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O silêncio de Deus

José Carlos Mendes Brandão

O silêncio de Deus
poemas

Edição do autor
2009 – José Carlos Mendes Brandão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Câmara Brasileira do Livro – SP – Brasil

B869.1 Brandão, José Carlos Mendes.


O Silêncio de Deus – José Carlos Mendes Brandão –
Bauru – SP.
Ed. do Autor – 2009.

ISBN 978-85-909921-0-3

1. Poesia brasileira I. Título. CDD 869.1


Índice

Imanência e transcendência na poesia


do mestre Brandão, de Luiz Vitor Martinello – 11

A árvore e a cruz – 17
A carroça do caos – 18
A companheira de viagem – 19
A cor das palavras – 20
Prelúdio – 21
A forma do eterno – 22
A iluminação no espelho da tarde – 23
A menina cega – 24
A morte do artista – 25
A música do silêncio - 26
A noite dos violinos – 27
A paisagem do eterno – 28
A respiração de Deus – 29
A rosa – 30
A rosa eterna – 31
A serpente e o menino – 32
A tarde única – 33
A túnica de Deus – 34
A velha da maçã – 35
A velhice do poeta – 36
A viagem do eterno – 37
Os cavalos cantarão – 38
As mãos do oleiro – 39
Caim – 40
Cézanne – 41
Conhecimento da noite – 42
Contemplação – 43
Deus dorme – 44
Diante do umbral – 45
Exercícios de admiração – 46
Goethe – 46
Antônio Machado – 46
Manoel de Barros – 46
Beckett – 47
Rosalía de Castro – 47
Ungaretti – 47
Juan Ramón Jimenez – 48
E agora, José? – 48
Cecília Meireles – 48
João Cabral – 48
Exílio – 49
Êxtase em Ouro Preto – 50
Il Poverelo – 51
Inutensílios – 52
Vigília – 53
Lavra – 54
Merecimento – 55
Dois poemas esquecidos
Monte Branco – 56
Pureza – 56
Nascimento – 57
Natal em Bagdá – 58
O abismo de Deus – 59
O afogado – 60
O Aleijadinho – 61
O arado de Deus – 62
O cavalo cego – 63
O deserto – 64
O jardim do fim do mundo – 65
O monumento – 66
O oleiro e a argila – 67
O outro Lázaro – 68
O pranto de Ulisses – 69
O quadro – 70
Os mortos – 71
A moeda do silêncio – 72
Os sortilégios do mistério – 73
Os violinos – 74
Deserto – 74
Quase – 74
O figo – 74
O velho – 75
Os violinos – 75
O êxtase – 75
O silêncio – 75
O teu silêncio – 76
Motivo – 76
A papoula – 76
O carneiro – 77
A cigarra – 77
O altar na gruta – 77
Sono – 77
Páscoa na Iugoslávia – 78
Pedras na água – 79
Identidade – 79
O girassol – 79
As estrelas – 79
Loucura – 79
Poesia mínima – 80
Poética nos dentes – 80
Justificativa – 80
Mistério – 80
O silêncio – 81
O arco-íris – 81
Tchibum – 81
Iluminação – 82
Dilúvio – 82
Antipregão – 82
O êxtase do poeta – 82
Comunhão – 83
Pintassilgo – 83
Condição – 83
Centro – 84
As crianças – 84
Epitáfio do timoneiro Gracchus – 84
O olho – 84
João 1,19 – 85
Carícia – 85

Pétalas ao vento – 86
Abandono – 86
O ideal – 86
O arame farpado – 86
Sem perdão – 87
Retorno – 87
Eclipse – 87
Os pinheiros – 88
Delírio – 88
As águas – 88
Infinito – 88
Êxtase – 89
O orvalho – 89
O êxtase do enforcado – 89
Inverno – 90
Aniversário – 90
O azul de Deus – 90
Poema da necessidade – 91
Poemas breves – 92
Alba – 92
As flores de pedra – 92
Alvorada – 92
Epitáfio – 93
Deus – 93
Estrangeiros – 93
O absoluto – 93
Maturidade – 94
A língua seca – 94
O sal nas pétalas – 94
Fidelidade – 95
Oferta – 95
Os jacintos – 95
Roca – 95
Poética essencial – 96
Portinari – 97
O estranho matou os pássaros – 98
Réquiem para W. H. Auden – 99
Senhor, a noite é nossa – 100
Tempo pascal – 101
Testamento – 102
Unidade – 103
Imanência e transcendência na
poesia do mestre Brandão

A Poesia brota dos dedos de Brandão. E como disse


certa vez: palavras que são coisas, com o saber de experiência
feito, com os mestres, a quem chamamos clássicos, aprendida.
A Poesia brota dos dedos de Brandão, iluminada: pau,
pau e pedra, pedra; ou bichos, árvores, terra e sangue. O poeta
não escreve para dizer coisa nenhuma – afirma com convicção -
mas para fazer. E citando Ionesco: entregar mensagens é
trabalho do carteiro.
O poeta não escreve para dizer coisa nenhuma, mas
para fazer. Para fazer-se? Ao fazer seus poemas, Brandão faz-
se. E mais: faz outros poetas quando, ministrando um curso de
poesia, sugeridas as palavras olhos, água, caminho, pássaro,
flor, mesa – ele que é prestidigitador delas – escreve, ensinando
o caminho das pedras, que burila como só o fazem os
verdadeiros poetas:

olhos
no caminho

uma flor
na água

um pássaro
sobre a mesa

Já em sua primeira obra, O Emparedado, Brandão


anunciava sua procura: na pedra mais dura / forjar um estilo em
busca da palavra mais pura.
Intrometo-me em um de seus poemas, recorto-lhe alguns
versos (pura heresia) a substância em minhas mãos, plena, can-

11
tiga de enamorados, numa dimensão outra, inefável,
candidamente erótica, magia absoluta:

Você olhava o sol poente.


Você queimava.
Eu não olhava os seus olhos,
seria a perdição.
Eu segurava os seus seios,
queimavam.
Maçãs encarnadas
pulsando, derretendo os meus dedos.
Candelabros
iluminando a noite.

Aliás, já em Emparedado percebemos a variedade de


formas de que Brandão se ocupa em seu ofício, cada poema
como pedra preciosa exigindo particular artifício: redondilhas,
decassílabos, alexandrinos, oitavas, sonetos, tercetos, dísticos,
aliterações, e também versos brancos, rimas consoantes,
toantes, e estrofes que são verdadeiros haicais:

Por breve momento:


O tempo não era o tempo:
de tão antigo.

Em seu segundo livro Exílio, dê-se registro às palavras


de abertura: “Por toda a grandeza do universo, do tempo ou do
amor, eu quis a mágica da ascese, um vôo secreto na febre do
sangue. O poeta sonha a forma do espírito”.
Suponho, ao ler esse fragmento, que Brandão conceba
dois mundos: este - o da nossa miserabilidade, um exílio
desgraçado, no sentido de termos sido desprovidos da graça
(não somos anjos caídos?) e o de nossa origem, qual o mundo
das idéias de Platão - ao qual ansiamos por voltar. São palavras
do poeta em Exílio:

12
Dura mão abateu-se sobre nós.
Feriu-nos, castrou-nos.
E somos pobres como o olhar de um animal acuado.

Por isso o poeta assinala:

Não durmo. Duro


na noite em que me encontro
de mim ausente.

Ou, numa variação de imagens, o mesmo:

Um piolho
Mil piolhos me roem
O cérebro. Em frangalhos
Serei eu mesmo, o que escreve
Ou o que vive o estupor?

