uma vez
que este propõe um Estado plurinacional, ou seja, com diversas jurisdições. Isto posto, é imperioso atentar
para a importância de se encontrar pontos de interseção entre as culturas constitucionais, a qual não implica
necessariamente em uma uniformidade teórica.
O dilema entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos possui uma relevância particular
para a América Latina. No ensinamento de Julieta Ripoll (2015), a região padece de uma grande instabilida-
de sobre “quem é e quem não é um ‘ser humano’” desde a colonização europeia, quando aos índios não era
atribuída a “humanidade” e tampouco direitos. Diante desse quadro, João Paulo Allain Teixeira (2000) enten-
de o relativismo como um modo de garantir aos povos historicamente dominados a emancipação da cultura
e, portanto, da própria coletividade. Isto porque o universalismo, conforme explanado, tende a valorizar as
sociedades dominantes em detrimento das demais – em oposição ao relativismo.
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A mesma lógica, em diferentes proporções, da preservação das tribos indígenas pode ser aplicada em
outros casos. Entre os quais os negros, vítimas de racismo; da memória dos torturados, nas ditaduras recen-
tes, olvidadas pelo Estado; dos moradores de favelas das capitais brasileiras frente às ações abusivas da Polícia
Militar. São contextos, por vezes, excluídos de direitos e, portanto, ausentes de humanos.
CONCLUSÃO
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
CONTEXTUALIZAÇÃO
A busca pelo crescimento econômico por meio da formação de blocos regionais é uma estratégia que
foi, e continua sendo, adotada por diversos países. A contextura do atual cenário econômico global se carac-
teriza pela existência de uma ampla mobilidade no luxo de capitais e dos demais fatores de produção.
A instalação de um capitalismo global é inegável, sendo possível visualizar uma dupla e contraditória
dinâmica entre concentração e fragmentação. Onde se tem, por um lado, uma voraz competitividade que,
por meio de fusões e aquisições empresariais, visa a concentração de capital em busca de reconhecimento
e liderança; de outro lado, a fragmentação da produção em escala mundial, por meio dos processos de sub-
contratação, terceirização e informalização do trabalho, para suprir a demanda desse mercado globalizado
(DUPAS, 1999).
Na verdade, a questão social toma relevância nos espaços regionais, especiicamente no Mercosul,
na medida em que a abertura de mercados mostra ampla repercussão na estrutura dos empregos. Os tra-
balhadores passam a ser o único fator de produção imóvel, enquanto capital e meios de produção circulam
livremente. Desta maneira, surge o chamado “dumping social”, em virtude da disparidade do nível de desen-
volvimento da legislação sócio laboral de cada um dos países signatários do Mercosul.
Nesse sentido, a iminente adesão da Bolívia ao Mercosul acarreta uma fundada preocupação acerca
de seus relexos no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil no Brasil. Tendo em
vista que os problemas lutuantes sobre as imigrações bolivianas com intuito laboral, são lagrantes e existen-
tes desde a intensiicação do luxo migratório de bolivianos na década de 80 (ILLES, et. al., 2008).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O acordo entre Brasil e Seul, que teve como objetivo “aliviar o desemprego que atingia a Coreia do
Sul – em função da grande leva de pessoas que fugiram do regime comunista da Coreia do Norte, inlando a
oferta de mão-de-obra no sul –” (ROSSI, 2005, p. 22), marca as raízes da celeuma.
A primeira leva de coreanos desembarcou no porto de Santos no dia 12 de fevereiro de 1963, do navio
Tjitjalenk, sendo destinados ao comércio de roupas intermediado pelos judeus, proprietários de grandes lojas
do ramo. Os coreanos foram ousados, investiram na confecção de peças e na produção familiar, recebendo
maior abertura no momento em que os judeus passaram a trabalhar em outros segmentos. O mercado pas-
sou a exigir uma produção em larga escala concomitante ao período em que os bolivianos fugiam da situação
crítica de seu país, sendo rapidamente absorvidos pela demanda coreana (ROSSI, 2005).
Fausto Brito (1995) defende em seus estudos a existência da chamada ilusão imigratória contida no
imigrante internacional. Onde de um lado se está diante de uma racionalidade imersa na decisão de emigrar
e por outro lado, há a consideração (ou miragem) das condições da região escolhida.
Atualmente a imagem acerca da existência de trabalho digno no Brasil auxiliado à expectativa de as-
censão social, continua presente na percepção do povo boliviano, em especial, os provenientes da região de
La Paz e Cochabamba (SILVA, 2006).
O fato é que as senzalas do século XXI revelam um cenário tão crítico quanto o de outrora, caracteri-
zado, acima de tudo, pela ausência de efetividade das proteções constitucionais sócio laborais para esse nicho
especíico de trabalhadores, considerados como suspeitos para segurança nacional diante da interpretação do
anacrónico Estatuto do Estrangeiro.
Com isso, a presente pesquisa se destina a extrair as perspectivas pragmáticas de proteção em aspec-
tos mínimos de desenvolvimento humano para os imigrantes bolivianos com a iminente expansão do bloco
econômico.
Desde a formação do Mercosul, a ideia de livre circulação de pessoas encontrava acepções vagas e di-
vergentes entre os integrantes do bloco. A livre circulação em um Mercado Comum, de acordo com o modelo
europeu, deverá implicar na formação de um mercado de trabalho único, o qual, por força da incorporação
normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, deverá se pautar pela igualdade de direitos entre os
trabalhadores do bloco, o que se relete numa vedação de discriminação do trabalhador em função de sua
nacionalidade.
No intuito de amenizar o impacto social da circulação de pessoas entre países com diferentes padrões
socioeconômicos e jurídicos, em dezembro de 1991, o Encontro dos Ministros do Trabalho do Mercosul su-
geriu a criação do Subgrupo nº 11 como órgão consultivo na estrutura do Mercosul, aprovada na reunião do
Conselho do Mercado Comum em 17/11/1991.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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José Alves de Paula, coordenador do estudo em 1992 apontava a vantagem do método, uma vez que,
para a quantiicação dos custos trabalhistas e encargos sociais, é possível a manutenção de vantagens maiores
oferecidas por alguns países, uma vez compensadas por outras menores. Assim, o trabalho de harmonização
prescinde da convergência de cada instituto individualmente (NASCIMENTO, 2004).
Para que a livre circulação de trabalhadores possa se tornar uma realidade no Mercosul, não é sui-
ciente a liberdade de acesso ao emprego. A circulação do trabalhador depende, sobretudo, das condições de
permanência no país onde se trabalha.
Atualmente, a discussão da eicácia jurídica dos direitos trabalhistas no espectro internacional passa
pela conveniência de sua vinculação ao comércio internacional. A inluência do comércio nos custos laborais
se revela na medida em que países que abrem mão do maior número de direitos trabalhistas conseguem des-
locar para si determinados setores produtivos, caracterizando o chamado “dumping social”.
Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Ministra do TST, defende que a Declaração Sócio Laboral do Mer-
cosul não se confunde com uma decisão do Conselho Mercado Comum, regida pelo direito comunitário (PE-
DUZZI, 2005). Tratando-se de um instrumento internacional assinado pelos presidentes dos países membros
deve ser regida pelas normas gerais de Direito Internacional Público, respeitada a característica de tratar-se
de norma de consagração de direitos humanos sociais.
A noção de bloco de constitucionalidade está presente no Brasil nas discussões sobre controle de
constitucionalidade e foi tratada com grande clareza pelo Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 595-ES,
na qual discorre sobre a existência de uma tendência ampliativa de, no conceito de Constituição, da seguinte
forma:
Cumpre destacar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 352 e seguintes, segundo um
princípio de nacionalização do trabalho vigente na época de sua promulgação, instituiu uma proporção de
dois terços de empregados brasileiros nas empresas nacionais.
Além disso, o Constituinte de 1998, em prol da segurança e do interesse nacionais estabeleceu a ve-
dação de alguns cargos e atividades para estrangeiros. No art. 12, § 3º estão enumerados determinados cargos
privativos de brasileiros natos, quais sejam o de Presidente da República, e, por conseguinte, a ocupar a linha
sucessória de substituições, o de Vice Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Presidente do Senado Federal e de Ministro do STF; assim como os cargos de Carreira Diplomática, de Oicial
das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa.
As hipóteses de concessão de vistos correspondem a uma classiicação de ingressos que ignora o di-
reito à livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário: trânsito, turismo, temporário e permanente.
O visto temporário, tratado pelo art.13 do Estatuto do Estrangeiro, abrange apenas determinadas ca-
tegorias proissionais especializadas, destinando-se ao estrangeiro em viagem cultural ou missão de estudos;
em viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; na condição de estudante; na condição de
cientista, professor, técnico ou proissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo
brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agencia noticiosa estrangeira;
e na condição de ministro de conissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação
ou ordem religiosa.
Por outro lado, o visto permanente restringe ainda mais a possibilidade de residência, posto que só
será conferido a quem seja tido como mão-de-obra especializada, capaz de contribuir com a política nacional
de desenvolvimento do país, incrementando a produtividade e assimilação de tecnologia, dentre outros requi-
sitos a serem estipulados por meio de resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração. Em todos os casos, o
estrangeiro trabalhador está proibido de exercer diversas atividades elencadas no art. 106 do Estatuto.
O que se observa no Brasil é que seja para o visto permanente ou temporário, a entrada do trabalha-
dor migrante está sempre condicionada à solicitação da empresa interessada em contratar, conforme dispos-
to na Resolução Administrativa nº 07 de 06 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Imigração.
Torna-se evidente que só mão-de-obra bastante qualiicada será capaz de preencher tais requisitos. A
livre circulação é iccional para o trabalhador de baixa qualiicação. No próprio âmbito comunitário, os meca-
nismos de circulação do trabalhador se concentram na área de serviços. No ano de 2000 o Conselho Mercado
Comum aprovou o Decreto nº 48, que permite dispensa de visto a determinadas categorias proissionais,
como artistas, professores, cientistas, proissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver
suas atividades por até noventa dias corridos, prorrogáveis por igual período, no limite de cento e oitenta dias
anuais.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Quanto ao reconhecimento de títulos, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 800 de 2003,
incorporou a sua ordem jurídica o “Acordo de admissão de títulos e graus universitários para o exercício de
atividades acadêmicas no Estados Partes do Mercosul” por meio do qual se estabelece uma carga horária mí-
nima para reconhecimento de títulos de graduação e pós-graduação, bem como um Sistema de Informação
e Comunicação do Mercosul, que proporcionará informação sobre as agências credenciadoras dos Países, os
critérios de avaliação e os cursos credenciados.
Por im, a mais recente conquista em prol da livre circulação, com relexos no trabalhador, que en-
controu acolhida na ordem jurídica interna foi o “Acordo sobre Regularização Migratória Interna de Cidadãos
do Mercosul”, por meio do Decreto Legislativo nº 928 de 2005, por meio do qual se busca a facilitação dos
trâmites migratórios para os cidadãos dos Estados Partes do MERCOSUL, no sentido de permitir sua regula-
rização migratória sem a necessidade de regressar a seu país de origem.
Nessa linha ainda se segue o projeto de lei n.º 288/2013 do senador Aloysio Nunes Ferreira, já reme-
tida à Câmara dos Deputados, buscando, dentre outros, a efetiva substituição do Estatuto do Estrangeiro,
como é possível extrair da explicação da ementa da iminente lei:
Segundo Rossi (2005), a maior parte dos funcionários utilizados na indústria têxtil brasileira é com-
posta pelos imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. São ele paraguaios, chilenos, bolivia-
nos, peruanos que saem dos seus países de origem buscando a sobrevivência do sonho de uma vida melhor.
Atualmente é possível constatar que entre os hispano-americanos, os imigrantes bolivianos no Brasil são a
maioria, localizados, em especial, no estado de São Paulo.
De acordo com os dados trazidos por Silva (2008), no Censo de 2000 houve o registro de 20.388 imi-
grantes bolivianos que residiam no Brasil e no Censo de 2010, já se tinha 38.826 o que constitui um aumento
de 90,43% somente naquele período.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse ponto, toma-se cuidado para que com o exposto não se chegue a uma falsa premissa. Pois é co-
mum e falacioso deduzir que o processo migratório ocorre de forma espontânea, ao livre arbítrio das pessoas
que vão em busca de melhores condições. Ocorre que esse processo é, na verdade, induzido. Observe que a
Bolívia é um dos países mais pobres da América Latina. Em sua própria pátria os bolivianos são expostos e
submetidos a atividades laborais precárias, sem perspectiva de crescimento e sem condições dignas vida, são
coagidos pelo próprio meio no qual estão inseridos a migrar, para que sejam componentes efetivos do sistema
capitalista (MARINUCCI, 2005).
Nota-se que a mão-de-obra boliviana é estratégica para alimentar esse sistema. Os donos das oicinas
de costura se utilizam dos sonhos que envolvem a ascensão social e se projetam para os imigrantes como se
fossem os responsáveis pelo resgate de uma vida sem perspectivas.
Dessa forma, diferentemente dos escravos ligados à produção rural da fronteira agrícola da Amazônia,
que sofrem intensiva e constante coação física, a submissão à condição degradante e de superexploração dos
bolivianos na indústria têxtil se dá por meios indiretos de coação moral e psicológica. “Em nome da idelidade
e da possibilidade de trabalhar, o imigrante clandestino exerce um contrato de trabalho verbal no qual ele é
remunerado por peça, totalizando um salário-hora muito abaixo da mão de obra local e exercendo uma jor-
nada extensa de trabalho, que pode atingir 16 ou 18 horas por dia” (CACCIAMALI, AZEVEDO, 2005, p.137).
Teoricamente, tanto a Bolívia quanto o Brasil trazem um arcabouço normativo de repressão ao tra-
balho escravo contemporâneo. Na dicção dos artigos 8° e 5° da Constituição boliviana de 1967, tem-se de
forma expressa a proibição do trabalho forçado. No Brasil, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa
humana constituem o próprio fundamento da República Federativa, sem olvidar dos diversos dispositivos do
código penal brasileiro e dos compromissos internacionais irmados, como: a Convenção das Nações Unidas
sobre Escravatura (1926), promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966; a convenção nº 29 da Organização In-
ternacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 41.721/1957 e a Convenção
nº 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Abolição do Trabalho Forçado, promulgada pelo
Decreto nº 58.822/1966 (MATTIOLI, 2015).
Com isso, nota-se que o abismo entre a teoria e a prática consiste justamente na ineicácia dos dispo-
sitivos jurídicos existentes e/ou na prevalência do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1981) que trata os imi-
grantes como inimigos da segurança nacional, favorecendo a clandestinidade e os altos custos burocráticos
de mudança territorial e é justamente nesse aspecto que se visualiza os possíveis relexos da adesão da Bolívia
como membro pleno do Mercosul.
Segundo o jornal El País (2015), todos os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e
Venezuela) já assinaram na cúpula de Brasília um novo protocolo de adesão à união aduaneira. Na verdade,
esse acordo já havia sido irmado em 2012, mas o aval do Paraguai não foi possível devido à sua suspensão do
bloco decorrente da destituição do presidente Fernando Lugo, sendo o fato avaliado pelo Mercosul como uma
afronta aos princípios democráticos que norteiam o bloco. Hoje para o ingresso do sexto membro ao bloco,
necessita-se apenas da ratiicação dos Congressos do Paraguai e do Brasil.
Sabe-se que o Mercosul é constituído através de acordos sejam eles regionais ou bilaterais sobre a
eliminação de direitos aduaneiros e restrições alfandegárias à circulação de mercadorias; a livre circulação
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de bens, serviços, fatores produtivos. Dentre outros fatores, o Mercosul é dependente de mercado comum de
trabalho e por isso, busca viabilizar a liberdade de acesso dos trabalhadores entre os Estados-Membros, com
um tratamento paritário e previdenciário.
Nesse passo, observa-se que o processo de integração do Mercosul não incrementa apenas as relações
comerciais entre os Estados em uma economia mais globalizada, os relexos são mais amplos do que esses.
A adesão de novos membros ao bloco anuncia também um nível mais elevado do ponto de vista humanitário
dentro do mercado comum, no qual compreende a livre circulação de pessoas.
A livre circulação de pessoas implica na abolição das discriminações existentes calcadas na nacio-
nalidade, estatuindo igualdade de direitos com os países-membros do MERCOSUL, de forma a favorecer o
combate ao trabalho degradante em prol do desenvolvimento humano pleno (AZEVEDO, 2005).
Se não é assim, observa-se o feito pela Reunião dos Ministros do Trabalho do MERCOSUL no dia 26
de junho de 2015, assinando uma nova versão da Declaração sócio-laboral do MERCOSUL, no qual reforçou
o compromisso com os direitos sociais e trabalhistas, como se observa nos trechos abaixo:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa trabalhou em um primeiro momento questões acerca do luxo migratório de trabalha-
dores e buscou identiicar as origens do trabalho análogo ao escravo no Brasil. O segundo capítulo explorou
o arcabouço legislativo local e comunitário, identiicando que o aparato normativo brasileiro é ineiciente no
combate à exploração de mão-de-obra imigrante. Tendo em vista que o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815,
em vigor desde 1980, e posteriormente alterado pela Lei 6.964/81, é apresentado como um mecanismo de
restrição e repressão. Mostrando-se desatualizado e desalinhado com o atual contexto sócio-político-econô-
mico nacional e mundial.
O referido estatuto trabalha os imigrantes como criminosos, clandestinos, em perene ilegalidade fa-
cilitando a fragilidade trabalhista concernente ao quadro de empregabilidade dos bolivianos. O projeto de lei
n.º 288 de 2013 que visa à substituição do Estatuto do Estrangeiro, constituirá no cenário latino-americano
um grande avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo.
Contudo a presente pesquisa se deteve à relação Brasil-Bolívia, uma vez que o projeto de lei abarcará
todos aqueles considerados imigrantes, sejam eles bolivianos, peruanos, chilenos.
Trabalhar a Bolívia também não foi uma escolha aleatória. Em regiões especíicas do estado de São
Paulo, como Bom Retiro, Brás, Pari Cambuci, a predominância dos imigrantes bolivianos é sensível aos olhos
e os dados comparativos entre os censos de 2000 e 2010 somente ratiicaram a hegemonia desse contingente.
A expansão do bloco com a integração da Bolívia trará as pretendidas benesses de cunho econômico,
mas principalmente, de forma relexa, no desenvolvimento humano, ao passo que questões laborais Brasil-
-Bolívia serão abarcadas pelas diretrizes da livre circulação de pessoas prevalente no MERCOSUL, ratiicada
no segundo semestre de 2015 com a assinatura da nova versão da Declaração sócio-laboral do bloco.
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115
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O marco histórico do constitucionalismo – Magna Carta de 1215 – completou os seus oitocentos anos
de luta com o intuito político-jurídico de limitação do poder estatal. Os ideais existentes para conter o poderio
do Leviatã foram perpassados, servindo como relexo para outras vitórias como a Constituição Norte-Ame-
ricana de 1787, a Constituição Francesa de 1791, que traziam em seu âmago os direitos negativos (ou de
primeira dimensão), além da coniguração de um Estado Liberal.
O pleito pela aquisição de mais e de novos direitos prosseguiu, fazendo emergir a segunda, terceira e
até mesmo a quarta dimensão de direito, pondo termo àquele modelo liberal. Mas foi o Pós-Segunda Guerra
Mundial que quebrou os paradigmas fazendo com que a sociedade buscasse muito mais do que um Estado
Social ou Estado Democrático de Direito, imerso em uma constituição simbólica, tendo em vista a pouca
aplicabilidade de suas normas.
O marco pós-moderno impulsionou uma onda neoconstitucional que pugna pela ampliação da juris-
dição constitucional, pela hermenêutica do ordenamento jurídico equivalente aos seus princípios e, sobretu-
do, pela eicácia de suas diretrizes. Com isso, tem-se o poder-dever do Estado na proteção integral da criança
e do adolescente cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ocorre que, pragmaticamente um trabalho
que deveria ser executado de forma holística, é negligenciado pelo Estado no tocante ao resguardo
dos menores no âmbito familiar, dando margem à Síndrome da Alienação Parental.
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Trabalhar com o tema Alienação parental requer mais do a interdisciplinaridade de matérias, carece
de um retrospecto às raízes do problema. Dessa forma, veriica-se que o próprio modelo patriarcal de família,
segundo destaca Côrrea (2009), é herança da concepção romano-cristã e tendo a sua essência constituída
pelo matrimônio, de modo que só eram tidos como ilhos os que nascessem na constância de um casamento
legítimo. Vale lembrar que a adoção do Cristianismo como religião oicial do Estado Romano fez com que
somente pessoas que profetizassem o catolicismo pudessem se casar e ter a família protegida pela lei (NO-
RONHA & PARRON, 2012, p. 04).
Com a adoção das Ordenações Filipinas no Brasil, às mulheres somente era concedido o papel exclu-
sivo de mãe e aos homens o protagonismo matrimonial, o pátrio poder (SCANDELARI, 2013). Nessa linha,
o Código Civil de 1916 consagra na sociedade a mentalidade patriarcal da época romano-cristã embutindo a
ideia da superioridade do homem sobre a mulher e os ilhos, ixando em seus artigos a relativa incapacida-
de da esposa e comparando-a com os pródigos, índios e menores entre 18 e 21 anos (VERSIANI; ABREU;
SOUZA; TEIXEIRA, 2008).
Por longo período, a educação fornecida à mulher tinha como objetivo a formação de boas mães para
criarem grandes homens. Mas, com a Revolução Industrial esses preconceitos ainda amarrados passam a
ser desatados, com a gradativa participação feminina no trabalho das fábricas, processo que teve seu auge na
Primeira Guerra Mundial. Somente então se fortaleceu a luta por educação, mercado de trabalho e direitos
de participação política, através do movimento feminista.
No Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121 de 27/08/1962, caracterizou uma das maiores
conquistas desse movimento. Dentre tantas modiicações trazidas, a mais notória foi a revogação do princípio
da capacidade relativa, concedendo o pátrio poder a mulher nos casos em que o seu marido fosse, por algum
motivo, impedido.
Em 1977, A Lei do Divórcio (lei n. 6515/77) trouxe maior facilidade ao rompimento matrimonial e
reletiu um maior nível de aceitação social desta realidade. Concomitante a isso, a luta feminista já havia
surtido alguns efeitos e o progressivo crescimento do aumento da independência inanceira das mulheres,
certamente reduziu sua tolerância à ideia de submissão marital, o que fez com que o número de divórcios
aumentasse substancialmente.
No entanto, somente com promulgação da Constituição Federal de 1988 a concepção de família para
o Direito de fato passa a ter uma nova roupagem. Não apenas porque a Constituição reconheceu o divór-
cio como instrumento para a dissolução do casamento civil (§6º do art. 226 da CF), mas porque, com ela,
adentrou no sistema jurídico brasileiro o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerado por muitos
doutrinadores o ponto de partida para a transformação do paradigma do tratamento legal da família.
Bolivar da Silva Telles (2011) airma que a dignidade na proteção da família deve ser compreendida
como igual dignidade para todas as entidades familiares e interpreta que seria indigno proporcionar trata-
mentos diferenciados aos diversos tipos de constituição familiar. Associado a este princípio, tem-se ainda o
Princípio da Igualdade que garante aos homens, às mulheres e aos ilhos adotivos e provenientes ou não do
casamento, o mesmo tratamento. Por isso mesmo, as famílias constituídas através da união estável, foram
equiparadas em direitos e deveres ao casamento (NORONHA & PARRON, 2012).
Esse arcabouço constitucional relete que a concepção de organização familiar, tradicionalmente co-
nhecida, já não comporta as relações familiares atuais. Hodiernamente a mãe trabalha, estuda, projeta sua
carreira e, com a evolução da ciência, opta por ter ou não mais ilhos devido aos mecanismos contraceptivos.
A igura do pai é recriada, pois passam a ser mais presentes e capazes de cuidar dos ilhos, dividindo inclusive
as atividades domésticas (PAULO, 2011).
A mudança do tratamento legal da família vai além. Com um teor democrático e cooperativo de fa-
mília na Constituição de 1988, os ilhos, que antes eram tidos como objeto da relação matrimonial, agora se
tornam o foco principal da proteção do Estado, caracterizando-se como sujeitos de direito. Dentro dessa lógi-
ca, o poder familiar passa a ser entendido como um instituto de obrigações, encargos e deveres de ambos os
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Direito(s) em debate.
pais (SCANDELARI, 2013). Outra decorrência é que os ilhos devem ser detentores de uma atenção especial
do Estado e seu aparato judiciário, seja quanto aos deveres compartilhados pelos pais na constância de sua
união, seja diante dos potenciais conlitos decorrentes da separação dos pais, situação que se constitui como
objeto do presente trabalho.
A problemática que motiva o presente trabalho é que essa concepção de família contemporânea pa-
rece que ainda não transpôs as barreiras da sociedade conjugal, sobretudo no que diz respeito às consequên-
cias da separação do casal no tocante ao compartilhamento do poder familiar sobre as crianças.
Pretende-se tratar especiicamente, da resposta da ordem jurídica brasileira às condutas dos pais
titulares da guarda da criança após a separação, que ocasionam no menor a Síndrome da Alienação Parental
(SAP). A nomenclatura foi cunhada pelo o psiquiatra Richard A. Gardner1 em 1985, que veriicou um com-
portamento atípico comum às crianças e adolescentes envolvidos no im da sociedade conjugal, que possui
como característica marcante o sentimento repugnante que os ilhos passaram a demonstrar pelo genitor que
não detinha a sua guarda. Gardner identiicou três estágios do fenômeno:
No estágio considerado como leve, tem-se a desmoralização do genitor de forma discreta e uma su-
posta onda de esquecimento toma conta do genitor alienador. Por exemplo, “esquece” de informar sobre os
compromissos escolares e fala à criança que o outro genitor poderia ter ido às festividades, mas não quis ou
deu pouca importância e esqueceu. Nesse estágio é também comum criar outras atividades e até mesmo
lamentar a solidão que sente durante o período de visitação para que isso cause um sentimento de remoço
e faça com que a criança sempre tenha que tomar a difícil escolha entre a mãe ou o pai (LOGANO, 2011).
No estágio moderado, o genitor alienado é malvado e o outro é bonzinho. Segundo Jorge Trindade
(2010), são utilizadas táticas de exclusão do outro genitor e além da intensiicação dos atos do estágio inicial,
a criança passa a apresentar um comportamento inadequado e as visitas deixam de acontecer por motivações
fúteis. No último estágio, os ilhos já compactuam com a paranoia do alienador. Ficam em pânico, gritam e
choram com a ideia de ter que visitar o outro genitor (ROSA, 2008).
François Podevyn ainda apresenta atitudes comumente veriicadas durante o processo alienatório,
tais como: “a) Recusar de passar as chamadas telefônicas aos ilhos [...]; j) Envolver pessoas próximas (sua
mãe, seu novo conjugue, etc.) na lavagem cerebral de seus ilhos[...]; q) Culpar o outro genitor pelo mau
comportamento dos ilhos” (PODEVYN, 2001).
A Lei 12.318, que dispõe sobre alienação parental no Brasil, ainda elenca de forma meramente exem-
pliicativa algumas condutas típicas da alienação parental. Tais como a desqualiicação de um dos genitores
no exercício da maternidade ou paternidade; mudar de domicílio para um local distante sem uma justiica-
tiva plausível ou até mesmo não informar o novo endereço; diicultar o exercício do direito de convivência
familiar, assim como omitir informações pessoais relevantes sobre os ilhos no tocante aos estudos, saúde
diicultando assim, o exercício da autoridade parental.2
De acordo com o art. 2° da referida lei, o ato não é promovido exclusivamente pela mãe ou pelo pai,
mas sim por qualquer pessoa que possa interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente com
o intuito de romper os laços afetivos com um dos genitores.
1 Richard Alan Gardner nasceu em 28 de abril de 1931. Muitas de suas obras são autoridade na área da pedopsiquiatria, dentre
elas “Parental Alienation Syndrome”, citadas como referência pela American Psychiatric Association. Professor na Universidade de
Columbia de 1963 a 2003, ele foi o primeiro nos Estados Unidos a elaborar jogos que permitem a expressão da criança durante a
avaliação. Impressionado pelos comportamentos estranhos das crianças no contexto do divórcio, ele identiicou certos mecanismos
e publicou sua primeira obra sobre a SAP em 1985.
2 BRASIL. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse sentido, observemos o trecho de um acórdão que decidiu de forma unanime em negar provi-
mento ao apelo dos avós maternos que pretendia obter a guarda da neta, após o falecimento da mãe, e com
isso provocava a alienação parental.
Seja ou não intencional, é a criança ou o adolescente quem mais sofre com o im da sociedade con-
jugal, tendo que por vezes optar com qual dos genitores irá icar e isso pode lhe parecer como uma forma de
mensurar, ou melhor, quantiicar o amor que sente pela mãe ou pelo pai. Decerto, como diz a Promotora de
Justiça Raquel Pacheco: “ o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conlito e
do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento
deles fracassou”.
Com a alienação parental princípios como o melhor interesse da criança e do adolescente, da preva-
lência e convivência familiar, da afetividade e da paternidade são infringidos. O art. 3° da lei 12. 318 ratiica a
necessidade de o Estado “empreender diligências suicientes para amparo dos direitos e garantias fundamen-
tais de sobrevivência e desenvolvimento humano” das crianças e adolescente que sofre de tamanho abuso
moral.
Com o presente trabalho, pretende-se demonstrar que há no processo da Alienação Parental uma
verdadeira afronta a uma norma fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os princípios cons-
titucionais atingidos durante o processo da alienação parental, este trabalho se concentra nos pilares da
Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O primeiro princípio será direcionado à igualdade parental
que, como visto, por um longo lapso temporal, foi lesado pelo poder patriarcal. O segundo princípio será com-
preendido sob a ótica da prole e do genitor alienado que são lesados em sua dignidade durante os diversos
níveis da síndrome em questão, que pode escalar da privação dos laços de afetividade familiar a repercussões
mais severas, como ocorre em casos extremos, onde quem detém a guarda induz na criança falsas memórias,
inclusive de abuso sexual.
3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL
SANTOS.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O princípio da igualdade aplicado no âmbito familiar se refere ao tratamento entre homem e mulher
quanto à cheia da sociedade conjugal. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A organização e a própria di-
reção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tanto que compete a
ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e atri-
buídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher” (DIAS, p 63, 2007).
A expressão poder familiar é o a que mais se adequa a contemporânea concepção de família, que
devido ao advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA – Lei 8.069/1990) passou a ser guiada pelo princípio da igualdade, conferindo assim um
caráter protetivo e um tratamento isonômico para ambos os cônjuges.
Para Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz o poder familiar é tido como múnus de direitos
e deveres e que a convivência com um dos pais não concede a titularidade do poder familiar (FONTELES,
2014). O Código Civil de 2002 em seu art. 1.631 concomitante ao art. 1.579 ratiica a permanência do poder
familiar em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável sem que haja modiicação dos
direitos e deveres relacionados aos ilhos.
A própria dicção da expressão guarda alternada induz um teor antagônico e de alternância, ou seja,
ora se está com o pai, ora se está com a mãe. Segundo Grisard Filho, a guarda alternada não é saudável para
a prole, pois haverá uma confusão relacionada a qual orientação seguir e até mesmo qual moradia chamar
de sua. Nessa mesma tendência segue à jurisprudência:
A guarda compartilha, por sua vez, visa uma participação em nível de igualdade dos genitores nas
decisões relacionadas aos ilhos. Há uma equidade de contribuições dos pais na formação dos ilhos, seja
educacional, moral, espiritual. Sendo assim, não há privilégios para nenhum dos pais, mas sim a busca pelo
melhor interesse do menor (BONFIM, 2005).
Observa-se que, em teoria, a guarda compartilhada é a melhor maneira de prevenir a Alienação Pa-
rental (NÚÑEZ, 2013). Esse instituto jurídico regulamentado pela Lei Federal n° 11.698/2008 evita que os
ilhos venham a se afastar de um de seus pais e permite que tanto a mulher quanto o homem possam ser
titulares do princípio da igualdade e desta forma exercer, independente das contendas existentes, o papel de
pai e mãe.
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana que está previsto no art. 1°, III da Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988, no qual garante ao ser humano a preservação da integridade física e
psíquica. Além disso, a Constituição Federal assegura à criança, dentre outros, o direito à dignidade e dentro
120
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
do ambiente familiar é que a criança ou o adolescente pode constrói sua personalidade para a concretização
de uma vida digna.
Assim, a alienação parenta se torna inaceitável não só por afrontar princípios constitucionais e direi-
tos da criança e do adolescente, mas expor pessoas ainda tão vulneráveis e pleno desenvolvimento a graves
consequências psicológicas (GUILHERMANO, 2012).
Como visto, a alienação parental pode ou não ser intencional e sua inalidade é denegrir o outro ge-
nitor como também afastá-lo da convivência com o ilho (GARDNER, 2002). Todavia, Jorge Trindade (2010)
alerta que, embora a síndrome da alienação parental comece como um distúrbio de cunho afetivo, depen-
dendo da intensidade com que é provocada, pode acarretar, inclusive, o surgimento das falsas memórias na
criança. A implantação de falsas memórias ocorre através de sugestões fabricadas ou forjadas, de forma total
ou parcial, de fatos inverídicos. A criança passa a crer em um fato que nunca aconteceu, como por exemplo
o abuso sexual, e reage como se de fato tivesse acontecido (VELLY, 2010).
As crianças envolvidas no processo de falsas memórias podem sofrer de patologias afetivas, sexuais
ou psicológicas, assim como as que de fato sofreram abuso sexual. As consequências da alienação parental
não possuem um rol taxativo, mas os efeitos são direcionados a produzir uma tendência ao isolamento, a de-
pressão, incapacidade de comunicação. Por vezes, pessoas que foram vítimas da alienação parental passam
a desenvolver um sentimento de culpa, quando adultas, por se considerar cúmplice mesmo que de forma
inconsciente da injustiça praticada contra o genitor alienado, podendo acarretar transtornos psíquicos resul-
tando no suicídio (MAZZONI, MARTA, 2011).
