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CULTIVO DE AUSENTES, CULTURA SOBRE OS MORTOS

XAVIER FERREIRA, Hércules da Silva


Doutorando em Memória Social – UNIRIO
Bolsista CAPES
hxferreira@yahoo.com.br

FARIAS, Francisco Ramos de


Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Bolsista de Produtividade de Pesquisa PQ 2 - CNPQ
frfarias@uol.com.br

RESUMO
Transitar pelas ruas do Rio de Janeiro pode ensejar a percepção de sensíveis signos que
remetem à tragédias particulares devido às ocorrências fatídicas que os antecedem. Estes
signos, que figuram como marcos memoriais, buscam ressignificar o espaço passado pela
morte, com intervenções artísticas das mais diversas, como grafites, esculturas, frases ou
placas. Recolhendo tais marcos, foi criado um mapa para melhor guardar os registros e
observar-lhes os possíveis padrões emergentes. Para compreensão do fenômeno que
relaciona a particular ocorrência que culmina em óbito, com a ressignificação do espaço
intervencionado, utiliza-se os estudos de comunicologia, de Vilém Flusser, bem como
conceitos encontrados em Walter Benjamin e dos apontamentos do historiador Fernando
Catroga. Pela sensibilidade do tema e os cuidados que o envolve, leituras de Susan Sontag
também são referendadas, buscando o claro entendimento dessa prática cultural
tanatológica.

Palavras-chave: Signos mortuários. Prática Cultura Tanatológica. Trauma Social.

ABSTRACT
Walking through the streets of Rio de Janeiro may teach the perception of sensitive signs
that reminds about particular tragedies due to the fateful or fatal events that have preceded.
These signs, which appear as spontaneous memorials, seek to resignify the space of death,
with diverse artistic interventions, such as graffiti, sculptures, phrases or plates.
Collecting these interventions, a map was created to keep and to records and observe the
possible emerging patterns. To understand the phenomenon that relates to a particular
occurrence that culminates in death, as a resignification of the intervened space, the
communicological studies of Vilém Flusser are used, as well as concepts found in Walter
Benjamin and appointments of historian Fernando Catroga. Due the sensitivity of the
topic and the care it involves, readings of Susan Sontag are also referenced, seeking a
clear understanding of this thanatological cultural practice.

Key-words: Mortuary symbols. Thanatological Cultural Practice. Social Trauma.

1
INTRODUÇÃO

Espalhados pelas ruas da cidade, espaço público e urbano da zona sul do Rio de
Janeiro, bem como de outras localidades e cidades do Brasil e do mundo, encontram-se
marcos memoriais nos mais diversos suportes, como grafites ou placas. Seu estudo
anamnético – de tais marcos -, conduz ao conhecimento, pelas notícias de jornais, de
particulares ocorrências traumáticas, expressão esta de acordo com o seguinte
entendimento,

adopto la noción de trauma social para designar los procesos y los


recursos socio-culturales por medio de los cuales las comunidades
encaran la construcción, elaboración y respuesta a las experiencias de
graves fracturas sociales que se perciben como moralmente injustas y
que se elaboran en términos colectivos y no individuales. Estos
acontecimientos presentan dinámicas que rebasan los criterios de
previsión de la comunidad e incluso interrogan no sólo la viabilidad de
la comunidad sino la vida misma (ORTEGA MARTINEZ, 2011, p. 30)

É que estes marcos, como recurso material de elaboração do luto por parte dos
amigos e familiares dos que faleceram, como reação e resposta material a abrupta morte,
assumem a forma de cruzeiros, ou demais intervenções artísticas, que objetivam chamar
a atenção dos transeuntes de alguma maneira e pelos motivos os mais diversos. Tais
intervenções podem ser, inclusive, placas de logradouro contendo alguma referência
intrínseca ao bárbaro fato ocorrido. Embora nem todas as intervenções memoriais
persistam na configuração urbana, seja por conta das intempéries do tempo, seja devido
aos interesses escusos ou contrários (eventual conflito de interesses), inclusive por parte
do poder público constituído, muitas são as que resistem e são mantidas ao longo dos
anos, em uma espécie de rito público de base fúnebre.
Estas intervenções artísticas são manifestações de um específico tipo de
sofrimento – da repentina morte de alguém -, desenvolvidos também por coletivos/grupos
sociais que de alguma maneira possuíam algum tipo de laço afetivo com a pessoa morta
ou que por ela tenha se apiedado. As artes inseridas no contexto urbano ressignificam o
espaço da ocorrência fatídica, com representações imagéticas ou referenciais da íntima
ausência sentida.
Na esteira da compreensão desse fenômeno cultural de fundo tanatológico, e como
gesto anamnético de sensibilização (dos leitores), para essa tal prática de ressignificar a