Só a ascese nos devolverá o Paraíso perdido, só a Arte


pode, desejando criar o Belo, nos dar momentos de
transfiguração, de transcendência para além desse mundo de
sombras e espectros. Assim, para Brandão cada poema é uma
elevação da alma, sua construção funcionando como um
exercício de ascese, de elevação do espírito, uma verdadeira
simbiose entre o aperfeiçoamento do poema e da alma.
No livro Poemas de Amor (que tem na contracapa um
poema a mim ofertado, sempre meu muito obrigado, caríssimo
Zé) parece-me que Brandão tirou umas férias dessa existência
sacrificial, assumindo despudoradamente o cotidiano mais
prosaico, e paradoxalmente, contente dele, elevando-o à mais
alta poeticidade, talvez por que, escolhido o Amor como tema,
seja este o único resíduo de nossa contingente e abatida
divindade a nos possibilitar algum alento de antevisão do Eterno:

O amor ordena a casa apagada,


a mesa, o fogão, a cama aconchegante,

13
a fogueira à beira do lago,
os nossos corpos unidos,
a nossa alma que se eleva.

Ou:

Um dia você tirou a roupa,


eu abaixei os olhos.
Você tirou o corpo, me deu.
Eu me ajoelhei.
[...]
E o espírito de Deus pairou
Sobre as águas.

Sabedor, agora, de outro caminho, o da Plenitude (os


amantes cruzam o umbral do tempo: em breve seremos eternos)
Brandão já não mais recrimina este mundo; faz mesmo dele
ante-sala, tempo de espera e com ele se compraz:

Deus pasce do alto.


A ovelha bale fora do aprisco
e volta.
O mundo é grande
e calmo cristal
onde brilha a face de Deus.

Há mesmo em seus últimos poemas (ainda inéditos em


livro) uma complacência serena e sábia com este mundo em
que:

As siriemas bicam o dia


na porta
da cozinha.

Essa antevisão da Plenitude aqui e agora na mais


cotidiana realidade é reveladora definitiva da ascensão do poeta,

14
já então estranho aos mortais comuns:

A luz me libertou da pedra.


Atravessei o rio subterrâneo,
atravessei o túnel escuro.

Cego de tanta luz,


eu me prostrei: Estou pronto, Senhor.

Quando me levantei,
era mais um estranho na terra.

Dessa estranheza sagrada de que é feita a alma dos


grandes poetas.

Luiz Vitor Martinello*

*Luiz Vitor é o poeta mais conhecido de Bauru, autor dos


livros de poesia “Mãos nos bolsos”, “Os anjos mascam chiclete”,
“Lixeratura”, “Me apaixonei por mim mas não fui correspondido” e
dos infanto-juvenis “O sapato que sabia andar” e “O penuginha”.

15
A árvore e a cruz

A árvore tinha a forma de uma cruz.


Dois galhos abriam-se como dois braços.
Era uma estranha forma de beleza:
Algo de perigo, mistério ou sagrado.

Um líquen avermelhado coagulara-se pelo tronco


Onde deveriam estar os pés e mãos do crucificado.
Entre umas poucas folhas verdes, muito delicadas,
Procurei e descobri escondida uma flor, já seca.

Sem pensar estendi os braços na cruz.


A lua tingiu-se de um vermelho opaco.
Um vento frio feriu-me as faces
E inesperadamente caí em mim.

A nostalgia é um sentimento universal.


O homem busca suas origens;
Às vezes encontra-as, sob os cravos, na cruz.

17
A carroça do caos

Estou cansado de puxar a carroça do caos.


Estou esmigalhado sob a mó do tempo que não para, não para.
Sou escravo dos meus cinco sentidos e gemo e suo sangue.
Cego e surdo e castrado, quero ouvir a voz de Deus.

Eu fui castrado do meu sentido essencial: o êxtase.


Eu fui castrado da contemplação do divino e agonizo.
Eu navego no mar de veneno da minha vida,
Eu estrangulo os lírios do campo e os pássaros do céu.

Estou nu como uma pedra, como um sabugo apodrecendo.


Acalento a desgraça no peito como uma serpente, um abutre:
A serpente me leva o coração,

O abutre me devora o fígado, os olhos, a língua.


Amei com um ódio vil a minha condição de réprobo.
A vida me foge, sapateio no palco, a multidão aplaude.

18
A companheira de viagem

A morte é minha companheira de viagem.


Para que eu não me esqueça da paisagem,
Para que eu sinta a eternidade,
Vamos de mãos dadas.

Olha a árvore que passa,


Olha a sombra na água,
Olha as cinzas da rosa.
A morte é minha companheira de viagem.

O anjo se eleva ao céu na nuvem de fumaça.


Sou a face de Deus generosa,
Sou a criança com um pássaro na mão
E o pássaro vai voar, vai voar.

O cavalo carrega o sol no lombo,


Eu carrego a morte nos ombros,
Ela me conhece e conversa comigo.
A morte é minha companheira de viagem.

19
A cor das palavras

Qual era a cor das minhas palavras?


O peixe sobre a mesa, quieto, translúcido.
Éramos quatro emborcados em silêncio,
Quando despertamos o peixe era um menino.

As escamas eram as penas das asas,


Eram pétalas marinhas celestes manchadas de sombra.
As palavras eram vermelhas como o canto do galo.
O corpo do afogado sobre a pedra do mar.

As árvores conversavam no escuro,


As folhas uma a uma murmuravam um segredo escuro.
O poema é um barco na tempestade,

Um relâmpago riscou o céu,


Eu decifrei as letras de fogo
E eram o nome do menino.

20
Prelúdio

Cai a noite de junho na sarjeta,


Cheira a fritura, bacalhau, carniça.
Eu me encolho na minha capa preta
E desafio para a mesma liça

A cruz e a rosa, o abismo das estrelas.


Corre a vida encardida como um rio
Nevoento aos meus pés, sob as janelas
De ninguém, no universo vão, vazio.

O vento chicoteia o corpo inútil,


Com os círios do nada ele me invoca:
Queima a chama o silêncio que me impus.

O tempo que me resta a mais deglute-o


Uma voraz lagarta e sua roca,
Mas a rosa floresce sobre a cruz.

21
A forma do eterno

Os séculos caem do relógio com estrondo,


A rosa foi exilada do jardim.
Os olhos cegos concebem a face única:
Ouçam o pássaro, o tempo, o vento do verbo,

Ouçam o verbo da rosa.


No deserto, na montanha, na ilha,
A rosa, como um pássaro, canta sobre a pedra.
As marcas dos meus passos ainda estão em volta do poço,

A água guarda a minha face,


Os meus olhos cegos passeiam no escuro.
O mar vem dar à praia onde o meu barco jaz destroçado,

O mar vai se distanciando,


O mar leva a rosa até o eterno.
A rosa é a forma do eterno.

22
A iluminação no espelho da tarde

O rio carrega peixes mortos, homens mortos


E destroços, cavalos, vacas e cães mortos.
Choramos a nostalgia da rosa na pedra cinza,
As faces esmaecidas de um paciente agonizante

Deitado na mesa do corredor do hospital.


O porto na bruma cada vez mais longe,
A praia se retira como o tempo intocável.
Carrego a minha morte no bolso, no pulso, nos pés.

Ouço sempre o guizo da morte


Pendurado no pescoço junto à canga velha.
O rio chega ao mar, eu chego ao mar,

As águas do mar vão e vêm eternas.


Viajo para um renovado horizonte
Entre as nuvens e os pássaros brancos.