Crime sexual ou síndrome da alienação parental? Posto está o desaio para os Tribunais. Ainal, quan-
do o problema chega às mãos do Estado, encontram-se, de uma lado, crianças com um enorme repúdio a
um dos genitores ou ente familiar e até mesmo alegando sofrer algum tipo de abuso. Por outro lado, está a
defesa do outro genitor arguindo a existência de falsas memórias decorrentes da alienação parental. O fato
desencadeia uma das mais delicadas “situações do mundo jurídico, com o dever de tomar imediatamente
uma atitude e com o receio da denúncia não ser verdadeira” (LOGANO, 2011).
No último estágio da alienação parental, muitas vezes caracterizado pela implantação de falsas me-
mórias, o juiz toma medidas de proteção à criança e realiza o afastamento da prole com o genitor injustiçado.
Estudiosos observam que, neste momento, no qual a criança ou o adolescente mais necessita do aparato do
Estado para resguardar seus interesses, depara-se com proissionais do Direito, psicólogos, peritos sem um
preparo técnico e emocional para lidar com a situação e identiicar os verdadeiros casos de alienação parental
e de abuso sexual (MAZZONI, MARTA 2011).
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conlito de Competência n° 94.723 –RJ ( 2008/0060262-5. Relator. Ministro
Aldir Passarinho Junior.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Não se pode perder de vista que é um dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente,
assegurando assim o direito à convivência familiar (art. 19 ECA), à liberdade e dignidade como pessoas em
pleno processo de desenvolvimento garantido pela Constituição Federal e pelo ECA (art. 15), assim como o
direito a participação na vida familiar, da inviolabilidade da integridade física e psíquica e moral para que seja
possível a preservação da imagem, da identidade, dos valores, crenças e ideais.
Deve-se iniciar a reinvindicação do Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana pela base
da família. Se a família falha em atender o comando constitucional de cuidados a integridade emocional da
criança, o Estado deve intervir para assegurar não só a proteção da criança e do adolescente, mas também da
dignidade da pessoa humana (ilhos e genitores alienados) tão lesada durante a alienação parental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, a Síndrome da Alienação Parental não é um fenômeno novo, inédito ao Século XXI. A
emancipação da mulher e a evolução do mundo moderno modiicou não só conceito, mas a própria orga-
nização e estrutura familiar. Passou-se por uma verdadeira metamorfose, e a busca pela igualdade entre o
casal constituiu o elemento propulsor dessa transição. Como visto, a igualdade concedida foi aparente e ol-
vidou-se da igualdade parental, já que a prática judiciária não consegue distinguir situações de manipulação
das emoções da criança como forma de atingir o ex-parceiro, mantendo-se de forma irreletida uma cultura
maniqueísta que jamais põe em cheque a igura da boa mãe, herdada da era patriarcal.
Apesar de possuirmos uma Lei deinindo o conceito e exempliicando características comuns à Alie-
nação Parental, estipulando que qualquer indivíduo, mãe, pai, avós, podem ser os responsáveis pela prática
alienante, e listando uma série de medidas que podem ser tomadas a título de atenuação dos efeitos da sín-
drome, observa-se na jurisprudência que os proissionais militantes da área do Direito de Família (operadores
do direito, psicólogos, peritos), por vezes, desconhecem a profundidade e as graves consequências do tema
em questão. Essa incompetência técnica pode aumentar a injustiça levando um inocente à prisão Não o bas-
tante, a luta histórica pela igualdade parental retrocede e Dignidade da Pessoa Humana é afetada.
Daí concluímos que, para dar a concretude devida ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
seriam necessárias políticas públicas direcionadas a divulgar para população a existência e os danos causados
aos envolvidos na síndrome da alienação parental. Como também seria imprescindível capacitar os proissio-
nais que trabalham na área, pois o estudo prático da alienação parental denuncia a carência de proissionais
preparados e comprometidos com o estudo da Síndrome em questão, capazes de se despir de rótulos precon-
cebidos sobre a família tradicional.
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124
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
LIBERDADE RELIGIOSA:
UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O
CASO LAUTSI CONTRA ITALIA
SUMÁRIO: Introdução; 1. Modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa; 2.
Lautsi contra Italia: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do esta-
do; Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por inalidade analisar as relações entre o Estado e o direito constitucional
de liberdade religiosa a partir dos artigos dos professores Winfried Brugger e José Ignacio Solar Cayón.
Winfried Brugger identiica e descreve seis tipos de relações entre Estado e Igreja, quais sejam: hos-
tilidade agressiva, separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e coope-
ração, unidade formal, unidade material entre Igreja e Estado.
O referido autor aborda de maneira mais intensa os modelos da separação rígida na teoria e na práti-
ca, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação e unidade formal, pois entende que a hostilidade
agressiva e a unidade material entre Igreja e Estado estão em contradição com o Direito Constitucional e o
Direito Internacional, bem como promovem discriminação e coação. Após explanar todas essas relações, o
professor Brugger fundamenta a exclusão do primeiro e do sexto modelos no direito moderno.
No inal do artigo o autor também destaca as decisões proferidas pelas Cortes Constitucionais nos
hard cases, apontando semelhanças e diferenças entre os modelos 2 e 5.
O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os
fundamentos da decisão deinitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença
de cruciixos em salas de aula italiana e tenta demonstrar as discrepâncias existentes provocadas pela Corte.
Na introdução do artigo de Brugger consta que a disputa entre o catolicismo e o protestantismo termi-
nou se estendendo para uma questão política, e a busca pelo domínio político e religioso tornou impraticável
a formação de relações pacíicas. Em razão disso, o mundo vivenciou grandes guerras e catástrofes civis.
Nesse período Igreja e Estado se confundiam enquanto instituições legítimas de poder em que ambas
tinham pretensões em normatizar e regular o corpo e a mente dos sujeitos, detendo assim o monopólio da
violência simbólica no campo social.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No Brasil, a Constituição de 1824 adotou o catolicismo a religião oicial do país, conferindo a Igreja
Católica os mesmos poderes e prerrogativas da época do império, o que evidencia que nesse período histórico
a separação entre Igreja e Estado praticamente não existia e consequentemente não havia liberdade religiosa
enquanto direito subjetivo. Somente era tolerada manifestações de outras religiões em espaços privados ou
domésticos, não sendo possível aos indivíduos exercerem publicamente qualquer outra religião que não fosse
a católica. (EMMERICK, 2010)
Com o passar dos anos pareceu inevitável a necessidade de fazer a política se preocupar tão somente
com aspectos mundanos voltados para o bem estar, enquanto que a religião se dedicaria apenas a obtenção
da salvação eterna sem utilizar o Estado como meio de impor a religião preferida do poder político. Esse mo-
vimento de divisão estrutural dos assuntos pertinentes ao Estado e à Igreja icou bastante evidente na maioria
dos Estados da Europa e nos Estados Unidos.
Outrossim, a busca pela salvação eterna deveria partir da consciência de cada individuo, declarando-
-se religioso ou não pautado no principio da liberdade. Para tanto, as constituições modernas separaram as
áreas de domínio do Estado e da Igreja por meio de uma norma estrutural e inserem a liberdade religiosa no
capítulo dos direitos fundamentais.
O referido autor cita exemplos clássicos como o da primeira emenda da Constituição dos Estados
Unidos, a qual deiniu que “O Congresso não deve elaborar lei relacionada ao estabelecimento da religião,
ou à proibição do seu exercício…”. Veriica-se nesse texto legal tanto uma distinção estrutural no tocante a
deinição do campo de atuação do Estado e da Igreja como também a questão da liberdade religiosa. A Consti-
tuição de Weimar também é citada como exemplo ao contemplar o direito de liberdade de conissão religiosa
e ao explicitar que não existe uma igreja do Estado.
Desse modo, o Estado de Direito ocidental passou a ser distinguido por meio da liberdade religiosa
como instrumento de combate contra a coerção do Estado no tocante a essas relações contenciosas e tam-
bém por meio de uma divisão estrutural do campo de domínio pertencente ao Estado de um lado e a Igreja
do outro.
O primeiro modelo da relação entre Estado e Igreja citado no artigo de Brugger é o da Hostilidade
Agressiva entre Estado e Igreja. Essa relação se caracteriza pela adoção de atitudes hostis contra reli-
giões e igrejas por parte de alguns países. Em outras palavras seria dizer que o regime político de um país
pode ser instituído eliminando as religiões e as igrejas, propagando um ateísmo e introduzindo na mente dos
sujeitos uma “ideologia cietíico-materialista”.
Nesse contexto, a hostilidade imposta contra a Igreja a impede de participar dos assuntos políticos e
estatais, fazendo reinar um Estado tipicamente totalitário, tendo em vista que na medida que o Estado proíbe
o indivíduo escolher uma religião, ele termina infringindo o princípio da liberdade religiosa.
O segundo modelo introduzido pelo autor seria o da Separação Rígida na Teoria e na Prática.
De acordo esse modelo, deveria haver uma total separação espacial nas relações entre Estado e Igreja, de
modo que por meio de uma parede se evitaria o envolvimento de Igrejas na esfera pública e organizacional.
Como exemplo, Brugger cita o caso norte-americano Everson v. Board of Education, em que os alu-
nos de orientação religiosa cristã não podiam utilizar o transporte de ônibus custeado pelo Estado para se
deslocarem até a escola por violar a cláusula da primeira emenda da Constituição norte-americana.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Portanto, esse modelo se caracteriza por uma separação rígida em que as mensagens de conteúdo se
referem ao bem estar, com resultados para uma área privada e pública de uma liberdade religiosa forte e no
âmbito estatal se veriica uma liberdade religiosa negativa maximizada contra paternalismo.
O terceiro modelo diz respeito a Separação Rígida na Teoria, Acomodação na Prática. Ou seja,
seria uma visão mais moderada quando comparada ao segundo modelo. Nesse sentido, a separação entre
Estado e Igreja por meio de uma parede não seria tão espessa e densa.
Segundo esse modelo, o Estado tinha que se manter neutro perante as Igrejas, mas ao mesmo tem-
po essa neutralidade não poderia se transformar em uma hostilidade, de modo a não prejudicar a liberdade
religiosa.
O teste “Lemon”, desenvolvido pela Corte Americana em 1971 prevê que a “lei precisa ter uma i-
nalidade legislativa secular, o efeito primário não pode promover e nem prejudicar a religião e a lei não pode
conduzir a um excessivo almagamento entre governo e religião”. Ao inal, reza que “haverá inconstituciona-
lidade se só um dos critérios também não for satisfeito”.
O quarto modelo foi intitulado por Brugger como Divisão e Cooperação. Nesse modelo não existe
a parede separando espacialmente a Igreja e o Estado, pois o que há é uma cooperação entre eles em deter-
minadas áreas.
Essa relação se caracteriza pelo fato do Estado e da Igreja serem titulares de direitos fundamentais
de um lado e do outro a organização do Estado tem o dever de direitos fundamentais. A igreja não pode se
formar de cima para baixo, ou seja, não pode se formar a partir do Estado. Ela tem que se instituir de baixo
para cima através dos ieis e dos militantes.
Não há uma separação total entre o Estado e a religião, em que se faz presente a coordenação mútua
nos trabalhos em conjunto.
O exemplo trazido pelo autor para visualizar esse modelo em termos práticos é a possibilidade de se
ter aulas de religião nas escolas públicas e de se conferir status de entidade de Direito Público a determinadas
sociedades religiosas.
O quinto modelo é a Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo. Esse
modelo se concretiza quando há a criação de uma igreja estatal ou quando se adota uma igreja nacional. Nas
palavras de Brugger, vislumbra-se esse modelo quando “a entidade política constitui formalmente uma igreja
estatal ou, de outra forma reconhecível, se identiica, como Igreja nacional, com uma determinada Igreja”.
De acordo com o autor, países escolhem esse tipo de modelo com o intuito de se manter uma tradição
religiosa na comunidade, com cautelas para que isso não se transforme em imposição e consequentemente
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ferir a liberdade de conissão religiosa. No caso de Israel, a adoção desse modelo de Unidade Formal com
divisão de conteúdo seria para proteger os judeus espalhados pelo mundo inteiro e seu território.
Esse modelo confere um tratamento diferenciado aos ies da igreja nacional/estatal, diferindo diante
da situação dos direitos fundamentais constitucionais de cada Estado. O autor cita os principais níveis de
diferenciação, quais sejam: diferença apenas simbólica (onde não há tratamento diferenciado entre iéis e
iniéis), diferenças consideradas “suaves” como, por exemplo, os incentivos inanceiros conferidos a Igreja
Estatal e as diferenças “duras” como proibir iniéis de assumirem cargos públicos.
O sexto e último modelo identiicado por Brugger é Unidade Material e Formal entre Igreja e
Estado. Nesse modelo não mais se visualiza aquela divisão estrutural entre Estado e Igreja, ao contrário, “o
imperativo jurídico é, portanto, em muitos casos, o imperativo religioso e, tendencialmente, a violação jurídi-
ca também é um pecado”. Portanto, não há separação entre o Estado e a Igreja.
Faz-se presente a desvalorização da liberdade religiosa negativa, em que o Estado passa a icar vincu-
lado a Igreja, aproximando-se de uma teocracia. Há uma obrigatoriedade da população adotar e permanecer
na religião oicial, não podendo contradizer os mandamentos religiosos. Outras religiões não são tratadas
igualmente, ocorrendo coação e discriminação dos iéis que não adotam a religião oicial.
Brugger cita como exemplo a decisão da Suprema Corte do Paquistão. Em suma, Corte entendeu que:
No tópico II do seu artigo, Brugger ressalta a necessidade de se excluir o primeiro e o último modelo
no Direito Moderno, uma vez que o primeiro modelo não se distancia tanto assim do sexto, pois não pode ser
negado ao indivíduo o direito e a liberdade de escolher uma determinada religião. Impor uma religião é tão
hostil quanto impedi-lo de eleger uma. Quando o Estado prega um ateísmo excessivo ou impõe uma religião
estatal, ele termina se transformando em um Estado Totalitário.
No item III, o autor faz uma análise do sistema do quinto modelo de unidade formal. Para ele, esse
sistema se adequa bem a organizações estatais que necessitam da religião como instrumento para se promo-
ver uma liberalização e pluralização pacíica das religiões.
O fundamento para esse tipo de sistema ainda se manter presente é justamente a garantia da liber-
dade religiosa como direito humano de todos os ieis e iniéis. Tal sistema de unidade formal pode ser visto
na Grécia e no Reino Unido.
No tópico IV, Brugger procura promover a estrutura da ponderação nos modelos 02, 03 e 04 de se-
paração e de divisão. Para esse professor, esses modelos seriam a melhor forma de organização da relação
Estado x Igreja. Vejamos:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A aplicação das características de um determinado tipo de modelo de relação entre Estado e Igreja a
um caso concreto por parte dos tribunais vai depender do “texto Constitucional, da situação histórica inicial,
do ambiente político, da compreensão de integração, do teste jurisdicional para a interpretação das normas
relativas ao Estado e à Igreja, e da própria compreensão passiva e ativista dos tribunais constitucionais”.
Por isso, o autor defende que a jurisprudência poderá orientar e analisar o conlito, esclarecendo to-
das as vantagens e desvantagens ao se escolher aplicar determinado modelo de sistema relacionado a Estado
e Igreja. Contudo, essa atividade deve ser feita de forma limitada, de modo que ninguém melhor do que os
julgadores que vivem dentro daquele Estado para avaliar a melhor solução a ser aplicada ao caso concreto.
Na parte inal do artigo, o autor traz casos reais que foram objeto de análises por parte de Cortes
Constitucionais.
De acordo com a Corte Constitucional Americana, aulas de religião não devem ocorrer em escolas
públicas, fazendo-se presente uma parede para separar espacialmente e de forma rígida as relações entre
Estado e Igreja. Por outro lado, servidores públicos podem dar aulas de disciplinas leigas tanto em escolas
públicas quanto em escolas particulares e o Estado pode inanciar livros para ambas as escolas, veriicando
assim a inexistência de qualquer tratamento desigual.
O servidor público ao ingressar no serviço não precisa fazer o juramento para não prejudicar a liber-
dade religiosa e por haver a separação rígida entre Estado e Igreja.
No que diz respeito ao uso de símbolos religiosos por parte do Estado, há um debate acalorado entre
os defensores do modelo de separação rígida e moderada na jurisprudência norte-americana, pois aqueles
defendem a impossibilidade de se montar, por exemplo, uma árvore de Natal nos parques da cidade, em
ruas ou repartições públicas, enquanto os moderados relativizam essa posição rígida e defendem que não há
violação da liberdade religiosa desde que se deixe explícito que no Estado não há nenhuma preferencia por
uma determinada religião.
No tocante as cruzes ixadas nas paredes de escolas públicas, salvo melhor juízo, Brugger entendeu
que não há que se falar em transgressão a liberdade religiosa quando esses símbolos fazem referencia ao
caráter histórico do país. Entretanto, o Tribunal Constitucional interpreta o cruciixo como sendo uma men-
sagem cristã que gera discriminação e apela para os alunos não cristãos.
O autor conclui airmando ser impossível distinguir por completo Estado e Religião, seja como campo
da política, seja judicialmente.
Percebe-se de maneira clara que Brugger aceita os modelos 02, 03 e 04 de relações entre Estado e
Igreja no Direito Moderno. Acredita ainda que o quinto modelo também pode ser implantado com ressalvas,
sob a justiicativa de que em todos esses modelos de Estado, cada indivíduo pode decidir confessar uma cren-
ça e ainda continuar sendo ideologicamente livre.
O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fun-
damentos da decisão deinitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de
cruciixos em salas de aula italiana.
No ano de 2002, a Sra. Lautsi pleiteou a retirada do cruciixo ixado na sala de aula da escola públi-
ca onde estudavam seus dois ilhos Dataico e Sami Albetin perante a diretoria da instituição. Diante do seu
pedido negado, a mãe recorreu ao Conselho Escolar, ao Tribunal Administrativo de Veneza, bem como ao
Conselho de Estado, onde também lhe foram negados o pedido.
129
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O caso Lautsi contra a Itália teve início em razão das várias e sucessivas demandas da Sra. Lautsi ao
impugnar judicialmente a presença de cruciixos nas salas de aula das escolas públicas, sob o fundamento de
que a exposição desses símbolos nos centros públicos estava ferindo o seu direito de criar e educar os seus
ilhos em conformidade com as suas convicções ilosóicas e religiosas.
A demandante argumentava que a ixação das cruzes era inconstitucional porque era uma verdadei-
ra violação do princípio da laicidade do Estado, o qual estava expressamente contemplado na Constituição
italiana.
A Sra. Lautsi defendeu que a sua liberdade religiosa estava sendo violada e que o Estado não estava
cumprindo com o disposto no Art. 9° da Convenção Europeia. Além do mais, a obrigação de expor cruciixos
em sala de aula provém de normas que foram promulgadas durante o regime fascista de Mussolini e por isso
carecem de legitimidade democrática.
A demandante alegou violação do art. 9º e 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem
como o art. 2 de protocolo nº 1, que seguem abaixo transcritos:
Em contrapartida, o governo italiano sustentou como principal linha de defesa que a exposição de
cruciixos em salas de aula não possui signiicado religioso, mas se trata de um símbolo que faz parte da his-
tória e da identidade do povo italiano.
Em face dessas decisões, a Sra. Soile Lautsi interpôs no ano de 2006 um recurso ao Tribunal Euro-
peu de Direitos Humanos, o qual julgou no ano de 2009 por unanimidade que a conduta do governo italiano
efetivamente violou o Art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos c/c o Art. 2º do Protocolo n° 01 da
mesma Convenção. Decidiu-se ainda não analisar a questão sob o enfoque do Art. 14 da citada Convenção.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No ano de 2010, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grande Sala do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos, conforme previsão legal. No julgamento, a Grande Sala decidiu por quinze
votos contra dois que a presença do cruciixo na escola pública não violava os mencionados dispositivos da
Convenção Europeia.
De acordo com os argumentos para embasar a decisão deinitiva, a Grande Sala entendeu que apenas
há violação ao princípio da laicidade quando o Estado ultrapassa a imparcialidade, ou seja, o Estado não pode
objetivar doutrinação ou direcionamento a uma determinada religião.
Outra ideia central presente no julgado é a da “margem de apreciação dos Estados” no respeito aos
direitos humanos, ou seja, os Estados possuem uma margem de conduta para atuar, atentando-se aos limites
previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota a doutrina da margem de apreciação nacional, por
meio da qual confere as autoridades nacionais uma certa discricionariedade na hora de justiicar a adoção
de medidas que a princípio poderia interferir no exercício dos direitos reconhecidos na Convenção, mas que
seria possível atender e solucionar as peculiaridades do contexto doméstico.
A margem da apreciação nacional leva em conta diversos fatores, tais como: a natureza do direito
afetado e a sua importância, o im perseguido pela medida estatal questionada, as circunstancias do caso. De
acordo com José Ignácio, a existência ou não de um consenso em torno da matéria que está sendo discutida,
funciona como uma espécie de válvula de segurança que alivia as pressões do sistema, permitindo ao tribunal
reforçar ou rebater o nível de supervisão e controlar as atuações estatais em cada matéria.
Assim, o Tribunal Europeu no âmbito da liberdade religiosa confere as autoridades nacionais uma
ampla margem de discricionariedade, pois a concepção de religião não uniforme, variando de um país para
o outro e por isso cresce a importância das autoridades nacionais em solucionar as demandas de acordo com
o contexto doméstico.
O autor destaca ainda em seu artigo a questão do uso de símbolos religiosos nos centros de ensino.
Nesse sentido, destaca o Cayón:
O autor coloca em pauta caso Leyla Sahin contra Turquía. Em 1998, o vice-reitor da Universidade
de Istambul proibiu a utilização de véus islâmicos que cobrissem a cabeça da estudante e o uso de barba em
cursos e aulas ministradas na universidade.
Em 1998, Sahin levou seu caso à CEDH. Em 2005, a Corte Europeia proferiu seu veredicto, airman-
do a inexistência de violação ao artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Ora, veriica-se uma incoerência no tocante aos fundamentos utilizados pela Corte ao decidir sobre li-
berdade religiosa. No caso da Sra. Lautsi, a Grande Sala julgou que a presença de cruciixos nas salas de aula
das escolas não violava a sua liberdade religiosa de educar seus ilhos conforme as suas convicções religiosas.
Por outro lado, analisando o caso Leyla contra a Turquia, a mesma foi impedida de expressar publicamente
a sua religião ao usar um véu nos centros de ensino.
Um véu pode representar um símbolo religioso tão inocente quanto um cruciixo. Ao mesmo tempo,
esses símbolos podem de fato serem capazes de inluenciar na formação religiosa dos demais alunos. Contu-
do, questiona-se qual foi o fundamento utilizado pela Corte para deinir o signiicado passivo de um cruciixo
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
e o caráter perigoso de um véu. Um cruciixo pode representar um símbolo religioso tão inluente quanto um
véu. Por outro lado, esses símbolos podem exercer intensa dominação.
Outro caso que demonstra intensa incoerência dos critérios utilizados pelo Tribunal se faz presente
no caso Dahlab contra Suiza. A Corte julgou que a decisão de determinada escola suíça de proibir que uma
de suas professoras usasse o véu islâmico durante suas aulas, que eram ministradas para alunos de primário,
era uma medida “necessária em uma sociedade democrática”.
No entanto, o próprio Tribunal reconheceu a diiculdade de provar o impacto que o uso do véu por
parte de uma professora pode ter sobre as crenças dos alunos. Ressalte-se que não havia nada que provasse
que ao longo dos quatro anos em que Dahlab estava exercendo suas tarefas como docente usando o véu,
tenha produzido qualquer tipo de inluencia.
Assim, de acordo com as palavras de Cayón, Dahlab precisaria provar que o uso do véu não provo-
cava qualquer tipo de efeito sobre as crenças religiosas dos alunos. Lautsi, por sua vez, teria que provar a
exposição do cruciixo em sala de aula exercia inluencias nas convicções religiosas dos seus ilhos e dos de-
mais alunos. Dessa forma, veriica-se uma total discrepância e divergências nos fundamentos utilizados para
decidir sobre questões religiosas, levando a crer a existência de uma verdadeira parcialidade por parte das
autoridades julgadoras.
Cayón, conclui o seu artigo airmando que por meio do seu trabalho procurou demonstrar as estraté-
gias argumentativas utilizadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao decidir sobre liberdade religio-
sa. Segundo ele, o Tribunal utiliza como estratégia argumentativa de forma abusiva a doutrina da “margem
de apreciação nacional” que por sua vez só faz gerar uma jurisprudência voltada para a proteção das religiões
majoritárias e uma atuação estatal que não corresponde aos ideais de neutralidade e imparcialidade, preju-
dicando o pluralismo.
CONCLUSÃO
Enim, tanto o professor Winfried Brugger quanto José Ignacio Solar Cayón procuram enfatizar a te-
mática das relações entre Igreja e Estado. A Corte Constitucional da Itália se pronunciou por diversas vezes
que a Constituição impõe o princípio da separação entre Estado e Igreja. Contudo, a adoção do princípio da
separação não signiica dizer que o Estado é indiferente às religiões, pois tem o dever de garantir a liberdade
religiosa diante da existência de um pluralismo cultural, permitindo nesse liame que as crenças, culturas e
tradições coexistam sem qualquer discriminação.
Entretanto, na prática se percebe que os fundamentos utilizados pela Suprema Corte para assegurar
a liberdade religiosa em seu sentido amplo, muitas vezes termina por gerar violações desse direito, em espe-
cial naqueles indivíduos, cujas convicções religiosas estão em menor número.
REFERÊNCIAS
lidad e imparcialidad del estado. Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho. Universidad
CAYÓN, José Ignacio Solar. Lautsi contra Italia: sobre la libertad religiosa y los deberes de neutra-
de Cantabria, 2011.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1718/1364
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
Embora a redemocratização da sociedade brasileira tenha ocorrido há mais de duas décadas, as re-
gras que regulamentam a radiodifusão constituída no país pela rádio e televisão abertas permanecem, ainda
hoje, praticamente inalteradas, e a patente concentração dos meios de comunicação nas mãos de cinco
famílias (LOPES, 2011) talvez seja um dos exemplos mais explícitos da contradição da democratização no
Brasil. O oligopólio constituído durante o regime ditatorial militar permanece; como avanços no campo da
comunicação social, houve alguns, tímidos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo
governo federal em 2007, bem como a realização, em dezembro de 2009, da 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom).
Para o professor Murilo César Ramos (2000), o desenvolvimento do sistema de comunicação brasi-
leiro foi caracterizado por compadrio, patronagem, clientelismo e patrimonialismo. Associados a uma cultura
política e social arcaica, esses elementos desenvolveram-se pelo Brasil e soisticaram-se por meio da rádio
e da televisão, servindo como instrumentos de reforço de dominação e manutenção das injustiças sociais e
contribuindo, sobretudo ideologicamente, para a manutenção da hegemonia do grupo econômico-político-
-militar que estava governando o país.
Em razão de ocupar lugar central no processo de construção da hegemonia, desde a segunda me-
tade da década de 1960 (LOPES, 2011, p. 2), a televisão precisa ser considerada como um dos elementos
fundamentais para pensar a democratização, tanto da comunicação quanto da própria sociedade brasileira.
Partindo-se do reconhecimento de que este meio de comunicação implica em um estratégico instrumento
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A liberdade de opinião na esfera pública se torna a garantia básica da liberdade de expressão, porque
é através da imprensa que a opinião pública se concretiza como uma prática comunicativa regular (MAR-
QUES, 1997). Tal concepção vai além da liberdade de expressão como direito individual. Sendo a imprensa
a mediadora das relações política e privada, então, esta liberdade relaciona, já na sua origem, uma liberdade
individual negativa e uma liberdade social positiva – como uma só dimensão, uma extensiva à outra: a liber-
dade de expressão sendo relacionada à livre manifestação de idéias e opiniões, e, a liberdade de imprensa,
aquela que media e garante a liberdade de expressão através dos meios de comunicação (MARQUES, 1997).
A esfera pública surge com a consolidação da burguesia enquanto classe. Alijada de participação po-
lítica no contexto do Estado Absolutista da Idade Moderna, subjugada pelas autoridades política e religiosa,
a burguesia, que detinha o poderio econômico, identiica, na esfera pública, um reduto onde se fará possível
o debate livre das hierarquias dominantes. Esta nova esfera, embora fosse um local de debate entre homens
privados – destituídos de poder estatal – era investida de relevância pública, passando a integrar um inter-
câmbio social extenso, induzido e controlado publicamente, tornando-se relevante e autônoma, composta
pela sociedade civil emancipada (à época, representada pela burguesia) (GOMES, 1998, p. 160).
É dessa forma, ainda de acordo com Gomes, que surge a ideia de esfera pública como um local de
mediação entre o Estado e a sociedade civil. Tornando-se instrumento essencial à tomada e à legitimação de
decisões políticas, diante desse novo fórum público, a imprensa vai estar associada, desde então, principalmente
ao espectro da opinião pública política (GOMES, 1998), de modo que a liberdade de opinião na esfera pública
passa, desde então, a ser sede da liberdade de expressão.
Os grandes grupos de comunicação falam da liberdade de imprensa apenas quando alguma medida
estatal tenta intervir em sua produção, seja por censura ou por regulamentação. Mas esquecem-se que a
liberdade de expressão requer meios de fala, para garantir a diversidade de interesses e representação dos
diversos grupos e setores sociais. Portanto, o direito à comunicação, na sociedade contemporânea, depende
da “universalidade da liberdade de expressão individual”. Ou seja, para que o direito fundamental à liberdade
de expressão seja garantido a todos e implique no direito à comunicação, precisa ser assegurado um conjunto
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de condições para um ciclo positivo de comunicação, cujo ponto de partida é o acesso aos meios de comuni-
cação em massa.(INTERVOZES, 2010, p. 23).
Em seu livro “Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movi-
mentos sociais”, Renata Rolim (2011, p. 33) elucida que “Naturalizada a ordem capitalista, o uso público da
razão transformou-se em operacional de administração dos conlitos dentro dos limites das condições sociais
existentes – privilégio de uma intelligentsia capaz de traduzi-la para as massas na esperança de transforma-
-las em seres racionais”.
Ao inal da batalha contra o absolutismo monárquico, que culminou no im do antigo regime e deini-
tiva ascensão da burguesia, assistiu-se ao triunfo da concepção liberal na condução da imprensa mediante a
positivação de seus elementos essenciais para o domínio capitalista, a liberdade de publicação e de empresa.
Mediante a apropriação empresarial dos meios de produção da informação, a burguesia viabilizou a imposi-
ção temática de sua esfera pública – autonomia individual, fundada na liberdade econômica, a que deve se
submeter toda organização política – sufocando outras interpretações e projetos, intentando – sem direito ao
contraditório - a consolidação da democracia política liberal. Com a ajuda do Estado, a burguesia utilizou-se
de mecanismos restritivos para afastar os trabalhadores e a população em geral do acesso às tecnologias de
produção da informação. A ingerência estatal nem sempre é mal vista pelos defensores do free trade (RO-
LIM, 2011).
Historicamente, a negação seletiva do poder de voz nos ambientes públicos de debate é utilizada como
uma eiciente ferramenta de exclusão e controle sociais. Tal restrição atua na subjetividade dos grupos que
se intenta controlar e marginalizar, vez que trabalha na perspectiva sistemática destituí-los de sua capacida-
de de argumentação, ação, relexão e poder de auto representação, reverberando não apenas na impotência
ante a tomada desse espaço público, mas reletindo na própria identidade e auto-estima grupais. O início de
um ciclo positivo de comunicação imprescinde, portanto, da diversidade de conteúdo, e, consequentemente,
da diversidade da propriedade dos meios de comunicação (INTERVOZES, 2010, p. 23).
Ao estudar o desenvolvimento do cenário da comunicação brasileira, Renato Ortiz (1991) marca que,
aliada ao fenômeno do capitalismo tardio, a consolidação da cultura midiática de massa ganha forma mais
deinida no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do im
de tal regime, a lógica da concessão pública de outorgas mantém uma relação muito parecida ainda hoje.
Durante o regime ditatorial, a outorga e a concessão públicas dadas a estes veículos dependiam diretamente
da relação destes com a linha ideológica ditatorial – além do crivo da própria censura, pelo qual qualquer
programação passaria, independentemente.
Apesar de a abordagem dos grandes veículos de comunicação não ser mais plenamente vertical, suas
diretrizes continuam correspondendo à manutenção dos privilégios de elites políticas e econômicas domi-
nantes, à lógica do capital, do status quo, e, como consequência, à ideologia dominante. Em um cenário em
que poucos grupos empresariais controlam as comunicações no país, vale dizer que existem outros fatores
- para além dos mecanismos de controle estatais, hoje refreados - que restringem a liberdade de imprensa –
e, consequentemente, de expressão - àqueles que não dispõem do controle sobre os meios de comunicação.
Desse modo, a censura não mais caracteriza-se como sendo monopólio do Estado, mas “também está sendo
privatizada” (LIMA, 2010, pag. 105).
Tal aparente incoerência em relação a quê/quem ameaça ou censura a liberdade de imprensa de-
monstra a necessidade do debate livre e racional acerca do tema que é de interesse público - bem como do
resgate à teoria da esfera pública. Porém, airma Kucinski que existe a interdição a este debate por parte
da chamada grande mídia, que costuma acusar qualquer tentativa de regulação democrática do setor como
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sendo “censura” (KUCINSKI, 2002) numa clara reivindicação da perpetuação de seu privilégio no controle
destes meios, e, por conseguinte, de controle sobre a poderosa opinião pública.
Airma a chamada grande mídia que a regulação (qualquer que seja) representaria restrição ao di-
reito fundamental absoluto à liberdade de expressão - como se este direito lhes fosse privativo - invocando o
fantasma da censura estatal quando, em realidade, as iniciativas de regulamentar o setor vêm, de forma con-
tundente, não do Estado, ou do governo, mas da própria sociedade civil organizada, e dos movimentos sociais.
Assim, evitam que o debate loresça – o que lhes é bastante fácil, vez que detém os meios de comunicação
e “censuram” a entrada nestes desta discussão – e silenciam todos os atores políticos que pleiteiam voz e
representatividade na esfera pública, esterilizando qualquer tentativa de aprofundamento do debate através
da rotulação de “censura”, “restrição”, “repressão”. Nesse caso, o efeito silenciador vem do próprio discurso.