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morte com as mencionadas intervenções, utiliza-se o método comunicológico de Vilém
FLUSSER (2014), que tem por base uma hermenêutica/interpretação, dos fatos
observados e por seu viés informativo (dentro de um circuito discursivo e cronológico ou
hierárquico), imputado, devido à metáfora computacional de entrada e saída de dados, e
sua posterior deputação/depuração. Esclarece-se também que não se trata de um exercício
de etnografia urbana, por ser outra a perspectiva aqui trabalhada: o do conhecimento
filosófico como apoio à disciplina Memória Social. Indica-se também, no presente
trabalho, os mapas criados com a ferramenta Google Maps, contendo os registros
memoriais referentes para melhor entendimento e suas correlações implícitas, bem como
a observações dos padrões emergentes.

1. EPÍGRAFES URBANAS

Na tipologia textual, epígrafe é toda e qualquer escrita, à guisa de citação, que


antecede o texto a ser desenvolvido, tecendo com este alguma relação temática ou de
inspiração. Seu significado etimológico, consoante o professor José D’ENCARNAÇÃO,
"é a escrita («grafia») sobre («epi») determinado suporte" (D’ENCARNAÇÃO, p. 17,
2010). É que em sua origem, a epígrafe adveio da ação de registrar determinados eventos,
em curta informação, pelo ato de cinzelar palavras em blocos ou colunas de pedra, que os
povos romanos e gregos do período antigo faziam. Importa enfatizar que,
primordialmente, se trata de uma tecnologia mnemônica que objetiva manter perpétua a
lembrança de um evento, possuindo ainda a característica de serem públicas e destinadas
a serem vistas pelos passantes. Trata-se de uma escrita para a posteridade, na manutenção
da fama e poder de certas classes sociais do período mencionado.
Exemplos atuais e práticos de epígrafes são as institucionais/oficiais, feitas em
placas de bronze e localizadas em repartições diversas, ou ainda os pedestais de diversas
estátuas e esculturas, contendo breve explicação referente. Tanto o bronze, como a pedra,
compõe o senso comum de eternidade ou de grande durabilidade, de não apagamento -
ou modificação do conteúdo registrado que se quer comunicar -, pelas intempéries do
tempo e sua passagem.
Para os mortos o registro epigráfico constitui-se como “epitáfio”, imbricando em
um só tempo a técnica de reter na pedra uma informação, como dando-lhe uma certa

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literariedade. E ao se configurar em uma escrita dos mortos, promove com as memórias
destes uma função social, e agregadora, de manter seu nome circulando, seja como
possível exemplo do que foi em vida, seja para reforçar algum status de família ao qual
pertence. Nesse ponto, conforme o professor d’Encarnação (2010, p. 36) explicita em seu
texto, qual seria a mensagem ou discurso a se passar, "a perpetuação da memória do
defunto" ou "o público reconhecimento de que alguém lhe prestou homenagem”?
Partindo dessa compreensão, o presente trabalho busca também, como primeira
observação, implicar essa prática gráfica com o que pode ser sua atualização, isto é: o
perene do bronze sendo substituído pelo efêmero das tintas, bem como a utilização de
outros materiais ou mesmo outros atos performativos que objetivem a perpetuidade de
um fato. Afinal trata-se de ressignificar o abrupto da morte, entendida esta como vida
inconclusa, pelas intervenções posteriores; as ocorrências no espaço público que
culminaram em óbito são ressignificadas pelos marcos memoriais na intenção de facilitar
o luto e servir como que uma proposta geradora de novos sentidos: a morte não foi em
vão.