23
A menina cega

Num lugar qualquer do mundo,


Uma menina cega, que eu não conheço, pensa em mim.
Olha para um lado, talvez para o outro,
E derrama uma lágrima num canto do olho

Por mim, que ela não conhece.


A menina cega pensa em mim
Como um morto anônimo, um fruto podre caído no chão,
Uma folha morta, uma árvore morta, um rio morto.

A menina cega pensa em mim


E vê a imagem de mil pássaros mortos à beira do rio,
Como pequenos anjos exterminados, sob uma árvore morta.

O ar asfixia, mata; a terra se parte e esfarela, inútil.


Os homens morrem, inúteis.
A menina cega sabe e chora uma lágrima inútil, por mim.

24
A morte do artista

O meu quarto vazio jaz na penumbra,


Todos os espelhos estão quebrados,
Um velho me visita todas as noites
E me rouba os olhos e os sonhos.

Sofro dentro da noite atroz


Ou contemplo o sofrimento no sono,
Longínquo, entre as estrelas do abismo.
Não tenho mais contato com o chão da vida.

Cortei as minhas mãos inúteis,


Jazem no fundo da água pura dos rios do tempo.
Não me servem mais. Tocaram a beleza

E perderam-na. As ondas vêm e vão, com sangue.


O meu jardim canta ao sol, com flores e pássaros.
Eu é que não sirvo mais.

25
A música do silêncio

Escrevo na areia para o vento,


Escrevo a palavra do silêncio.
O enigma é claro como a mesa e o pão,
Existe para ser enigma.

O universo é perfeito como Deus,


O poema é composto no espelho,
A imagem criada pela imagem
Quando a pedra entalhada resplandece.

Por que o demônio não se cala?


Ouvem-se estranhos gritos de morte,
O poeta inventa a sua música.

As sombras do crepúsculo se estendem,


Esferas criadas se conjugam.
Dou forma à rosa que assassino.

26
A noite dos violinos

A noite dos violinos e a dor


Nos dedos crispados.
Quem decifrará o voo da gangrena
Na pele do eterno?

A mulher pisa os cacos de vidro,


Vai deixando um rastro de sangue pelo caminho.
A sarça ardente dos pulmões sopra uma língua de fogo.
A palavra cavalga um cavalo de luz.

As tetas da memória acesa


Alimentam as crianças das veredas perdidas.
O meu sêmen fertiliza a terra.

O silêncio de Deus move as pedras.


Caminho no bosque dos eucaliptos
Com uma tocha acesa nos olhos.

27
A paisagem do eterno

Debaixo dessas tábuas descansa o Mestre Athayde.


Debaixo dessas tábuas a cinza dos ossos,
Acima a alma viaja de igreja em igreja,
A alma festeja a glória de Deus com os anjos.

Essas tábuas escuras como o tempo,


Um homem ressonando com os ratos,
A boca aberta com uns poucos dentes,
Os buracos nos olhos, no nariz, na fronte.

Um homem deixa por herança apenas buracos,


As asas leva para Deus,
O seu canto de pássaro leva para Deus.

Contempla do alto as imagens pintadas nas igrejas,


Contempla do alto o nada na balança.
A paisagem do eterno é a medida do homem.

28
A respiração de Deus

Sinto a respiração de Deus na pedra


Sob a árvore da aurora.
Estou coberto de limo
No vale dos caminhos sem retorno.

Quem sou? Quem é o poeta?


Sou o espanto do homem plantado na terra,
Sou a raiz do sonho sufocado,
Farejo como um cão o lodo do abismo.

Sou real? Alguém me sonha?


Existo como as coisas, no caos?
Entrei no mar com a minha rede de pescador,

A realidade do peixe tem um peso eterno.


Mas que importa que eu me vá? Que importa que continue?
Somente furando os olhos posso ver Deus.

29
A rosa

O seu perfume permanece mesmo depois que foi cortada


E repousa no vaso, na mesa da sala.
Ando na ponta dos pés para não acordá-la.
A casa paira no ar com o seu perfume.

É vermelha como sangue.


Eu me aproximo devagar
De uma pétala caída na tolha branca
E a levo com cuidado aos lábios.

A rosa no vaso é eterna,


A pedra do tempo não pode assassiná-la.
Entro em êxtase com o seu néctar.

É a imagem da mulher vinda do fundo do mistério


E modula com a língua do silêncio
A palavra essencial.

30
A rosa eterna

A rosa desliza no espelho,


Um bater de pálpebras, as pétalas vermelhas
Como sangue na água.
O perfume inebria, estonteia, mata.

Dobro os joelhos, caio por terra.


A voz embargada, os olhos turvos
E a alma em êxtase com a música leve.
A rosa paira no ar com a dança de seda.

Um gafanhoto se perde nas pupilas abertas,


A morte cintila no cristal.
Os beija-flores bailam na janela,

Os anjos levam a alma da rosa,


Batendo as asas brancas e douradas.
A rosa é a rosa eterna.

31
A serpente e o menino

A serpente dorme sossegada


Sob o chão da velha igreja.
De seu sono de fábula
Não acorde a serpente prateada.

Essa serpente um dia foi um menino


Abandonado pela mãe.
O menino mamou o leite da Virgem,
Transformou-se na serpente adormecida

Deitada no lençol de terra fofa


Da igreja maternal.
Não acorde a serpente furiosa

No seu leito de penas de anjos brancos.


Olha a serpente! Com o rabo e os dentes
Vai derrubar a igreja no mar.

32
A tarde única

Eu caminhava na praia,
A areia cantava sob os meus pés,
As ondas se desmanchavam com suavidade,
O mar azul bailava sob o céu azul.

Uma gaivota voava preguiçosamente,


As nuvens brancas como carneiros e bois mansos,
As espumas brancas frigindo entre as conchas e os rochedos.
Um barco navegava decidido no horizonte.

Eu contemplava a púrpura vária do horizonte


Sem ódio nem ambições.
Eu pisava despreocupado na água,

Eu poderia caminhar sobre as águas


Ou voar entre as nuvens e as montanhas
Tão leve era o meu espírito nessa tarde única.

33
A túnica de Deus

O poema pousou na bateia


Entre os cascalhos e o peixe vermelho.
A candeia ilumina a sala,
As vigas do telhado e os anjos

Com as asas abertas sobre nós.


Uma toalha de linho e uma pedra sobre a mesa.
Tomo a cruz, o cálice dourado,
O vinho e o pão. Abro o Livro.

Não sei como te chamas nas águas do espelho.


Foi-se o tempo de semear, foi-se o tempo de colher.
É o tempo da morte doce, do barco e do cisne.

Eu navego sem medo sobre o abismo.


As chamas da rosa nos lábios em silêncio,
Minha mãe tece a túnica de Deus.

34
A velha da maçã

O menino repousa sobre um barco


Coberto de palha e panos.
Um boi, um burro e um cão guardam o sono
Do menino deitado no seu berço

Que é um barco e navega com as estrelas


Nas vastas águas da noite.
O homem medita no mistério azul
Do menino nascido de um peixe de luz.

Uma velha mulher trouxe uma maçã


Para a mãe do menino.
Era uma estranha e veio do outro lado do tempo

Com a maçã para a mãe do menino.


Era Eva e voltava do Paraíso
Com a maçã e a serpente na mão.

35
A velhice do poeta

Cortei a minha língua inútil.


Os pássaros caem das árvores secas.
Deito-me na terra, entre as pedras,
Sob o lençol da minha miséria.

À beira do leito seco do rio,


Sinto-me queimar pelo fogo do sol.
Leio a minha sorte nas fezes quentes
De um animal morto, à minha imagem.