Em 2002, projeto inédito desenvolvido por Daniel Heinz e intitulado Donos da Mídia desvendou as
ramiicações das seis principais redes nacionais de tv aberta – veículo de comunicação que exerce até hoje
papel estruturador no conjunto do mercado de mídia – quais sejam: Globo, Record, SBT, Bandeirantes,
RedeTV! e CNT. O estudo constatou que, por meio de grupos ailiados, as redes geram um vasto campo de
inluência, em escala de massas, que capilariza por 294 emissoras de tv em VHF (90% do total de emissoras
do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em onda tropical (OT), além de 50
jornais. Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico
e político que se ramiica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões (HERZ, 2002).
Não é difícil concluir que, diante dos fenômenos da consolidação do capitalismo e da globalização
mundial, a comunicação é instrumentalizada para atendimento, manutenção e criação de mercados, detur-
pando seu caráter primordial, situação esta que relete em problemas relacionados à representatividade quais
reverberarão nas esferas políticas e pessoais dentro da sociedade.
Na maioria dos países latino-americanos, a mídia desenvolveu-se com o apoio de governos autoritá-
rios, tendo a lógica do capital como embasamento para sua ampliação. Toda a infraestrutura necessária para
a expansão do rádio e da televisão foi promovida por tais governos, quais limitaram aos movimentos populares
o acesso às tecnologias de produção da informação, enquanto viabilizavam a adoção de políticas neoliberais
que intensiicaram as economias de escala e a maior integração e dependência do setor em relação ao siste-
ma global comercial (ROLIM, 2011).
Na América Latina, foi adotado o free low of information, isto é, a versão informacional da livre cir-
culação de capitais. Na década de 80, quando esse modelo foi implantado, apenas cinquenta corporações
globais dominavam quase todos os meios de comunicação existentes, número este que foi, ainda, diminuindo
com a chegada dos anos 90, em que apenas oito corporações detinham tal domínio - obtido através de estra-
tégias de desestatização das telecomunicações, como a permissão de investimentos estrangeiros e a liberali-
zação da propriedade de meios audiovisuais (ROLIM, 2011).
O free low information ocasionou a diminuição do espaço para a criação de meios de comunicação
mais democráticos e de produções que não se adequam ao retorno de capital imediato, sendo responsável por
tornar vulnerável o mercado de trabalho da indústria cultural latino-americana em relação à concorrência
com os países centrais. O que é produzido pelos grandes grupos midiáticos tem como principal escopo a dis-
tração da audiência para o retorno econômico imediato, de modo que o processo comunicacional não relete
a experiência social destes indivíduos (ROLIM, 2011).
Segundo Paulo Freire, não há possibilidade de haver comunicação dentro de uma via de mão única,
uma vez que a comunicação se constrói na busca de signiicação dos signiicados entre os interlocutores. De
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
acordo com a sua teoria da comunicação “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, tam-
bém, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (PAULO FREIRE,
1970, p. 83). A comunicação, portanto, não deve ser vista como relação entre um sujeito ativo e outro passivo,
mas implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.
O direito à comunicação, no entanto, sempre encontrou barreiras nos oligopólios midiáticos. Esses
grupos são responsáveis por adotar estratégias de censura à liberdade de informação, quando, por exemplo,
têm o poder de decidir o conteúdo que irá ou não ser veiculado em seus domínios (DÊNIS DE MORAES,
2013), bem como quando são capazes de silenciar as vozes que fazem oposição a seus interesses políticos.
Nos países latino-americanos, a adoção de políticas públicas foi de grande importância para possibi-
litar um maior acesso ao direito à comunicação - imprescindível que tais medidas viessem acompanhadas
da desconcentração do espaço midiático (DÊNIS DE MORAES, 2012), cedendo espaço a vozes contra he-
gemônicas. Devido ao seu contexto social e político, a Argentina é hoje um dos países que adotou de forma
bastante satisfatória a ampliação do direito à comunicação.
Dênis de Moraes (2011) em seu livro Vozes da América Latina aborda como as políticas públicas
devem direcionar-se à redeinição do setor de mídia em bases mais equitativas, tornando as relações mais
simétricas, combatendo os privilégios que vêm favorecendo a iniciativa privada. Aponta como as campanhas
opositoras orquestradas pelas elites empresariais detentoras do oligopólio midiático combatem a referida
diversiicação da radiodifusão sob concessão pública, objetivando a manutenção de seus privilégios. Essas
campanhas denunciam uma suposta ameaça à liberdade de expressão imposta pelos governos progressistas,
reduzindo a liberdade de expressão à liberdade de imprensa e, esta, à liberdade de empresa.
A efetivação do direito à comunicação na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 era pretendida
a partir da criação de meios de comunicação alternativos, em que a propriedade e o controle seriam coletivos,
a partir da ampla participação na elaboração da programação. Na Venezuela foram implementados progra-
mas de incentivo às rádios e TVs comunitárias; na Bolívia, Evo Morales estimulou as rádios comunitárias
doando equipamentos e isentando-as do pagamento da licença e uso das frequências. Um fato importante a
ser destacado foi a criação da TELESUR, composta pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Ve-
nezuela. Trata-se de uma empresa pública multiestatal que tem como escopo a integração dos povos latino-a-
mericanos e que pretende ser uma alternativa ao discurso das corporações midiáticas (DÊNIS DE MORAES,
2011). Desse modo, as políticas públicas desses governos progressistas além de apoiarem os meios que não
atendem à lógica do capital e uma nova coniguração do serviço público de radiodifusão, também ajudam na
difusão de conteúdos com incentivo à produção cultural e o estímulo à indústria audiovisual nacional.
Considerado um dos primeiros países a reformular seu marco regulatório da comunicação, a Argenti-
na tornou-se referência para aqueles que lutam pela democratização da mídia. Dentre os países latino-ame-
ricanos a Argentina era o que adotava políticas neoliberais mais rigorosas, onde os processos de concentração
econômica tiveram grande avanço, além da desnacionalização do espaço midiático. Consequência disso foi a
concentração desses meios nas mãos dos dois maiores grupos presente no país, ADMIRA e Clarín, responsá-
veis por retransmitir várias produções importadas dos Estados Unidos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Os oligopólios midiáticos se utilizaram das medidas adotadas para acusar Kirchner de atentar contra
a liberdade de imprensa e de expressão, enquanto os setores populares e seus aliados que ansiavam pela de-
mocratização dos espaços midiáticos demonstraram apoio à continuidade do governo, organizando protestos
decisivos para a aprovação do marco regulatório.
A Lei n. 26.522/2009, conhecida como a Ley de Medios, reorganizou o espaço midiático através da
desconcentração da concorrência, permitindo que outros atores obtivessem concessões para produzirem
outros conteúdos audiovisuais, não necessariamente alinhados com a ideologia dominante. Importante citar
as soluções normativas encontradas para equilibrar a democratização da mídia com os mecanismos de pro-
dução comuns do modo de produção capitalista.
A lei de meios pretendeu regular os critérios de outorga de licenças e operação, bem como o monito-
ramento da qualidade do serviço e do atendimento a critérios de pluralismo (LINS, 2009). Para garantir um
amplo acesso aos meios de comunicação foram tomadas medidas com o intuito de inibir a sua concentração.
Dentre elas, encontra-se a limitação do número de outorgas de licenças – quais são concedidas através de um
processo licitatório. Essas licenças passaram a ter um prazo de 10 anos, podendo ser renovadas uma única
vez; indo o prazo da renovação passou a ser necessário outro processo licitatório, havendo a possibilidade de
que antiga outorgatária concorra em condições de igualdade com outros pleiteantes (LINS, 2009).
Alguns artigos da lei tornaram-se os mais polêmicos por impor limites à concessão de faixas de radio-
difusão e audiovisual a grupos empresariais. Visando a coibir a tendência concentradora vigente no sistema
privado, a lei estabeleceu dois limites: o primeiro deles é o número de licenças e o segundo é a cota de mer-
cado. Outra exigência da lei é a proibição da coexistência de vínculos societários entre empresas de radio-
difusão, agências de publicidade e de jornais e revistas, como forma de impedir os processos de integração
vertical e horizontal.
A lei estabelece, a nível nacional, um limite de uma licença de radiodifusão por satélite, e até 10 li-
cenças de serviços de comunicação audiovisual por radiodifusão. A nível local, são estabelecidos os limites de
uma única licença de radiodifusão sonora em AM, uma única em FM, ou até duas, se houver mais de oito
emissoras na localidade. Quando se tratar da única frequência disponível, não pode ser outorgatário quem já
tenha outorga na mesma área ou em áreas adjacentes (LINS, 2009). Quanto à cobertura, as licenças conce-
didas estão proibidas de atingir um número superior a 35% da população. Como restrição à formação de re-
des, passou-se a exigir autorização formal do governo para que uma emissora atue como ailiada a uma rede.
A Ley de Medios reconheceu a importância das emissoras comunitárias, que deixam de sofrer res-
trições com o advento da lei, cabendo a elas 33% de todas as frequências de radiodifusão. Além disso, não
sofrem com restrições geográicas de alcance ou de temática e recebem autorização para se constituírem em
redes, desde que observadas as cotas de programação (ROLIM, 2011).
A im de que a Lei de Meios pudesse ter sua efetivação garantida, foram criadas entidades regulado-
ras para atuarem de modo conjunto com a autoridade competente na matéria de telecomunicação. A Autori-
dade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) tem como escopo a interpretação e a aplicação
da lei com independência orçamentária e administrativa em relação ao governo nacional (ROLIM, 2011).
Tem como objetivos a melhoria da qualidade técnica dos serviços de radiodifusão, a igualdade de acessos e
a pluralidade de informações, bem como o controle da programação, a avaliação do conteúdo, bem como a
iscalização, identiicação de infrações e aplicação das sanções adequadas (INTERVOZES, 2010).
Embora a Lei de Meios seja reconhecida por abrir espaço para novas vozes e ser reconhecida como
uma das leis mais avançadas do mundo, ainda sofre bastante com entraves impostos tanto pelo Judiciário
quanto pela resistência por parte dos grandes grupos midiáticos. Mauricio Macri, que assumiu a presidência
da Argentina, atendendo a interesses dos grupos midiáticos, em 15 dias de mandato emitiu decretos presi-
denciais considerados nocivos para os ganhos já obtidos em relação ao direito à comunicação (INTERVO-
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Direito(s) em debate.
ZES, 2016). O último decreto modiicou profundamente o que estava previsto na Lei de Meios, ampliando
a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com o alcance máximo de 35%, que se
trata de uma restrição à oligopolização do setor (REVISTA FÓRUM, 2016).
O horizonte da mídia pública como sistema comunicacional engloba a quebra do paradigma da comu-
nicação como atividade comercial direcionada à obtenção de lucro para proprietários privados ou acionistas,
e, ao mesmo tempo, com a “alternativa” a esse sistema estatista que proponha a excessiva ingerência e domí-
nio governamentais. Intenta-se promover a participação pública, de cidadãos, no gerenciamento do sistema
comunicacional, forjando-o cada vez mais autônomo, sendo justamente essa a medida do caráter realmente
público que é capaz de atingir: a autonomia em relação ao mercado e ao Estado e, como condição essencial,
a abertura à participação, com poder deliberativo, ao cidadão (PEREIRA, 2011).
Meios de comunicação de massa inanciados por dinheiro público e livre do controle privado comer-
cial tem sido um modelo de comunicação bastante explorado e consolidado na maioria das democracias mo-
dernas. Segundo pesquisa realizada no ano de 2006 em sete países (França, Coréia do Sul, Alemanha, Reino
Unido, Itália, Estados Unidos e Japão) pelo Instituto NHK de Pesquisa em Radiodifusão (NHK Broadcasting
Culture Research Institute, 2006), 4 em cada 5 cidadãos consideram necessário existir um sistema público
de comunicação. Em países como Alemanha, Japão e Reino Unido – onde há cobrança de imposto especíico
que inancia mídias públicas – 60% dos entrevistados consideraram importante pagar este tipo de tributo
para sustentar tais corporações.
No Brasil, o tema da democratização da mídia ainda é tratado como uma espécie de tabu, o que se
dá, em parte, pelo fato de ter sido este debate abafado durante quase todo o século XX. Principalmente sob
o incentivo do regime militar, após os anos 60, o país desenvolveu um sistema de comunicação de peril
majoritariamente comercial. Tal realidade fez com que, no Brasil, pouco se saiba sobre o real papel da mídia
pública (PEREIRA, 2011).
A despeito da negligência do Estado e das políticas públicas mesmo no período em que se vivenciou
a redemocratização do país após o término da Ditadura Militar, o projeto de um sistema público de comuni-
cação ganhou novo fôlego nas décadas subsequentes e culminou na criação da Empresa Pública de Comu-
nicação (EBC) através do Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Em seu artigo primeiro, o
decreto estipula que a EBC é “uma empresa pública, organizada sob a forma de sociedade anônima de capital
fechado, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (BRASI, 2008).
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Direito(s) em debate.
A existência de uma instância mista e com poder de decisão na EBC é signiicativamente positiva,
mas ainda é necessária a qualiicação do modo de escolha de seus membros – o atual modelo é frágil e omisso
quanto aos critérios de indicação, o que põe em xeque a necessária autonomia da agência. A falta de objetivi-
dade na escolha dos componentes do órgão deliberativo acaba revestindo de personalismo as indicações a se-
rem feitas pelo Presidente da República, o que, por sua vez, faz com que tal instância passe a ser inluenciada
por uma política de governo e não por uma política de Estado, como deveria ser e como acontece nos países
onde o sistema é mais consolidado (VALENTE, 2011). Necessário seria que esta instância fosse composta por
representantes indicados por um maior número possível de entidades da sociedade civil, algo que seja aberto
a ponto de garantir que o Conselho tenha proporcionalidade regional, diversidade de segmentos, pluralidade,
onde todos os setores como cinema, audiovisual, cultura se sintam representados.
Além das emissoras educativas-estatais e aquelas ligadas a fundações civis sem ins lucrativos, dois
outros segmentos também entram no debate sobre o campo público de comunicação: as emissoras univer-
sitárias e os canais comunitários de rádio e TV. Embora sustentem formatos bastante distintos de conteúdo
e transmissão, ambos os segmentos se vinculam ao campo através de sua aproximação com as comunidades
ou nichos públicos em que atuam, seja as comunidades universitárias, as comunidades de bairros urbanas
ou em pequenas localidades do interior e povoados rurais.
Os canais comunitários, de suma importância para a consolidação de uma mídia democrática e po-
pular, caracterizam-se por sua aproximação com o campo público, e em sua forma de gestão enraizada nas
comunidades. Seu caráter eminentemente comunitário, tanto no protagonismo para a criação de conteúdo
quanto em sua natureza autóctone, diferencia-as em relação aos demais veículos públicos de comunicação,
em razão da relação orgânica que possuem com o entorno – o que signiica estar abertas à participação de
moradores e movimentos sociais da localidade, garantir o contraditório e a pluralidade de opiniões, prestarem
serviços de utilidade pública, estar comprometida com as lutas e demandas da comunidade (SÓTER apud
PEREIRA, 2009).
Peruzzo (1991, p. 162) defende que a participação na comunicação popular é fundamental para o
processo emancipatório, qual contribui para cidadania e possibilita ao homem tornar-se sujeito. A necessida-
de de conscientização e mobilização popular implica na demanda por meios de comunicação populares, aces-
síveis, a im de que a prática comunicacional seja experienciada enquanto dinâmica social transformadora,
atuando simultaneamente como meio de conscientização, mobilização, educação e agenciamento cultural.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
É esse processo de construção da cidadania que propicia e aponta para o desenvolvimento local, mediante a
combinação eiciente das potencialidades de cada território, de seus recursos e de sua força empreendedora.
CONCLUSÃO
Objetivo deste trabalho foi identiicar, na teoria e na prática, o direito fundamental à liberdade
de expressão e a inter-relação que este possui, numa realidade midiatizada, com o direito à
comunicação. Como poderia se desenvolver democraticamente ao prescindir do acesso aos ve-
ículos através dos quais essa comunicação se dá? Intentou-se discutir, portanto, a situação da
comunicação – enquanto direito - em um cenário em que poucos grupos empresariais contro-
lam os veículos de imprensa no país, privatizando e restringindo o acesso a um espaço de fala
qual se constitui como principal lócus de desenvolvimento da própria opinião pública.
Desde 2013, movimentos sociais, organizações que compõem o Fórum Nacional pela Democratiza-
ção da Comunicação (FNDC) e ativistas pelo direito à comunicação, recolhem assinaturas para apresentação
ao Congresso de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação de um marco regulatório para a comu-
nicação no Brasil, que regulamenta os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Inspirada
nos tratados internacionais já ratiicados pelo Brasil e em experiências regulatórias de países como a França e
a Espanha, a Lei da mídia democrática propõe mecanismos de implementação dos mencionados dispositivos
constitucionais, quais são objeto de retumbante omissão legislativa, carecendo de legislação infraconstitucio-
nal que os regulamente. Entre os principais dispositivos presentes no projeto de lei estão o veto à propriedade
de emissoras de rádio e TV por políticos, a proibição do aluguel de espaços da grade de programação, a dei-
nição e delimitação de regras para impedir a formação de oligopólios, a criação de um Conselho Nacional de
Comunicação e de um Fundo Nacional de Comunicação Pública.
Para além da elaboração de um novo marco regulatório que reorganize a comunicação como um todo,
uma série de propostas e teses vem sendo publicadas por instituições, associações e movimentos sociais sobre
o tema “sistema púbico de comunicação”. É possível listar alguns horizontes ou diretrizes que vem sendo
apontadas e reforçadas através dessas manifestações: ampliação do número de emissoras e fortalecimento
das já existentes no campo público (estatais, culturais, comunitárias, educativas); aumento da participação
civil nas empresas públicas de comunicação, através de instâncias deliberativas, com participação de repre-
sentantes da sociedade civil criteriosamente estabelecida e objetivada; estipulação de metas em torno de
percentuais a serem cumpridos quanto ao desenvolvimento entre os sistemas público, privado e estatal (seja
através de cotas na concessão de canais, seja através de fomento e políticas públicas de desenvolvimento para
atingir tal equilíbrio); fomento à produção independente e fortalecimento da cadeia produtiva entre os canais
e emissoras do campo público; criação de fundos para fomento do sistema público de comunicação; criação
de tributos ou redirecionamento de tributos já existentes para inanciamento direto da comunicação pública;
tributação do sistema comercial para inanciamento do sistema público, dentre várias outras.
Segundo GRAMSCI (2002), o enfrentamento da hegemonia só é possível quando o grupo social su-
balternizado possui condições de superar seus patamares de subalternidade até que seja capaz de “sair da
fase econômico-corporativa para elevar-se à fase da hegemonia político-intelectual na sociedade civil e polí-
tica” (1999, p. 460). Ao identiicar o poder de palavra e da participação nos meios de políticos, grupos histo-
ricamente excluídos da esfera pública e, consequentemente das decisões políticas, através da comunicação,
são capazes de mudar a estrutura das representações sociais e mobilizar debates e iniciativas, integrando, de
fora efetiva, as movimentações populares que lutam por transformação social.
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Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
Por meio dos métodos hipotético–dedutivo, histórico e comparativo será feita a análise dos efeitos no
âmbito da Administração e do Judiciário, os princípios constitucionais violados e a recepção deste fenôme-
no jurídico. Também será feita uma vasta explanação do entendimento jurisprudencial, por intermédio da
exposição de súmulas, acórdãos e decisões singulares, pareceres da Controladoria Geral da União (CGU),
da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e doutrinário sobre os temas
abordados.
Tal tema foi escolhido pela total relevância econômica, para a Administração Pública quanto
para os dependentes do servidor instituidor; social, já que esta pratica pode ou não ferir direitos constitucio-
nalmente garantidos, e jurídica, vez há uma disparidade entre o entendimento de todas as instâncias judi-
ciárias e da Administração sobre o assunto, visto que, há diversos julgados, das mais variadas linhas sobre a
constitucionalidade ou não da aplicação imediata e sem prévio aviso ao recebedor dos valores, do “abate-te-
to”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Neste contexto, o trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientiica da Faculdade ASCES
(INICIA) com foco nas áreas de direito administrativo e constitucional, teve como objeto o estudo sobre a
aplicação ou não do abate-teto nestes casos especíicos.
A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha esclarece que o ato de aposentadoria, em verdade, não é
uma concessão do Estado, mas um direito que é assegurado ao agente público, formalizado por meio de um
processo de reconhecimento de sua aquisição pelo interessado. Sob esse prisma, a aposentadoria visa a ga-
rantir os recursos inanceiros indispensáveis ao beneiciário, de natureza alimentar, quando este já não tenha
condições de obtê-los por conta própria. (ROCHA, 2005. p. 413.)
Não se trata, contudo, de nenhum privilégio, favor ou condescendência do Estado, mas sim de um
direito fundamental do servidor-trabalhador garantido pela Carta Magna como uma das formas de se assegu-
rar a dignidade da pessoa humana. (BITTENCOURT, 2014.)
Desta feita, a concessão da aposentadoria constitui uma prerrogativa constitucional do servidor for-
malizada por intermédio de um ato administrativo emanado pelo Estado, em consequência do preenchi-
mento dos requisitos legais não havendo discricionariedade neste ato. Porém, mesmo sendo um direito do
recebedor, a Administração Pública tem aplicado o “abate-teto” aos casos de acumulação de remuneração,
subsídio ou proventos de um servido com pensão por morte deixada por outro servidor sem a devida análise
do caso, sem possibilitar sequer a ciência anterior do beneiciário sobre o fato até o momento que recebe o
valor a menor.
Muitas vezes com base no parecer do Ministro Benjamim Zymler, que será visto adiante, e não foi aca-
tado pela Corte, a Administração Pública aplica o “abate-teto” na soma de dois valores recebidos pela mesma
pessoa, cônjuge/companheiro, mas proveniente de contribuintes distintos e com fatos geradores diferentes.
É justamente diante deste acumulo de uma pensão por morte com alguma outra renda própria do
servidor beneiciário, que a Administração usa a autotutela.
Como se pode observar a autotutela estatal é um princípio administrativo que nesta aplicação em
concreto fere a segurança jurídica do beneiciário, que já tinha sua família, incluindo o de cujus, em uma
situação estabilizada.
A Administração deve garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (Constituição
Federal de 1988, artigo 5º, LIV e LV), visando este im, tem-se os recursos administrativos são meios formais,
previstos em diversas leis, de controle administrativo, por meio dos quais o interessado inconformado postula,
junto a órgãos superiores da Administração, a revisão de determinado ato administrativo de órgãos inferiores,
lesivos ou não a direito próprio, visando à reforma de determinada conduta, por ilegalidade, inoportunidade
ou inconveniência. O recurso tramita pela via administrativa, sem ingerência da função jurisdicional. Há
garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MEDEIROS, 2014)
Desse modo, ica evidente que não obstante exista o poder de autotutela ele não pode se sobrepor aos
interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla
defesa e o contraditório. (QUEIROS, 2014)
Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de
terceiros sem que o faça mediante o devido processo legal, por meio do qual se oportuniza a manifestação
prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente ixados. (QUEIROS, 2014)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Desse modo, não se fala em devido processo legal apenas em situações que existam acusados, ou que
se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a
esses a possibilidade de manifestação prévia.
No uso deste poder de autotutela a aplicação do “abate-teto” está sendo feita de maneira automática
e sem ao menos haver a comunicação aos dependentes, quiçá a ampla defesa, tudo com base no teto-remu-
neratório.
A doutrina majoritária defende que o dispositivo que abarca o “abate-teto” (artigo 37. XI, CF/88) é
lagrantemente inconstitucional, porque fere o direito adquirido à irredutibilidade de vencimentos (artigo 37,
XV, CF/88). Tal dispositivo feriu uma cláusula pétrea. O que poderá ser feito pela Administração é manter a
remuneração irreajustável até que chegue no limite remuneratório constitucional. (QUEIROS, 2014)
Feita as devidas considerações sobre como está se dando o processo para se aplicar o “abate-teto” na
Administração e como deveria ser corretamente feito, tratar-se-á agora sobre o entendimento jurisprudên-
cias de tal desconto.
Uma das situações que tem gerado controvérsia no que tange à aplicação do limite remuneratório de
que trata o inciso XI do art. 37 da CF/ 88 consiste na acumulação de pensão por morte com outras verbas
sujeitas ao referido limite, como a remuneração decorrente do exercício de cargo, função ou emprego público
e os proventos de aposentadoria.
Pelo que se observa do referido comando constitucional, estão incluídas no chamado teto remunera-
tório as seguintes verbas: a remuneração e/ou subsídio ou quaisquer outras verbas remuneratórias devidas
aos agentes públicos, os proventos de aposentadoria e as pensões, percebidos cumulativamente ou não.
Porém, no caso da pensão por morte, tendo em vista que o instituidor é pessoa diversa do beneici-
ário, entende-se que esse benefício não deveria ser cumulado com verbas remuneratórias ou proventos de
aposentadoria, para efeito de incidência do chamado “abate-teto” visto que tal verba, em sua origem, tanto
como remuneração e/ou subsídio quanto como aposentadoria do instituidor, já sofreu em sua base de cálculo
a incidência do “abate-teto”.
Por meio do Acórdão nº 2079/2005 – Plenário do Tribunal de Contas da União, por maioria, concluiu
que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte
instituída por outro servidor público, não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se subme-
ta à limitação, como dito no parágrafo acima, prevista no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal.
Diante da divergência quanto à aplicação do teto remuneratório à soma de pensão com eventuais
verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria percebidos cumulativamente pelo beneiciário é im-
prescindível a lição de Couto e Silva:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Há decisões do Tribunal de Contas da União que protegem o direto do beneiciário a receber o que
lhe é de direito, como por exemplo, a resposta ao pedido formulado em requerimento administrativo para a
Secretaria de Recursos Humanos/MP por uma servidora aposentada no sentido de que não seja aplicado o
denominado abate-teto sobre o somatório dos seus proventos de aposentadoria com a pensão por morte dei-
xada por seu esposo, citando em seu favor precedente do Tribunal de Contas da União. (BRASIL,TCU, 2005)
Para fundamentar seu entendimento, a Secretaria de Recursos Humanos/MP citou uma decisão ad-
ministrativa do Conselho Nacional de Justiça, no artigo 6º da resolução nº 13, de 21 de março de 2006, que
dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magis-
tratura, segundo a qual o teto remuneratório não deveria incidir sobre a soma da remuneração do servidor
com pensão por morte, tomando por base o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU que irmou entendi-
mento de que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão
por morte instituída por outro servidor público não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente,
se submeta à limitação prevista no art. 37, XI, da Constituição Federal. (BRASIL, CNJ, 2006)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Neste ponto o Advogado-Geral da União concorda com o Ministro Benjamim Zymler, que o texto do
artigo 37 da CF/ 88 deveria ser diferente para se garantir a não incidência do “abate-teto”.
[...] Acerca do rigor do art. 37, XI, da CF/88, assim airma Celso Antônio
Bandeira de Mello:
“O rigor quanto à determinação do teto, como se vê, é bastante grande, pois
sua superação nem mesmo é admitida quando resultante do acúmulo de car-
gos constitucionalmente permitido. Aliás, no que concerne a isto, a vedação
está reiterada no inciso XVI, última parte, do mesmo art. 37, assim como, no
que atine a proventos ou proventos cumulados com vencimentos ou subsídio,
no § 11 do art. 40”. (MELLO, 2006. p. 260.)
[...]
Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo tratam do tema em
seu livro “Nova previdência social do servidor público” e admitem expressa-
mente a incidência do teto sobre o somatório de pensão com aposentadoria,
quando assim airmam:
“Caso o servidor perceba pensão da União e aposentadoria do Poder Exe-
cutivo do Estado-membro, por exemplo, deverá ser respeitado, no tocante à
parcela paga pelo Estado-membro, o teto estadual. Quanto ao valor pago pela
União, o teto será o valor do subsídio de Ministro do Supremo. A soma das
duas parcelas não poderá exceder este último”. (DIAS; MACÊDO, 2006. p.
155.)
[...]
Os autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macê-
do reairmam a opinião de que a soma dos valores percebidos devem se limitar ao teto constitucional e caso
o ultrapassem deve sofrer a incidência do “abate-teto”.
[...]
Por im, considerando que o presente parecer contrasta com o entendimento
majoritário do Tribunal de Contas da União, sedimentado pelo Acórdão nº
2079/2005 – Plenário, entendemos pertinente sugerir que a Advocacia-Geral
da União emita Parecer sobre a questão, a im de que os órgãos e entidades
da Administração Federal passem a seguir o posicionamento que vier a ser
adotado pela AGU, nos termos do art. 4º, X, da Lei Complementar nº 73/93,
ipsis litteris:
Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União:
[...]
X - ixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos
normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Admi-
nistração Federal;
Ante o exposto, somos pela aplicação do teto salarial ixado no art. 37, XI, da
Constituição Federal à soma de pensão por morte com proventos de aposen-
tadoria percebidos pelo mesmo beneiciário, sugerindo o encaminhamento
dos autos ao Gabinete do Advogado-Geral da União para que seja ixado en-
tendimento sobre a questão, nos termos do art. 4º, X, da LC nº 73/93, uma
vez que o Tribunal de Contas da União adotou posição contrária à defendida
no presente Parecer. (BRASIL, AGU, 2005)
É justamente com base neste parecer que a Administração Pública vem aplicando o “abate-teto”
indiscriminadamente.
Como será mostrado adiante, assim como foi airmado no próprio parecer do Advogado-Geral da
União, o entendimento majoritário não é este que ela adotou e sim um totalmente diverso.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O Ministério Público, solicitado a se manifestar nos autos deste Acordão 2079/2005, manifesta-se
conforme a seguir transcrito, por meio do parecer do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico:
A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe as novas regras e tentou esclarecer as dúvidas existentes
sobre os limites aos tetos remuneratórios dos servidores públicos.
Como será visto adiante, serão analisados julgados que destoam do entendimento da AGU, do Minis-
tro Benjamim Zymler e do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico, para fundamentar a possibilidade
de acumulação sem a incidência do “abate-teto”.
Este embargo foi apresentado com a inalidade de contestar de quem é a competência para fazer o
desconto do “abate-teto” e esclarecer outras dúvidas.
[...]
16.Airma (o embargante) que o CNJ, em 2007, amadurecendo o enten-
dimento sobre o tema, editou a Resolução nº 42 admitindo a incidência
isolada do teto no caso de percepção cumulativa de subsídios, re-
muneração ou proventos, com pensão. 18.Acrescenta que, ainda que
prosperasse tese diversa àquela por ele defendida, a administração estaria
diante de diiculdades operacionais para controlar e glosar parte da remune-
ração daqueles que recebem por mais de uma fonte. A aplicação do dispositi-
vo constitucional depende de deinições normativas inexistentes que venham
orientar o procedimento do administrador em face de algumas questões, tais
como: de quem seria a responsabilidade pelo corte de valores que
ultrapassem o teto? da fonte responsável pelo pagamento de maior valor,
do órgão com vínculo mais recente ou seria dada a opção ao agente?; no caso
de vínculos com órgãos públicos de diferentes esferas de governo, que teto
aplicar? que esfera efetuaria o desconto do valor excedente? Deste modo, o
administrador, para dirimir estas dúvidas, depende de deinições mediante
lei. 29. Ele se baseia nas Resoluções nºs 13 e 14/2006 do Conselho
Nacional de Justiça e na Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacio-
nal do Ministério Público, que consideram individualmente, para a
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Além do já exposto há resoluções do Conselho Nacional de Justiça versando sobre o tema. A Reso-
lução nº 13/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio
mensal dos membros da magistratura. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Há, também, a Resolução nº 14/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório
constitucional para os servidores do Poder Judiciário e para a magistratura dos Estados que não adotam o
subsídio. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Por sua vez, a Resolução nº 42, de 11 de setembro de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, airma
que o “abate-teto” deve ser aplicado as parcelas de cumulação de subsídio, remuneração ou proventos soma-
dos a pensão por morte consideradas individualmente. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Tem-se, também, a Resolução nº 10/2006 do CNMP que dispõe sobre a aplicação do teto remune-
ratório constitucional para os servidores do Ministério Público da União e para os servidores e membros dos
Ministérios Públicos dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNMP,2006)
Conforme se pode observar destas resoluções, os Conselhos excepcionaram situações muito especí-
icas para a não-incidência do teto, fazendo uma interpretação sistêmica da Constituição que, por um lado
instituiu o teto e, por outro, possibilitou o exercício do magistério e, ainda, determinou que os órgãos da justi-
ça eleitoral fossem compostos por membros de outros órgãos do judiciário, então estas pessoas devem receber
pelo seu trabalho. Já quanto à norma que dispõe que a pensão decorrente de falecimento de cônjuge deva ser
considerada individualmente para observação do teto, acredita-se que a exceção se dá porque o fato gerador
ocorreu por pessoa distinta daquela que recebe o benefício.
O Tribunal Regional Federal da Primeira Região demonstra na Apelação Cível 4939, não só, o enten-
dimento que o “abate-teto” deve incidir de maneira individual em cada benefício, como ainda estabelece a
devolução dos valores já descontados indevidamente, corrigidos monetariamente. (BRASIL, TRF-1, 2010)
A Apelação Cível 424834 cível julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quinta Região coaduna com
o entendimento de que as verbas devem ser consideradas isoladamente, e não cumulativamente, para efeitos
de aplicação do “abate-teto”. (BRASIL, TRF-5, 2004)
Como já abordado anteriormente, pode-se perceber no relato dos fatos a aplicação unilateral, por
parte da Administração Pública, do “abate-teto”, sem possibilidade de ampla defesa ou de contraditório por
parte do beneiciário.
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Direito(s) em debate.
Foi com base nestes julgados, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco prolatou a sua decisão da não
aplicabilidade do “abate-teto” sobre as somas da pensão por morte com a renda própria do cônjuge sobrevi-
vente.