1.1. Mapeamento dos registros fúnebres no espaço urbano

A partir da ação deambulatória por diversas ruas da zona sul cidade do Rio de
Janeiro, em atitude recolhedora, foram fotografados objetos visuais que se tornaram
pontos no mapa chamado ‘rupturas’: https://tinyurl.com/rupturas. O termo ‘recolher’ é
polissêmico, indicando não apenas uma certa postura ensimesmada, mas também como
que o ato de pegar, capturar, colher etc. Nesse ponto, Walter Benjamin assinala que:

A distração e o recolhimento representam um contraste que pode ser


assim formulado: quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha
dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês,
segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo
contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de
suas vagas, absorve-a em seu fluxo. O exemplo mais evidente é a
arquitetura (BENJAMIN, 1987, p. 193)

Com base nesses apontamentos benjaminianos, os sinais gráficos mapeados que


povoam a cidade serviram – e servem -, como foco para essa postura de mergulhar e se
dissolver (BENJAMIN, 1987). E uma vez feito isso e na curiosidade daí ensejada,
detectou-se que eram saudades materializadas, espécie de estelas dos tempos atuais, com
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ilustrações voltadas para o luto devido à ausência sentida. Dada a grande quantidade de
tais pinturas, como grafites e frases, bem como os demais tipos de intervenções urbanas
com a mesma temática fúnebre, um padrão pôde ser observado, o que permite constatar
uma prática recorrente, que se assemelha à mencionada prática epigráfica, mas que
doravante, aqui, será chamada de prática cultural tanatológica, devido ao argumento
apresentado adiante:

(...) mesmo à escala familiar da “visita ao cemitério”, é possível


surpreender as características que, numa evidente transferência
analógica, as comemorações políticas de raiz tanatológica explicitarão
de uma maneira ainda mais evidente. A comemoração é herdeira, não
só da solenidade da cerimónia pública de elogio e de menção de um
nome, como implica a sacralização do evocado, desenrolando-se, em
similitude com a sua matriz — o acto religioso do culto dos mortos —,
num rito eficaz para a memória e, principalmente, para o destino dos
vivos (CATROGA, 2010, p. 173)

É que os registros postos no mapa, os objetos visuais recolhidos, são de pessoas


de vida não pública, que diferem dos entes políticos ou das ditas celebridades midiáticas.
Mas ainda assim, tais pessoas (sem fama, prestígio ou de vida pública), ganharam uma
póstuma homenagem, em espaço público, através de cerimônia familiar/fraternal, em
espécie de mimesis (cópia) ou de “transferência analógica” conforme a citação acima do
historiador lusitano Fernando Catroga. Além disso, o termo “tanatologia”, no contexto
apresentado, refere-se aos estudos encampados sobre os mortos e também sobre a morte
e o ato de morrer.

1.2. Retratos de ausências

Retratos são registros visuais que tanto podem ser pinturas ou fotografias, com a
regra de que haja apenas uma pessoa retratada. Aqui é possível um pequeno jogo com a
palavra, enquanto proposta metafórica: retratos são retraços. O trato de uma vida passada
é posto como retorno discursivo em uma representação visual. Retratos de vida são,
contextualmente, os traços de morte. Esse é um dos entendimentos implícitos nesta
pesquisa.
A pesquisa que ora se apresenta teve seu início a partir do último trimestre de
dezembro de 2016, tomando ciência e registrando inicialmente o grafite do jovem Gabriel

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Marighetti. Como tal grafite contém a palavra ‘saudade’, mais o conjunto de duas datas,
fez-se uma inicial busca no google.com pelo nome do jovem. Foram encontradas notícias,
cujo ano de 2005 coincide com uma das datas contidas no grafite, permitindo assim a
afirmativa de que ele já havia partido desta para melhor, bem como as causas de sua morte:
por tiro disparado à queima roupa, feito por um outro jovem que furtara o discman1 de
seu irmão.

Figura 1 – Gabriel Marighetti

Fonte: (XAVIER FERREIRA, 2017).