Estudo o enigma do silêncio


Nas estrelas longínquas do céu vazio.
O meu coração se esqueceu de quem era

E dialoga com o espelho quebrado.


A imagem turva não o reconhece.
Converto-me nas pedras sobre a terra..

36
A viagem do eterno

Não me canso de cantar o meu naufrágio.


A minha alma entre os destroços, a ferrugem
E os baús de memórias de um porto longínquo.
Quem é que fala? Que vozes estou ouvindo?

Os mortos insepultos clamando no abismo?


Sou ninguém e sou os mortos sobrenaturais
Com orações e peixes na garganta.
Derramei o meu sangue entre as pedras da praia:

Quero o mistério do mar inominável.


Vesti a túnica da ilusão do mar.
Quando deixar este mundo de ausência,

Dos ferros do meu naufrágio cantarei


O touro de sombra do mar.
Ensaio no meu canto a viagem para o eterno.

37
Os cavalos cantarão

Os cavalos cantarão quando eu morrer,


Cantarão em cavalgadas pelas invernadas,
Livres, leves, encantados, finalmente
Longe das contingências humanas.

A noite virá com o seu orvalho puro


Abençoando as casas e as árvores do caminho.
Os pássaros dormirão em silêncio
Sob o perfume das orquídeas e das dálias.

A minha alma se olhará no espelho da lua,


Verá uma estrela se multiplicando,
Inventando os clarins da alvorada.

Eu serei uma pedra dormindo no fundo d’água,


Serei polido pelas águas que passam e passam
Rolando e me anulando sem fim na eternidade.

38
As mãos do oleiro
“Como a argila nas mãos do oleiro,
assim sereis vós nas minhas mãos.”
Jr 18, 6

A poesia salta sobre a sombra.


As mãos do oleiro acariciam a argila.
O sopro dá vida ao cântaro úmido,
A semente por baixo do silêncio da pedra.

Ouça o solilóquio da água na terra.


O meu coração abraça o mundo
Gotejando argila e sangue.
As árvores se abaixam sobre o rio

Que passa cantando e gemendo,


Carrega as barrancas vermelhas com dor.
A rosa bóia à flor d’água para sempre.

Um pássaro voa no azul do céu


Filtrando a luz do sol nas penas brancas.
A poesia salta da sombra com a argila do oleiro.

39
Caim

Carrego o sangue do meu irmão para toda a eternidade.


Eu sou o meu irmão morto com uma pedra na cabeça.
Aprendo o que é morrer, o que é acabar.
A morte é o silêncio de uma pedra.

Os lábios de Abel não dirão mais nenhuma palavra.


É isto a morte: este silêncio, este sangue sobre a terra.
Que farei com Abel? Que é que se faz com um morto?
Que farei comigo? Eu, que inventei a morte?

Nos olhos do meu irmão vejo o universo refletido.


No corpo morto eu conheço o meu tamanho de homem.
O sangue do meu irmão não clama por vingança:

É um espelho. É a essência do que sou.


É a marca do homem, seu direito e avesso.
O sangue do meu irmão morto me alimenta.

40
Cézanne

O azul é a cor da carne de Deus, disse Cézanne,


E pintou mais uma vez a maçã
Sobre um fundo azul.
E pintou mais uma vez a montanha

Imóvel no horizonte.
A maçã é a fruta que se oferece
Para ser pintada,
É um corpo perfeito e é um alimento.

A montanha é o ideal da beleza,


É preciso atravessar a ponte da forma.
A maçã sobre a mesa,

A montanha dentro dos olhos.


Os meus olhos pela cor do azul,
O azul é a cor da carne de Deus.

41
Conhecimento da noite

Vou conhecendo a noite aos poucos.


Quando a pisar com os meus pés,
Quando não precisar dos dedos
Para tatear os móveis no escuro,

Quando as palavras se quebrarem


Porque não há mais nada a dizer
E a beleza perdeu a forma,
Quando ouvir o cavalo do mistério

E medir a paisagem do eterno


Com o pássaro de Deus no espelho
E a rosa exata nos lábios,

Como temer a pedra do sono


E o abismo das estrelas?
A música ainda soa no silêncio.

42
Contemplação

Contemplo o céu e o mar infinitos:


A água reflete as árvores das montanhas,
Nuvens muito brancas passeiam no céu azul,
As ondas vão e vêm com as espumas e as nuvens.

Caio na água como um peixe,


A solidão cósmica desaba sobre mim.
O universo não tem fim?
Existe a eternidade, o tempo de Deus?

O mar e o sol, as espumas e os albatrozes,


A água verde à distância com as montanhas dentro.
Um pescador lança a rede no espaço,
A última estrela repousa na mão de Deus.

O meu corpo balança sobre a água calma


Tão perto da terra e do céu,
Com o espírito que sopra sobre ele.

43
Deus dorme

O vento negro sobre a cidade


Contra as casas nevoentas.
Torres monstruosas vigiam,
A multidão dança sob as chaminés.

Abutres pairam no escuro,


Inúteis as flores choram.
Os fios lívidos nos postes
Estrangulam o desejo.

Um cão morto apodrece


Junto às pedras de um muro.
Ressoa o fundo do mar.

O mundo me envolve, Deus dorme.


Uma mão sangrenta arranca
Os cabelos de fogo da aurora.

44
Diante do umbral

Passo a mão pela fronte


E reconheço a noite nos olhos escuros.
Diante do umbral
Com a chave na fechadura

Tenho a dor do homem nos ombros


E sucumbo.
A máquina do mundo gira nos gonzos,
As águas da memória transbordam.

Teço a teia da minha fábula,


Suplico a Deus que me anule.
O pesadelo não termina no labirinto.

Entro e saio do espelho,


Sou sempre outro.
De bruços na metáfora, colho o universo.

45
Exercícios de admiração

Goethe

Qual a forma do meu poema?


Ainda estou elaborando
o nome da rosa.

Antonio Machado

Caminho na tarde verde


à beira da água clara
onde as nuvens se miram.

Manoel de Barros
O rio engole a palavra
e espera a rosa
se mirar em suas águas.

46
Beckett

Na luz negra do exílio,


falo com uma pedra
na língua.

Rosalía de Castro

Vozes verdes, verdes ventos.


Elaboro o meu poema
como um cavalo ruminando.

Ungaretti

Na harpa da palavra,
com os dedos em chamas,
vou tangendo o universo.

47
Juan Ramón Jimenez

Atira a pedra na água


e esquece. Você nunca mais
será o mesmo.

E agora, José?

A rosa agoniza
na palma da mão.
Mas você não morre, José.

Cecília Meireles

Em que espelho ficaram perdidas


as pétalas da rosa?

João Cabral

A cabra resiste
comendo pedra.

48
Exílio

Os teus olhos fitam o céu para sempre,


O azul penetra neles como um mar.
Pássaros caem no chão seco,
Um avião explode, destroços e sangue voam.

O vento cruel fere os teus lábios,


Não leva o pó incrustado nas ranhuras.
As tuas mãos crispadas agarram o chão,
O teu corpo hirto parte-se.

O sol inclina-se sobre a tua face,


A montanha desaba, o cavalo cala-se.
A tua solidão é completa.

É uma pedra no deserto.


A tua alma exila-se devagar,
Agora só Deus existe.

49
Êxtase em Ouro Preto

A luz cai de chapa nas pedras das ladeiras de Ouro Preto.


As montanhas sonham sob o círculo de sombra do sol.
As igrejas desdobram-se do plano do eterno para a terra,
As casas olham circunscritas nesse espaço de muralhas.