Um dos fundamentos que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, uti-
lizou para lastrear seu voto, foi que o instituidor da pensão já havia pago as contribuições necessárias para
garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, quando assim airmou:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Este entendimento se coaduna com o artigo 75 da Lei n° 8.213 (BRASIL,1991), que trata justamente
deste tema:
Art. 75: O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do
valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que
teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu
falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei. (grifo nosso)
Pode-se perceber com esta leitura que a Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as situação
da aplicabilidade do teto constitucional, se propositalmente ou não, não se sabe, mas com as palavras do
próprio Ministro Ubiratan Aguiar “como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento res-
tritivo quando a própria lei não o fez”.
(...)
Entendo que as conclusões acima representam a aplicação de restrição quan-
do a Constituição Federal não quis restringir, pois, como busquei demonstrar,
todas as menções ao limite constitucional referem-se à remuneração e pro-
ventos de uma mesma pessoa, inclusive nos casos de acumulação previstos
na Carta Magna. Ao contrário da percepção do ilustre Representante do Mi-
nistério Público, veriico que a aplicação do teto às situações objeto da pre-
sente Consulta é que representaria mutação constitucional, haja vista que a
Carta Magna não contempla dispositivo nesse sentido.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A Corte de Contas da União acompanha o voto do Ministro Ubiratan Aguiar com o entendimento
que não deve ser despendido melhor tratamento para o recebedor da pensão por morte, como também não
deve este ser tratado de forma pior que o instituidor da pensão, haja vista que as verbas recebidas por este já
sofriam a limitação do teto constitucional.
Devido ao elevado número de julgados, em todas as esferas de jurisdição, com o mesmo entendi-
mento da não incidência do “abate-teto” sobre a soma da pensão por morte com remuneração/ subsídio ou
proventos, faz-se necessário parar esta análise e demonstrar outros pontos controversos do objeto de estudo.
Ao se falar em enriquecimento sem causa tomar-se-á como conceito para este trabalho a deinição de
enriquecimento sem causa como a situação na qual o Estado aufere vantagem indevida em face do empobre-
cimento de outro, sem motivo que o justiique.
O conceito será melhor demonstrado, fazendo-se necessária antes uma análise do instituo no âmbito
geral.
O enriquecimento sem causa tratado pelo artigo 884 da lei 10.406 (BRASIL,2002) que instituiu o
novo Código Civil, conigura-se pela existência de um enriquecimento obtido as custas de outrem sem uma
causa justiicativa para o enriquecimento.
O enriquecimento sem causa, tem o condão de fazer com que o enriquecido restitua o empobrecido
com aquilo que se locupletou somente, sendo o foco central a vantagem auferida, e não o empobrecimento
necessariamente, sendo a restituição ao empobrecido uma espécie de reparação indireta, não se falando,
portanto em verba indenizatória, perdas e danos e etc. (SOUSA, [2015])
Como pode-se veriicar no voto do Ministro relator Cezar Peluso, no recurso extraordinário, o Supe-
rior Tribunal Federal condena o enriquecimento sem causa por parte do Estado:
E é com embasamento no enriquecimento sem causa que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do
Tribunal de Contas da União, embasou seu Voto, quando airmou que o instituidor da pensão já havia pago
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Direito(s) em debate.
as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte,
não podendo o Estado se apropriar destes valores:
(...)
20.Concordo com o Ministro Benjamim Zymler quando airma que o cará-
ter contributivo é relativo, tanto é que o servidor que acumula remunera-
ções, e proventos, tem sua renda limitada pelo teto. Mas, extrapolar esse en-
tendimento é desvirtuar totalmente o caráter contributivo da contribuição.
Ademais, em se tratando de regime acima de tudo contributivo, interpretação
distinta, mais que proteger os cofres públicos estaria, de fato, ocasionando
enriquecimento sem causa da União, uma vez que as contribuições de
toda uma vida laboral, cujo objetivo do instituidor foi amparar a si ou a seus
dependentes na hora devida, passará a ser apropriada pelo Estado. Defendo,
sim, o estado de direito, mas não o abuso do poder estatal. (BRASIL, TCU,
2005. Grifo nosso)
Por im, observa-se que ao aplicar o “abate-teto” sem os devidos procedimentos legais e sem a análise
necessária por parte da Administração Pública, além de toda a ofensa, já comentada, que é cometida contra
o beneiciário, o Estado ainda enriquece às custas das contribuições pagas pelo servidor falecido.
CONCLUSÃO
Inicialmente é necessário esclarecer que o entendimento do TCU é que, devido ao caráter con-
tributivo dos benefícios, previsto no art. 40, caput, da Constituição Federal de 1988, o teto constitucional
aplica-se à soma dos valores percebidos pelos instituidores individualmente, mas não para a soma de valores
percebidos de instituidores distintos, portanto não incide o teto constitucional sobre o montante resultante da
acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante
resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade, por serem decorrentes de
fatos geradores distintos, em face do que dispõem os arts. 37, XI, e 40, § 11, da Constituição Federal de 1998.
(BRASIL, TCU, 2005
De acordo com as pesquisas que fundamentaram a elaboração deste trabalho, foi possível destacar a
importância do tema em debate, pois, explanando suas características, requisitos e evolução, pode-se enten-
der a importância da criação do teto remuneratório e da aplicação legal do “abate-teto”.
Sendo este, um assunto bastante polêmico e atual, pois é prática adotada na Administração Pública,
com habitualidade, de modo que desnatura o escopo previsto pela lei, ou seja, de ter a retribuição pecuniária
paga em razão do trabalho caráter alimentício, e que não deveria sofrer nenhum desconto, principalmente
sento este desconto proveniente de um fato gerador diverso do que está sendo adotado como razão para a sua
aplicação. Podendo-se airmar, assim, que a reiteração desta prática, está tomando força, o que vem sendo,
inclusive, repudiado por decisões judiciais, que reconhecem o acordo entre o instituidor da pensão por morte
e o Estado, já que, em vida, o servidor contribuía com a sua previdência para garantir a sua aposentadoria ou
pensão por morte para seu/sua cônjuge/companheiro(a) e a segurança econômica de sua família.
O “abate-teto” surgiu e se irmou por meio do estabelecimento do teto remuneratório com a adven-
to a Emenda Constitucional 41/2003, que em seu artigo 9º reestabelece o artigo 17 do Ato de Disposições
Constitucionais Transitórias.
Ainda que não haja dispositivo legal expresso quanto a esse ponto, restou demonstrado que tanto
a doutrina quanto a jurisprudência dominantes reconhecem a invalidade desta postura da Administração
Pública. Mas em que pese toda a evolução do ordenamento pátrio no que se refere ao reconhecimento e
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determinação dos efeitos do instituto, faz-se necessária a positivação de normas de como o Estado deve agir
neste sentido.
O Brasil é um país com dimensões continentais, em que muitos entes administrativos alegam não
fazer o devido desconto ou fazer desarrazoadamente por não ter o controle de quantos vínculos o servidor
tem e qual os valores percebidos por ele.
Ante o exposto, conclui-se que as limitações constitucionais relativas ao teto remuneratório do ser-
viço público e o entendimento doutrinário e jurisprudencial não permitem a aplicação automática do “aba-
te-teto”, e quando isso é feito, está se desrespeitando o devido processo legal, sem se garantir ampla defesa
e contraditório, sobre benefícios com fontes de custeio distintas na cumulação de subsídio/remuneração ou
proventos de aposentadoria com pensão por morte em valor que supere o subsídio mensal dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal.
Como se tal fato já não fosse o suiciente para a não aplicação automática do “abate-teto”, ainda
ocorre o locupletamento dos valores por parte da Administração Pública sobre as contribuições do servidor
falecido, visto que este contribuiu para com o Estado com a promessa de no futuro, em caso de idade avan-
çada ou de sua morte, receber ele mesmo os proventos ou o seu cônjuge/companheiro(a) vir a receber a sua
pensão por morte para garantir a subsistência e o padrão de vida de sua família, visto que com esta inalidade
o contribuinte trabalhou a vida inteira.
Por conseguinte, não deve ser aplicado o chamado “abate-teto” sobre a soma de pensão por morte
com proventos de aposentadoria, subsídio ou remuneração decorrente do exercício de cargos, funções ou
empregos públicos, quando percebidos cumulativamente pelo mesmo beneiciário: a autotutela é legal, mas
a seara pública deve respeito ao devido processo legal.
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Direito(s) em debate.
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Direito(s) em debate.
TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE:
OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SUMÁRIO: Introdução; 1. A pessoa transexual, o movimento transgênero e a busca por direitos fun-
damentais; 2. Contexto da medicina em relação à transexualidade; 3. Do direito à mudança de nome
independentemente da cirurgia de transgenitalização; Considerações inais; Referências.
INTRODUÇÃO
Sem dúvidas, o “fenômeno transexual” indica grandes modiicações históricas da percepção cientí-
ica, cultural e política da identidade sexual durante a história (CASTEL, 1995). Signiica uma quebra de
paradigmas históricos que deinem homens e mulheres a partir de uma genitália feminina ou masculina, sem
meio termos, em que pessoas nascem e se adaptam com sua forma biológica sem se questionar a respeito
do que é gênero e o que é papel social. A pessoa transexual é aquela que não se identiica com o seu sexo
biológico; em outras palavras, um homem que se sente “preso” no corpo de uma mulher, ou vice-versa. Uma
adequação justiicada pelo fato de que a genitália e os aspectos fenótipos e genótipos de um indivíduo podem
não corresponder à personalidade psíquica com a qual ele se sente representado.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Os quatro pilares da sexualidade humana são: Gênero, orientação sexual, papel sexual e identidade
sexual. O gênero é o sexo biológico do indivíduo, a orientação sexual tem a ver com o desejo, com atração,
o papel sexual tem a ver com o comportamento – por exemplo, um homem que pinta as unhas está num
papel feminino –, o papel sexual não tem nada a ver com a orientação sexual, ou seja, um homem dito como
“afeminado” ou uma mulher “masculinizada” não necessariamente são homossexuais e por im, a identidade
sexual é como o indivíduo se percebe, alguns chamam de “sexo cerebral”.
Transexual é o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sen-
te-se, percebe-se e tem a vivência psíquica de pertencer ao outro sexo. A identidade de gênero (homem ou
mulher) não é congruente com o sexo anatômico, biológico, ou seja, o que deine o transexual é que o seu
corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas num corpo de homem, ou vice-versa. A
sigla LGBTTT tem sido utilizada hoje para designar o grupo de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
transgêneras e travestis, respectivamente.
O termo transgênero se refere a uma pessoa que se identiica psiquicamente com o gênero oposto
ao seu de nascimento, ou que pertença a ambos ou nenhum dos dois sexos, estando incluídas nessa classe
travestis, pessoas intersexuais, pessoas transexuais, e mesmo Drag Queens e Drag Kings. É importante frisar
que o Movimento Transgênero (Transgender Movement) é distinto do do Movimento LGBTTT, que difere
por reivindicações próprias (ÁVILA; GROSSI, 2012). A diferença entre transexuais e transgênero pode ser
deinida, de maneira básica, porque o Transgênero, apesar de possuir uma identidade de gênero distinta da
biológica, como ocorre com os transexuais, não visa enquadrar-se de forma completa em um só gênero, ou
deseja transitar entre esses, como é o caso das Drag Queens e Drag Kings, pois acreditam que essa é a melhor
forma de expressar sua identidade e dignidade.
Atualmente, no Brasil, o grupo de pessoas que corresponde aos transexuais possui a extensão de seus
direitos em eminência. No entanto, ainda não se sabe quando alguns direitos fundamentais serão inalmente
garantidos, não sendo somente visto na teoria, mas, sim, também na prática. Nesse sentido, pode-se dizer
que o respeito a diferença não é algo impossível ou inalcançável, mas, sim, que pode ser trabalhado e proces-
sualmente aferido pela parcela da população que a rejeita, através da educação e do discernimento. A partir
disso, poderá ser falado que os direitos individuais poderão ser garantidos através da dignidade da pessoa
humana, como também através do princípio da autonomia da vontade, isonomia e do direito à liberdade.
Muitas pessoas não fazem ideia de como é a perspectiva de mundo das pessoas transgêneras. Viver
numa condição incompatível com o gênero que se tem é um fardo extremamente traumático. Isso ocorre
porque a sociedade tem necessidade em enquadrar as pessoas em papeis sociais, de acordo com a cultura de
cada lugar (EDWARDS, 1991). A não identiicação emana não só da composição biológica, do corpo em si,
como muitos pensam, mas do próprio status de homem ou mulher. Desde os primeiros anos de vida, a pessoa
transgênera tem que conviver com todo o estereótipo do sexo oposto ao qual se identiica. Quando se entra
em lojas para produtos infantis, a separação é bem clara: o polo rosa, e o polo azul. Menino, menina. A dife-
renciação se faz bem marcante, como se a sociedade impusesse, mesmo que de formas subjetivas, a necessi-
dade de separar e distinguir um gênero do outro, desde cedo. Os meninos com carrinhos, e as meninas com
suas bonecas. Portanto, o sofrimento da pessoa “trans” começa desde cedo, vivendo num mundo que não é
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Direito(s) em debate.
seu, cercada por rótulos que a sociedade imprime e com o eterno sentimento de deslocamento psicológico, e
isso é um problema sociológico (BENTO, 2012).
Por causa do desconforto com o gênero biológico, algumas pessoas podem optar pela intervenção
médica para o processo de transformação em seu corpo. Os proissionais da medicina analisam e proferem
o diagnóstico clínico às pessoas transexuais de transexualismo, termo que designa transtorno psíquico de
gênero. Uma vez dado esse diagnóstico, um psicólogo ou psiquiatra deve estudar o paciente e emitir um
parecer que comprove o estado no qual vive o indivíduo, ou seja, diferente em gênero de sua natureza bioló-
gica. Depois disso, feitos todos os requisitos e análises, é preciso tratar com um proissional endocrinologista
para que se inicie o tratamento hormonal, sempre acompanhado de terapia psicológica. Quando o indivíduo
decide realizar a cirurgia de transgenitalização, aceita passar por todas essas etapas de transformação conhe-
cidas popularmente por “mudança de sexo”. A cirurgia de redesignação sexual tem inalidade terapêutica de
proporcionar ao paciente a identiicação com seu corpo biológico e bem-estar. O Conselho Nacional de Me-
dicina é responsável pela autorização dos proissionais aptos a realizar o procedimento, e é necessário que os
estabelecimentos (hospitais, clínicas, consultórios) possuam uma equipe preparada e multidisciplinar para
realizar todas as etapas do processo.
Vale ressaltar, ainda, como bem entendem alguns estudiosos da área, que as pessoas transexuais se
dividem, também, entre as que são operadas e as que não são operadas. Desse modo, existem pessoas tran-
sexuais que tem interesse de fazer a transgenizatalização e as que não tem interesse em fazer a cirurgia de
mudança de sexo, devido às consequências possíveis da operação, como mutilação genital ou a possibilidade,
se a cirurgia for mal feita, de que o indivíduo que passou pela mudança de sexo não venha mais a sentir
prazer. Nesse sentido, parte do grupo de pessoas transexuais sofrem, pelo medo de fazer a cirurgia, hiper-
potencializando, assim, um sofrimento comum que se alicerça com o sofrimento que é fruto da sociedade.
O campo da Medicina guarda a polêmica de estar constantemente batendo de frente com a ideolo-
gia transexual, ao qualiicar tal fenômeno como transtorno. Os métodos de análise e diagnóstico funcionam
como se, efetivamente, se tratasse como uma doença. E a comunidade “trans” ainda não se decidiu, de for-
ma una, o que pensar sobre isso. Há um medo muito grande de que se perca o direito de realizar o tratamento
e a cirurgia popularmente tratada como “mudança de sexo”, como cada passo é lento e conquistado através
de muita luta, é normal que a população transexual sinta-se intimidada. E no campo jurídico não se há uma
resposta sobre o problema. Quando se pleiteia que esse tratamento seja gratuito e custeado pelo Estado, ve-
riica-se um choque no que diz respeito ao tratamento dessa condição como doença. Presencia-se dentro da
própria comunidade transexual e transgênera ideias opostas nesse sentido, o que é normal por se tratar de
uma questão polêmica. Ainal de contas, nem todo mundo tem condições inanceiras para arcar com os cus-
tos desse procedimento e, sendo realizado pelo meio de saúde pública, seria necessário o enquadramento do
fenômeno como uma doença. E uma das lutas defendidas pelo Movimento Transgênero é justamente contra
a medicalização e patologização da transexualidade (ÁVILA; GROSSI, 2012), pois acreditam que o contexto
de doença não os representa, ou representa sua verdadeira condição como pessoa humana digna.
É claro que não é aceitável, no âmbito dos Direitos Fundamentais, que um indivíduo seja enquadrado
como “doente” porque é transgênero, sem qualquer debilidade ou incapacidade física ou psicológica. O pro-
cesso de precisar de um tratamento, de ter que se submeter à avaliação e às decisões de um proissional para
decidir se o indivíduo pode ou não pode submeter-se a uma cirurgia de transgenitalização e ao tratamento
hormonal é uma violência gravíssima. Não poder viver adequadamente sua identidade de gênero já é uma
violação à dignidade, e passar por todas essas etapas torna-se uma violação ainda maior (BUTLER, 2006).
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É fato que qualquer questão relacionada à sexualidade e suas nuances, inadequações, modiicações não
condizentes com os padrões heteronormativos e cisgêneres, desperta rejeição social. Épocas transcorreram
na história da humanidade sem que as diferenças fossem aceitadas ou mesmo ouvidas. Os registros históricos
da humanidade trazem a informação de que a sexualidade foi estigmatizada e moldada segundo padrões de
comportamento que não dizem respeito a um sentimento unânime – embora majoritário –, deixando dessa
maneira classes de pessoas à margem da aceitação social.
Desde a Idade Média, os avanços da Ciência costumam aborrecer o conservadorismo e a área jurí-
dica, e não só o Clero e a Igreja, como muitos pensam. É fato que, durante muito tempo e talvez até hoje,
o ordenamento jurídico tenha tendência a seguir os padrões sociais e os preconceitos populares, as prefe-
rências majoritárias, por assim dizer. Hoje, a biologia airma que a determinação do gênero de uma pessoa
não é necessariamente decorrente da formação de uma genitália externa feminina ou masculina, e suas
características anatômicas. Embora existam, doutrinariamente, dentro da psicologia e medicina, explicações
diferentes para o fenômeno da não identiicação psíquica com o corpo biológico – seja causada pelos próprios
genes da pessoa, seja uma formação diferenciada do feto justiicada na diferença temporal entre o período
de formação do cérebro e o período de formação da genitália – o entendimento de que a transexualidade
existe é irrefutável. Ainda que a pessoa transexual reúna em si isicamente todos os atributos do seu sexo
biológico, pode sentir-se psiquicamente direcionada com o sexo oposto. É um fato recente a possibilidade de
uma pessoa transexual poder alterar seu nome nos registros públicos, direito este que passou muito tempo
sendo negado pelo Estado. Fechar os olhos a uma realidade explícita não vai fazê-la desaparecer e a omissão
legal conseguirá apenas fomentar ainda mais a discriminação e o preconceito (DIAS, 2011.). O importante é
perceber que nem sempre a vontade da maioria deve ser sobreposta a interesses individuais, principalmente
se estes estão ligados a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. “Minorias” devem ser respeitadas
também, independente de aprovação social.
Na lei Lei 6015/73 de Registros Públicos, há a disposição de que qualquer pessoa pode mudar seu
prenome (primeiro nome) caso prove que seu “apelido público notório” – a forma como ela é popularmente
conhecida – é diferente desde prenome civil. O que não limita, semanticamente, que se interprete de forma
inclusiva ao nome social no caso das pessoas transexuais. Tal lacuna possibilita, dessa forma, que é válido
o entendimento de que este dispositivo pode ser voltado ao direito da pessoa transexual de substituir seu
prenome de nascença pelo seu nome social, que condiz com o gênero com a qual ela se identiica e não a
provoca sofrimento ou constrangimento. Infelizmente, como o ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz
demasiadamente omisso à causa transexual, é necessário conquistar os direitos da população transexual
através de analogias e interpretações do texto legal já existente, além de jurisprudências. Sem nenhuma
menção expressa no Código Civil ou na Lei de Registros Públicos.
Nada mais justo, portanto, que seja permitido à pessoa transexual alterar seu nome para adequar-se
ao gênero correto, mesmo sem antes ter efetuado a cirurgia e o tratamento para a mudança física. Não se
poderia exigir isso das pessoas, em primeiro lugar, porque se feita completamente de forma privada, esse tipo
de procedimento médico pode facilmente ultrapassar a marca de 40 mil reais. Em segundo, caso se opte por
pleitear a realização da cirurgia através do serviço médico público, seria necessário entrar numa ila imensa
que pode durar anos, ou mesmo décadas para ser realizada. Até porque, para que uma pessoa possa pas-
sar por esse tipo de procedimento cirúrgico, precisaria de laudos médicos e psiquiátricos comprovando seu
estado de desconexão com o sexo biológico, um procedimento que também requer tempo, como informa a
resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina.
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Direito(s) em debate.
quem recorrer quando tomam essa decisão. Todo o procedimento de cirurgias de transgenitalização no Brasil
é muito complicado e burocrático. Por esse motivo, muitos transexuais procuraram ajuda médica em outros
países, o que é um privilégio para poucas pessoas que integram esse segmento de indivíduos, o que, em face a
isso, acarreta uma procura de maneiras ilícitas de transgenitalizações, ora trazendo resultados esperados, ora
ocasionando mutilações no corpo ou mesmo morte. Nesse sentido, a ilegalidade carrega um escopo jurídico
que precisa ser superado, que seria a facilidade procedimental de mudança e adequamento desse indivíduo
em iel conexão com sua personalidade. Exigir a comprovação de que a pessoa transexual passou por todas
essas etapas antes de concedê-la o direito de ter um nome social é ignorar toda a realidade composta por
barreiras pela qual essa comunidade é forçada a conviver durante anos, por bem dizer, ás vezes vida inteira.
Superado esse obstáculo, felizmente, várias jurisprudências com o objetivo de Ação de retiicação de
registro público para alterar o nome de nascença da pessoa transexual já estão sendo aplicadas em cartó-
rios e tribunais em todo o País, depois de muita luta. Porque se torna cada vez mais claro, com o passar do
tempo e das lutas reivindicatórias da classe LGBTTT, a regra que sempre predominou que o sexo é ditado
pela genitália – e seria a genitália a responsável por separar um homem de uma mulher – tornou-se um
pensamento ultrapassado. O que faz um homem, ainal? O que faz uma mulher? Antes de nascermos, a
primeira coisa que todos querem saber é: É um menino, ou uma menina? Parece uma necessidade urgente
da sociedade deinir o sexo da criança antes mesmo que ela saiba se reconhecer como um indivíduo. E
quando nasce uma criança hermafrodita – com a combinação dos dois sexos – imediatamente os médicos
e a família sentem-se compelidos a reduzir sua ambiguidade através de uma intervenção cirúrgica, para
que seja determinado um sexo apenas (MYERS, 1999). A mensagem que ica é de que nós temos, obriga-
toriamente, que ter um sexo designado, nada que ique no meio, nada que misture ambos. Segundo o psi-
cólogo norte-americano David Myers: Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas entre homem e mulher,
em termos sociais, não há nada.
A sociedade é muito radical em sua necessidade de deinir um binarismo de gêneros, e gêneros es-
ses determinados exclusivamente por uma genitália. Tal pensamento não condiz mais com a realidade de
muitas pessoas, portanto não pode ser representada pelo Direito, que deve ser um instrumento de todos.
Essa cultura de papeis sociais predeinidos por gênero (EDWARDS, 1991.) é nociva para aquelas pessoas
que não estão dispostas a adaptar-se a todo custo a uma sociedade que não as aceita ou deine.
O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lés-
bicas, Gays, Travestis e Transexuais protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4275),
movida pela Procuradoria-Geral da República em 2009 pedindo o reconhecimento do direito das pessoas
transexuais mudarem seu nome e sexo sem que seja necessário realizar a cirurgia de transgenitalização,
mas mediante a apresentação de laudos psiquiátricos comprovando a transexualidade do indivíduo. Paulo
Iotti, advogado e constitucionalista e atual diretor-presidente do GADvS, representou o GADvS e ABGLT
no processo referido. Sua proposta de levar para o Supremo Tribunal Federal uma visão contemporânea de
sexualidade e gênero, conseguiu grande repercussão nacional. O direito de ratiicar o nome, adequando-se à
condição psíquica do indivíduo está ligado intimamente à identidade pessoal e social da pessoa, sendo indis-
pensável para obtenção da sua qualidade de vida e bem-estar.
Ademais, pode ser citado como uma vitória para a comunidade transexual o Decreto 49476, de
15/8/2012, que instituiu a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do
Sul. Embora tal decreto apenas vincule um estado, em todo o Brasil esse direito deve ser respeitado, como
dita as jurisprudências sobre esse tema. Segundo a avaliação do presidente da ABGLT, Toni Reis, essa é a
forma correta de julgar os pedidos. Para visar conforto à população e atender suas necessidades, ao conceder
nome adequado, diferente do de nascença, à pessoa transexual, sob a alegação de que essas pessoas são ci-
dadãs, que merecem o respeito da mesma forma que outras pessoas. Também vale ser citada a Lei 3/2007,
de 15 de março, que regula os requisitos de acesso para alterar o registro do sexo de uma pessoa no cartório,
quando esse registro não relete a sua identidade de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Direito(s) em debate.
Os avanços na área do Direito da Diversidade têm aumentado não só no Brasil, como no mundo. No
entanto, ainda sim é preciso que se faça mais, que se estude mais. As constituições e códigos ainda são muito
arcaicos, e não só em relação à comunidade LGBTTT, mas às novas formas de se relacionar das sociedades
em geral.
A pessoa transexual, bem como a transgênera, precisa ter mais visibilidade dentro da sociedade, pois
muitos ainda tratam o tema como um “tabu”. E, quando essas pessoas estão numa posição dentro do Gover-
no, a vulnerabilidade se torna evidente pela falta de políticas públicas inclusivas, pela falta de legislação sobre
o tema, mas, especialmente, pelo ódio e medo do diferente que ainda assola as sociedades pelo mundo. É
necessário que se complemente as leis já existentes com medidas novas que acompanhem as necessidades
atuais. É importante que se continue fazendo, dentro dos tribunais, o papel importante de retiicação de
nome para as pessoas da comunidade “trans”, o que foi uma grande vitória para a Justiça brasileira. A urgên-
cia não começou há pouco tempo, é uma questão que vem sendo há muito tempo debatida e requerida pelo
povo. É ao povo que o legislador deve servir e atender, ainal de contas.
No mais, além de no âmbito jurídico, é necessário que se mude o jeito de pensar das pessoas, e isso
é feito com campanhas, atos públicos, ajuda da mídia e de veículos de comunicação em geral, mecanismos
públicos, ações direcionadas a reduzir o preconceito também. Nenhum padrão é rompido facilmente, mas,
para o bem de uma sociedade bem estabelecida e preparada para acolher a diversidade, faz-se necessário
uma construção coletiva de um novo pensar.
Ademais, o direito de mudança de nome social, o direito de ser e existir, assim como outros direitos
fundamentais, são tidos, por muitos, como novos direitos; mas será que são novos, ou sempre existiram e
nunca foram “ouvidos”? Nesse sentido, não são novos direitos porque são novos, são novos direitos porque
sempre foram tidos como direitos inexistentes. São novos direitos, portanto, porque historicamente há um
luxo maior de pessoas a impulsionar respaldo jurídico e estatal a respeito da questão da transexualidade. É
um direito de ser e existir que deve ser considerado como infungível, fundamental e inalienável. Não há mais
como negar a existência e a voz das pessoas transexuais.
REFERÊNCIAS
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BENTO, Berenice. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Rio
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BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade – 8° ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
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sexual” (1910-1995). Revista Brasileira. vol. 21, nº 41, p. 77 – 111. Disponível em www.scielo.br/scioelo.
Acesso em 20.09.2015. Acesso em 29.10.2015
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Editora Revista dos Tribunais, São
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NÁCIO, Marlene; VERDUGUEZ, Elisa del Rosario Ugarte. Experiência em Avaliação Psicológica da
Transexualidade no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues; PAIVA, Luiz Airton Saavedra de. (Org). Identidade Sexual e Transe-
xualidade. São Paulo: Roca, 2009, p. 64.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
Ao decorrer da vida do indivíduo que possui algum tipo de deiciência, a interatividade com o coletivo
se apresenta de maneira diferenciada; seu espaço no núcleo social, por diversas vezes, é limitado, restando
a esse indivíduo a posição de passividade ou impotência atrelada a sua deiciência. Essa lógica, no entanto,
nos parece um pouco controversa e insatisfatória. Em plenitude, entende-se, graças ao modelo social, gra-
dualmente implantado, que o assistencialismo, caractere principal do modelo médico, precisa ser mitigado e
transformado num processo de capacitação, para dar ensejo ao pleno desenvolvimento da capacidade de agir
e da capacidade de exercício da pessoa com deiciência, para garantir, então, que esse seja um cidadão em
plenitude, capaz de praticar atos na vida civil acompanhados ou não da tomada de decisão apoiada.
Nesse sentido, é necessário o debate acerca dos direitos intrínsecos a personalidade das pessoas
com deiciência e de que forma eles precisam, em plenitude, ser garantidos tanto na esfera dos interesses
privados, como na esfera de interesses coletivos, por conseguinte, salvaguardado na ideia dos direitos fun-
damentais. Ademais, o verdadeiro sentido por trás da lógica dos direitos fundamentais e dos direitos da per-
sonalidade, são a inexcusábilidade e a inalienabilidade desses direitos ora tidos como individuais, ora tido e
visto como coletivos, “são direitos que se relacionam com atributos inerentes à condição da pessoa humana”.
(BITTAR, 2015, p. 38).
A partir dessa lógica, deve-se ater a noção de respeito à diferença e a plena intenção de garantir os
direitos disponíveis de cada indivíduo. Ademais, desde a Convenção da ONU, sobre os direitos da pessoa
com deiciência, que existe a clara intenção de garantir direitos fundamentais, fragmentados pela noção de
dependência e da ideia de falta de capacidade das pessoas com deiciência em gerir determinados atos em
autonomia de suas vidas. Os direitos da personalidade, pois, surgem a partir do nascimento do indivíduo,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
isto é, desde a sua concepção com vida. No entanto, a intolerância e a falta de um olhar humanitário para o
outro tornaram de muita importância a ratiicação de direitos tidos como óbvios, como o direito à autonomia,
direito à reprodução, direito pleno de ser e existir, assim como direito à pratica de determinados atos que
não sejam até negociais. Esses direitos, portanto, não novos, sempre existiram, e contemplam a plena noção
de direitos da personalidade. Esse artigo, desse modo, procura abordar de que maneira há uma inclinação,
a partir do Estatuto da pessoa com deiciência, em reconhecer esses direitos imprescindíveis e inalienáveis.
Diante disso, vale ressaltar que o respeito aos direitos da personalidade, de qualquer indivíduo, se
iniciam a partir do modo de tratamento que se dá o outro. Logo, é necessário falar a respeito do uso correto
de tratamento da pessoa que possua qualquer tipo de deiciência. Entende-se atualmente, por exemplo, que
não se é mais correto o uso do termo deiciente, sendo necessário, portanto, o uso do termo pessoa, afrente
do termo deiciência.
Percebe-se, portanto, que além de qualquer deiciência que o indivíduo possa ter, há a necessidade
de usar o termo “pessoa” como indispensável, aim de garantir o respeito aos direitos da personalidade, mais
precisamente, ao direito de identidade, à honra e ao respeito, por exemplo. É imprescindível para garantir
a noção de igual, humanamente igual, perante o direito de qualquer ser humano. Desse modo, se é possível
perceber que não é mais correto o uso do termo portador de enfermidade ou o uso do termo doente mental.
O primeiro é incorreto pelo simples fato de que a pessoa com deiciência não porta a sua deiciência, mas sim
vive com ela. Nesse sentido, “portar” traz a ideia de transitoriedade, algo que alguém porta num momento,
mas que pode simplesmente deixar de portar, como uma camisa. O segundo, é incorreto pelo simples fato de
“deiciente” carregar consigo a noção de algo negativo, de menos, de algo incompleto ou vicioso.
Há uma controvérsia entre o pensamento dos autores de diferentes Estados nacionais que delimitam
a respeito do começo da personalidade civil do indivíduo. Essa diferente percepção acompanha cronologica-
mente uma perspectiva de pensamento que segue em modiicação e, em alguns casos, que segue na insistên-
cia da manutenção do pensamento, dentro do ensejo do meio jurídico de cada país. Particularmente o Estado
brasileiro, que é o foco desse trabalho, se apegou a noções do direito romano – que em tese inluenciou de
grande maneira boa parte do mundo ocidental – além de outras teorias que em breve serão explanadas.
O direito romano parte da perspectiva de que a personalidade jurídica coincidiria com o nascimento,
antes do qual não seria possível falar a respeito de sujeito de direito ou objeto do mesmo. Para tal corrente de
pensamento, o feto, dentro da mãe, corresponderia a uma parte dela, “portio mulieris vel viscerum”, e não a
um ente ou um corpo, como bem explana o autor Caio Pereira (2002). Somado a isso, não signiica que o feto
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Direito(s) em debate.
não teria seus interesses assegurados. Como particularidade, a mesma corrente pontua que mesmo sendo
necessário o nascimento para a adesão de direitos, enuncia, também, a regra da antecipação presumida de
seu nascimento, “nasciturus pro iam nato habetur quoties de eiues commodis agitu”. Desse modo, farar-se-á
uma equiparação do feto ao já nascido, não para considera-lo pessoa, mas com o propósito de assegurar seus
interesses novamente.
Observando o Código Civil brasileiro de 2002, que trata do surgimento da personalidade civil no seu
artigo 2º, percebe-se que o legislador abre espaço para diversas discussões doutrinárias, pois o texto aborda
o tema de maneira vaga. Fica entendido a partir do dispositivo que a personalidade civil de uma pessoa só
pode começar a partir de seu nascimento com vida, mas, ao mesmo tempo, a lei assegura desde o momento
da concepção os direitos do nascituro, o que dá uma certa ideia de confusão. A controvérsia reside justamen-
te no fato de o nascituro ter alguns direitos assegurados, e ao mesmo tempo ter o reconhecimento de uma
personalidade negado expressamente pelo Código Civil. A questão é que esse tema é extremamente subjetivo
e não se pode ainda airmar uma verdade absoluta sobre ele, e por esse motivo é que existem correntes dou-
trinárias distintas.