Uma vez municiado de tal estrutura informacional, e de acordo com os estudos do


filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, viu-se que havia uma estrutura comunicológica,
um circuito informacional, pois,

Comunicologia é a teoria da comunicação humana, aquele processo


graças ao qual informações adquiridas são armazenadas, processadas e
transmitidas. A cultura é aquele dispositivo graças ao qual as
informações adquiridas são armazenadas para que possam ser
acessadas. (...) A crítica é o ato graças ao qual um fenômeno é rompido
para que se veja o que está por trás dele (FLUSSER, 2014, p. 45)

É que há informações grifadas, grafitadas, grafadas em murais e demais tipos de


suportes, relacionando o grafite e seu conteúdo de datas, mais as palavras-chave típicas
de um cenário de pesar, contendo ainda o nome escrito e o retrato (ou re-traço), feitos
para o serviço memorial por conta da ocorrência funesta. Partindo em busca de outros
objetos visuais, que de igual modo se adequem a este circuito discursivo, é que se intenta

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Antigo aparelho portátil de tocar CDs de música.
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as análises possíveis: uma cultura tanatológica, em contexto urbano, como registro da
memória dos mortos.
Não se furte, quem transitar pelas ruas do Rio de Janeiro, às visualidades contidas
em mídias vernaculares, populares, que são os muros, postes, orelhões e demais aparatos
que vão compor o ambiente citadino com o envolvimento de calçadas para os pedestres e
ruas para os carros. Mesmo em lugares insuspeitos é possível inserir algum tipo de obra
ou ação que desperte, no mínimo, uma curiosidade. E como são tempos da popularização
das câmeras digitais nos aparelhos telefônicos móveis, o cotidiano pode revelar-se com
pequenas surpresas, segredos, que provoquem outras ações que não o objetivo ato de
caminhar em direção a algum lugar.
A primeira surpresa adveio ao constatar que, na esquina próxima à maternidade
escola da UFRJ – e à frente do grafite de Gabriel Marighetti -, encontra-se a escultura em
tamanho natural da jovem assassinada a tiro de fuzil, Ana Carolina da Costa Lino. Após
este (e mais outros registros), no ano de 2017 ocorreu novo assassinato próximo às duas
intervenções urbanas já citadas. Dessa vez a vítima foi o jovem Miguel Ayoub (figura 3),
morto com um projétil de grosso calibre. Fica a sugestão, pedido de sensibilidade
anamnética, para que realizem a pesquisa em algum site de buscas. Em todo caso as
notícias encontram-se nas referências bibliográficas ao final do texto.
Em comum entre as ausências representadas estão as idades, que estavam na faixa
dos 19 aos 21 anos. Mais ainda, o espaço, púbico, da fúnebre ocorrência, com todos os
três tendo sofrido atos de extrema violência. Enquanto o abrupto nefasto os iguala, uma
das representações os distingue, pois enquanto os dois jovens foram retratados em grafite
encomendado por amigos e familiares ao artista Acme, nos anos de 2005 e 2017
respectivamente, a jovem Ana Carolina (figura 2), morta em 1999, recebeu apoio
institucional da vereadora Leila do Flamengo à época, renomeando oficialmente a
localização para ‘espaço pela paz’.

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Figura 2 – Ana Carolina da Costa Lino

Fonte: (XAVIER FERREIRA, 2017).

Figura 3 – Miguel Ayoub

Fonte: (XAVIER FERREIRA, 2017).

Observando o entorno de todas as ausências, na sensação de vidas inconclusas,


posto que interrompidas, é possível pensar os detalhes que as compõe e mantém, como
exemplo, as marcas de velas e flores depositadas para Miguel Ayoub, o desgaste da ação
natural do tempo para a pintura sobre Gabriel Marighetti, e também o cuidado com as
flores, de certo modo exclusivas, no que outrora era uma fonte, para a Ana Carolina.
Ainda que o tema tratado por SONTAG, em seu sensível livro Diante da Dor dos Outros,
não permita uma relação direta com o tema aqui recorrente, as análises que a autora
depreende motiva a pensar justamente os horrores da violência no contexto urbano e suas
ressignificações de luto pelas intervenções empreendidas pelos entes queridos, pois,

De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela


vida moderna de ver — à distância, por meio da fotografia — a dor de
outras pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas.
Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a
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atordoada consciência, continuamente reabastecida por informações
fotográficas, de que coisas terríveis acontecem (SONTAG, 2003, p. 16)