Os corpos domados tiram as telhas vermelhas das almas,


As nuvens são ovelhas apascentadas por um pastor louro,
Um pastor louro e quieto apascenta as nuvens e as almas,
Toca uma flauta nas águas lavadas no ar do crepúsculo.

Este não é o lugar do caos,


Este é o lugar da dor e da bênção.
O seio da minha mãe – Nossa Senhora! – alimenta as crianças.

Um rito antiqüíssimo e novo se renova de porta em porta,


Um cálice de chumbo se eleva com o sangue de Deus.
O ouro do altar conjuga as sílabas sagradas do eterno.

50
Il Poverello

Estou só diante de Deus.


Ouço um sino dentro de mim,
Ouço uma árvore, ouço um pássaro, ouço uma pedra,
Ouço o sino da solidão na mais alta torre dentro de mim.

Ouço a palavra, que é pó,


Ouço os ossos que se chocam no escuro,
Ouço o pó dos ossos, ouço a cinza.
O sol brilha longínquo,

O sal na minha carne brilha,


A água reflete a minha face pobre.
A minha língua se quebra,

Estou só diante do mundo.


Ergo o cálice com a dor e Deus dentro:
Louvado seja Deus pela morte, nossa irmã.

51
Inutensílios

A chaleira vermelha, com pintinhas


Brancas, aqui e ali descascada e amassada
Como a lembrar o estrago do tempo cruel,
Tem o cabo quebrado preso com arame.

O bule azul com suas flores brancas,


Pintas vermelhas e pistilos amarelos
Na folhagem de um verde-escuro triste,
Exibe as marcas das pancadas e a ferrugem.

O lampião dependurado no alto


Ilumina o passado dentro do presente.
Apresenta-se novo como o tempo

E antigo como a eternidade lívida.


Que mão brejeira reuniu objetos
Perdidos para a forma do essencial?

52
Vigília

Quem é a terra? Quem é o cavalo


Que navega no mar verde da terra?
Os dias se atropelam entre os peixes
E um ponteiro suspenso do velame.

Um boi moroso pasta o meu sonho


No palco azul do barco naufragado.
O meu cão morto, dentro de uma lágrima,
Me esquece e uiva à loucura da vida.

A água da noite cai sobre a cidade


E enferruja a janela da paisagem.
Deus modelou o barro da memória

Para que concebêssemos o eterno.


Monto no meu cavalo e cavalgo
Com o pêndulo roxo do universo.

53
Lavra

Cultivo a minha rosa no mais puro


Cristal, mas uma febre a corrói pétala
A pétala, com uma fome louca,
E da flor resta a jarra solitária.

Um cavalo galopa no meu peito,


Com seus cascos de fogo me transporta
Ao delírio, à neblina da memória.
Tenho uma cruz na boca, tenho terra

Nos olhos e uma noite me solapa


Cruel sorrindo escárnio e pus e campa.
Leva-me a insânia numa sem regresso

Viagem pelos pântanos escuros


Da alma em sua procura esconsa e azeite
E sei quem sou na forma do poema.

54
Merecimento

Ninguém merece a morte.


Inventamos a desgraça da guerra,
Tecemos rios de sombra, labirintos de tristeza
E angústia insondável.

O nosso sangue teceu o sangue.


Nada explica a nossa ambição sem medida.
Trazemos o fogo nos olhos, o ódio na alma
E apenas um pouco de palha nas mãos.

Erguemos até ao céu o cálice.


Somos cúmplices de todos os pecados,
De todos os delírios do coração.

Sofremos o deserto de Deus,


A rosa cresce na areia seca.
Mas não merecemos a morte.

55
Dois poemas esquecidos

Monte Branco

Um anjo de palha adormece em meus braços


E sorri como um cão numa gravura antiga.

Longe das ameaçadoras falanges,


Eu me deito no húmus quente, entre as folhas úmidas,

E sonho o alto carvalho que sobe ao céu.

Pureza

Um barco desliza no lago silente.


É o crepúsculo dos pássaros calmos
E a leve brisa na folhagem transparente.
Anjos inaudíveis cantam salmos,

Demônios dormem no fundo abismo.


Hoje não verei a face do afogado.
Sou a nuvem suspensa de uma árvore
E cismo na quietude, cisne dourado

56
Nascimento

Eu nasci com o sol da madrugada.


A minha mãe gritou de dor e júbilo,
O meu pai gritou como o trovão do céu.
Quebraram-se os diques das águas do verão,

O sol e a chuva sobre a terra fértil.


A guerra se acabara, as flores resistiram.
O cavalo relinchou chamando para a viagem,
A porteira da Eternidade estava aberta de par em par.

O homem subiu e desceu a montanha,


Logo veio a revelação: o mundo vai-se acabar.
Os mortos bateram as pálpebras nos túmulos,

Os mortos ensaiaram um bater de asas.


Os pássaros voaram entre as pétalas do êxtase.
Eu nasci para o Absoluto: vinde comigo, meus irmãos.

57
Natal em Bagdá

A bomba desenha uma cruz em Bagdá,


A estrela explode antes de nascer,
A mulher rasga com as unhas o ventre ressequido,
Dois olhos vazios me olham de lugar nenhum.

As árvores estão despidas como esqueletos,


A rosa não tem mais nenhuma pétala,
A raposa e outros bichos tristes choram no deserto,
O universo é um cogumelo gotejando.

Profeta sobrevivente do exílio,


Já não tenho voz e canto à beira da estrada.
Todas as crianças têm a garganta cortada,

O sangue das crianças colore a aurora.


Um menino queima sobre a palha,
Das suas cinzas o novo homem vai renascer.

58
O abismo de Deus

O abismo das estrelas, o abismo do mar, o abismo.


Sempre estamos no abismo, irremediavelmente.
Com o silêncio das estrelas, dentro de uma concha.
Ouvindo o grito agônico de uma gaivota ferida.

Quem somos, quem seremos, quem fomos? Memória.


Somos (seremos, fomos) escravos do tempo cruel.
Girando as engrenagens do relógio, nosso domicílio.
Não somos mais que um peixe fora d’água, esperneando.

E vivemos perdidos dentro desse peixe, nosso universo.


Sufocamos sem ar no escuro desse peixe impossível.
A vida é impossível, sabemos. A concha e as pérolas.

O que vemos além das estrelas? Além do mar original?


Nós esperamos uma resposta, mas Deus, magnânimo,
Criou-nos livres como gaivotas voando sobre o abismo.

59
O afogado

O mar trouxe o corpo à praia.


Era um estrangeiro, jovem e belo.
A boca aberta deixava ouvir,
Como se viessem do outro mundo,

As vagas do mar e os gritos brancos das gaivotas.


Eu lhe fechei os olhos, azuis como o céu
Através das órbitas de uma caveira.
A sua nudez lhe tornava a pele mais pálida.

Sorria perplexo, como se reconhecesse


Num espelho
A nossa estranheza.

Olhando-o, nós sabíamos:


Também temos, em vida, o céu nas órbitas
E a morte nas pálpebras.

60
O Aleijadinho

Deixei os pedaços da minha carne nas ladeiras de Ouro Preto.


Entre as pedras do calvário das ladeiras de Ouro Preto,
Deixei os pedaços da minha carne e dos meus ossos.
Mutilado pelo divino, esculpo a forma do divino.

O meu coração é de pedra e rói como o ódio.


Eu trabalho o corpo de Deus, eu, o sem-corpo.
A pedra me obedece com uma fé cega.
Deixei um pedaço do meu nariz na pedra cega.