A discussão a respeito das teorias Natalista e Concepcionista são trazidas também pelo Código Civil.
A que possui maior relevância, é claro, é a que em abrangência o Código Civil brasileiro ado-
tou, entretanto, é de extrema relevância se falar a respeito da outra, já que se fez necessário
a discussão. A Natalista se refere a ideia de que a personalidade só seria adquirida a partir do
nascimento com vida, de tal forma, o nascituro só seria pessoa em meio extrauterino, gozando
antes, apenas, de mera expectativa de direito. Ao contrário dessa conotação, a concepcionista
parte do princípio de que o nascituro já é pessoa. Logo, adquire personalidade desde a concep-
ção, inclusive no que tange a certos direitos patrimoniais. Ainda os concepcionistas airmam
que, quanto ao direito à herança não há consolidação desse direito, exigindo-se o nascimento
(se abortar não haverá transmissão). Dentre ambas teorias abordadas, evidentemente, a ado-
tada pelo Código Civil foi a Natalista. Representando essa linha de pensamento, Carlos Roberto
Gonçalves deine que o nascimento ocorre no momento em que a criança é separada do corpo da mãe, seja
através de parto natural ou por meio de intervenção cirúrgica, sendo essencial apenas que se desfaça a uni-
dade biológica que vincula os dois corpos – o cordão umbilical – sendo que os dois corpos possuam, depois
disso, vida orgânica separada.
Outro ponto que carece de ser bem explanado, como bem coloca o autor Salvo Venosa
(2003), seria o de que o nascituro é um ser já concebido, isto é, ele se difere daquele que não
foi, obviamente, mas que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma “prole
eventual”. Um ponto característico dessa airmação, seria a noção de direito eventual, que se-
ria um direito em mera potencialidade. Logo, no Brasil, entendemos que a concepção do nasci-
turo extrapola a concepção da expectativa de direito. Sob o prisma da ideia de direito eventual,
pode-se entender que a questão está longe de estar pacíica na doutrina, tanto é que a teoria
Concepcionista é de extrema importância, como foi dito anteriormente, por em diversos pontos
do sistema brasileiro ser sentida a sua inluência, “na medida que o nascituro é tratado como
se fosse pessoa” (BEVILÁQUA, 1975, p. 98).
A partir do que foi ressaltado, pode-se perceber que a então ideia do começo da personalidade jurídi-
ca do indivíduo, começa a partir do nascimento com vida, baseada na ideia da Teoria Natalista e do Direito
romano. Mas, para aprofundar-se, o que corresponderia a vida e o nascimento para a concepção do Código
Civil brasileiro?
Para Caio Pereira (2002), nascimento ocorreria quando o feto é separado do ventre materno, quer
seja a partir do parto natural, induzido ou artiicial. O mesmo airma que não há o que cogitar a respeito de
gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu nos termos ou antecipadamente, seriam questões desnecessá-
rias. Para o Direito Civil é suiciente e necessário apenas que se desfaça a unidade biológica, de modo a serem
mãe e ilho, dois corpos com economia orgânica próprios.
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Já a vida se espelharia na ideia do momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica com o
meio ambiente. De acordo com o autor, viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, mesmo que morra
instantes depois; ou seja, depois de ter respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota vida, mesmo
que não tenha sido cortado o cordão umbilical e as suas provas serão feitas através da visualização do choro,
movimentos e mais especiicamente, quando houver padecimento, nos processos técnicos de que se utiliza
a medicina legal.
A noção de personalidade se atrela a ideia de começo, de início de vida, indo o que já foi con-
versado, portanto, e a direitos inerentes a personalidade da pessoa jurídica, sendo essa física ou natural, por
exemplo. A personalidade jurídica, por conseguinte, é a aptidão para ser titular de direitos e contrair obriga-
ções na órbita jurídica. É importante falar, também, que é o atributo do sujeito de direito. Para o direito o sen-
tido de personalidade tem um sentido técnico, é a qualidade do sujeito de direito. A pessoa física e a pessoa
natural, portanto, é dotada dessa aptidão genérica. A pessoa jurídica também é dotada desse atributo, dessa
personalidade jurídica. Logo, o sujeito de direito é dotado de personalidade jurídica. (GAGLIANO, 2010, p.
124).
Diante disso, a ideia de personalidade jurídica carrega consigo a ideia de direitos inerentes a própria
constituição do indivíduo, sendo lhe carregado de direitos e obrigações que devem ser cumpridos para melhor
permitir o desenvolvimento interpessoal daquele indivíduo sujeito de direitos e obrigações, e é a partir dessa
lógica que se encaixa a ideia de capacidade civil. A capacidade civil está atrelada a lógica de possibilidade de
exercício de direitos e obrigações. O indivíduo, por exemplo, que obtiver personalidade jurídica, será aquele
que em potência poderá praticar atos jurídicos. No entanto, nem todo ato jurídico é possível, existem atos
ilícitos que contemplam e viciam a celebrações de negócios jurídicos. Um indivíduo, que, em pleno exercício
de sua capacidade civil desejar praticar atos patrimoniais, diz o Código Civil, deverá ser capaz, possuir capa-
cidade civil para constituir ato jurídico válido. Mas o que seria ato válido e de que forma ele atrelaria a lógica
de possibilidade e eicácia na celebração de um ato jurídico? Um ato possível e que produza eicácia, precisa,
primeiramente, existir. É necessário que o indivíduo seja capaz, que possua validade e haja boas intenções
e ausência de má-fé. A capacidade, portanto, está atrelada também, a lógica de idoneidade da celebração de
qualquer ato jurídico.
Em gênese, a ideia de capacidade, antes da lógica da Lei N° 13.146, colocava na igura do curador
prerrogativas que, por vezes, alienavam a capacidade de dizer e manifestar vontade do indivíduo que tivesse
deiciência. A partir da alteração da nova lei, houve uma tentativa de devolver a autonomia para esse indiví-
duo, respaldada, obviamente, ainda de uma assistência, de um acompanhamento, assunto que será tratado
adiante. Nesse sentido, a ideia de capacidade é a possibilidade de ditar direito de acordo com a vontade do
promitente, do indivíduo dotado de personalidade que deseja praticar, provocar ou se eximir de qualquer
possibilidade de direito atinente a sua personalidade.
Em verdade, se é possível ratiicar que ao longo da história da humanidade houverem inúmeros mo-
mentos em que a pessoa com deiciência foi tratada de maneira desumana, sendo, inapropriadamente, colo-
cada na condição de animal, na condição de menos, na condição de pouca importância, como em sociedades
da Idade Antiga, por exemplo. Nesse período, havia a predominância do antropocentrismo, que é um olhar
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Direito(s) em debate.
do mundo voltado para o homem, também marcado pelo equilíbrio e a perfeição. A partir dessas caracterís-
ticas se é possível, entender, por exemplo, que era nada mais do que comum o olhar para o outro em busca
de uma perfeição que, em tese, era de difícil encontro. Diante disso, ora as pessoas com deiciência eram na
História Antiga e Medieval tratadas com uma política assistencialista e ora com uma eliminação sumária de
outro – políticas essas adotadas veemente em muitos estados soberanos ainda hoje. Em Esparta, por exemplo,
os bebês e as pessoas que adquirissem algum tipo de deiciência eram descartados dentro da lógica cultural
de utilidade e perfeição do período. (SILVA, 1987).
A ideia de personalidade jurídica, portanto, se atrela a noção de vida. Por conseguinte, uma série de
direitos e obrigações são constituídos como inerentes ao indivíduo concebido a partir da simples troca oxi-
carbônica. Nesse sentido, a ideia de personalidade jurídica da pessoa com deiciência nada se diferencia com
a personalidade jurídica de qualquer outro indivíduo que não possua qualquer deiciência, apesar do dife-
rente tratamento concebido historicamente pelas sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas.
Há, portanto, um olhar associado a utilidade e trabalho daquele que seria o ideal de produção. A existência
condicionada a realidade de, do que vale nascer homem, se não tem utilidade prática associada a produção?
Diante disso, não importa quais seriam os elementos entendidos como diferentes para constituir com
a ideia de deiciência atribuído ao homem. O que importa seriam os mecanismos desenvolvidos pela sociedade
para tentar minimizar e melhorar a qualidade de vida das pessoas que possuam qualquer barreira atitudinal
ou física. Hoje, entende-se que o conceito de pessoa com deiciência está conectado a relação com o meio,
com o ambiente, e não com a deiciência propriamente dita, sendo ela genética ou em consequência do dia
a dia. A deiciência seria uma atribuição do meio. O meio que precisa se readequar. Essa lógica é permitida a
partir da noção do modelo social quanto a deiciência. Por muito tempo se entendeu, graças ao modelo já em
uma processual transgressão e desuso, de que a pessoa com deiciência precisava ser colocada numa posição
de tutela assistencialista, o que muitas vezes não permitia em potência o pleno desenvolvimento de todas as
habilidades possíveis daquela pessoa que estava sendo curatelada. A partir da evolução desse pensamento,
de modelo social, houve um processual amadurecimento da sociedade civil brasileira, que ainda sim precisa
aprender muito, que a deiciência em sí não o que em grau diiculta a inserção da pessoa com deiciência no
meio, o que diiculta seriam as barreiras que em grau de qualidade permitiriam o pleno desenvolvimento da
personalidade daquele indivíduo que muitas vezes teve a sua pessoalidade negada.
Diante disso, se carece de um resguardo dos pais. Existe uma Responsabilidade Civil inerente ao po-
der familiar de cada família que existe uma pessoa com deiciência de permitir o pleno desenvolvimento de
todos os direitos inerentes a personalidade jurídica daquele indivíduo, como o direito à sexualidade, dando
respaldo o direito a reprodução, o direito a educação efetiva, assim como o acesso à justiça, constitucional-
mente assegurado. Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com deiciência (2009) ratiicar esses direi-
tos expostos aqui, assim como outros, foi necessário a partir do Estatuto da Pessoa com Deiciência (2015)
tentar ratiicar mais uma vez esses direitos que existem, mas continuam sendo taxados pelos juristas e pela
sociedade civil como invisíveis, por mais dizer, inexistentes, apesar de assegurados pelo ordenamento jurí-
dico. São direitos novos, que na verdade sempre existiram. São necessários, portanto, a partir da ideia da
tutela do direito à liberdade, que sejam assegurados, para demonstrar que não existe nenhum direito que
seja menos importante do que outro e que toda humanidade deve ser em plenitude observada e assegurada
para todos em plena igualdade.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A ideia de tomada de decisão apoiada é inserida na Lei N° 13.146, que visa reairmar os direitos que
já haviam sendo explorados a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com Deiciência (2008). No
entanto, foi somente a partir do Estatuto da pessoa com deiciência (2015) que, ironicamente, a sociedade
civil e alguns juristas passaram a se aperceberem melhor do assunto atinente as pessoas com deiciência.
O conceito de tomada de decisão apoiada tem um cunho assistencialista, mas não um assisten-
cialismo que poda a autonomia do exercício da vontade da pessoa com deiciência. O sentido associado se
baseia na ideia de que pessoas idôneas, ou seja, sem pré-disposição de desfavorecer ou prejudicar, ou que
tenha vontade viciada, contribuam para uma escolha positiva do indivíduo que esteja sendo assistido. Nesse
sentido, há, sim, um avanço na lei quanto a disposição de autonomia e legitimidade para o exercício de di-
reitos e deveres da pessoa com deiciência. Existe, nesse sentido, um aprimoramento e uma assistência de
duas pessoas, e não somente uma, decidindo e “roubando” a vontade da pessoa curatelada. Há, portanto,
um acompanhamento, de duas pessoas, que devem melhor orientar a pessoa com deiciência na tomada de
sua decisão sobre os atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos de informação necessários para que
possa exercer a sua capacidade. É, portanto, a tomada de decisão apoiada, um mecanismo que reforça a
validade dos negócios praticados pelas pessoas com deiciência, o que não implica numa necessária perca de
capacidade da pessoa que a requer.
A lei prevê ainda que a escolha de indicação dos apoiadores será feita pela pessoa com deici-
ência, cabendo a ela escolher a quem delegar esse papel. Além disso, ainda para garantir que sua vontade
seja melhor representada, os escolhidos poderão ser pessoas com quem mantenham vínculos e coniem. Será
traçado também, aim de garantir a idoneidade do processo e legitimidade da tomada de decisão apoiada,
para não indar desrespeito ou talhamento de direitos, que em juízo seja delimitado os limites do apoio a ser
oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade,
aos direitos e aos interesses da pessoa que deve apoiar, indado na lógica de respeito dos direitos à persona-
lidade jurídica da pessoa com deiciência, sempre visando um completo desenvolvimento intersubjetivo da
pessoa em questão.
Ademais, aim de garantir o pleno exercício da tomada de decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com
deiciência, traz, também, a noção de que se o apoiador agir com negligência, não adimplir com as obrigações
devidas ou chegar a exercer pressão indevida, poderá a pessoa apoiada ou qualquer outra pessoa prestar
denúncia ao Ministério Público ou ao Juiz de ofício. Ouvida a denúncia, sendo ela procedente, o juiz desti-
tuirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa com deiciência, e se for do seu interesse, outra pessoa para lhe
prestar apoio. Por demais, a pessoa com deiciência, pode, a qualquer tempo, decidir cessar o acordo irmado
do processo de tomada de decisão apoiada. Existe ainda, a noção de que o apoiador também pode solicitar ao
juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão, sendo seu desligamento condicionado
à manifestação do juiz.
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Direito(s) em debate.
Por a lei estabelecer que os limites da tomada de decisão apoiada deve ser deinida em acordo, vale
ressaltar, por conseguinte, que haverá modelos distintos. A tomada de decisão apoiada poderá ser diferente
para cada indivíduo que a utilize como mecanismo eicaz de acesso aos seus direitos disponíveis.
Além disso, é mister destacar que para parte dos doutrinadores brasileiros, no campo de Direito Civil,
a tomada de decisão apoiada ainda é um ponto de incógnita. Para alguns, a hipótese de substituição não seria
nada mais do que óbvio, baseado na ideia de que a tomada de decisão apoiada não surge em substituição, de
modo a excluir a curatela. Ela surgiria de modo a coexistir com a curatela, em caráter concorrente. Nesse
sentido, haveria a possibilidade de que a curatela entre em desuso ou não com o tempo. Outra parte dos
doutrinadores brasileiros, no entanto, acredita que a interdição seria medida excepcional, a regra passaria a
ser, portanto, a Tomada de Decisão apoiada, que se trata de um processo em que a pessoa com deiciência so-
licitará, como foi visto, duas pessoas de sua coniança, para dar mais visibilidade a sua autonomia de decisão.
Ainda há dúvidas também sobre de que modo se daria a tomada de decisão apoiada em casos em que
haveria incapacidade total do sujeito quanto a expressão de vontade, devido a algum tipo de deiciência. A
ideia que nos parece mais lógica ainda sim seria a tomada de decisão apoiada, visto que mesmo não havendo
a nítida expressão de vontade, haveria a possibilidade de auxílio de proissionais especializados, como psicó-
logos e ains, para auxiliar, em percepção de modo haveria um maior benefício daquele indivíduo a partir de
determinada tomada de decisão. O apoiador, de acordo com a nova lei, não impede que seja, por exemplo,
um dos apoiadores um proissional especializado. Ademais, é fato que a regra geral se basearia na airmativa
de que a pessoa com deiciência deveria escolher as pessoas que lhes pareça mais adequadas a partir da sua
coniança, no entanto, essa escolha passa por aval de um juiz togado e adequado para o caso em questão. O
mesmo juiz, portanto, num caso de tomada de decisão apoiada em que haja um indivíduo que possua incapa-
cidade absoluta, poderá nomear, a partir da verocimidade das relações afetivas entre a pessoa com deiciência
e o apoiador aquele que melhor represente o indivíduo na respectiva decisão.
O Estado Moderno, em especial o brasileiro, adotou para si o princípio do monopólio estatal de justiça,
trazendo, dessa forma, um modo de solução de conlito pacíico, marcado por heteronomia, isto é, a juris-
dição é marcada por um juiz imparcial e sem pré-disposição para favorecer uma das partes. Nesse sentido,
através da Ação, há uma tentativa de efetivo encontro entre a prestação jurisdicional e a satisfação da preten-
são insatisfeita de uma das partes. Além disso, se é possível falar, que apesar da tentativa de se estabelecer
um modo de solução pacíico de conlito, há também, um problema inerente a própria constituição do modo
de solução de conlito: como atender a todos que possuem um direito subjetivo que precisa ser satisfeito?
Aim de responder a essa pergunta, há, atualmente, assegurado na constituição brasileira, alguns
princípios decisivos que buscam consagrar o livre acesso ao judiciário, como o princípio da proteção judicial
efetiva (art. 5°, XXXV), do juiz natural (art 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5°, LV), que tem
inluenciado decisivamente o processo organizatório da justiça, especialmente no que concerne as garantias
da magistratura e à estruturação independente dos órgãos (MENDES, 2013).
Ademais, ainda se é possível falar que existem obstáculos que precisam ser ultrapassados para garan-
tir um pleno e efetivo acesso à justiça tanto das pessoas com deiciência, como das pessoas que não possuem
quaisquer barreiras para um pleno e efetivo desenvolvimento psicossocial. A Lei Brasileira de Inclusão, tam-
bém conhecido por Estatuto da Pessoa com Deiciência, no seu Art. 3°, IV, deine barreira como qualquer
entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa com de-
iciência no meio social, bem como impeça o gozo, a fruição ou o exercício de seus direitos à acessibilidade, à
liberdade de movimento e de expressão, por exemplo. A Lei N° 13.146 ainda procura deinir, taxativamente,
que existem cinco tipos de barreiras, tais quais:
Barreiras: [...]
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Direito(s) em debate.
Diante disso, se é possível falar que o processo de tomada de decisão apoiada, a partir da noção
da Lei Brasileira de Inclusão, é uma das medidas que visa ir de encontro a uma acessibilidade quanto aos
direitos da pessoa com deiciência.
O acesso à justiça, atualmente, é um dos maiores paradigmas da sociedade moderna. Cada socieda-
de, a seu modo, procura eximir a linha tênue que é a efetiva prestação jurisdicional e a pretensão insatisfeita
de cada cidadão. No entanto, além das barreiras comuns, que atingem a maior parte dos cidadãos, como o
acesso à informação, o acesso ao local, etc., as pessoas com deiciência, como a Lei N° 13.146 procura res-
saltar, enfrentam barreiras a mais, estas, no entanto, fruto de uma sociedade corporativista, tal qual procura
voltar a sua atenção para os cidadãos que não possuam quaisquer tipo de deiciência que limitem a sua re-
lação com o meio social. A partir dessa noção, é nítida a percepção egoística de exclusão para qual é voltada
cerca de 45,6 milhões de brasileiros que declaram ter alguma deiciência, segundo o censo do IBGE de 2010.
Essa parcela, corresponde a cerca de 23,9 % da população brasileira. Esse percentual representa cerca de
um quarto da população brasileira total, o que signiica que se deve haver maior atenção pública para essas
pessoas que são sectarizadas e tratadas ora de maneira desigual, ora de maneira a inferiorizar. O respeito a
diferença é o primeiro passo de encontro ao acesso à justiça das pessoas com deiciência.
A proposta de melhora de vida para essas pessoas, mais frisada neste artigo, é através da ideia de ca-
pacidade relacionada com a autonomia, que é almejada através da tomada decisão apoiada, como ferramenta
que impulsiona, a seu modo, o acesso à justiça. Consideramos que o direito de manifestar a própria vontade
não deve ser violado, pois a capacidade de pensar da pessoa com deiciência deve ser considerado, indepen-
dente da deiciência, contrariando a lógica de interdição, o qual talha esse direito à autonomia e o direito à
manifestação de vontade. Dessa forma, preservar os direitos inerentes à personalidade, assim como os direi-
tos fundamentais, são de mister importância para preservar em essência a humanidade daquele indivíduo
muitas vezes visto como inválido ou menos humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do presente estudo, observou-se que há uma necessidade de respeito à diferença. Esse res-
peito perpassa, ainda, na ideia da garantia de direitos inerentes à personalidade jurídica do indivíduo que
possua qualquer tipo de deiciência que venha diicultar a sua interação com o meio social. Nesse sentido, o
respeito à diferença e a garantia dos direitos da personalidade da pessoa com deiciência, representam o que
de mais óbvio deve ser garantido a qualquer ser humano, para que em igualdade de oportunidade esse possa
a vir, equitativamente, desempenhar um papel de agente modiicador de seu próprio destino, e não mais um
agente passivo, perante o velho sistema de interdição que incapacita e coloca na condição de sujeito inváli-
do, imprestável, a pessoa com deiciência que pode, sim, praticar atos na esfera civil com maior autonomia,
através do auxílio da Tomada de Decisão apoiada ou não.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Findo essa ideia, se é necessário, ratiicar ainda, que há uma necessidade instransponível de qual-
quer cidadão, assim como dos juristas, de observar um fenômeno tão importante, como o acesso à justiça. O
acesso à justiça é um processo dinâmico e indispensável para garantir uma efetiva prestação jurisdicional de
qualidade em qualquer sociedade. Nesse sentido, observar de que forma cada seguimento da sociedade pode
vencer as suas barreiras é indispensável. Bem como aponta a Lei 13.146, existem, para as pessoas com de-
iciência, algumas barreiras especíicas, que acompanham esse agrupamento, além das que já existem para
qualquer cidadão. Nesse sentido, um olhar cuidadoso e mais humanitário é indispensável para que o acesso
à justiça jamais seja confundido com utopia ou displasia atitudinal.
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174
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
No Brasil cada vez mais é possível a observação de uma sociedade punitivista, que cada dia mais
solicita a aplicação de um sistema penal como alternativa para reduzir a criminalidade. Essa requisição é
alimentada pelo sentimento de impunidade e sensação de insegurança, frequentemente expostos pela mídia
como conteúdo de exigências criminalizantes. Diante disso, o que se questiona é se o sistema de justiça cri-
minal promove, verdadeiramente, a contenção da criminalidade, uma de suas funções declaradas.
No passado, em razão da desigualdade legal entre homens e mulheres, a maioria dos crimes de gêne-
ro não era alvo de reconhecimento das autoridades e, assim, acarretavam no que se denomina “cifra oculta”
do crime. Consequentemente, tinha-se a sensação de que não existia violência contra a mulher. Todavia, com
a Constituição Federal Brasileira de 1988, os direitos entre os homens e mulheres se equipararam e, assim,
a violência contra a mulher começou a ocupar um espaço diferente no sistema de justiça do Brasil.
Quando o assunto é violência doméstica e familiar, a ineiciência do sistema para combater ou preve-
nir a criminalidade ica evidente. Aqui, a justiça criminal se mostra inapropriada para a resolução dos con-
litos domésticos, complexos socialmente, principalmente após as medidas despenalizadoras serem descar-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
tadas com o argumento de que elas eram insuicientes. Com a regulação da conduta por uma norma penal
severa, espera-se não só a proteção da vítima, mas uma “pena exemplar” para o agressor.
Diante desse cenário, tentou-se comprovar que um sistema incapaz de cumprir com suas próprias
funções, atuando de modo diverso, não seria capaz de tutelar um conlito doméstico, que é muito mais
complexo do que a norma penal pode prever. Indo mais além, buscou-se desconstruir o argumento de que o
sistema de justiça de criminal é o grande responsável por dar im ao ciclo de violência doméstica e familiar
sofrido pela mulher.
Primeiramente, é importante observar que, através da Lei 9.099/1995, foram criados os Juizados Es-
peciais Criminais, nos quais, dentre outras inovações, permitiu-se a aplicação dos institutos despenalizadores
aos crimes de menor potencial ofensivo, como a ameaça e lesões corporais leves. Foi também dentro destes
Juizados, por intermédio dos indicadores oiciais, que se evidenciou a alarmante presença de inúmeros ca-
sos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) na sociedade
brasileira. Constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos,
é também, paradoxalmente, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o
homem, marido e companheiro passou a ser confundido com o suposto agressor (ANDRADE, 2005, p. 95).
Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como para-
digma o comportamento individual violento masculino, a Lei 9.099/95 aca-
bou por recepcionar não a ação violenta e esporádica (...), mas a violência
cotidiana, permanente e habitual (...). Assim, os crimes de ameaças e de
lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritaria-
mente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70%
do volume processual dos Juizados. (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 4-5).
Houve, portanto, uma modiicação no tratamento normativo dispensado à “violência conjugal”, as-
sumindo a caracterização de crime de menor potencial ofensivo, o que garantiu uma nova sistemática de re-
solução de tais práticas delitivas. O enquadramento dos casos de “violência conjugal” como sendo um crime
de menor potencial ofensivo acabou levando para a Justiça um crime que até então raramente chegava ao
Judiciário, e fez com que esses casos representassem o maior volume de processos nos Juizados (MORAES;
SORJ, 2009, p.52).
No entanto, o tratamento oferecido pelos Juizados sofreu inúmeras críticas, principalmente de alguns
setores dos movimentos feministas, cujas pressões por respostas estatais mais incisivas contra a criminalida-
de no âmbito doméstico, juntamente com a de outros setores da sociedade, resultaram na promulgação da
Lei 11.340/2006.
A então nova legislação, que icou conhecida como Lei Maria da Penha, criou os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e icou conhecida pelo rigor punitivo dispensado aos crimes de menor
potencial ofensivo cometidos contra a mulher no contexto doméstico, já que lhes vedou a aplicação da lei
9.099/95 e, consequentemente, dos institutos despenalizadores.
A dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais importantes funções que tem encomendada à
atividade jurídica geral em um Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente
ao poder arbitrário do Estado (ANDRADE, 2006, p.170). No entanto, analisando essas funções declaradas
em confronto com a realidade, observa-se que elas não são o foco do sistema de justiça criminal. Como bem
airma Vera Regina de Andrade (2006, p.175):
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
As inovações que a Lei 11.340/2006 trouxe são divergentes em relação à proposta minimalista da
Criminologia Crítica, alterando os tipos penais incriminadores com o aumento de penas e nas circunstâncias
de aumento das sanções com as agravantes e a obstrução dos institutos “diversiicacionistas”, como a compo-
sição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. No entanto, tal argumentação de aumentar
as penas e obstruir as medidas diversiicadoras, vem consolidando uma visão extremamente punitivista da
administração da justiça.
De tal modo, a Lei 11.340/2006 retrocedeu ao propor o encarceramento, assim como, foi de encon-
tro às propostas do movimento feministas, visto que as medidas alternativas apresentam maior eicácia em
relação à prisão, além de demonstrar maior possibilidade de solucionar os conlitos domésticos e familiares.
Foucault (1999) airma que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las,
multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior,
aumenta. Assim, constata-se que o sistema penal é falho e a maior prova disso é o índice de reincidência cada
vez mais alto. Onde, ao invés de haver uma redução da criminalidade, ressocializando o condenado, produz
efeitos contrários a uma ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRA-
DE, 2006). Dessa forma, é notório que se este sistema, aclamado por uma sociedade movida pelo medo, é
incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir a criminalidade ou ressocializar o preso, também não atuará
com eicácia no âmbito da violência doméstica, pois não considera o grau de subjetividade e de ainidade
dessas mulheres com seus agressores.
Para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizadas duas técnicas de pesquisas, a bibliográi-
ca, com a realização em análise de livros, revistas especializadas, jurisprudências; e a técnica empírica, que
analisa os assuntos críticos e interpretativos a respeito do tema em questão, fazendo-se o levantamento de
dados da pesquisa de campo. Em outras palavras, essas técnicas, apesar de serem distintas, são complemen-
tares, já que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a do-
cumentação direta (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 174-183). Não é seguro airmar que a utilização dessas
técnicas aconteceu em momentos distintos e sucessivos, pois elas foram empregadas simultaneamente.
Para a obtenção dos dados quantitativos da pesquisa, optou-se por realizar uma pesquisa documental,
a qual, como o próprio nome já sugere, compreende a coleta e análise de documentos, considerados fontes
de informações que ainda não passaram pela sistematização, contemplação e tratamento cientíicos (SAN-
TOS, 2007, p. 27-29). As fontes documentais escolhidas foram processos criminais sentenciados na 1º Vara
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR). Trataram-se, pois, de documentos
jurídicos, tal que seu conteúdo está previsto, ordenado e procedimentalizado pelo Direito.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, para ins de aproximação representativa da realidade da VVDFMR, pareceu razoá-
vel a limitação da pesquisa à análise de todos1 os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de
01 ano na VVDFMR, precisamente, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014. Mencionado recorte foi
escolhido pelas seguintes razões: atualidade dos resultados, possibilidade de retratação de uma realidade,
facilidade de acesso ao material da pesquisa e, por im, possibilidade e viabilidade da análise do material de
pesquisa em tempo de entregar o presente trabalho dentro dos prazos estabelecidos2. Dessa forma, preten-
deu-se obter, através dessa análise documental, o peril socioeconômico das partes, bem como particularida-
des do relacionamento familiar dessas pessoas envolvidas no conlito doméstico e se a persecução criminal
tem respondido aos interesses da mulher.
A 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife está localizada no bairro
de Santo Amaro, bairro onde se localiza também a delegacia especializada de atendimento a mulher. É
fundamental ressaltar que as mulheres que procuram a Vara, por serem a maioria de baixa escolaridade e
pertencerem a uma classe mais abastada da sociedade, normalmente desconhecem todo o rito concernente
a um processo judicial, especialmente ao processo penal. Por isso, ao descobrirem que não podem retirar
mais desistir do processo ou que seus agressores estão/serão presos, sentem-se ainda mais vitimizadas por
não terem suas vontades atendidas.
Então, se por um lado as mulheres que chegam à Vara na esperança de serem ouvidas e terem seus
desejos atendidos – os quais normalmente não estão voltados para a prisão de seus agressores, mas para o
rompimento dos ciclos de agressão – por outro, indam por se sentirem frustradas quando descobrem que
suas pretensões frente ao conlito doméstico são olvidadas e suas falas são moldadas de acordo com as pre-
tensões dos agentes criminais.
Nesse contexto, muitas vezes acabam por modiicar na audiência seus depoimentos em detrimento
das informações prestadas na delegacia; muitas vezes, chegam até a se culpar pelas lesões sofridas. No mais,
com frequência, tentam minimizar a gravidade dos fatos ocorridos; tudo com a intenção de livrar o ente
familiar querido – que podem ser, dentre outros, ex-companheiros, companheiros, namorados, maridos, ex-
-maridos, pais e ilhos – da persecução criminal.
Dessa forma, os atores penais da Vara tratam essas mulheres com certo desdém, já que estas são
rotuladas como “mentirosas” ou como “mulheres que gostam de apanhar”, porque mudam suas versões dos
fatos, para que seus agressores não sejam punidos com a privação de liberdade. Com isso, os atores penais
desconsideram todo o grau de afeto por trás da relação violenta que existe entre mulheres e homens. Nesse
contexto, percebe-se, por parte do poder judiciário, uma atuação tradicional, apartada das peculiaridades que
envolvem a violência de gênero no contexto doméstico e familiar.
4. A (RE)VITIMIZAÇÃO DA MULHER.
1 No total, 177 processos criminais foram sentenciados no recorte temporal determinado, no entanto, 09 deles não foram en-
contrados na Vara, apesar dos inúmeros esforços para sua procura, tanto por parte dos pesquisadores, quanto dos funcionários do
Tribunal. Assim, foram analisados 168 processos criminais.
2 A presente pesquisa foi desenvolvida pelos autores no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientíica (PI-
BIC), exercício 2014/2015, da Universidade Católica de Pernambuco, orientados pela Profa. Dra. Marília Montenegro pessoa de
Mello. Ademais, está ligada à dissertação de mestrado da Ma. Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros, tal que representa
um recorte de sua pesquisa empírica realizada na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife.
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Direito(s) em debate.
No Direito Penal comum, o “homem agressor” é denunciado pela “mulher agredida” e esse fato é
tipiicado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor
uma pena justa ao violador da lei. Assim, Hulsman (1993, p. 82) airma que o sistema coloca o acontecimen-
to sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele, mas para o casal
que viveu o fato, o que verdadeiramente importa: este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida
em comum?
A vítima, ao entrar na Justiça Criminal tradicional, passa a não ser mais detentora do conlito, con-
igurando a primeira consequência. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve
ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor,
conigura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, basean-
do-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 219).
A busca pelas funções declaradas do sistema de justiça criminal é o que leva a mulher a procurar
uma solução no sistema penal, funções essas: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o
condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Operando
o sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode
ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada
minora seus conlitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por implicar, acredita
Baratta (1997, p. 302):
Nos casos de violência doméstica, a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da
prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional.
Na violência doméstica a intervenção estereotipada do Direito Penal age duplamente sobre a vítima, pois não
leva em conta a sua singularidade, os seus laços com o suposto agressor. O sistema penal visualiza todas as
vítimas, seja de um roubo, de uma lesão corporal ou de uma injúria, da mesma maneira, independente das
idiossincrasias. Assim, existe essa dupla vitimização da mulher, principalmente nos casos em que ocorrerem
à prisão provisória. A mulher passa a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro, e ela é diretamente
atingida com isso, tanto nos aspectos emocionais como inanceiros, desestabilizando a organização social
(MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 458-460).
Como previsto nas análises bibliográicas, quanto ao peril socioeconômico, observou-se que as partes
envolvidas nesse conlito representam a seletividade da clientela do sistema penal, pois, em sua grande maio-
ria, pertencem a classes sociais economicamente pouco abastadas, já que possuem baixo grau de escolarida-
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Direito(s) em debate.
de (31% das mulheres que chegaram a VVDFMR sequer completaram o ensino fundamental e apenas 10%
possuem o ensino superior completo; no que diz respeito ao grau de escolaridade dos homens, 37,5% deles
sequer chegaram a completar o ensino fundamental e apenas 6,5% possuem ensino superior completo).