Coisas terríveis aconteceram nessa violenta ambiência carioca, do bairro das


Laranjeiras, que se algum dia sorriu de satisfeito com a cantora Cássia Eller, sua ilustre e
falecida moradora, hoje contém marcas, escaras de antigas feridas, que demandam
conhecimento e respeitosas sensibilidades, para que todo seu entorno não se cubra de
abruptos e trágicos.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A distinta pesquisa, até aqui sendo exposta, é realizada a partir do mapeamento de


marcos memoriais inseridos no contexto urbano como fruto de acontecimentos
traumáticos. Seus registros são observados pela ida em campo ou no monitoramento de
notícias em jornais ou redes sociais, como o instagram ou facebook, sendo possível
também o acolhimento da colaboração de alguém que conheça o trabalho. O mapa, que
contém as intervenções artístico-urbanas e as notícias que narram as ocorrências fúnebres,
necessita, em conjunto, de uma reflexão e embasamento teórico que melhor o fundamente
e o assegure.
Para tanto, tem-se por núcleo forte e fundamento os estudos dos seguintes três
autores: Vilém Flusser (2014) com sua “comunicologia” como método de apreensão
descritiva da realidade, contido em livro homônimo; Walter Benjamin (1987) com os
conceitos de “recolhimento” e “distração” encontrados na primeira versão de seu artigo
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica; e Fernando Catroga (2010) com
os apontamentos e conclusões alcançadas em seu texto O culto dos mortos como uma
poética da ausência. Esses autores municiam a distinta base teórica, a qual busca não
apenas a descrição do fato em si, cultural, que dá ensejo a uma prática de ressignificação
da morte e do processo de luto, mas também o bom conhecimento do fenômeno registrado
no mapa, como também sua posterior divulgação para o gesto de sensibilizar os
transeuntes quando diante de tais intervenções, na tentativa, ainda, de pensar os impactos
que tal prática possa ter, consequentemente, na ambiência urbana ou como uma extra
camada de entendimento por sobre a dita paisagem, culminando assim com a
percepção/estética, própria de lugares cemiteriais ou de igual semântica lúgubre, que

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enseja a postura Diante da dor dos outros, consoante o livro de Susan Sontag (2003), e
suas sensíveis análises sobre as fotografias de guerra.