O cinzel amarrado no coto da minha mão


Faz saltar lágrimas e sangue da pedra muda.
A minha fronte, face e beiço estão grudados na pedra.

Talho a imagem de Deus à minha imagem


A pedra sabe e fala sob o meu cinzel.
Do fundo do meu horror, olho para o céu – petrificado.

61
O arado de Deus

É manhã nos lençóis no varal,


As pombas brancas voam,
Eu voo com as asas do Espírito,
O silêncio do mapa é azul.

Eu voo pelas mãos dos anjos,


Abro as cortinas para o Verbo,
O vinho no copo é sangue,
O trigo na mesa é o corpo.

Minha mãe pinta uma árvore,


Meu pai cavalga um cavalo de luz,
Meus irmãos montam e desmontam
As portas e janelas da infância.

Eu aprendo a poesia do mundo,


Deus segue à frente com o arado.

62
O cavalo cego

Prostro-me diante da pedra da oração


Onde os mortos abençoam o sol.
Por que morreram os condenados?
A terra oscila à beira do abismo.

Eu nasci das águas do batismo,


Mas sou ainda um homem, ó Senhor.
O céu é um pêndulo sobre a minha cabeça
E todas as horas dizem não.

Um dragão me devora no crepúsculo


E me vomita na aurora.
Um relâmpago me parte em dois,

Mas os dois galopam para Deus.


A minha fronte sangra com a estrela,
O meu cavalo cego sabe o caminho.

63
O deserto

O deserto fala comigo, grita, esperneia.


Sou areia ao vento, dunas, miragem.
Preencho o meu vazio com palavras
Como um poema, aceito o arco da forma.

Aprendo o silêncio com a música,


Carrego pássaros de sangue nos ombros,
Contemplo a rosa até queimar os olhos.
A minha vida é o violino do abismo.

Estou só como uma pedra sem árvore.


O poeta lavra a palavra com terra na boca,
Com espirais de areia e sol nos olhos.

O poeta é um cão, ladra na noite,


Disputa o osso do caos e perde.
Cavalgo para sempre o cavalo da loucura.

64
O jardim do fim do mundo

Os pássaros voaram com a explosão do sol,


As árvores dançaram com as raízes para o ar,
Os cavalos galoparam na praia agônica.
A minha mesa se abre como uma flor,

O meu espelho se parte como as estrelas no caos.


De repente me descubro no jardim do fim do mundo.
Nada mudou, mas o mundo não há mais.
Depois do horizonte não há um outro horizonte.

Estou à beira do poço,


Estou no deserto escuro de areia,
Estou só na montanha seca. Sou uma pedra.

Um beduíno chega morto de sede, atira a pedra


Dentro do poço e fica esperando o barulho na água,
Fica esperando. Eu nunca chego ao fundo.

65
O monumento

Construo um monumento de cristal


Com as minhas mãos nuas.
É ilusório o mundo que conhecemos.
Quem pagará o preço do esquecimento?

Perdido no claustro terrível,


Desenrolo o novelo da pirâmide.
Sou o mesmo sonho desdobrado,
A fonte rumoreja infinitamente.

De quem é essa voz que canta?


Quem toca essa música no labirinto?
Tenho trinta moedas na cintura

E sangro no abismo.
Adivinho nos olhos do falcão
Como é longa a eternidade.

66
O oleiro e a argila

A dor de Deus escrita na pedra,


A aflição de Deus na minha aflição.
Como consolar o Criador?
O universo é vazio, só existe o caos.

Quando foi o início? Houve uma largada


Inicial no poço do absoluto?
Por que o exílio de Deus? Não se bastava?
O oleiro precisou do vaso de argila?

O nada não existe porque Deus existe,


O alimento de Deus no sacrifício
Do pão e vinho agônico.

Deus se despoja da divindade


E contempla a harmonia das esferas.
O oleiro molda na argila o vaso e o oleiro.

67
O outro Lázaro

Subi a alta montanha com o júbilo do sol,


Conversei com o abutre e com o Espírito,
Interroguei as veredas do abismo,
Cavalguei o cavalo de Damasco.

Naveguei o barco de Ulisses,


O seu cão me esperou para morrer.
Provei o fruto da árvore e o veneno da serpente,
Conheci a matéria do poema.

Lavrei a palavra com o diamante,


A luz me libertou da pedra.
Atravessei o rio subterrâneo, o túnel escuro.

Cego de tanta luz, diante da mesa da vida


Eu me prostrei: Estou pronto, Senhor.
Quando me levantei, era mais um estranho na terra.

68
O pranto de Ulisses

Ulisses chora na ilha seus companheiros mortos


Espalhados pela praia como flores murchas ao sol.
Ulisses se inclina e geme de dor,
Tem sangue na face e tem sangue nas mãos.

O pranto não se interrompe


Nem quando recolhe os mortos e os amontoa numa pira:
O fogo purifica, mas a dor continua.
Recorda a música das sereias sob o mastro e as nuvens

E o silêncio caindo do abismo do alto céu de súbito.


Acende o fogo e é como se o vasto oceano queimasse.
Uma rosa bóia entre as pedras num lago de sangue

Ulisses aproxima os lábios e beija,


No sangue da rosa,
A dor dos companheiros mortos.

69
O quadro

Acendemos as tochas
E nas paredes os quadros gemiam.
Uma aranha e um escorpião passeavam
Entre as sombras das molduras.

Um abismo de trevas
Se formava nos olhos assustados
De um menino sorrindo
Um sorriso estranho.

– Quem pintou essa ameixa


Nos lábios do menino?

Os lábios gelados
– Quem pintou o gemido?

Da ameixa sai um verme


– Quem pintou esse menino com lábios de verme?

70
Os mortos

Os mortos conversam no pequeno cemitério.


Gilda ergue as palmas das mãos e mostra as chagas,
Sebastião ergue o cálice com uma última gota de sangue.
Passeiam no jardim entre as flores cegas.

Júlia dorme sobre uma pedra,


Todos esperamos a ressurreição.
O meu cavalo rumina o capim das horas,
Esperamos a grande jornada.

Antônia me dá a mão, andamos entre os túmulos.


Teresa tem uma cara estúpida como a minha,
Nós sorrimos um para o outro como dois anjos.

Deixei para trás toda a poeira do universo,


Não deixarei a minha alma solitária na montanha.
O pescador das águas eternas me chama.

71
A moeda do silêncio

Nos olhos cinzas de névoa


A moeda do silêncio.
Os pássaros petrificados
Nas árvores secas.

Os sapatos à beira da estrada


À espera dos pés de ninguém.
Uma fina lâmina de vidro
Quebra-se.

Deus de areia, noite escura


De Deus.
Uma lâmpada sem óleo,

A luz negra,
A chave enferrujada
E a pátina no chão do deserto.

72
Os sortilégios do mistério

A gaivota navega no céu azul


Investigando o silêncio do oceano.
O sol quebra o cristal do dia com um peixe de luz.
Um atobá caminha solene na areia da praia:

Disputa o seu quinhão com os urubus.


Um albatroz dorme no vôo com um tição nas asas.
Levo as mãos em concha aos lábios
À espera da pérola da palavra.

A pedra se parte, o sangue inunda as nuvens no horizonte.


Os sinos tocam em todas as montanhas.
Caminho para a morte, sem renúncia.

Contemplei as pétalas da rosa,


Fui belo e louco como os cavalos.
Espero os sortilégios do mistério.

73
Os violinos

Deserto

Penetro no deserto
em busca da aurora
que engendro.

Quase

No escuro da pedra
o silêncio de Deus.
Quase entrei em êxtase.