Ademais, moram em bairros da periferia e têm empregos com expectativa de baixa remuneração (ob-
servou-se que 25,6% das mulheres se dedicam unicamente à atividade doméstica, circunstância que indica,
muitas vezes, a ausência de independência econômica da mulher; no caso masculino, 13% eram vendedores,
seguido de 8% de pedreiros). Com relação à cor dos homens e mulheres, ressalte-se que, na maioria dos pro-
cessos (85% para as mulheres e 75,6% para os homens), não havia informação sobre a sua cor, prevalecendo,
entre ambos, porém, nos casos informados, a cor parda (11% para as mulheres e 16,7% para homens).
Essa seletividade corrobora com a airmação de Alessandro Baratta (1997, p. 167) ao apresentar que
o cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante
de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação
social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. O cárcere representa, ge-
ralmente, a consolidação de uma carreira criminosa. Esse processo de seleção referido por Baratta crimina-
lizará (primariamente e secundariamente) os setores vulneráveis, permitindo a ampla imunização daqueles
setores resistentes ao sistema. Esta vulnerabilidade é inversamente proporcional à detenção de poder, seja ele
político, econômico ou cientíico. Estes setores imunes, que mesmo assim praticam as condutas tidas como
socialmente negativas, farão parte da chamada criminalidade oculta.
Com base nos dados acima, as funções declaradas da pena e, por extensão, do próprio sistema penal
que se evidencia através dela, serão basicamente reproduzir a desigualdade e o status quo. O sistema penal
não possui eicácia quanto aos seus objetivos declarados, mas sim em relação ao que não diz, ou seja, quanto
as suas funções latentes. Em verdade, o sistema punitivo atua na sua forma mais tradicional, selecionando a
sua clientela e reproduzindo violência e dor (MEDEIROS, 2015, p. 60-61).
Buscar uma explicação para a aplicação das Penas Privativas de Liberdade como formas de resolução
de conlitos é, no mínimo, ponderar e avaliar os fundamentos de “punir”. Nesse sentido, Salo de Carvalho
(2010, p. 83), incita um desconhecimento dos fundamentos da pena. Então, faz uma análise sobre os diver-
sos institutos penais e quais deveriam ser as suas consequências com relação a sua aplicação. No entanto, em
seus estudos, ao observar que as penas privativas de liberdade não conseguem atingir sua função declarada,
ou seja, realmente ressocializar os indivíduos (e, analogicamente, no contexto da violência doméstica, sanar
os problemas decorrentes), ou trazer uma prevenção, seja ela geral ou especial (SANTOS, 2002), surge o
questionamento do por que da aplicação de penas tão desestruturadoras quanto a Pena Privativa de Liber-
dade.
Juarez Cirino dos Santos (2002, p. 53-57), por sua vez, mostra, basicamente, o que justiicaria
a aplicação de tais penas, que seria a retribuição da culpabilidade, a prevenção geral e a prevenção especial.
No entanto, também observa a ineicácia da pena para atingir tais objetivos.
Nesse mesmo cenário, Ferrajoli (2006), com sua teoria do garantismo penal, incita a técnica
do estranhamento ao sistema penal, para que possamos observar o seu caráter segregador e a aplicação da
“Culpabilidade por Vulnerabilidade”, criada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2004). Assim, parte-se da ideia de
que a Vulnerabilidade é responsável pela conceituação do criminoso. No entanto, uma das ideias despertadas
pelos estudos da criminologia crítica é que não existem apenas sujeitos criminosos, na verdade são os sujeitos
criminalizados que estão vulneráveis a esse tipo de sistema.
Quando falamos de violência doméstica, a pesquisa de campo apontou que praticamente todas
as infrações penais (99,5%) que foram processadas na VVDFMR se encaixam no conceito de baixa lesividade
descrito na Lei n.º 9.099/95, dentre as quais se destacam a ameaça (55%) e as lesões corporais leves (23%).
Ademais, o meio percentual (0,5%) restante é referente a um crime de médio potencial ofensivo (incêndio),
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
abarcado, pois, pela redação do artigo 89 da Lei 9.099/95 a qual viabiliza, em geral, a suspensão condicional
do processo.
Percebe-se, também, que o tempo dessas prisões processuais concentrou-se principalmente na faixa
entre 03 (três) e 04 (quatro) meses. Nesse contexto:
Do mesmo modo, foi também em razão desses crimes de baixa lesividade, que um quarto dos pro-
cessos pesquisados terminou com a condenação do réu. No entanto, embora tenham se reservado quase
exclusivamente a penas privativas de liberdade de curta duração (95,4%), as sentenças chegaram a ocasionar
o encarceramento de 15% dos condenados; os remanescentes (85%) tiveram suas penas suspensas condicio-
nalmente ou substituídas por restritivas de direitos.
Imprescindível, assim, realizar uma análise mais aprofundada com o objetivo de não gerar conclusões
simplórias. De início, necessário lembrar que são principalmente os crimes de menor potencial ofensivo que
ocasionam esse encarceramento. Assim, como abarcados pela Lei nº 9.099/95, diicilmente ocasionariam
um processo criminal. Segundamente, ainda considerando que são crimes de baixa lesividade, ressalta-se
a necessária cautela anunciada por Christie (1998, p. 15-17) quando da interpretação de números sobre o
encarceramento, os quais, segundo o autor, são extremamente relativos, tal que uma cifra baixa de encarce-
ramento tanto pode indicar muitos presos com penas de curta duração, como também poucos presos com pe-
nas muito altas. De acordo com a pesquisa realizada, 95,4% das penas privativas de liberdade dos condenados
na VVDFMR sequer superaram um ano; havendo, ainda, um grande percentual de penas que não superou a
faixa dos três meses (20,9%) ou dos seis meses (41,9%).
Nesse contexto, os dados relacionados ao encarceramento na Lei Maria da Penha se tornam alarman-
tes e levam ao entendimento de que a proibição da utilização dos institutos despenalizadores, em geral, dei-
xou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, uma vez que não considerou a possibilidade da utilização
de alternativas, evitando penas encarceradoras desumanas. Apesar das críticas que podem ser feitas aos
institutos despenalizadores, eles surgiram com a inalidade de descentralizar e minimizar a pena privativa de
liberdade. Então, muito embora se entenda que os institutos diversiicacionistas tenham aumentado o âm-
bito do controle social penal, é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação
(CARVALHO, 2010, p. 47-49). Percebe-se, com isso, na tentativa de enfrentamento a violência doméstica,
uma maior utilização de medidas penais, em contradição ao apoio às mulheres, com as idealizadas medidas
não penais, aparentemente mais adequadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei Maria da Penha (11.340/2006) trouxe inovações em relação ao combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher, porque, através de sua redação, além de reconhecer e institucionalizar esse tipo
de violência conseguiu dedicar grande atenção à assistência e proteção das mulheres vítimas. No entanto, no
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
que se refere ao aspecto penal, tem se observado certo desvio de inalidade, uma vez que as mulheres quando
procuram o sistema, nem sempre desejam punir o agressor, mas sim, conseguir alguma proteção em relação
aos comportamentos violentos sofridos, assim como formas alternativas de resolução do conlito.
As relações de afeto e intimidade existente entre vítimas e acusados, com a expansão do Direito Pe-
nal, deixaram de ser contempladas, bem como as expectativas e necessidades das mulheres violadas, que,
preocupadas com o bem-estar da família e almejando a cessação da violência e o restabelecimento da harmo-
nia familiar, não se voltam para persecução penal de seus agressores. Logo, quando conhecem da possibilida-
de de privação da liberdade do sujeito ativo, as vítimas têm diiculdades em denunciar o abuso sofrido. Com
efeito, a irreversibilidade do procedimento processual penal, indará por inibir a procura do auxílio judicial e
contribuirá para o ressurgimento das “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher, pois o próprio
instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la.
De tal modo, considerando a ineicácia do Direito Penal, entende-se que sua aplicação deve ser sub-
sidiária, pois não é a forma mais adequada para resolver os conlitos familiares e domésticos, principalmente,
por causa da sua função seletiva e simbólica. Assim, o Estado precisa investir na atuação social, na prevenção
equilibrada da reprodução de um ambiente doméstico e familiar saudável, para que, posteriormente, não
precise reprimir o conlito social por meio do controle penal repressivo e arbitrário, sabendo que o Direito Pe-
nal, através do punitivismo, vem se afastando do seu referencial minimalista, tornando-se incapaz de resolver
os referidos conlitos. O Direito Penal além de não recuperar, não ressocializa o agressor.
Observando a incapacidade da superação dos conlitos interpessoais pela via formal da justiça cri-
minal, visto que ela se apropria do conlito das vítimas, fugindo aos propósitos das partes envolvidas, não
apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência,
resta, então, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, o que
não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Nessa perspectiva, é importante a discussão de meios
alternativos para a solução de conlitos, principalmente transferindo a responsabilidade para outros ramos do
Direito, como também pela utilização de medidas pedagógicas, psicoterapêuticas e conciliadoras, rompendo
com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. No
entanto, para os comportamentos mais lesivos, pode se pensar ainda na criminalização, porque não se defen-
de a prática de crimes realizados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, contudo, pretende-se que
seja encontrado um meio mais adequado do que o direito penal, priorizando a intervenção mínima, ou seja,
colocando o direito penal como um meio subsidiário para as respostas ao conlito.
Enquanto o direito penal pregar uma eicácia garantidora simbólica, ele continuará sendo ineicaz.
Isso acarreta em um discurso simbólico que visa à segurança jurídica, com igualdade e justiça nas decisões
para exercer um controle cada vez mais arbitrário e seletivo sobre a camada social mais vulnerável, tendo
uma ajuda muito importante da mídia nesse processo, pois ela supericializa as realidades sociais e distorce
o modo de enxerga-las, de modo que a essência dos problemas passa a ser ignorada.
Além disso, é perceptível que esse discurso punitivista pregado pelo sistema se propaga rapidamente
e, fazendo uso dele, o movimento feminista não só conseguiu dar uma maior visibilidade à violência domés-
tica contra mulher através da Lei Maria da Penha, mas também possibilitou um maior debate sobre as pecu-
liaridades trazidas pela lei e sobre os seus efeitos, que, para a surpresa das feministas, divergiram do esperado
pela ausência do desejo das vítimas de criminalizar seus agressores. Portanto, ica claro que a Lei 11.340/06,
apesar da sua importância, se mostra como mais uma forma de o Estado aumentar o seu poder, possuindo
legitimidade clamada mais uma vez pela própria sociedade, devido as suas inseguranças, seus anseios e seus
medos.
No que tange aos resultados alcançados com a pesquisa de campo na 1º Vara de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher do Recife, ica claro quem são essas mulheres e seus agressores, ou seja, mais
uma vez, o sistema penal possui seus atores pré-selecionados, com cor e peril socioeconômico determinado,
atuando com seu discurso falacioso e sua máscara de proteção a essas mulheres que acabam sendo reviti-
mizadas, pois diferentemente do caso ocorrido à Maria da Penha, as verdadeiras “Marias do Recife” sofrem
mais uma vez ao terem suas vozes silenciadas e seus anseios arrancados pelos punhos fechados do Estado.
182
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Necessário pontuar, ainda, que não se defende que os crimes praticados contra a mulher no contexto
doméstico sejam ignorados, mas, até que outro sistema menos famélico seja encontrado, é preciso que o Di-
reito Penal seja utilizado conforme os princípios que o regem, no caso especíico, os da intervenção mínima,
da subsidiariedade e o da fragmentariedade, de modo que haja uma máxima contenção do paradoxal sistema
punitivo. As políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem focar na construção de um
ambiente doméstico e familiar equilibrado, superando, de tal modo, os empecilhos da ultrapassada, medieval
e maniqueísta inquirição do suposto agressor culpado e de uma eterna vitimização feminina.
Por im, é válido compreender que as questões familiares, a relação vítima e agressor, não devem ne-
cessariamente passar pelo tratamento do sistema penal, pois a ampliação do Direito Penal deixou de contem-
plar as relações de intimidade e afeto existentes na família, bastante complexas. Ele também não superou os
interesses e expectativas das vítimas que almejam o im da violência e o restabelecimento dos laços familiar,
e, principalmente, o bem-estar da família, que não está direcionado a criminalização do agressor, justiican-
do, assim, os dados encontrados na pesquisa de campo realizada na 1º Vara de Violência Doméstica e Fami-
liar Contra a Mulher do Recife. Assim, é necessária, portanto, a superação e não disseminação, no intelecto
social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade patriarcal e machista, que levam à
ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é pre-
ciso se voltar às origens do problema, essencialmente familiar e de origens históricas, da violência doméstica
e, deinitivamente, a máxima intervenção punitiva do Estado não é a solução para isso.
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184
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
DIÁLOGO INTERJUDICIAL:
REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
INTRODUÇÃO
O nosso trabalho está organizado em três partes. Inicialmente, pretendemos abordar o Brasil no
contexto histórico de nossa Constituição de 1988 em razão de uma crescente preocupação com os direitos
fundamentais dos cidadãos, assim como, a proteção dos direitos humanos como formas de reconhecer e
consolidar a democracia. Em seguida, como tem sido a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudências no ambiente interno em razão de uma releitura
de determinados casos com enfoque no que diz a Convenção Americana de Direitos Humanos (Daremos
destaque aos casos do depositário iniel e a audiência de custódia). Enim, pretendemos analisar o diálogo
multinível de direitos fundamentais que pode gerar uma teoria constitucional dinâmica, já que as diversas
ordens podem acolher e reelaborar os direitos previstos nos diversos níveis, seja a partir da veriicação das
suas normatividades, seja a partir da inluência da própria jurisprudência das Cortes.
A Constituição Federal do Brasil possui cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos, que complementam o texto constitucional. Alguns países
latinos americanos, que fazem parte do Sistema Regional Interamericano deram passos dinâmicos e evoluí-
dos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos no ambiente constitu-
cional de cada Estado. Esses países foram muito inluenciados não apenas pelas jurisprudências da CrIDH1,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
como também, pelas recomendações da CIDH2, e também pelas consultas encaminhadas ao sistema que
deram origem a importantes modiicações legislativas em seus ambientes jurídicos internos.
A Competência jurisdicional da CrIDH foi reconhecida pelo Brasil através do Decreto legislativo nº89,
de 03/12/1998. O Brasil tem o caso do depositário iniel e edição da Súmula Vinculante n. 25 que por força
da Convenção Americana de Direitos Humanos considera a prisão civil do depositário iniel ilegal, qualquer
que seja a sua modalidade do depósito.
Há também o caso da audiência de custódia – preso levado imediatamente à presença do juiz. Repe-
tição do depositário iniel. Inluência da Convenção Americana (art.7º, §5º). Ainda não há discussão no STF
sobre esse caso. O CNJ quer implementar em todo o país, o preso passará imediatamente a ser levado a uma
audiência de custódia e não ser mais apenas comunicado por meio de um papel ao juiz.
Segundo Piovesan (2013), não é demais recordar que os tratados internacionais são considerados
obrigações assumidas espontaneamente pelos Estados, portanto, após a sua constituição, precisa haver o
seu adequado cumprimento, em razão do seu caráter obrigatório e vinculante. Em termos mais especíicos,
aqueles acordos internacionais podem ser considerados como convenções, pactos, cartas, etc.
Não é demais ressaltar, o posicionamento de Ramos (2013) sobre a internacionalização dos direitos
humanos e as obrigações internacionais, a saber:
Ainda com base em Piovesan (op. cit.), existe um processo de formação dos tratados internacionais
na Constituição Brasileira de 1988, cuja competência privativa é do Presidente da República, art.84, VIII,
mas precisa do referendo do Congresso Nacional. É um processo complexo constituído pela celebração do
Chefe do Executivo nacional e aprovação mediante decreto legislativo do Congresso Nacional.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
no Diário Oicial da União. A partir de então, já existe, possui vigência, validade e obrigatoriedade no direito
estatal, ou seja, está apto a produzir os efeitos jurídicos.
Por outro lado, ainda com base em Piovesan (op. cit.), os tratados internacionais de direitos huma-
nos, por serem considerados normas deinidoras dos direitos e garantias fundamentais, não necessitam do
processo de formação legislativo, como os tratados internacionais tradicionais, nem do decreto de execução.
Aqueles tratados internacionais de direitos humanos são automaticamente incorporados ao ordenamento
jurídico brasileiro, enquanto estes tradicionais necessitam se submeter ao processo não automático.
Convém ressaltar que Piovesan (2011) e também Cançado Trindade são adeptos de uma corrente
minoritária, os quais entendem que para os tratados de direitos humanos se adota o sistema de recepção
automática, pois estes tratados seriam self- executing, ou melhor, eles se incorporam ao direito brasileiro as-
sim que ratiicados. Para a professora citada, o Brasil adota a concepção dualista para a vigência interna dos
tratados em geral, mas no que se refere aos de direitos humanos a concepção monista, que não necessita da
promulgação, em virtude da eicácia imediata que o art.5º, §1ºe 2º, lhes outorga.
O professor André Carvalho tem um posicionamento distinto e para ele a incorporação de um Tratado
Internacional de Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, não é distinto do comum, portanto,
necessita obedecer às quatro fases descritas acima. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, e, assim,
estes doutrinadores são adeptos ao sistema de recepção legislativa.
Observa-se, assim, que o nosso país passou por um processo de progressivo crescimento quanto ao
reconhecimento dos tratados internacionais no cenário jurídico interno. Além disso, desde a promulgação da
Constituição cidadã, inúmeras interpretações surgiram, atribuindo um tratamento diferenciado aos tratados
relacionados aos direitos internacionais dos humanos, em razão do §2º e 3º do art.5º da CF/88.
Todavia, em 20087, o pleno do STF, em uma maioria apertada (dos 9 ministros presentes – a vota-
ção encerrou em 5x4), consagrou caráter supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos
internacionais ratiicados antes da EC n°45/04. Deiniu-se, a partir de então, que os direitos fundamentais
não estão apenas no artigo 5° da CF/88, mas em outros dispositivos do próprio texto constitucional, de nor-
mas infraconstitucionais e de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Com isso, esses
tratados internacionais de direitos humanos incorporados no direito brasileiro, como direitos fundamentais,
são cláusulas pétreas, correspondem aos do artigo 5°§ 2°8 da CF/88 e também possuem o mesmo quórum de
uma lei ordinária.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Para Piovesan (2013), esses tratados de direitos humanos do artigo 5º § 2º, através de uma interpre-
tação sistemática e teleológica, como possuem um caráter especial, são considerados normas constitucionais
de aplicabilidade imediata. A jurista justiicou seu posicionamento em razão do jus cogens, ou seja, esses
tratados de direitos humanos constituem um direito cogente e inderrogável. Caso os tratados irmados pelo
Brasil sejam tão somente internacionais, são considerados supralegais e de hierarquia infraconstitucional,
em razão do princípio da boa-fé e do que diz o artigo 27 da Convenção de Viena.
Neste sentido:
[...] Com efeito, nunca é demais lembrar que a tese da paridade entre a
Constituição e os tratados de direitos humanos é anterior à EC45 e encon-
tra sustentação já no teor do §2º do mesmo artigo, que, na sua condição de
norma inclusiva, consagrando a abertura material do catálogo constitucional
de direitos fundamentais, já vinha- e a doutrina já colacionada em prol da
hierarquia constitucional assim já o sustenta há tempos – sendo interpretado
como recepcionando os direitos humanos oriundos de textos internacionais
na condição de materialmente constitucionais (SARLET, 2010, p.90).
Não restam dúvidas o crescimento progressivo das questões relacionadas aos direitos humanos, assim
como, a necessidade dos países membros dos sistemas internacionais e regionais se comprometerem com a
consolidação destes direitos, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da poten-
cialidade daqueles sistemas.
O Brasil, enquanto um Estado democrático de direito, vem adotando, a partir da Constituição cidadã
(CF/88), atos relacionados à sua soberania externa como: tratados, acordos e convenções regionais e inter-
nacionais relacionadas aos direitos humanos. Ademais, em conlitos de normas de direitos internacionais dos
direitos humanos há uma tendência de se faz valer a primazia da norma mais favorável à dignidade humana,
quer dizer, o princípio internacional pro homine, não importa se é um decreto, ou, qualquer tipo de lei, assim
como, o princípio da proibição do retrocesso.
Em síntese, o que se constata é que há quatro correntes com relação à natureza jurídica do
Tratado Internacional de Direitos Humanos, antes da EC/45, a saber:
1ª corrente – supraconstitucionalidade
2ª corrente – constitucionalidade
3ª corrente – supralegalidade
4ª corrente – legal
Convém ressaltar que, a tese atual do STF é da natureza jurídica supralegal às normas internacionais
de direitos humanos anteriores a EC/45. Ademais, já se decidiu no STF que, a Convenção Americana quando
amplia direito das pessoas deve ser aplicada, ainda que a CF/88 ofereça uma proteção menor, seja pela tese
da supralegalidade, seja pela tese da norma mais benéica.
O Brasil é detentor de direitos e obrigações na área de direitos humanos que devem ser cumpridos
sob pena de ofensa as normas positivadas na Constituição e na Convenção Americana, já que o nosso país não
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
apenas é membro da OEA assim como, ratiicou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica) em 1992, reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana9, e também é signatário de
tratados de direitos humanos tanto no âmbito interamericano quanto universal (leia-se das Nações Unidas).
Constata-se que para ocorrer um diálogo entre a jurisdição nacional e a internacional é preciso que
ocorra uma interpreção dinâmica, icando a cargo dos tratados internacionais esclarecerem e desenvolverem
os princípios e regras neles estabelecidos. A partir do momento em que há um cumprimento das obrigações
internacionais, observa-se também, uma maior abertura para a utilização das jurisprudências dos órgãos in-
ternacionais de proteção de direitos humanos, consequentemente, uma tendência à formação de um diálogo
multinível de proteção destes direitos.
A tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos tem sido um assunto de tendência inter-
nacional e de grande importância para o direito constitucional. Por meio deste estudo, podem-se introduzir
novas formas de jurisdição, quer seja por meio de uma constitucionalização de direitos, ou, de uma interna-
cionalização de direitos fundamentais previstos nas Constituições.
Podem-se citar, como uma forma de relexão sobre a proteção multinivel dos direitos fundamentais,
debatendo-se a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpre-
tações jurisprudenciais no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque
no que diz o Pacto de São José da Costa Rica. O caso do depositário iniel e da audiência de custódia serão
abordados.
A audiência de custódia é oriunda de um projeto de lei do Senado Federal (PL nº554/2011) com a
inalidade de alterar a redação do §1º do art.306 do CPP, como uma tentativa de combater a tortura e maus
tratos dos presos em lagrante, permitindo um contato imediato do preso com o juiz, na presença do Minis-
tério Público e com defensor, o preso não mais será apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. Há
também a ADPF nº347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solici-
tada, que pede providências para a crise prisional do país.
O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada na Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país,
a im de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo
9 O Brasil reconheceu a jurisdição da CrIDH em dezembro de 1998 por meio do decreto legislativo n.89 de 3 de dezembro de
1998.
10 Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas
contadas do momento da prisão.
Na ADPF 347 postulou-se, em síntese, que o STF reconheça e declare o estado de coisas inconstitu-
cional do sistema prisional brasileiro, e, diante disso, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à
promoção da melhoria das condições carcerárias do país e a contenção e reversão do processo de hiperencar-
ceramento que o Brasil vivencia. Mesmo sem ainda ter sido aprovado no Congresso Nacional, a audiência de
custódia tem sido utilizada como uma sugestão do CNJ para ser implementada em todo país, com garantia
do que dispõe a Convenção Americana em seu §5º, art. 7º.
Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional,
o Conselho Nacional de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já
vem adotando resoluções e procedimentos com o objetivo de implementá-la,
porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Conven-
ção Americana sobre os direitos humanos (Dec.678/92), dotada de status
normativo supralegal, cujo art.7º, §5º, dispõe que:”toda pessoa detida ou re-
tida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autori-
dade pela lei que exercer funções judiciais.”[...] (LIMA, 2015, p.927)
No Brasil tem o caso do depositário iniel e a edição da Súmula Vinculante n. 25, que por força da-
quela Convenção considera a prisão civil do depositário iniel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do
depósito. Há interpretações no sentido de que a partir de então, houve uma mutação informal na constitui-
ção, não admitindo a prisão civil no caso citado, com sucedâneo na Convenção Americana. Para estes juristas
a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos seria constitucional. Tese não admitida
no STF, pois o posicionamento atual da Suprema Corte é de que as normas internacionais de direitos huma-
nos anteriores a EC/45 tem natureza jurídica supralegal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proteção do dos Direitos Humanos tem se ampliado, complementando o sistema jurídico nacional,
não sendo causa de antinomias, nem sendo forma de ofensa à soberania nacional, mas conferindo maior
cooperação à efetividade destes direitos, frente às violações mundiais, principalmente após as Guerras Mun-
diais do século passado e as arbitrariedades dos regimes nazista e fascista, não deixando de lado as ditaduras
da América na década de 70.
O Sistema Interamericano é formado pelos países das Américas, que fazem parte da OEA, possui
como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa
Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos humanos. Alguns Estados partes deram passos dinâ-
micos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas
constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições
democráticas e Estados de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da
potencialidade do Sistema no continente americano.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ampliação do “bloco de constitucionalidade”. Esse fato é importante para a aplicação da tutela multinível
de direitos fundamentais e/ou humanos que tem sido um assunto de tendência internacional e de grande
importância para o direito constitucional.
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191
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
David Cavalcante
Mestre em Ciência Política-UFPE e Graduando em Direito-UNICAP
INTRODUÇÃO
Há anos um tema humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil, dos
governos e da imprensa mundial quanto o tema dos refugiados, oriundos principalmente da Síria para a
Europa. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) responde pela assistência
internacional prestada aos refugiados e, sob determinadas condições, aos deslocados internos e apátridas.
Em 2012, o número de pessoas com necessidade de apoio no mundo atingiu 45,2 milhões, número que vem
crescendo com o recrudescimento da Guerra Civil na Síria.
O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e do Protocolo
de 1967 – além de integrar o Comitê Executivo do ACNUR, desde 1958. Esses tratados normatizam a relação
do país com os refugiados e apátridas que poderão solicitar refúgio no Brasil, devido a fundado temor de ser
perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social especíico ou opinião
política, encontrem-se fora de seu país de nacionalidade e não possam devido a tais temores, ou não queiram
retornar ao país de origem, buscando preservar suas vidas.
A política brasileira para o acolhimento de refugiados avançou bastante nas últimas duas décadas,
após a promulgação do Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). Essa lei instituiu as
normas aplicáveis aos refugiados e aos solicitantes de refúgio no Brasil e criou o Comitê Nacional para os Re-
fugiados (CONARE) – órgão responsável por analisar os pedidos e declarar o reconhecimento, em primeira
instância, da condição de refugiado, bem como por orientar e coordenar as ações necessárias à eicácia da
proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados.
Este trabalho busca analisar o avanço do marco jurídico no trato da questão dos refugiados, ao passo
que analisa de forma crítica a insuiciência de políticas públicas reais para recepcioná-los com mais ênfase
na agenda contemporânea governamental brasileira, principalmente diante do cenário na crise do Oriente
Médio.
A temática do refúgio humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil
e da imprensa mundial, desde a Segundo Guerra Mundial. Jornais, revistas, sites, declarações de governos e
instituições evidenciam a progressiva e dolorosa travessia de milhões de refugiados da África e da Ásia para
Europa ou para países vizinhos oriundos das regiões em conlitos violentos, guerras civis e drásticas crises
econômicas.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O fator mais emblemático dos últimos anos para o aumento dos refugiados é a Guerra Civil na
Síria onde as informações dão conta que mais de 4 milhões de pessoas já foram expulsas de suas casas e ci-
dades devido aos enfrentamentos militares, ou seja, quase ¼ da população total daquele país. As informações
de ativistas de direitos humanos, dentro e fora da Síria, dão conta que o número de mortos no conlito pode
passar das 220 mil pessoas, sendo a grande maioria de civis, sendo que mais de 130 mil pessoas teriam sido
detidas pelas forças de segurança do governo.
A grande maioria dos 4 milhões de sírios que já teriam buscado refúgio no exterior para fugir
dos combates, tentam abrigo nos países vizinhos, como no Líbano, Jordânia, Iraque e Turquia. No entanto,
esses países, já atingidos por fortes conlitos internos e sem grandes infraestruturas para receber uma po-
pulação tão numerosa, acabam por estimular também um corredor migratório para a Europa, mediado pelo
tráico clandestino de pessoas, pelas travessias perigosas do Mar Mediterrâneo até o velho continente, através
da Grécia e Itália. Esta nova rota migratória soma-se aos já constantes e massivos luxos oriundos da África.
O fenômeno do refúgio não é novo. Os povos, ao longo da história, sempre se depararam com
migrações em massa resultantes das guerras e conlitos militares entre os países e até mesmo intraregionais.
O conceito de “refugiados” compreendido de forma lato sensu é um fenômeno histórico e social presente na
humanidade desde a antiguidade, mas localizando-o no âmbito jurídico e político do Direito Internacional e
dos Direitos Humanos é o tratamento diferenciado que os Estados passam a ofertar às populações migrantes
forçadas a se retirarem de suas pátrias originárias por motivos de ameaças iminentes às suas vidas e/ou de
proteção familiar. De modo que o estatuto de proteção ao refúgio adquire relevância no âmbito da ascensão
contemporânea dos Direitos Humanos:
A resultante destrutiva das forças produtivas e da humanidade, herdadas da Segunda Guerra Mun-
dial, desenvolveram um nova consciência política-jurídica e iniciativas humanitárias que pudessem acolher
às milhões de vítimas do maior conlito bélico já registrado no planeta. Além dos mais de 50 a 70 milhões
de mortes, coniscos de propriedades e toda a modiicação da geopolítica internacional, os sobreviventes da
destruição constituíram as correntezas humanas em busca de países viáveis para trabalhar e viver com suas
famílias, já anteriormente desfeitas e abaladas por perdas materiais e de seus parentes. Somente nos Estados
Unidos, país que não teve seu território continental atingido pelos conlitos militares, entre os anos de 1945
e 1952, admitiram em seu território 400.000 sobreviventes do nazismo, deslocados de guerra, e entre eles
96.000, cerca de 24%, eram judeus.
Nesse contexto, em face da necessidade de acolhimento das migrações dos sobreviventes da II Guer-
ra que cujos países foram destruídos foi aprovada no âmbito da Conferência da Organizações das Nações
Unidas – ONU, realizada em 28 de julho de 1951, A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados
que constitui um inovador status jurídico para os refugiados.
A citada Convenção, em seu art. 1, § 1, alínea c, deine que são refugiados as pessoas que se encon-
tram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Tam-
bém são refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conlitos armados, violência generalizada
e violação massiva dos direitos humanos. Naquela data, a Convenção se restringia a contemplar somente os
refugiados resultantes dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, mas posteriormente essa
restrição temporal foi substituída por uma maior amplitude no Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos
Refugiados, seu Art. 1º, § 2º, ampliando a cobertura temporal e geográica da Convenção:
A Convenção e o Protocolo ressigniicaram a relação dos Estados que aderiram às mesmas, decisão
que foi resultante da Assembleia Geral de 1950 (Resolução n. 429 V), convocando em Genebra, em 1951,
a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para redigir a Convenção regulatória que atribui um
novo status legal dos refugiados.
A partir de tal ano, consolidam-se prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados,
fornecendo a mais compreensiva codiicação dos direitos dos refugiados a nível internacional, estabelecendo
padrões básicos para o tratamento de refugiados, sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam
desenvolver esse tratamento, pois o amparo não atenta contra a soberania das nações.
A Convenção somente entra em vigor em 22 de abril de 1954, mas deve ser compreendida no cená-
rio político das pressões da nova consciência planetária sobre as Nações Unidas, que também, já em 1950,
constitui o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O ACNUR foi criado pela As-
sembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da
violência e da intolerância. Tal agência já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, sendo atualmente uma das
principais agências humanitárias do mundo.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Percebe-se que a principal vítima das Guerras são os Direitos Humanos, onde os direitos funda-
mentais são pisoteados em nome das conquistas, naquele contexto, das correntes ideológicas nacionalistas,
exacerbadas principalmente pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano que desencadearam máquinas
assassinas de extermínio humano, principalmente no continente europeu.
Assim, localiza-se historicamente o surgimento da Declaração Universal dos Direitos dos Direitos
Humanos de 1948 como referência político-jurídica normativa para a constitucionalização dos Direitos Hu-
manos em diversos países bem como para os tratados e convenções internacionais que envolvam a temática
dos direitos referidos. Piovesan lembra que:
A derrota do nazifascismo pela aliança do Ocidente com a URSS foi um marco histórico mun-
dial para a reemergência dos Direitos Humanos como uma pauta universal, já que a guerra, os regimes totali-
tários e a ideologia da unidade nacional, em detrimento da democracia e dos direitos contra o inimigo externo
foi que prevaleceu na pauta política e no regime político da maioria dos países, inclusive onde havia tradição
democrática anterior. Sem dúvida a construção de uma nova agenda internacional dos Direitos Humanos é
a resultante do sentimento ético mundial em repúdio aos massacres da II Guerra que resultou, a partir da
constituição do novo sistema mundial de Estados, na formação da Organização das Nações Unidas, em 1945,
como bem deine sua Carta de Fundação1:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
palestinos foram expulsos por medo, massacres de civis ou pela Guerra Israel
x países árabes.
Os refugiados da Palestina foram as primeiras vítimas, depois da Segunda Guerra, de uma migração
forçada em massas. Daí surge a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos - UNRWA, que
trabalham com a deinição de que os refugiados palestinos são as “pessoas cujo lugar de residência habitual
era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios
de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948”, ou seja, aos milhares foram aqueles obri-
gados a deixar a região da Palestina onde se constituiu o Estado de Israel, refugiando-se nas outras partes da
região e países vizinhos.