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

Por se tratar de uma atividade que resulta muita das vezes de um acaso durante a
deambulação, ou flaneur, e do monitoramento de notícias específicas, até o momento
atual foram registrados no já citado mapa ‘rupturas’, mais de 30 ocorrências fatais com
as respectivas ressignificações.
À medida que o mapa é divulgado e se torna conhecido, mais registros são feitos
graças às contribuições de terceiros, oriundos não apenas da própria academia, permitindo
a contribuição desse público externo uma contribuição para a referida pesquisa, por meio
de redes sociais como o instagram ou o facebook, dando melhor concretude à ciência
aberta.
No mapa é possível observar, como suporte e/ou mídia das homenagens e
memento, os grafites, as placas em bronze ou aço, cartazes, pichações e demais
possibilidades para isso que bem pode ser compreendido como gesto de memória,
havendo a necessária distinção, cronológica ou hierárquica, de que é possível uma
distinção entre o gesto político e o gesto de memória. Como exemplo, o túnel acústico
Rafael Mascarenhas, na Gávea, nomeado após a ocorrência de seu atropelamento. Não se
comparam mortes e sofrimentos – e nem há intenção por parte da pesquisa e do
pesquisador -, mas por que algumas mortes recebem efetivo apoio do poder público no
que diz respeito às homenagens?
Por desdobramento consequente aos resultados obtidos com o primeiro mapa, um
outro foi feito: o das homenagens e memoriais feitos para a vereadora Marielle Franco e
o motorista Anderson Gomes. Neste ponto cabe a observação de fundo estético/perceptivo,
ao traçar as devidas análises e correlações memoriais tratadas: o cruel assassinato de duas
pessoas, uma delas vereadora, em uma mesma ação covarde e noturna, que assumiu
proporções midiáticas mundiais, sendo que Marielle tinha importante atuação como
ativista pela luta e defesa dos direitos humanos. Por ter esse caráter de vida pública,
defensora de grupos minoritários, em conjunção com o fato da estratégia empreendida
para sua execução, que fora planejada em pormenores, e considerando a rua em que a
situação cruel aconteceu, qual o impeditivo da troca de seu nome/logradouro?
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Devido à grande comoção em redes midiáticas espalhadas pelo Brasil e o mundo,
somaram-se outros movimentos de reinvindicação por justiça. Entretanto - até a presente
data que já passa dos mil dias do acontecimento -, prisões foram efetuadas, mas o
mandante e os motivos do crime seguem em aberto. Como apoio e resistência ao
assassinato de uma mulher negra e eleita vereadora, e um trabalhador, os desdobramentos
artísticos e performativos como grafites, pipas, vasos de planta, ilustrações, poemas,
dentre diversos outros itens, assim como a placa simbólica com o nome da vereadora, que
foi destruída à época por um dado candidato a deputado2.
As diversas homenagens feitas pelo Rio de Janeiro, demais cidades do Brasil afora,
América Latina, e diversos países europeus, podem ser acessadas no endereço eletrônico
https://tinyurl.com/y5ouede4 , em um mapa cujo nome é MARIELLE – HOMENAGENS.
De igual modo ele é de acesso aberto e conta com o apoio constante das indicações do
lugar, data e artista responsável, sempre que possível.
Escreve-se ainda que todas as obscuridades em torno do acontecimento criminoso
se conjugam para configurar a situação no âmbito de um trauma social, conforme formula
Ortega Martinez (2011) em seu texto El Trauma Social como Campo de Estudios, já
utilizado, ou seja: as omissões, tentativas de distorção dos fatos, culpabilização da vítima,
destruição de vestígios e indícios relacionados à justiça, são emblemáticas para a
afirmação, cada vez maior, de uma experiência que dificilmente será elaborada para
determinados segmentos da população da cidade do Rio de Janeiro, e por extensão, de
outras regiões do Brasil.

3.1. Outras Correlações e tipologias

Consistindo em observações de campo registradas em um mapa, que tratam sobre


mortes em contexto abrupto para os familiares vitimados, tem-se a sensibilidade de não
promover os registros mapeados como algo exótico, nem tampouco de romanceá-los ou
traçar-lhes demais juízos de valores. Conforme já escrito, não se pode comparar os
diferentes sofrimentos, como se entre eles estivessem uma gradação para o mais ou o

2
CAPELLI, Paulo. Deputado que quebrou placa com nome de Marielle emoldurou fragmento e botou na
parede. Extra. (Site). Publicado em: 14 fev. 19. Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/rio/deputado-que-quebrou-placa-com-nome-de-marielle-
emolduroufragmento-botou-na-parede-23453055.html. Acesso em: 10 dez. 2020.
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melhor.
Ainda que as ocorrências trágicas pesquisadas, como os acidentes ou atos de
violência, possuam diversas variações factuais, o derradeiro ponto biográfico é assinalado
no documento de óbito das vítimas, transferindo, então, sua narrativa pessoal para os
vitimados que vivos permanecem, os quais imbuídos por algo como que um sentimento
de piedade, realizam o póstero gesto afetivo da póstuma homenagem pública.
Porém, dado o emergir de determinados padrões, certas perguntas surgem e não
há como lhes dar, senão a consequente resposta, ao menos uma breve análise. Como
exemplo, traz-se o fato ocorrido em abril de 2018, cuja fotografia ilustra a notícia, adiante:

Figura 4 – Voluntários limpam prédio de Carmem Lúcia

Fonte: (LINHARES, 2018).