O figo

O figo estourou.
O sol tocava a flauta
do vento.

74
O velho

Sou um velho sem memória.


A minha casa caiu.
Cubro-me de cinza e morro.

Os violinos

Os violinos florescem
na primavera.

O êxtase

Quero antever o êxtase


da morte
na minha poesia.

O silêncio

da rosa.
Abismo.

75
O teu silêncio

O teu silêncio
pousa em mim
com todas as estrelas.

Como o teu silêncio


trouxe tanta luz?

Motivo

Eu faço poesia
porque vou morrer.

A papoula

A alma dentro d’água


e a papoula na janela.

76
O carneiro

O carneiro me olha
com a eternidade
nos olhos azuis.

A cigarra

Uma cigarra quebra


as vidraças da tarde.

O altar na gruta

Ergui os braços para as pedras,


que ouviram em lágrimas
o meu silêncio.

Sono

Uma aranha metafísica


me anula.

77
Páscoa na Iugoslávia

As árvores estão de luto na Iugoslávia,


As árvores estão de luto no universo.
Cabeças diminutas pendem dos seus galhos
E pingam lágrimas de sangue, sal e lava.

O chão está coalhado de pombas mortas,


Um corvo me devora o coração e os olhos.
Uma flor negra brota da terra violada,
A corola desenha a paisagem do nada.

Um homem e seu cão caminham pela estrada


Dos grandes pinheirais, que o pavor estremece.
Uma bola de fogo incendeia o horizonte.

Os homens, em seus lares, não se reconhecem.


A calma cai, estranha, no jardim de Deus.
A terra trêmula acalenta a dor e o pânico.

78
Pedras na água

Identidade

Não sou quem sou,


mas quem me invento.

O girassol

O poema é um girassol –
claridade para todos os lados.

As estrelas

Olhei o abismo da noite


e as estrelas queimaram os meus olhos.

Loucura

O poeta enlouqueceu
e nunca mais interrompeu seu canto.

79
Poesia mínima

Quero a poesia mínima


das ranhuras sem forma nenhuma
de uma pedra.

Poética nos dentes

É preciso quebrar a palavra nos dentes


para que floresça.

Justificativa

Descobri que vou morrer,


por isso te procurei.

Mistério
Por que as almas correm
para o mar?

80
O silêncio

O silêncio cai
sobre as pétalas da rosa
como o olhar de Deus.

O arco-íris

O arco-íris
atrás das grades
chora sobre a cidade.

Tchibum

Um beija-flor mergulha
de repente – tchibum! –
por meus olhos a dentro.

81
Iluminação

Era uma pedra dourada.


Quando se abriu, voaram diamantes.
Pombas brancas na tarde azul.

Dilúvio

Espero um dilúvio
para inundar a minha garganta
seca de Deus.

Antipregão

Não faço um poema


para vender na feira.

O êxtase do poeta

O poema é natural.
A árvore, sobrenatural.

82
Comunhão

Havia um silêncio redondo


e o canto do pássaro.
O canto ia e voltava.
O silêncio, redondo.

Pintassilgo

Na minha janela
canta o mesmo pintassilgo
há cinquenta anos.

Condição

Penso com imagens


fora do lugar.
Sou poeta.

83
Centro

O centro da terra é o céu.

As crianças

De onde vêm, para onde vão


as crianças rindo
ao pé da montanha?

Epitáfio do timoneiro Gracchus

Até aqui me trouxe o mar.

O olho

O olho no galho da roseira


alto, lúcido e belo
como uma rosa sangrando.

84
João 1, 19

Ninguém viu a face de Deus.

Eu vi a face do meu pai.


Ouvi a sua voz serena

ou o seu grito de trovão.


A sua voz criou o mundo.

Não vi a Deus, mas vi meu pai


e basta.

Carícia

Acaricio a eternidade
como um cavalo
que vou montar.

85
Pétalas ao vento

Abandono

Abandonei o meu corpo


na praia
olhando o mar.

Ideal

O círculo perfeito
do pássaro
no abismo.

O arame farpado

O arame farpado
entre o olhar e o nevoeiro
estrangula a paisagem.

86
Sem perdão

Não me sobrou nada.


Perdoá-los por quê?
Um morto não esquece.

Retorno

Ainda retornarei
à mínima desordem
do mar.

Eclipse

Nas pétalas de magnólia


te exilas
em mito transmutada.

87
Os pinheiros

Os pinheiros cantam
com o mar na língua
verde de ostras.

Delírio

O lago reflete
o incêndio de um lírio.

As águas

As águas do rio
são pedras ainda líquidas.

Infinito

A estrela
grita.

88
Êxtase

Arranquei os olhos
para a rosa.

Arranquei o coração
para a noite.

Entro em êxtase
com a rosa da noite.

O orvalho

Não ouvi bem


o que a gota de orvalho
disse à pétala de rosa.

O êxtase do enforcado

A criança ofereceu uma flor


ao enforcado.

89
A libélua

A libélula beija a água


com os dois olhos abertos.

Aniversário

O meu pai faz anos


dormindo a sua morte,
mas não para sempre.

O azul de Deus

Eu beberei do azul de Deus todos os dias.


A pedra sangra, o relógio sangra, a rosa sangra,
os meus olhos caem por terra com os pássaros mortos.
Eu navego calmamente no mar azul de Deus.

90
Poema da necessidade

Os meus olhos de homem são cegos, a minha língua é seca.


Preciso um sinal de Deus.
Estou cansado de apalpar o escuro e destilar palavras de pó.

Sou um homem, não domino as categorias do divino.


O meu sentido do êxtase é o pão nosso de cada dia.

As solas dos meus sapatos estão gastas,


Eu não me canso de andar, sempre para mais além:
A beira do abismo não é própria do homem.

A mesa posta, o pão e o vinho, a palavra e a luz


São tudo de que preciso para celebrar a vida.
Caminho entre as rosas, sob a chuva das estrelas,

Abraço a minha mulher e o meu filho,


O espírito nos une sob o mesmo teto.
Mas sou um homem e preciso ver a face de Deus.

91
Poemas breves

Alba

A dor das ameixas


abrindo-se à luz.

As flores de pedra

Quando as dores do mundo são a dor.

Alvorada

Gira a roda d’água.


O monjolo pila o milho.
Um galo bica a manhã.

92
Epitáfio

Tinha uma pedra no meio do caminho.


Agora estou debaixo dela.

Deus
Abismo.

Estrangeiros

Era madrugada e velávamos.


Descemos a montanha com o peito deserto.
Estranhos como deuses.
Nem sabemos o nosso próprio nome.

O absoluto

Nada acontece
do lado de fora do poema.

93
Maturidade

A maturidade são as rugas,


umas dores, uns achaques.

É saber que, no fundo da chácara,


teu pai está morto.

A língua seca

A minha língua está seca de tanto contar os mortos.

O sal nas pétalas

Quem salgou as pétalas das rosas


secas no caminho?

94
Fidelidade

Na minha língua vai florindo a flor da loucura.

Oferta

Eu vos oferto os meus olhos, ó príncipes, ó mendigos.


Que quereis mais?

Os jacintos

As palavras eram de pedra


quando morreram os últimos jacintos.

Roca

A lagarta cega entre as folhas da árvore


fia a forma do efêmero.

95
Poética essencial

Escrevo para descobrir o verbo essencial.


Eu quero o verbo essencial.
A rosa,
As pétalas em chamas,
A essência da rosa.
Escrevo para entrar em êxtase,
Escrevo para ver Deus.