O número de refugiados palestinos chega a mais de 4 milhões de pessoas, sendo que a Resolução
194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro de 1948, seria a primeira de uma série de
resoluções da ONU a mencionar a necessidade de se chegar a um acordo justo para o retorno dos refugiados
ou para compensá-los pelas perdas e danos sofridos. A ONU considera também os descendentes dos refugia-
dos de 1948, de modo que o número total de refugiados registrados seria, atualmente, superior a população
palestina que vive sob os territórios ocupados da Cisjordânia e Faixa de Gaza.
No caso dos refugiados sírios, tal tragédia se inicia com a resposta interna que o governo do Presi-
dente Bashar al Assad oferece à revolta popular por democracia e direitos civis ocorrida em vários países do
Oriente Médio e Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, que ao chegar à Síria, foi respondida por
massacres de militares a civis e o uso de armas química.
O Presidente Assad governa a Síria desde o ano de 2000, quando sucedeu seu próprio pai, após 30
anos de poder absoluto do genitor, mas o país vive uma guerra civil onde vários grupos internos e externos
atuam e controlam parte daquele território, como é demonstrado no mapa da guerra civil, que já dura mais
de 4 anos, onde o governo controla apenas uma pequena parte do território e as outras 4 partes são contro-
ladas pelos Curdos e suas organizações políticas e militares, pelo Estado Islâmico cujo poder se expande até
o Iraque, pelo Exército Livre da Síria e pelo grupo terrorista, Frente Al Nusra/Al Qaeda; entre tantos outros
grupos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A guerra civil agravou algumas rotas de fuga para os refugiados aos países vizinhos, mas também
para a Europa como bem evidencia o noticiário internacional. A rota de migração para a Europa passa pela
Turquia, Grécia e Itália de forma que as viagens são extremamente perigosas e submetem famílias inteiras,
incluindo crianças, a condições sub-humanas de viagens de milhares de quilômetros à pé, sem alimentação
nem direito a acampamentos organizados, submetidos às humilhações, agressões e aos “coiotes” que são os
mercenários que organizam as trilhas sob condições extorsivas, sendo que as viagens não-raramente termi-
nam em mortes por afogamento, estupros, doenças ou fome.
Bem ao inverso, a evolução política do país tem como marcas fundantes uma herança monárquica
que, ao contrário dos países vizinhos em seus processos de libertação nacional, perdurou por quase 70 anos
no Século XIX, resultando ainda numa república oligárquica e elitista em seus primórdios, bem como um re-
tardo na garantia dos direitos civis e mais ainda, dos direitos sociais e coletivos, agravados por toda a herança
escravocrata.
Neste aspecto, a Constituição de 1988 é considerada a Constituição Cidadã, em razão dos princípios
norteadores de sua aprovação pela Assembleia Constituinte de 1987-88 estarem referenciados no primado
dos Direitos Fundamentais que foram totalmente vilipendiados pelo regime ditatorial de 1964-84. Sobre o
processo de transição à democracia e o papel da Constituição de 1988, o historiador Boris Fausto destaca:
No vácuo do processo de transição desencadeado pelas mobilizações sociais por democracia, liberda-
de e direitos civis, é promulgada a Carta Magna de 1988 e também com suas contradições e limitações, mas
com avanços signiicativos, incorpora em seus princípios fundamentais o peril garantista principiológico e
normativo dos direitos humanos fundamentais.
Neste esteio, é que se erigem no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos por força do art.
5º, § 2º, a hierarquia dada aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, assentados na dig-
nidade da pessoa humana, entre os quais estão incluídos os tratados que abrangem o direito dos refugiados.
Porém, somente em 1997 é sancionada a Lei nº 9.474/97 que trata da regulamentação e deine mecanismo
para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A partir da Lei nº 9.474/97 nasce o Comitê Nacional dos Refugiados-CONARE, órgão colegiado, vin-
culado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade
Civil e das Nações Unidas, e que tem por inalidade: a) analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição
de refugiado; b) deliberar quanto à cessação “ex oficio” ou mediante requerimento das autoridades compe-
tentes, da condição de refugiado; c) declarar a perda da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as
ações necessárias à eicácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a
participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e e) aprovar instruções normativas que
possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97.
O CONARE é composto por representantes do Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das
Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saú-
de; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedi-
ca a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio
de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, com direito a voz, sem voto.
Percebe-se que no âmbito normativo o Brasil tem sido referência para o continente, no que diz respei-
to das garantias dos direitos humanos ao estrangeiro refugiado, no entanto como destaca Piovesan, o aspecto
normativo deve ser acompanhado de medidas práticas duradouras haja vista as diiculdades de assistência
até mesmo para utilização dos recursos jurídicos no âmbito da postulação da inserção social na comunidade
nacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que no campo normativo há importantes avanços no reconhecimento dos Direitos Humanos
que incidem também na esfera internacional pelas resoluções e convenções das Nações Unidas com relação
ao tratamento jurídico e acolhimento dos refugiados no mundo, no espírito de que a liberdade constitui um
direito humano fundamental universal, tal como o refúgio.
Neste âmbito, a detenção de solicitantes de refúgio não deve ser aceita, tendo como referência a Con-
venção sobre Refugiados. Principalmente quando se incluem pessoas muito vulneráveis – crianças, mulheres
sozinhas e pessoas que necessitam de cuidados especiais de caráter médico ou psicológico, como é o caso
daqueles que foram objeto de tortura. Os requerentes de asilo não devem ser considerados criminosos, pois
sofreram muitos infortúnios e o seu encarceramento é um procedimento abusivo.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 Relativo ao Estatu-
to dos Refugiados são dois grandes referenciais relevantes universais para a temática mais abrangente dos
Direitos Humanos internacionais cujo impacto na constitucionalização dos direitos humanos no Brasil se
traduziu também na criação do Conselho Nacional para Refugiados-CONARE.
O passo mais difícil são as medidas dos governos conservadores da Europa, os quais muitas vezes
fecham as fronteiras e acabam diicultando ainda mais as condições de travessia ou permanência dos povos
refugiados em busca de um lar para viver. O outro passo é desenvolver políticas públicas internacionais e
nacionais que possam acolher os refugiados nos países receptores para incluí-los em condições de tratamento
igualitário aos migrantes legais, onde possam ter moradia, trabalho, saúde e escolas. Este último é o mais
distante em vista de que diante de uma profunda crise econômica internacional os governos apelam para os
sentimentos nacionalistas e xenófobos para diicultar e impedir a permanência dos povos refugiados.
Daqui se deduz o papel que deve o papel da sociedade civil, organizações sindicais, movimentos so-
ciais, organizações não-governamentais e de solidariedade, governos estaduais e locais, no sentido de pres-
sionar os parlamentos e os governos, bem como as instituições e eventos internacionais para que busquem
superar as boas intenções e tratem de efetivar orçamentos e políticas públicas reais para apoiar os refugiados
do mundo inteiro.
O Brasil pela sua tradição política e jurídica pode ampliar suas políticas públicas, envolvendo a socie-
dade civil, no sentido de receber uma maior quantidade de refugiados, bem como desenvolver mecanismos
de inserção dos refugiados na comunidade e na economia locais com vistas ao cumprimento dessa missão
humanitária tão relevante nos dias atuais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997. Deine mecanismos para a
implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados da Segunda Guerra Mundial e os Direitos Humanos. Disponível em http://
diversitas.flch.usp.br/node/2180. Acesso em 25 de set. de 2015.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se, essencialmente,
ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas
também os direitos sociais, humanos e políticos. Neste sentido, as feministas têm um desaio político e pe-
dagógico - o da formação de mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o
capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 37).
Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua apa-
rição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter
fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra
indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos
1 Paráfrase à famosa assertiva de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” que identiica a construção social do gênero como
meio de estabelecimento das divisões sociais.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “Para nós, trata-
-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade,
fundamentadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13).
As ideias feministas partem do pressuposto de que a sociedade patriarcal sempre usou a violência
como mecanismo de contenção da mulher no âmbito privado, em que o homem, dominando-a, impunha-lhe
o regramento da vida, subordinando as potencialidades femininas às pretensões culturais patriarcais em que
homem e mulher exerciam papéis sociais deinidos.
[...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base
material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade
entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o
sistema masculino de opressão das mulheres (Apud. CASTILLO-MARTÍN;
OLIVEIRA, 2005, p. 41).
Não obstante a realidade patriarcal, o anseio dos movimentos feministas é o da libertação das mulhe-
res de seus cativeiros privados ou públicos e da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Maria Betânia
Ávila resume bem o propósito, “O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a relação entre
liberdade pública e dominação privada” (2007, p. 6).
As dimensões das relações na sociedade inferiorizaram a mulher, tendo em vista os pilares de seus
estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservou-se a elas os aspectos estáticos e privados, em
razão de um controle social neutralizado, que relete padrões e comportamentos construídos e aceitos cultu-
ralmente. O poder exercido sobre as mulheres é relexo de fundamentos ideológicos e não naturais e condi-
ciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA, 1999, p. 19), estabelecendo,
assim, limites especíicos para as mulheres exercerem sua cidadania e autonomia.
A violência doméstica, como exemplo dessa subordinação tem fundamento em causas eminentemen-
te sociais.
O movimento feminista, em contrapartida aos modelos e padrões que vitimizam e exercem opressão
sobre as mulheres, objetiva estabelecer uma “reconstrução social do gênero” (BARATTA, 1999, p. 22) a im
de garantir espaços sociais, políticos e econômicos através de práticas cidadãs e democráticas.
2 Entretanto, não se quer dizer com isso que se assume uma postura de considerar a mulher como corresponsável pelas
agressões, assim como propõem parcela da vitimodogmática.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A história das “mulheres” como novo sujeito social, entendidas assim como um movimento, um gru-
po de transformação social, é marcada por uma série de barreiras e preconceitos, baseados em apenas uma
característica: ser do sexo (biológico) feminino, ter nascido mulher.
Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do feminismo brasileiro
na realização de políticas públicas a im de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta
dos movimentos feministas são continuas e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade
como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingin-
do gerações. A “cartograia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15).
O ano de 1975 tem sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro. Até então o
movimento estava restrito a grupos muito especíicos, fechados e intelectualizados, chegando mesmo a se
conigurar mais como uma atividade privada, que acontecia na casa de algumas pessoas.
Neste sentido, a década de 80 foi um marco para o movimento feminista e, inclusive, para a demo-
cratização do país. Surgiram pelo Brasil inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência; a
primeira delas foi a SOS Mulher, inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. A trajetória desse tipo de ação femi-
nista é particularmente interessante na medida em que aponta para uma tendência que será predominante
no movimento na década de 1980. O objetivo dos SOS Mulher era constituir um espaço de atendimento de
mulheres vítimas de violência e também um espaço de relexão e de mudança das condições de vida des-
sas mulheres. No entanto, logo nos primeiros anos, as feministas entraram em crise, pois seus esforços não
resultavam em mudanças de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhi-
mento, voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, não retornando aos grupos de relexão
promovidos pelo SOS Mulher.
Em verdade, esses movimentos, em todos os países, sempre estiveram comprometidos com o comba-
te a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações
de gênero (RORIZ, 2010, p. 41).
A partir de 1985, a questão da violência contra a mulher toma outros rumos com a criação da pri-
meira delegacia especializada. As DEAMs constituíram política pública de combate e prevenção à violência
contra a mulher no Brasil, especialmente a violência conjugal (MORAES; SORJ, 2009, p. 14). Entretanto,
percebeu-se, com sua criação, que muito embora tenha possibilitado demonstrar os verdadeiros índices de
agressão, a sua função legal de usar o poder policial para reduzir tais violências não estava sendo e nem po-
deria ser cumprida. Os anseios dessas vítimas, contraditoriamente à expectativa feminista, eram apenas de
não serem mais agredidas.
As mulheres que tomavam a frente dos movimentos eram “cultas e politizadas” e geralmente não
eram vítimas desse tipo de violência (MELLO, 2009, p. 48). Mas, o feminismo pretendia criminalizar a vio-
lência doméstica e assim, conscientizar tanto agressores como vítimas dos direitos das mulheres.
O uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica
da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que
a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias espe-
cializadas consiste em usar o poder policial para renegociar o pacto conjugal
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Essas delegacias se popularizaram por todo o país e, em 1992, já somavam 141, nas mais diversas
regiões. Essa foi uma política pública bem-sucedida que, em primeiro lugar, atendia a uma demanda das
feministas, ou seja, a criação de um espaço na polícia no qual o ambiente não fosse hostil à mulher agredi-
da. A grande queixa dos delegados de polícia é a mesma, apenas em outra esfera, das feministas do SOS: as
mulheres vão às delegacias no momento da agressão, mas diicilmente mantêm a queixa; o que realmente
elas desejam do órgão policial é que o agressor seja chamado e se comprometa a não prosseguir na conduta
agressiva.
O feminismo brasileiro, e também mundial, mudou, e não somente em relação àquele movimento
sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos
1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada
nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas.
A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a despeito de inúmeras
críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher.
Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égi-
de da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto
as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamenta-
ram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como
maneira de enfrentamento daquelas formas, representando, portanto, o falacioso discurso oicial de eman-
cipação da mulher.
Percebe-se, assim, que as modiicações nos tipos penais incriminadores surgiram conforme a atual
tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos
preexistentes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não consigam demonstrar a
relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI,
2009).
Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é,
notadamente, de menor potencial ofensivo, a vedação de aplicação da Lei n.º 9.099/95 implicou na impos-
sibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incon-
táveis casos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos
descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que des-
programou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e
aplicação de penas encarceradoras e desumanas.
No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistência às estratégias expansionistas
do Direito Penal, cedeu às pressões populares (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e,
ao julgar a ADI 44243, optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incon-
dicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica.
A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas que foram lan-
çadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conlitos domésticos e familiares. No entanto,
resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminalizador têm sido
atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação
da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal especíica, que
as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem
social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratiicar a dominação masculina sobre a qual se ali-
cerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do inal
do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18).
Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para-
doxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral
societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir,
sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os
próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).
Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas
alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes
em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto,
as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas.
O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do mo-
vimento feminista para justiicar a sua demanda criminalizadora. É certo
que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata,
uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários
por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadei-
ras causas dos conlitos. Daí a airmação que mais leis penais, mais juízes,
3 O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da
República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência
doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mais prisões, signiicam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal
não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem
buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica
(MELLO, 2010b, p. 940).
A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização de complexos pro-
blemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica com-
provam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência
e promoção da segurança (CASTILHO, 2007, p. 104-106).
Visando compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, foi realizada pesquisa de cam-
po no Juizado da Mulher da cidade do Recife a im de compreender em que medida aquelas pretensões do
movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe um estudo com relação à aplica-
bilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha, seja durante o processo, através da prisão
preventiva, seja ao inal do processo, através da prisão pena.
A abordagem acerca dos dados coletados será realizada à luz do discurso da criminologia crítica, o
qual atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identiica
nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de
reprodução do poder social” (SANTOS, 2008, p. 88).
A vertente criminológica parte do pressuposto de que o Direito deve declarar a função de proteger a
ordem social e assim o fazer, sem mistiicações a essa pretensão. Investiga-se essa coerência por meio de uma
metodologia dialética a qual visa identiicar funções latentes, não declaradas, ideologicamente encobertas
para “assegurar a realização das funções que ela tem no interior do conjunto da estrutura social” (BARATTA,
2004, p. 95) e as declaradas, que no caso dos movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a
diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Mais especiicamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia crítica com o objetivo
de trazer a crítica feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos
movimentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres,
essa criminologia percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica, que pos-
sa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), pois parte do pressuposto de que
esse sistema não está apto a garantir direitos, uma vez que atua simbolicamente, criando a sensação apenas
ilusória de segurança jurídica.
É neste sentido que a criminologia airma que o Direito reproduz desigualdade como mecanismo de
reprodução da realidade social, e o pior, legitimando as relações de produção a partir de um consenso seja
ele real ou artiicial. Ou seja, a reprodução social da imagem de vítima em busca do apoio penal, por meio
do enrijecimento normativo em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência
entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia,
de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito
penal simbólico (RORIZ, 2009, p. 48).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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As estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defen-
didas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência domés-
tica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira.
A amplíssima aplicação do regime aberto aos casos de violência doméstica justiica-se em virtude das
penas mais brandas aplicadas aos crimes de lesão corporal leve, ameaça e crimes contra a honra, mais co-
muns no âmbito em estudo.
Importante, através destes dados, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como
um problema social, que vai além do Direito Penal. Por isso a importância da discussão dos objetivos decla-
rados e não declarados da Lei Maria da Penha, a im de que haja o rompimento com o paradigma penalista
tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.
A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa relete o discurso da criminologia
crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e
identiica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garan-
tia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88).
Em seguida, a pesquisa voltou-se para a análise do número de prisões preventivas nos 30 proces-
sos-crimes sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar. Apesar de o discurso
declarado ou o conteúdo programático do direito processual brasileiro erigir a presunção de inocência a prin-
cípio fundamental, com assento na Constituição Federal e, portanto, como regra que impede o tratamento
de culpado àqueles que não tenham sido condenados pela prática de um crime, mais de 50% (cinquenta
por cento), dentre todos os processos analisados, experimentaram prisão preventiva, número que chama a
atenção de criminólogos, mas também de pesquisadores de diversas outras áreas, bem como de uma parce-
la da sociedade civil, para a opção feita pelo sistema de justiça criminal de privação da liberdade anterior à
condenação.
Esse número causou estranhesa, senão, um verdadeiro contrasenso em relação á programação nor-
mativa da legislação do país. Prender é, sem dúvidas, penar, causar dor e mortiicação. Ocorre, portanto,
antes da condenação, o fenômeno do encarceramento em massa que destrói vidas e famílias.
Existe uma contradição estrutural ou eicácia invertida do sistema penal entre aquilo que a legislação
declara e aquilo que efetivamente se cumpre.
Neste sentido, a seletividade policial realizada, como demonstram os estudos da criminologia crítica
sobre os extratos mais débeis e precários da sociedade, é chancelada pela seletividade judicial, que contribui
decisivamente para que o sistema penal realize suas reais funções de neutralização e disciplina das classes
sociais inferiores.
CONCLUSÃO
207
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a violência e estabe-
lecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que
Vera Andrade denomina de eicácia invertida, pois a eicácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das
declaradas (ANDRADE, 2003, p. 74).
O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineicaz no âm-
bito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade
culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será.
Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na re-
alidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema,
forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas.
Enim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive sobre as mulheres,
resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de eman-
cipação.
O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a asso-
ciação à igura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui, antes ratiicam a imagem da mulher como ser
frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determi-
nado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse
contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conlitos
domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios al-
ternativos para a solução de conlitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros
ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas,
rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade
com rigor penal.
A partir dos dados, constatou-se a contradição ou disfunção entre o discurso legal declarado e o mun-
do dos fatos, no que respeita ao encarceramento de pessoas que não foram ainda julgadas e, estão, portanto,
presas “preventivamente”.
Segundo Zaffaroni (2011, p. 67), esta região do globo optou pelo exercício do poder punitivo por meio
de medidas de constrição antecipadas, ou seja, com a determinação de prisão antes do julgamento deinitivo
e prolação de sentença.
Observa-se na realidade da violência doméstica a necessidade, por parte do poder punitivo, mesmo
que antecipada, da imposição de sofrimento irreparável e de consequências irreparáveis. Grande contradição
do sistema de justiça criminal, tendo em vista que a prisão não é aplicada ao inal do processo (amplíssima
aplicação do regime aberto). Todo encarceramento tem, ontologicamente, natureza punitiva, importando
(em todos os casos) em um tratamento como culpado, contribuindo para o controle social e construção es-
tigmatizante e seletiva da criminalidade.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INTRODUÇÃO
O poder punitivo, caracterizado pelo conisco do conlito pelo Estado, foi e é exercido de acordo com
certas decisões arbitrárias do poder (estado de polícia) ou disposições legais igualitárias (Estado de Direito).
Essa divisão, de simples im pedagógico, não pode ser entendida como características ou temporalidades
separadas ou puras, já que o Estado de Direito sempre encerra em seu interior um Estado de Polícia, gestando
um jogo de forças relacional-dialético: o primeiro aspira conter o exercício real do poder punitivo; o segundo
pretende ampliá-lo (ZAFFARONI, 2007).
Na estreiteza desse arcabouço, esse trabalho discute como o conceito de vulnerabilidade da vítima é
redimensionado e posto à serviço do Estado Penal máximo, especialmente na lógica política de movimentos
sociais, o que se denominou de esquerda punitiva (KARAM, 2001).
211
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O objetivo é identiicar as reformas penais que perpassam pela questão da criminalização de mino-
rias – justiicada a partir da vítima – desde o Código Penal de 1940 até agosto de 2014, de modo a aferir suas
tendências político-criminais.
Para tanto, utilizou-se do banco de dados produzido pela pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal:
a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”, vinculada ao CNJ Acadêmico e
coordenada pelo Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal
(GPESC/PUC/RS) em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (UnB) e o Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (UFPE). O banco de dados contém
todas as reformas penais aprovadas no Brasil entre 1940 e 2010 (totalizando 320 legislações), bem como as
justiicativas dos projetos de leis que as originaram.
Ora, as problemáticas trabalhadas a partir da análise supracitada não podem caminhar sem a com-
preensão das diiculdades que circundam e subscrevem a Política Criminal. Levando-se em consideração a
sua importância no corpo das ciências criminais, a falta de deinição clara do seu campo de conhecimento e,
consequentemente, o modo como ela “serve” às gamas variadas de concepções e interesses, impõe-se como
obrigação necessária lançar um olhar questionador e crítico sobre sua natureza e função (FREITAS, 2008).
Ultimamente, a doutrina nacional faz alusões recorrentes à Política Criminal sem, no entanto, haver
um consenso mínimo entre os doutrinadores do que realmente seja ela, exigência básica para a postulação
de um estatuto teórico. Assim, no lugar da rigidez cientíica, há a preponderância de uma Política Criminal
marcadamente empirista e entregue à baila do jogo de forças político-ideológicas de cada época. A Política
Criminal, carente de um arcabouço teórico, encontra-se imersa na dimensão propriamente prática.
Essa completa indeinição e incerteza que circunda a Política Criminal tem sido um instrumento útil
à maximização do Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito, galgado, entre outras coisas, no uso
(ideológico) da vulnerabilidade da vítima. A pergunta é se o Congresso Nacional, orientado por uma Política
Criminal sem qualquer delineamento, não tem se apropriado de discursos tradicionalmente identiicados
como de esquerda para expandir o controle penal sob o pressuposto ideológico de proteção às vítimas consi-
deradas vulneráveis, seja por condições biológicas, sociais ou históricas.
Apontando a necessidade da exigência de uma política criminal, necessário se faz retomar a discussão
sobre a relação incessante entre Estado de Polícia e Estado de Direito, ressaltando o percurso histórico, ainda
que brevemente, para viabilizar a compreensão do acentuado intervencionismo penal na atualidade.
Nesses termos, é importante perceber que em cada modelo de conjuntura sócio-política subjaz con-
struções ideológicas sustentadoras e ins a serem operacionalizados. O Estado politicamente absoluto, por
exemplo, ensejou um sistema de punição que funcionou como instrumento de manutenção da ordem so-
cial e defesa do príncipe ancorado por discursos que exigia “a transmissão total do poder dos indivíduos ao
soberano” (HOBBES, 2006). As práticas punitivas concretizaram-se com completa arbitrariedade, o que
corroborou para a difusão de um clima de incerteza, insegurança e injustiicado terror.
O iluminismo – século XVIII – agrupou alguns pensadores em torno de ideias fundamentadas na li-
berdade e dignidade da pessoa humana e na separação necessária entre o público e o privado, reduzindo ao
máximo a intervenção do Estado na vida de cada indivíduo. Aqui, a crítica viabilizada pelas percepções liberais
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Com a base da Ilustração surge um Estado cuja atuação está circunscrita pelo campo da necessidade.
O poder estatal, de forma geral, e mais ainda em sua vertente punitiva, só pode atuar quando as circunstân-
cias concretas exigirem tal intervenção e quando os direitos individuais não forem ameaçados de violação por
tal intromissão. Nasce daí o que se costuma conceituar por Estado de Direito, isto é, um Estado cujo poder
está limitado formal e substancialmente pelos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (FERRAJOLI,
2002).
Mas o liberalismo não concretizou todas as suas promessas de valorização do ser humano e liberdade
do indivíduo. Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permaneceram sem
solução questões econômicas que aligiam a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de
quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças.
Em razão disso, o Estado Liberal de Direito se transmuta, a partir da primeira metade do século pas-
sado, em Estado Social-Democrático de Direito ou, simplesmente, Estado Social de Direito. Este toma como
ponto de partida os valores e princípios políticos liberais, visando ampliá-los e airmando a necessidade de
maior intervenção do Estado no sentido de assegurar proteção e igualdade social aos indivíduos, mas sem o
sacrifício de seus direitos civis. O Estado Intervencionista duramente criticado pelos ilósofos liberais revivi-
ica-se, não mais para conservar a ordem político-social, mas para proteger a grande massa de vulneráveis.
O Estado agora, sob essa nova roupagem, é convidado a interferir ativamente no plano social realizan-
do prestações positivas. Ou seja, a sociedade exige a participação estatal efetiva por considerá-la fundamental
para a promoção e garantia dos direitos individuais (legado liberal), bem como para a proteção e fortaleci-
mento dos grupos hipossuicientes (perspectiva social). Assim, o Estado se expandiu demarcando presença
nos mais diversos campos considerados fundamentais ao bem estar e à dignidade da pessoa humana. O
combate à pobreza e à miséria, a criação de postos de trabalhos, a garantia de moradias, a limpeza urbana,
os serviços públicos de saúde, educação e segurança – em tudo isso a incumbência majoritária recai sobre o
Estado que deve fazê-los sem ofender a liberdades individuais.
Se os valores que fundamentam e perpassam o Estado Social Democrático de Direito dirigem-se à con-
templação, promoção e proteção das minorias profundamente desapoderadas, o discurso estatal assistencial
de defesa (principalmente penal) dessas minorias, apodera-se. Se ao Estado cabe intervir em favor dos
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
grupos historicamente fragilizados, caber-lhe-á ainda mais reprimir qualquer tipo de violência ou ameaça de
violência intentada contra tais grupos.
Esta nova perspectiva torna-se extremamente problemática diante da seguinte proposição: o modelo
de punição hodierno carece de justiicação. Os coletivos, os movimentos sociais e as instituições de direitos
humanos conhecem e denunciam isso.
Mesmo assim, nos últimos anos, tem-se demandado, em montantes assustadores, a intervenção desse
mesmo sistema de violência estatal para proteger grupos historicamente vulneráveis, através da aniquilação
da violência e punição dos agressores. O que assusta é que grande parte desses demandantes é oriunda de
movimentos sociais que esboçam uma visão desconstrutivista das prisões (KARAM, 2001).
O problema do intervencionismo penal agrava-se ainda mais pelo fato de não haver, como foi sinaliza-
do acima, um arcabouço epistemológico que deina e circunscreva os limites e as condições de possibilidade
de uma Política Criminal. Vale ressaltar que a política criminal está umbilicalmente ligada à coniguração da
política em geral (BARATTA, 2002) e, na inexistência de um conteúdo bem deinido, colonizada por esta.
Entregue aos devaneios doutrinários, ao oportuno populismo legislativo e ao fortíssimo apelo midiático, a
Política Criminal se apresenta como instrumento por meio do qual se espraia o Estado Penal Máximo.
Não é possível oferecer uma deinição única à Política Criminal. O esforço por conceituá-la exige,
necessariamente, estabelecer as características mais gerais e essenciais extraídas do universo das diversas
contribuições doutrinárias nesse sentido (FREITAS, 2008). Aqui basta fazer referências a duas classiicações:
Política Criminal em sentido amplo e estrito e Política Criminal em sentido teórico e prático.
No seu aspecto amplo, a Política Criminal não se limita aos problemas propriamente penais de contro-
le do desvio (direito penal, direito processual penal, direito penitenciário), mas alcança relexões, elaborações
e execuções de políticas mais extensas de intervenção social (FREITAS, 2008). Fala-se aqui, portanto, em
políticas sociais gerais de enfretamento às causas do fenômeno criminal, sendo a intervenção essencialmente
penal (política criminal em sentido estrito) seu elemento último e mais gravoso.
Nota-se, pois, que há uma relação do tipo gênero-espécie entre a política criminal em sentido amplo
e política criminal em sentido estrito, conforme veriicamos na lúcida explicação de Ricardo de Brito (2009):
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Note-se que há um entrecruzamento entre ambas as classiicações: a política criminal como saber
teórico tem como objeto, tanto a política criminal sentido amplo, como a política criminal em sentido estrito.
A partir dessa sistemática se compreende o contexto atual marcado pela inlação legislativa no campo
penal: o Congresso Nacional, ante uma política criminal sem diretrizes, regra geral, despreza as contribuições
de pesquisas e estudos cientíicos, rendendo-se ao “populismo penal” midiático e invocando práticas demagó-
gicas que se amparam no sentimento de vingança e exploração do medo da população. Os momentos de
instabilidade são mais notáveis nesse sentido, vez que neles, invariavelmente, aparecem respostas milagrosas,
rápidas e viáveis administrativamente, mesmo que ineicazes do ponto de vista da redução da criminalidade
ou de resolução dos conlitos sociais.
Essas medidas legislativas que nascem sem qualquer discussão que tenha o mínimo de rigor teóri-
co e cientíico, recrudescem ainda mais a política criminal nacional quando se abastece da condição de
vulnerabilidade da vítima. Se a política criminal prática é vazia de conteúdo e, por isso, incapaz de limitar o
exercício do poder punitivo estatal, o discurso assentado sobre a condição desfavorável da vítima aguça ainda
mais o “populismo legislativo” e possibilita a composição de uma “legislação penal do terror” e, como tal,
mitigadora dos direitos e garantias fundamentais (CARVALHO, 2010).
A análise às legislações aqui apresentadas, portanto, aponta para um Congresso Nacional que trabalha
incansavelmente e com total discricionariedade no campo da repressão penal – sobretudo em razão da falta
de uma teoria própria à política criminal que circunscreva limites à atuação estatal nesse campo – e cujo
efeito inevitável é a superposição do Estado de Polícia ao Estado de Direito. O resultado é, como se pode ver
no gráico abaixo, uma elevação exponencial das legislações penais – 320 leis no período de 1940 a 2010:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O banco de dados formulado pela pesquisa que ora se apresenta mostra uma inlação legislativa ocor-
rida ao longo dos anos. O recorte temático da proteção à vítima, perpassado pela justiicação de situação de
vulnerabilidade desta, pode ser observado no universo de 44 leis, distribuídas, em termos de ano, da seguinte
maneira:
Todas essas legislações têm iniciativa no Congresso Nacional e perpassam diversas matérias, desde
tipos penais que visam proteger a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, a tipos penais que propõem
a proteção `a mulher, a igualdade racial...
São todas legislações punitivas, porque prevêm em seu bojo ou a criação de um tipo penal ou a ma-
joração de pena. O fato é que os argumentos que justiicam a lei trazem sempre uma suposta intenção de
defesa efetiva do bem jurídico tutelado, especialmente para as pessoas que apresentam algum tipo de hipos-
suiciência.
A título de exemplo, a justiicativa da Lei n.º 10.886 de 2003, que trata da violência doméstica, cami-
nha no sentido de sustentar que “não se deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho
e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência”, e prossegue aprofundando os apelos com ins
explícitos de materializar o agravamento penal quando diz:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O que se percebe, na verdade, são construções argumentativas com signos linguísticos em certo
sentido até coerentes, mas sobrecarregados de elementos simbólicos, e por isso ideológicos, sem qualquer
compromisso com a realidade interativa e conlitiva da dinâmica social.
O que importa, para além de qualquer função declarada da lei, é a perpetuação e a expansão do
Direito Penal como fórmula tradicional de controle social. E aqui o direito penal expancionista mostra sua
feição mais perversa: apropria-se de conceitos, causas, lutas e pautas sociais, historicamente ligadas aos mo-
vimentos políticos, ideologicamente de esquerda, e sob o pressuposto de defesa de indivíduos desapoderados,
realiza o efeito reverso: maximiza o Estado policialesco.
Nesse contexto, e em nome da proteção, sobretudo, dos hipossuicientes, o rigor do direito penal não
vê limites: se os riscos (virtuais ou não) no convívio social são incalculáveis e múltiplos, a multiplicação de
leis penais rigorosas está legitimada.
Ocorre que essas leis têm razoável conotação simbólica, uma vez que o impacto carcerário que pro-
vocam não é signiicativo, pois, como é claramente divulgado, os principais tipos penais que têm levado ao
hiperencarceramento é tráico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio.
Importante pontuar que o simbolismo não é uma qualidade exclusiva do Direito Penal. Mesmo assim,
chama a atenção a grande produção legislativa com forte caráter simbólico. O direito penal simbólico denota
uma disparidade entre a realidade e a aparência, o implícito e o explícito, entre o que é querido e o que de
outra forma é aplicado. É possível dizer que o simbolismo penal visa satisfazer a pressão social e produzir
coniança na capacidade de atuação do Estado, por meio da distribuição (desigual) da punição, sem atentar,
necessariamente, para a resolução dos problemas.
As normas penais, nesse sentido, tendem a produzir um engano, vez que não são criadas para serem
aplicadas com toda efetividade, nem muito menos para por im aos conlitos concretos, mas para gerar resul-
tados e alcançar ins não declarados.
Não se trata aqui do simbolismo (denominado positivo) manejado pelo Direito Penal para reforçar
a função instrumental de controle de condutas desviadas, protegendo valores selecionados como os mais
importantes pela coletividade, tal como “O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de
proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina airmar-se que tutelar os bens jurídicos é a missão do
Direito Penal” (BRANDÃO, 2007, p. 7).
Como se vê, sendo a função instrumental voltada aos ins do Direito Penal, no caso, a proteção de
bens jurídicos, a função simbólica (positiva) volta-se à função de transmitir à sociedade certas mensagens
ou conteúdos valorativos com poder de inluenciar as consciências com representações mentais para a
conformidade com a norma e que o faz através da criminalização. Todavia, quando se constata que não é
capaz de operacionalizar, sua capacidade legislativa perderá toda a credibilidade, de modo que a aparência
não poderá sustentar a função declarada do sistema de proteger bens jurídicos.