A foto acima deve-se a um fato noticiado pela imprensa à época: membros do


grupo MST e do Levante Popular da Juventude lançaram balões de tinta vermelha no
prédio que a, então presidente do STF, ministra Carmen Lúcia reside quando se encontra
na cidade de Belo Horizonte. Por conta disso, apoiadores dos partidos Novo e do grupo
MBL, decidiram pela limpeza (a)efetiva e simbólica do lugar, empregando além de água
e sabão, flores, cartazes, balões e outros atos performativos.
Não se quer, com o complemento argumentativo acima, escrever sobre as
intenções do fotógrafo e do jornal ao dar a notícia. Mas é que a disposição dos itens e sua
semântica, propiciada pela limpeza do prédio da ministra, é em tudo similar às
encontradas nas ocorrências fúnebres, conforme pode ser comparada até com a foto
adiante:

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Figura 5 – Memorial Marielle e Anderson

Fonte: (XAVIER FERREIRA, 2018).

A mesma estrutura reativa encontra-se para ambas as situações, com a devida


exceção do objeto ‘vela’. Neste ponto, que motiva as pessoas a se reunirem e montarem
memoriais - inclusive para as situações de ‘não-morte’ -, chegou-se a seguinte
conceituação pelo viés filosófico-comunicológico: o crime como cisão a uma ideia de
normalidade referenciada pela memória em seu contínuo ato de lembrar. Essa cisão, ou
ruptura, quebra uma cadeia de expectativas para com os vivos. E no caso, para os demais
bens materiais. Todo ato criminoso é, antes de tudo, um rasgo no contínuo da memória.
O processo de feitura do mapa registrou outras variedades de memorialização das
ausências, principalmente como homenagem à vereadora carioca, a saber, pipas, capa de
caderno, tatuagens, guarda-chuva, bordado, boneca de crochê, lenço de pescoço,
carimbos, nome de dicionário, bloco de carnaval, bandeiras etc, inclusive quanto as
formas rituais e públicas de evocar a ausência sentida, como no evento Amanhecer por
Marielle, que consistiu, consiste ainda, de acender uma vela em determinado horário e
lugar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por conta da pesquisa que permanece em constante aprofundamento, juntamente


com os mapas outras formas de acepção do espaço urbano foram alcançadas.
Principalmente pela percepção da presença de elementos visuais como signos fúnebres, e
das subjetividades empreendidas ao dar-se o trânsito por eles. Esses apontamentos
permanecem colaborando, por exemplo, para a ampliação dos conceitos de “ambiência”,

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“paisagem”, como também para uma melhor noção sobre a prática cultural tanatológica,
que, como já esclarecida, consiste em ressignificar o evento traumático no espaço mesmo
de sua ocorrência ou em algum lugar afetivo para a pessoa falecida.
Com a pesquisa desenvolvida até aqui é possível arriscar a conclusão de que as
pessoas que habitam uma cidade/espaço urbano, costumam se portar com total
indiferença, quando diante dos públicos monumentos espontâneos fúnebres, ou de
quaisquer outros signos da morte enquanto marco memorial. Talvez pelo
desconhecimento dessas práticas ou algum outro processo inerente que culmine com a
postura da indiferença. Ou ainda por um certo tabu em relação à Morte, “a Indesejada das
gentes”, conforme o poema de Manuel Bandeira, cuja performance de não falar para não
atraí-la/tê-la por perto, como que pusesse um véu ou gerasse a postura da indiferença.
Estes marcos e intervenções, como gestos de memória em seu silencioso apelo aos
passantes, e espalhados como escaras pelo corpo da cidade, figuram como um lamento
fúnebre. Demandar-lhes a devida sensibilidade anamnética é compreender não apenas o
luto que os envolve, mas também o sentido inerente das ocorrências fatídicas, devido as
violências envolvidas; o sentido político. Nesse ponto em diante, a memória atua em outro
campo, pois o que era o silencioso lamento pretérito, torna-se um presente clamor por
justiça, para a efetiva mudança futura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras
escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAPELLI, Paulo. Deputado que quebrou placa com nome de Marielle emoldurou
fragmento e botou na parede. In: Extra. 14 fev. 2019. Disponível em
https://extra.globo.com/noticias/rio/deputado-que-quebrou-placa-com-nome-de-
marielle-emolduroufragmento-botou-na-parede-23453055.html. Acesso em: 10 dez.
2020.

CATROGA, Fernando. O culto dos mortos como uma poética da ausência. Artcultura, v.
12, n. 20, 13 dez. 2010.

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14
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum.
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LINHARES, Carolina. Com bandeiras do Brasil, manifestantes levam flores e limpam


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