Quero escrever um poema tão mal feito


Que só Deus para consertar.
Um poema tão sem sentido
Que só Deus para me dar a chave.
Um poema do abismo
Que só Deus para me salvar.
Um poema que me anule, absolutamente.
Na folha branca, na pedra fria,
Só o absoluto de Deus.

96
Portinari

A pandorga azul entre as nuvens e os pássaros


Brinca no céu azul.
Os anjos batem as asas brancas
Sobre o campo de futebol.

São Jorge enfrenta o dragão na lua,


Candinho aprende que a vida é fábula.
São José conversa com a Virgem
Na pequena capela da Nonna.

O menino morre nos braços da mãe,


Vai pintar a outra vida de azul.
A morte é azul como os olhos de Deus.

Uma flor se abre nos olhos do menino


Suspenso no cosmo como um balão.
Candinho bate as asas brancas no paraíso azul.

97
O estranho matou os pássaros

O estranho se dizia possuído dos dons do espírito,


Mas trazia a morte na ponta dos dedos
E o seu sopro era seco como o pó dos sepulcros.

Estava vestido de penas, nuvens e espumas,


Sonhava no seu leito de pregos com o paraíso.

O estranho matou os pássaros.

Restam as cinzas dos delírios sobre as pedras,


Mas a sua visão ainda incendeia as estrelas.

98
Réquiem para W. H. Auden

Parem as máquinas, parem todos os motores.


Queimem os livros, as enciclopédias, todas as cifras,
Todos os poemas, as palavras e as imagens.
Queimem o homem e a sua verdade implausível.

Morreu o poeta, o mundo não é o mesmo.


A memória do próprio tempo, das árvores e das águas
Desfaz-se ao contato humano, à vigília, ao clarão da aurora.
As paredes caem, os olhos explodem no labirinto.

O ouro da sombra desmorona, desmorona.


O azul do céu e o azul do mar são muito frágeis.
Não nos contaram que era tanta a solidão.

Parem as máquinas, chegamos ao esquecimento.


Queimem os poemas, as imagens continuam cegas e mudas,
Nós continuamos perplexos diante da porta sem fechadura.

99
Senhor, a noite é nossa

Senhor, a noite é nossa.


Teu corpo nos agasalha,
Teu sangue nos alimenta.
Nós quebramos o espelho

E escorre sangue da tua imagem, Senhor.


As estrelas choram conosco,
Somos como camelos alongados na areia
Em busca da própria sombra.

Palavras são tudo que nos resta


Em nossa pobreza
E são secas como a pedra e a areia.

Senhor, tem piedade de nós.


Cegos e surdos à tua palavra,
Sufocamos no abismo, Senhor.

100
Tempo pascal

Espero a ressurreição dos mortos.


É tão simples a vida do homem puro
Que espera a segunda vinda do Senhor
Como quem espera o trem na estação.

O fogo dança nos lampiões, volta-se para o alto,


Os cadáveres das crianças sorriem beatíficos,
As flores crescem dos túmulos para o sol,
Os pássaros revoam com o delírio da luz.

O meu pai segue com o arado abrindo a terra,


A minha mãe cultiva as dálias da manhã
Nas fazendas de Deus, nos jardins do eterno.

Atravessei os areais do deserto na noite,


Mastiguei as pedras da aranha da angústia.
Espero a ressurreição como quem espera a chuva.

101
Testamento

Deixarei meu olhar no olhar do meu filho,


Deixarei minha voz estranha como a vida,
Deixarei a minha estranheza nos gestos,
Na minha difícil, impossível humanidade.

Deixarei o meu sorriso tímido e atrevido,


Um jeito enigmático para os outros,
Uma correção, um espanto, um sim e não.
Deixarei, imperfeita, a minha diferença.

Deixarei a minha pele, a minha delicadeza,


As minhas palavras ressoando no escuro.
Deixarei meus erros e meus escuros acertos.

Deixarei o sentido do êxtase, tão pouco.


Deixarei o quanto tenho de alma e de absoluto.
Deixarei Deus, no espelho, para o meu filho.

102
Unidade

O teu olhar me atravessou de lado a lado.


Dos meus olhos vazados, do meu peito
Saíram água e sangue e a luz mais pura:
A luz dos meus olhos vazados inundou o mundo.

Os homens céticos, as velhas, as mulheres,


Todos os desesperados do mundo se afogam
Na minha luz, na minha líquida iluminação.
E os anjos batem as asas brancas no céu azul.

Eu quero a plenitude da palavra amor.


Eu quero a plenitude do Ágape.
Deus me sustenta na sua mão absoluta.

As árvores cantam a música na lira do vento.


As tempestades levam as penas dos pássaros
E dos homens para a unidade de Deus.

103
Orelhas do livro:

“Eu faço poesia


porque vou morrer.”

Todos os homens nascem condenados à solidão.


Sempre falta algo que lhes preencha a alma. Sempre sobra um
vazio interior. A poesia vem, mais do que preencher o vazio que
todos nós temos uma vez ou outra, quando nos confrontamos
com nós mesmos, dar-nos essa vida interior que nos falta.
Mas o que é a poesia? Poesia é a emoção depurada pela
forma. Se me pedissem a minha definição de poesia, podia ser
essa. Mas precisaria definir forma. Quando digo que poesia é
uma questão de forma, estou dizendo que é uma questão de
linguagem.
Quando se trabalha a linguagem, cria-se a poesia.
Modela-se a linguagem para criar a imagem. Esse é o princípio
da poesia. Depois há que se inserir a imagem num determinado
campo, o poema. Cria-se o poema quando se insere a imagem
numa determinada estrutura. Portanto, mais que a poesia, o
poema é uma questão de forma.
Falar em forma é falar da roupagem da linguagem e do
que essa roupagem cobre, embeleza, e ao mesmo tempo dá
sentido.
Não há como se abordar a poesia de um âmbito
puramente estético. Poesia é linguagem, e linguagem tem
implicações políticas, sociais, religiosas, éticas... Linguagem
inclui em si uma cosmovisão. A poesia, sendo linguagem, é uma
cosmovisão.
Lembro-me de que eu definia poesia como uma forma
que respira. Não contradiz o que eu disse aqui até agora.
Reafirma. É ainda melhor definição: vai direto ao ponto. Se é
uma forma que respira, não é uma forma fria. É uma forma com o
homem dentro. Ou com o espírito, sinônimo de sopro, respiração,
o que anima a poesia. Concluindo: a poesia é uma forma
vivificada pelo espírito humano. É uma forma que respira.
A essência do poema é a falta de sentido do universo, da
palavra, da vida e da morte. Precisa gravar a lápide porque sabe
que aquele instante não vai sobreviver. Precisa organizar o
mundo para a morte. O êxtase da vida é desorganizado pela
morte. Escreve para fixar esse êxtase. É um servo da
incoerência: escreve para falhar. A lápide é gravada: o poema
existe, falho e inútil, contra todas as expectativas.
É um sinal de que o homem está vivo.

J. C. M. Brandão
J. C. M. Brandão publicou os livros de poesia O Emparedado,

1975; Exílio, prêmio “José Ermírio de Moraes”, para melhor livro

de poesia publicado no ano 1983; Presença da Morte, prêmio “V

Bienal Nestlé de Literatura Brasileira”, 1991; e Poemas de

Amor, 1999. É detentor ainda dos prêmios “Brasília de

Literatura” por um livro de poesia inédito, 1991, e “Nacional de

Literatura Cidade de Belo Horizonte”, por um romance inédito,

2000.

Em O Silêncio de Deus continua a explorar a perplexidade

humana diante da beleza e do efêmero.

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