Trata-se, desse modo do uso do Direito Penal em desacordo com o próprio discurso legitimador do
jus puniendi estatal, sendo a adjetivação “simbólico” sinalizadora de um direito penal cuja função de pro-
teger bens jurídicos é corrompida, levando ao descrédito da justiça estatal. Logo, sob esse viés, é Direito
Penal simbólico aquele no qual a função de prevenção geral positiva, ou seja, a função de formação de con-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
vicções jurídicas é exacerbada, visando à imposição de valores morais através do progressivo agravamento da
ameaça penal, conigurando-se numa apelação na qual a função estabilizadora dos conlitos sociais é apenas
aparente. A caracterização de um direito penal simbólico é, pois, decorrente da predominância, ou mesmo,
da exclusividade dessas pretensões ideológicas.
A estratégia de aparente eicácia não é à toa, é destinada a acalmar a demanda social, alarmada, e
exonerar o Estado de ampliar e realizar políticas sociais. Isto é, as políticas punitivas têm o traço comum
de serem alarmistas e causar uma ansiedade difusa, de modo que ao canalizá-la à igura do delinquente de
rua, a severidade penal que passa a ser uma necessidade vital, desvia a atenção daquilo que não consegue
realizar: uma política social eicaz.
No Brasil, tais problemáticas ganham dimensões ainda maiores, dada a fragilidade da política crimi-
nal eminentimente prática, cujo conteúdo e alcance são determinados, com certa prepoderância, pela supe-
resposição midiática com respaldo no forjado consenso popular sedento por segurança pública e punição. Por
outro lado, parcela da “esquerda” nacional não se dá conta dos efeitos reversos maléicos que, inevitavelmen-
te, resulta da opção pelo Direito Penal como fórmula e remédio para resolução os conlitos sociais.
Por tudo já dito, percebe-se a urgente necessidade de se pensar em uma política criminal fundamen-
tada em saberes teóricos roubustos e racionais, de modo a evitar a expansão desregrada do Estado penal com
a consequente mitigação das liberdades individuais e a lexibilização dos direitos fundamentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do século XX nasce uma outra modalidade de Estado chamado Estado Social de Direito,
que teria o propósito de agir como motor ativo na vida da sociedade, modiicando efetivamente as relações
sociais, sem, contudo, abandonar as conquistas do Liberalismo. Do Estado Liberal dito “imparcial” se passa
a um Estado Social “intervencionista”. No que diz respeito aos seus caracteres básicos, o Estado Social De-
mocrático de Direito defende, ao menos em tese, a observância do princípio da legalidade, da igualdade e a
supremacia da lei, como garantia máxima de segurança jurídica para todos os cidadãos.
Como já fora discutido mais acima, a relação entre Estado de Direito e Estado Social Democrático
de Direito é complexa e delicada, de modo a exigir moderação quando da necessidade de reivindicar recuos
ou ações prestacionais positivas desse mesmo Estado. Assim, e com base em todas as relexões aroladas no
corpo desse trabalho, se faz necessário está completamente em alerda nesse momento em que se demanda
em montantes assustadores a intervenção estatal por meio do Direito Penal.
Põe-nos sob alerta o fato de que ultimamente vem crescendo movimentos reividincatórios por uma
ainda maior intervenção do Direito Penal para efetivar uma transformação social ou para promover a eman-
cipação e proteção dos oprimidos ou vulneráveis. Adimira que tais “solusões” sejam requeridas por setores
políticos de esquerda, aqueles usualmente atentos às desigualdades que deinem e caracteriza historicamen-
te o Estado brasileiro.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A doutrina da proteção integral e seus paradoxos na realidade latino ame-
ricana; 2. Análise dos dados; Considerações inais; Referências.
INTRODUÇÃO
A Doutrina da Proteção Integral marca a transição do paradigma tutelar de menores para o da eman-
cipação de sujeitos de direito, a partir da inserção desses sujeitos nas bases dos Direitos Humanos.
No entanto, a prática dos agentes das instituições formais de controle não corresponde a essa mu-
dança de lentes. Pesquisas recentes apresentam uma dicotomia entre passado e presente. Desde a década de
80, as pesquisas sobre violência, criminalidade, segurança pública e sistema de justiça se tornaram temáticas
institucionalizadas nas contribuições sociológicas (KANT DE LIMA, MISSE, MIRANDA, 2000).
Antes mesmo, na década de 70, com o trabalho pioneiro sobre delinquência juvenil de MISSE (1973),
discutiu-se a forma de responsabilização de adolescentes conduzida pelo Judiciário, que, à época, não cum-
pria os preceitos estabelecidos na legislação menorista. Atualizando a problemática, com estudo em sede de
recursos, pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, na Série Pensando O Direito, em 2010, também
aponta sérias críticas aos fundamentos das medidas socioeducativas de internação dados pelo Poder Judici-
ário.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
realidade de unidade de internação de adolescentes do sexo masculino em São Paulo, e MACHADO (2014)
se debruçou sobre a realidade da unidade de internação de adolescentes do sexo feminino em Pernambuco,
apontando as mesmas conclusões: a medida socioeducativa de internação, em essência, em nada se diferen-
cia da pena privativa de liberdade.
Institucionalmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), com o objetivo de atualizar pesqui-
sa de 2012 que já apontava diversas formas de violações de direitos no âmbito da Justiça da Infância e da
Juventude, mapeou a realidade das instituições de internação para adolescentes do sexo feminino em PE,
PA, SP, DF e RS, apontando que
Diante de várias pesquisas já realizadas, percebe-se a manutenção da dicotomia entre tutela e eman-
cipação de sujeitos. Nesse sentido, a pesquisa busca identiicar o que os magistrados entendem sobre as
inalidades da medida socioeducativa de internação, por meio da análise dos fundamentos de sentenças de
aplicação de medida de internação proferidas no Estado de Pernambuco para adolescentes do sexo feminino.
Para tanto, utiliza-se a metodologia da Análise de Conteúdo, de forma a possibilitar aos pesquisado-
res encontrar o latente nas sentenças, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo de documentos
(BARDIN, 1977). Daí se inferiu que, quando os magistrados aludem às inalidades da medida, constroem
basicamente dois raciocínios: ou a internação tem por im a pura retribuição/neutralização – bastando auto-
ria, materialidade, e o ato infracional ser grave –, ou serve à retribuição/socialização – mesmo que não reste
comprovado o cometimento do ato infracional – supostamente, como julga, colmatando lacunas de educação
deixadas pela família e pela comunidade.
É importante ponderar que representação é “algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida
social” (BECKER, 2009, p. 18). São informações que orientam as práticas e relações humanas, construídas
através de comunicações sociais e apreendidas socialmente (MOSCOVICI apud ANCHIETA; GALINKIN
2005), além de variar em função dos extratos econômicos e culturais em que se inserem os indivíduos ou
grupos (PORTO, 2006).
Deste modo, o estudo da representação social da magistratura acerca da inalidade da medida socioe-
ducativa de internação não se dirige ao juiz, mas aos conteúdos que eles simbolizam. O magistrado, ausente
enquanto tal, está presente como expressão de padrões de organização social, de modelo de comportamento
1 Esse número refere-se à quantidade de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa
Luzia em abril de 2012, momento no qual a pesquisa etnográica na unidade, realizada pela primeira autora, no âmbito do dou-
toramento, teve início. Na verdade, existiam 35 adolescentes, porém, 7 delas estavam na modalidade de internação sanção, o que
não compõe o universo da pesquisa.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
interpessoal e de um certo tipo de saber. É certo que o quadro organizacional de que se fala está a associado
a modelos de comportamentos interpessoais que nele se inspiram e se reproduzem. Enim, a representação
social do magistrado veicula um modelo de homem e de sociedade.
A partir daí, problematizam-se esses argumentos à luz da Criminologia Crítica e das diretrizes da
Sociedade de Controle. Enquanto a primeira demonstra que o Sistema de Justiça Criminal – ou, no caso,
o Sistema de Justiça Juvenil –, embora não declare funções de defesa social, é esse o valor que norteia as
avaliações judiciais2; o marco da Sociedade de Controle aduz que indivíduos identiicados como constantes
agentes de “riscos”, seja por serem inseridos em uma classe economicamente excluída, ou por possuírem um
padrão vida que não interessa aos mecanismos de produção da sociedade, são comumente alvos de interven-
ções das inúmeras instituições de controle do Estado.
Siga-se adiante.
Com o objetivo de compreender como se desenvolveu o atual paradigma do trato jurídico sobre a
infância e a juventude, não se pode deixar de expor brevíssimo aporte histórico3. Ao se olhar para o passado,
não se pretende explicar o presente como uma mera e inescapável evolução da humanidade; pelo contrário,
objetiva-se estabelecer diálogos entre as racionalidades de ontem e de hoje.
Nesse sentido, a dicotomia teórica da Doutrina da Proteção Integral com um ranço prático da Doutri-
na da Situação Irregular nos operadores do Direito pode ser explicada na realidade latino-americana.
Primeiramente, é preciso acabar com a ideia de que o “novo” suplanta totalmente o “antigo”. Ainal, a
história vai muito além de simples divisões binárias. Nessa linha, elucidativa a colocação de Patrice Schuch:
[...] ao colocarmos o ECA numa economia geral discursiva que vem conigu-
rando o domínio jurídico-estatal da infância e juventude, no Brasil, desde o
início do século XX, poderemos tentar problematizar as rupturas maniqueís-
tas entre o ‘ontem’ e o ‘hoje’, que contribuem para um obscurecimento das
relações de poder vivenciadas no presente (2005, p. 70).
Anteriormente, o controle incidente sobre a juventude era justiicado pela Doutrina da Situação Irre-
gular, fundamento do Código de Menores de 1979, que se estruturava em torno da categoria menor. Foi uma
tendência nascida da corrente ilosóica do positivismo, segundo a qual a situação de abandono criava uma
necessidade protetiva, ao considerar o menor objeto de compaixão e repressão ao mesmo tempo (TUARDES
DE GONZÁLEZ, 1996).
A teoria considerava que os menores sempre estariam em situação irregular e, por isso, mereceriam
a segregação, sem nenhuma preocupação com o seu desenvolvimento, incapacidades de socialização e po-
tencialidades. Na sua vigência, as garantias individuais eram desprezadas sob o falacioso argumento de que
incidiam apenas no processo de adultos, não tendo razão para sua incidência no campo do Direito do Menor.
Menores eram aqueles supostamente4 abandonados, excluídos, ao passo que os incluídos em famílias
e suas escolas eram crianças e adolescentes, a partir de um processo de construção estigmatizante. Assim, as
2 Até porque, além do sistema penal em sentido estrito, existem outros paralelos, compostos por agências de menor hierarquia,
destinado a operar com punição a menor, razão pela qual goza de maior discricionariedade e arbitrariedade. Porém, tal qual o
punitivo, admite técnicas (ilícitas) subterrâneas normalizadas em termos estatais, dado o im que promete cumprir (ZAFFARONI,
2003).
3 Nesse ponto, seguindo o alerta de Luciano Oliveira, não se pretende descrever a evolução histórica como um simples ritual e
demonstrar uma visão simplória das mudanças de concepção ao longo do tempo (2015, p. 163).
4 Supostamente porque o estado de abandono era decretado por juízes rotineiramente, apenas fazendo uma relação com a
carência de recursos materiais, independentemente de fatos infratores. Não é por outra razão que os textos clássicos da cultura
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Direito(s) em debate.
infrações dos incluídos eram resolvidas no âmbito da esfera privada, mesmo se constituísse um delito, posto
que a amplitude judicial e o poder direcional do juiz resolveriam de forma particular; mas, se fosse um ato
de menores, é porque estes estavam em situação irregular e demandavam a tutela do Estado para serem
corrigidos, educados.
O referido processo de internação, no Brasil do início do século XX, chegou inclusive a apresentar
um viés civilizatório, fazendo parte das preocupações de construção da nova República brasileira (SCHUCH,
2005, p. 57). Desta feita, por mais que fossem declarados os objetivos de salvar as crianças, de protegê-las do
perigo moral, havia esse viés de controle e de verdadeira salvaguarda mais eicaz da sociedade (MÉNDEZ,
2004, p. 31).
Diversas foram as críticas a esse modelo, mormente pela primazia da internação, pelo tratamento
indiferenciado de crianças abandonadas e crianças supostamente criminosas, bem como pela imposição de
padrões comportamentais aos “menores” com o propósito de proteger a sociedade de futuros delinquentes
– sendo esta última característica presente até hoje. Sobre a temática, precisas são as palavras de Edson
Passetti:
A Doutrina da Situação Irregular passou a ser abalada no contexto pós Segunda Guerra Mun-
dial, com a proclamação de direitos universais, acima de qualquer identidade, bem como com a constatação
de que a atitude paternalista dos Tribunais de Menores vilipendiava esses direitos, desrespeitando a legali-
dade em nome de uma suposta proteção. Assim, as crianças e adolescentes também passaram a ter os seus
direitos fundamentais enumerados. Daí surge a primeira característica do novo paradigma, a Doutrina da
Proteção Integral: as crianças e adolescentes não mais são objetos de compaixão e repressão, mas sim sujei-
tos de direitos. Além disso, outro grande marco do novo paradigma foi o término da confusão na gestão dos
abandonados e dos adolescentes transgressores (BARATTA, 1995, p. 5).
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi o responsável pela introdução da nova
doutrina no ordenamento, dividindo a infância e juventude entre aqueles que estão no exercício da cidada-
nia, as crianças e adolescentes sujeitos a medidas de proteção (abandonados), e os adolescentes sujeitos a
medidas socioeducativas (em virtude do cometimento de atos infracionais). No que tange a este último gru-
po, a ideia da Doutrina da Proteção Integral é a de introduzir uma pedagogia de responsabilidade e a assun-
ção de direitos por parte dos menores, de forma que o adolescente seja um ator social (RODRIGUES, 1999).
menorista referem-se ao juiz como um pai de família que, não podendo forçar o estado em suas políticas públicas, deve institucio-
nalizar a criança para protegê-la.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Todavia, todo o exposto é o que se vislumbra do ponto de vista normativo. A superação da Doutrina
da Situação irregular não é tão clara e simples assim, em virtude da existência de aparatos de poder e con-
trole mesmo que sob a égide da Proteção Integral. Como alertou Patrice Schuch, a troca de paradigma é um
processo complexo, em que estão em jogo vários fatores, dentre eles a permanência e/ou mudança de valores
(2005, p. 81). Daí que se utilizará o marco teórico da Criminologia Crítica, a im de desvelar o que está por
trás das funções declaradas do novo paradigma – mormente no que tange ao julgamento de adolescentes acu-
sados do cometimento de atos infracionais –, bem como da Teoria da Sociedade do Controle, para entender
o real objetivo da incidência das normas sobre determinados adolescentes, e não outros.
Sim, pois a juventude brasileira tem sido cada vez mais o maior alvo do sistema punitivo (formal e
informal), especialmente quando diante da atuação das polícias brasileiras.
O Anuário Brasileiro de 2014, apresentando dados de 2013, aponta um total de 809 casos de pessoas
mortas pelas Polícias militar e civil brasileiras, quando em serviço no ano de 2013. Isso signiica cinco pessoas
mortas pela Polícia por dia no Brasil (FBSP, 2014). Em 2015, esse número é 3.022, com aumento de 37%
(FBSP, 2015). Entretanto, o relatório da Anistia Internacional, analisando tão somente a realidade do estado
do Rio de Janeiro, discute a ausência de transparência e sistematização desses dados. Esse cenário é repetido
nos dados sobre as mortes violentas intencionais em todo o país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública
de 2014 aponta o crescimento da vitimação juvenil, chegando a representar, com os dados de 2012, 53,4%
dos homicídios ocorridos (FBSP, 2014).
Portanto, é possível perceber o extenso número de mortes com autorização social de uma população
quemuito além do descaso histórico em relação à precariedade das condições de vida e da indiferença social,
essas populações sofreram toda sorte de violência, em especial a física, perpetrada pelos muros da internação
e pela arbitrariedade policial materializada sob a forma de tortura e maus tratos que por vezes terminam em
morte (VARGAS, 2011, p. 30).
Por outro lado, o Poder Judiciário parece alheio a todo esse processo, não impondo resistências aos
arbítrios do controle repressivo da ordem pública, deixando evidente que o Estado ainda convive com a in-
capacidade do controle da violência ilegal, a manutenção de uma imensa desigualdade social e econômica,
além de baixíssima legitimidade das instituições representativas, envolvidas em processos de corrupção, ile-
galidades, violências etc.
O fato é que, levando em conta o alto índice de seletividade do sistema punitivo, os adolescentes
de classes sociais mais baixas, com histórico de desvantagens econômicas, são mais punidos do que os
adolescentes de classes mais avantajadas, de modo que o sistema protege aqueles que têm mais chance de
socialização e é injusto e viola a dignidade daqueles que têm menos chance (COUSO, 2006).
Esse quadro é esquizofrênico, pois as vítimas do sistema punitivo são os mais débeis e são exatamente
os que precisam do poder público para representá-los e atuar por eles, porém este poder público não tem tido
a capacidade de responder à questão – quem custodiará os custodiados? (MELOSSI, 1996) Não obstante a
crise, não se pode parar de exigir, como dever cívico de garantia da vida democrática, menos violência.
Assim, no que tange aos adolescentes, por mais que a divisão entre abandonados e jovens em conlito
com a lei tenha sido importante em termos de conferir um tratamento jurídico adequado para cada grupo, o
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Direito(s) em debate.
reinamento dessa dicotomia acabou por recrudescer o estigma de criminoso dos adolescentes selecionados
pelo sistema que cometem atos infracionais, sobre os quais recai todo um discurso punitivista. Por mais que
haja um discurso de “infância universal”, una, com direitos garantidos a todos, a prática evidencia a dico-
tomia entre crianças “em perigo” e “perigosas”, sendo que estas, em nome da “defesa da sociedade”, estão
tendo direitos suprimidos.
Para enfrentar os desaios dessa “via de mão dupla” da Proteção Integral, é preciso relembrar, como
aduz Baratta (1995, p. 10), que o trato dos adolescentes em conlito com a lei não deixa de ser uma espécie
de responsabilização penal, com diferença de grau e nas sanções aplicadas. Desta feita, todos os iltros para a
imposição do poder punitivo sobre os adultos também devem atuar na deinição das medidas socioeducativas
para os adolescentes, sob pena de violação das garantias penais e processuais penais. Com esse alerta sobre
a Proteção Integral em mente, é que se passará, mais adiante, à análise das sentenças objeto desse trabalho.
Nas 28 sentenças integrantes do corpus desta pesquisa, quando se trata de ato infracional que não
é grave ou não há indícios de autoria e materialidade, a principal fundamentação da imposição da medida
socioeducativa de internação assenta-se no que os magistrados deinem como deiciências, entendidas essas
as referentes à pessoa da adolescente e a sua história pessoal, fazendo uma retrospectiva da sua vida que,
mais a frente, vai justiicar (ou não) a medida socioeducativa.
Todas as vezes que estes elementos aparecem nas sentenças, são utilizados para justiicar a necessi-
dade da medida socioeducativa, sem qualquer discussão quanto à prática do ato infracional, como se ela fosse
responsabilizada pela sua conduta de vida, sua personalidade a até de seus familiares, como se verá adiante,
independentemente do que tenha praticado.
Conforme já indicado, das 28 sentenças, 9 delas (32%) apresentam como argumento para a imposi-
ção da internação a inalidade da medida socioeducativa – apontada de forma ambígua nas diversas senten-
ças –, sendo possível deinir dois grandes grupos sobre este item.
O primeiro grupo trata a medida de internação como retribuição do mal praticado, e assim o faz na-
quelas situações em que exclusivamente só foi analisada materialidade e autoria e o ato infracional é grave,
sem nenhuma consideração dos itens referentes à pessoa e à trajetória da adolescente. Neste grupo inserem-
-se as sentenças que veem na medida de internação um instrumento de neutralização da adolescente, para
proteger a sociedade e a própria adolescente.
O segundo grupo indica as medidas socioeducativas como instrumentos de supressão das deiciências
de socialização do adolescente, mencionando, inclusive, incapacidades educacionais da família, cabendo
ao poder público ensinar os pais como educar. Isso não exclui o fato de que, na grande maioria das vezes,
também menciona a retributividade da medida de internação.
No primeiro grupo, a consideração sobre a gravidade do ato infracional é que justiica a medida, tanto
que as sentenças tratam dos atos infracionais de homicídio (5), roubo (3), tráico (2) e lesão corporal (1) –
essa última foge à regra da gravidade, mas, considerando ter sido realizada com o irmão e com faca, esse dado
pode ter sido levado em consideração.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
traicantes” (SENTENÇA 13). Ou seja: no caso, proteger a adolescente justiicou a internação, quando não
há sentido em alguém ter a liberdade cerceada para a própria proteção. Mais uma vez, tem-se o discurso da
proteção como uma via de violação de direitos.
Estes trechos apresentam a seguinte visão da magistratura: “A adolescente tem tendência para a
prática de ato infracional, sendo imperativa a retirada da comunidade onde vive justiicando a aplicação da
medida socioeducativa de internação” (SENTENÇA 8).
Daí, os juízes passam a narrar a gravidade dos atos infracionais como as piores coisas da humanida-
de - o tráico ilícito é conduta grave, tem como vítima a sociedade, sendo dever do Estado, como medida de
proteção, afastar os menores da vivência da marginalidade (SENTENÇA 13).
No caso de um ato infracional relativo a roubo, praticado pelo namorado da adolescente, que, segun-
do as testemunhas, ela só chegara, procurando-o (porque estava grávida e intuíra que algo estava aconte-
cendo, narra a adolescente), quando o roubo já estava consumado, a opinião judicial é que “trata-se de ato
infracional de natureza grave, praticado mediante violência e grave ameaça contra a pessoa, sendo conduta
extremamente reprovável, reclamando, portanto, rígida intervenção estatal” (SENTENÇA 21).
Em relação à prática de homicídio em que a magistrada reconhece não ter sido a adolescente a dis-
parar a arma de fogo, e que coube a ela, somente, “atrair a vítima para emboscada”, tem-se que:
Após todo o exposto, observa-se o quanto o fato de o crime ser grave foi decisivo para a imposição da
medida socioeducativa de internação. Ou seja, a inalidade retributiva da medida acabou sobressaindo na
fundamentação das sentenças, seja esse argumento explicitamente verbalizado ou não. Todavia, dar ênfase
a um caráter retributivo não se coaduna com a ideia de Proteção Integral. Mesmo que o Estatuto não tenha
um dispositivo indicando as inalidades da medida socioeducativa – diferentemente do Código Penal, o qual
aponta as funções de reprovação e prevenção da pena (art. 59 do CP) –, é possível inferir, pelo escopo da
Proteção Integral, que o foco deve ser a integralização do adolescente à vida coletiva. Aliás, aqui se justiica a
próxima crítica, baseada na teoria da sociedade do controle.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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medidas de proteção), a aplicação das medidas socioeducativas também deve levar “em conta as necessida-
des pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
Ou seja, no que tange à medida socioeducativa de internação, deve ela – além de ser excepcional (conforme
o art. 121 do ECA) – se afastar de uma ideia retributiva, não indicada em nenhum momento pelo Estatuto.
Pelo contrário, se o foco é fortalecimento de vínculos, a meta é a integração social, e não punição.
Por mais que o ECA fale que é preciso analisar a gravidade da infração para imposição da medida (art.
121, §1º), outras questões devem ser sopesadas – como as circunstâncias e a capacidade de cumprir a me-
dida socioeducativa, indicadas no mesmo dispositivo –, sob pena de uma espécie de bis in idem: se o adulto
não pode ser submetido a regime de pena mais severo por conta da gravidade da infração, por si só (Súmula
718 do STF), porque o adolescente deveria o ser?
Portanto, impor internação porque o crime é grave, sem considerações sobre o que seria melhor para
a integralização da adolescente à vida coletiva, no caso concreto, ou sobre a sua “culpabilidade”5, não coadu-
na com a Proteção Integral – ou melhor, é prática que se opera sob o pretexto da referida doutrina. Prevalece,
assim, uma prevenção especial negativa, em seu caráter de neutralização da adolescente.
Na grande maioria, volta-se à moralização e à necessidade de controle, o que ica claro quando reite-
radamente se fala em iscalização: “a menor seja submetida a controle e iscalização do seu comportamento”
(SENTENÇA 22); “o que sinaliza a necessidade de conduta mais enérgica, para que surta efeito pedagógico
esperado, através do acompanhamento sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 6); “acompanhamento
sistemático para que seja demonstrado orientação no sentido de reconhecer as consequências dos seus atos,
necessitando de medidas mais enérgicas” (SENTENÇA 3).
O fato de haver menção às questões pessoais das adolescentes não exclui considerações sobre a gra-
vidade do ato, de forma semelhante como feito no item anterior, mas nesse caso, com sentença proferida por
magistrado de outra comarca:
E, em razão dessa gravidade, encerra a avaliação: “não nos é permitido deixar de aplicar a medida
socioeducativa, visto ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências da prática
infracional” (SENTENÇA 1).
5 É bem verdade que inexiste, no âmbito da análise do ato infracional, a culpabilidade, que em si representa o elemento na teoria
do delito responsável pela avaliação do autor do fato. Porém, é ela imprescindível para gerar a responsabilização socioeducativa de
adolescentes em conlito com a lei, devendo ser entendida como especial capacidade de culpabilidade, fundada no princípio da
autonomia ética da pessoa humana que não pode ser utilizada como meio para outro im, e tão somente im em si mesma Portanto,
a imposição da medida socioeducativa “depende não apenas do desvalor do resultado, mas, principalmente, do desvalor da ação ou
omissão do adolescente, ou seja, do comportamento consciente ou negligente” (CILLERO BRUÑOL, 2011, p. 20).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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Então, por ora cabe à medida “interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando
resgatar, mediante apoio técnico a sua potencialidade” (SENTENÇA 20) e, por ela, possa a adolescente “dar
direcionamento à sua vida” (SENTENÇA 4), na medida em que oferece “uma obrigatória escolarização e
proissionalização” (SENTENÇA 5), tornando-se portanto “cidadão útil” (SENTENÇA 18); por ora, cabe à
retribuição do mal praticado e até mesmo, por vezes, cabe a ela oferecer “terapias psicológicas” (SENTENÇA
16), quando a adolescente é diagnosticada por proissionais da saúde como portadora de transtornos mentais.
Todas essas situações justiicam a medida, mesmo quando ela não é cabível, pois não inserida nas
hipóteses do art. 121, ECA; como foi o caso de tráico, já tantas vezes mencionado, e o caso de um ato infra-
cional equiparado à ameaça que “por si só” não justiicaria a internação, “entretanto, diante” (SENTENÇA
10) do risco pessoal, das ameaças de traicantes e dos distúrbios de conduta agravados pelo uso de drogas, a
medida está justiicada.
Todas as confusões possíveis entre socioeducar, neutralizar, retribuir, são resumidas nesta passagem:
“ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências de sua prática infracional
[...] conduta mais enérgica para que surta o efeito pedagógico esperado através de acompanhamento mais
sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 11). Ou será melhor percebido neste trecho?! “Considerando a
capacidade da adolescente cumprir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração, assim como sua
personalidade e a possibilidade de entender o efeito pedagógico da medida e a ilicitude do ato pratico, tenho
por bem aplicá-la” (SENTENÇA 20).
Enim, o que realmente quer dizer este efeito pedagógico – castigo pelo mal que fez ou complemen-
tação das problemáticas relativas à socialização? Para uma ou outra coisa, há enorme arbitrariedade. Caso
a educação seja via retribuição, o efeito da media socioeducativa é penal, sendo que este é aplicado sem
qualquer discussão sobre a culpabilidade. Por outro lado, se a inalidade educacional da medida busca suprir
lacunas de sociabilidade, abre-se espaço para as práticas “menoristas”, com violações aos direitos fundamen-
tais dos adolescentes; mas parece que, neste caso, as ilegalidades seriam justiicadas em nome da proteção...
Essas contradições são repetidas, na medida em que a maioria das sentenças nega o caráter penal da
medida, porém indicam veementemente a necessidade de ser compreendido o desvalor da ação, em clara
perspectiva retribucionista.
A ideia de retribuição está presente nesta passagem: “para que possa pensar e sentir as consequên-
cias de sua prática infracional”. Mas também a indicação da necessidade pedagógica é evidenciada neste
outro trecho que se mistura com a retribuição: “implica além de compreensão do desvalor, uma obrigatória
escolarização/proissionalização” (SENTENÇA 5).
Este último caso é interessante porque não trabalha qualquer fundamento sobre a necessidade da
medida, como se homicídio fosse tão grave e suiciente por si só. Mas depois aplica a medida airmando que
a adolescente necessita de escolarização, sem fazer qualquer referência sobre a condição escolar dela – isto
é, sem nada saber sobre a realidade da mesma, pelo menos em termos da sentença.
É como se presumisse que a medida é necessária, ainal “A medida socioeducativa deve ser pautada
na ressocialização do adolescente, com a inalidade de reintegrá-lo ao convívio da comunidade para o seu
amadurecimento e desenvolvimento” (SENTENÇA 9).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
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Direito(s) em debate.
Isso signiica que, quando da análise de qual medida socioeducativa deve ser aplicada, é preciso ter
em mente que é impossível ressocializar uma pessoa apartando-a da sociedade, conforme é denunciado pela
Criminologia Crítica há tempos. Com efeito, denuncia-se inclusive a potencialidade criminógena do encarce-
ramento, com “efeitos dessocializantes devastadores” (RODRIGUES, 1999, p. 290). Consequentemente, a
ideia de ressocialização deve promover a redução da gravidade da medida aplicada (constituindo, pois, limite
à medida), de forma que a internação, de fato, constitua exceção.
Caso se busque uma verdadeira socialização, o que deve haver é desencarceramento, e não a prática
de fundamentar o encarceramento sob pretextos educacionais. Essa “educação”, em verdade, ao invés de
promover o aprendizado para a vida na sociedade, com respeito às individualidades, apresenta-se como dire-
cionamento de comportamentos, em que a tônica é o controle social (COUSO, 2006).
A evidência está nas sentenças que, sob o argumento de que as adolescentes precisam das inalidades
da internação em suas vidas, a im de que haja a Proteção Integral, descumprem o devido processo legal e
ignoram a condição de sujeitos de direito, em claro desrespeito às diretrizes constitucionais.
Na verdade, a construção metódica que concede racionalidade ao ato judicial, revestido do método
silogístico da dogmática, encobre que a imposição de medida socioeducativa tem por base questões relativas
à socialização da adolescente. Se a inalidade da medida é castigo, tem-se o efeito penal e, se é penal, está
sendo aplicada medida sem nenhuma observância da culpabilidade da adolescente; por outro lado, se o efei-
to pedagógico é para complementar as deiciências, está-se diante de um direito de menores, com violações
à legalidade, ao devido processo legal e à presunção de inocência, ao se impor um verdadeiro direito penal
do autor. Nesta prática, não se tem educação, mas apenas controle social. Esses argumentos serão melhor
tratados adiante.
Assim, os magistrados ignoram a realidade, bem como violam a Proteção Integral, ao utilizarem-se do
projeto preventivo-especial das medidas de internação se limitando à simples constatação de autoria e mate-
rialidade, para, ao cabo, determinar a internação. Não obstante o art. 122 do ECA indicar como requisito da
internação ato cometido com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de infrações graves, isso não
quer dizer que, obrigatoriamente, adolescentes os quais se encaixem nessas hipóteses devam ser internados,
até por conta da excepcionalidade da medida.
Quanto aos atos infracionais mais leves, o ideal de ressocialização, ao invés de impedir que a adoles-
cente tenha sua liberdade privada, acaba exercendo um papel inverso, justiicando a internação como possi-
bilidade salvadora de educação da jovem. Todavia, conforme exposto ao longo deste trabalho, é preciso reletir
sobre que educação para sociabilidade é essa, cuja execução se dá em ambiente de privação de liberdade, em
um inegável paradoxo. Embora a ressocialização devesse buscar manter vínculos familiares e comunitários,
o que acaba por emergir é uma espécie de direito penal juvenil do autor. Desta forma se acredita que o ar-
gumento ressocializador deva ser usado para a redução da intensidade da intervenção estatal na vida dos
adolescentes em conlito com a lei.
Nesse contexto, evidencia-se como o ideal de Proteção Integral, por mais que tenha efetuado uma
ruptura histórica com o paradigma da “menoridade”, presta-se a possibilitar supressão de direitos, sob o véu
de que tudo está sendo feito em favor dos adolescentes. Diante de uma estrutura normativa tão luida, mais
do que nunca os juristas devem estar atentos e repensar quais são suas representações sobre as inalidades da
medida socioeducativa, a im de que a prática não se aparte das diretrizes constitucionais, e os adolescentes,
“sujeitos de direitos”, não tenham suas garantias penais e processuais penais olvidadas.
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Direito(s) em debate.
Nesse sentido, mesmo que a Doutrina da Proteção Integral represente, normativamente, um avanço
na tutela dos direitos humanos, no Brasil, a categoria menor é reatulizada, sob a perspectiva do controle.
Não obstante a mudança, para Liana de Paula (2015), a pobreza6 é uma categoria catalizadora do
tratamento do adolescente em conlito com a lei, que, em si, tornou-se um campo de discursos e práticas,
organizado em torno da criminalidade urbana. De fato, é isso que os dados apontam.
Por mais que haja uma legislação avançada, como é indicado por vários autores os quais se debruçam
sobre a matéria, a ampla discricionariedade permitida pelas normas, bem como a mentalidade jurídica no
Brasil – que permanece penalizadora e cada vez mais contrária ao ECA (PASSETI, 2010, p. 371) –, acabam
fazendo com que haja a permanência de estruturas de controle sobre os adolescentes em conlito com a lei.
Imprescindível, pois, o cuidado no trato com a Doutrina da Proteção Integral, que pode se prestar a esconder
violações de direitos fundamentais sob a retórica de proteção desses mesmos direitos.
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6 Como salienta Michel Misse (2011), pobreza e criminalidade são variáveis, tidas, pelas ciências sociais, como causas a partir
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