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CARLOS WALTER

PORTO GONÇALVES

os
(DES)CAMINHOS f)r�o

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AMBIENTE
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ed itoracontexto
Copyright© 1989 Carlos Walter Porto Gonçalves

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

Capa
Francis Rodrigues

Revisão
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... ._ Maria Silvia Gonçalves e Luiz Roberto Malta
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•nosição
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.• Veredas Editorial
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Dados Iq:ternacionais de Catalogação na P ublicação (CIP)
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\ _/(Câmara Brasileira do Livro,


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SP, Brasil)

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Gon�lves,·,.. arlos Walter Porto.
"•,..._ . _ J)s.(dés)cammhos do meiO ambiente I Carlos Walter Porto
Gonçalves, 14. ed.- São Paulo: Contexto, 2006. (Temas aruais).

Bibliografia.
ISBN 85-85134-40 - 2

L Ecologia humana. 2 . Homem - Influência ambientaL


3. Homem - Influência na natureza L Título

89-0131 CDD-30 4 . 2

Índices para catálogo sistemático:


L Ecologia humana 304.2
2. Ecologia social 304.2
3. Homem e natureza: Ecologia 304.2
4. Meio ambiente: Influência do homem: Ecologia 304.2
5. Natureza e homem: Ecologia 304.2

EDITORA CONTEXTO
Jaime Pinsky
Diretor editorial:

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05083-110 - São Paulo- SP
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www.editoracontexto.com.br

2006

Proibida a reprodução total ou parciaL


Os infratores serão processados na forma da lei.
SUMÁR IO

I. Introdução ............,..................... 7
II. O Contexto Histórico-Çultural de onde emerge
o Movimento Ecológico ...................... 10
ill. Lutas Sociais, Lutas Ecológicas . ...... 18 . . . . . . . . . • .

IV. O Conceito de Natureza não é Natural .. .......... 23


V. A Natureza no Dia-a-Dia ............ .......... 25
VI. Os (Des)Caminhos do Conceito de Nature�
no Ocidente . . . . . .. ............. 28
. . . . . . . . . . ·.

VII. A Ciência diante da Natureza . .. 37 . . . . . . . . . . . . . • .

Vill. A Harmonia Natural. Harmonia? . ................ 61


IX. O Homem na Natureza e a Natureza no Homem . . . . 75 .

X. Sociedade Natural. Natural? . ........ .......... 94


XI._ Sociedade Moderna e Natureza ................. 100
XTI. Tempo e Trabalho: Produtividade . .............. 103
Xll. A Técnica, a Sociedade e a Natureza .. . . . .. . 1 1 8 . . . . . .

XIV. Natureza e Relações Sociais . . . . . . . . .. . . ... . 1 25 . . .

V. Ecologia, Liberdade e Igualdade: Autonomia . . 136 . . . . .

XVI. Notas Bibliográficas . . . . .. . . . . ... . .. . . . . . 145


. . . .
A Chico Mendes
que me ensinou que
a defesa da natureza começa pela terra;
sem terra não há planta;
sem terra não se planta.
Plante a Reforma Agrária!
I NTR O DU ÇÃO

Como qualquer texto, este ensaio elege seus interlocutores: os que


militam nos movimentos ecológicos e os que se identificam com
eles sabem o porquê do emprego desse plural. Tento aqui estabele­
cer um diálogo com esses companheiros, com vistas a trazer algu­
ma contribuição para o desenvolvimento de nossas lutas. Em suma,
trata-se de um esforço no sentido de apontar a complexidade e a
diversidade daquilo que constitui os movimentos ecológicos.

De fato, parece não haver campo do agir humano com o


qual os ecologistas não· se envolvam: preocupam-nos questões que
vão desde a extinção de espécies como as baleias e os micos-leões,
a explosão demográfica, a corrida armamentista, a urbanização de­
senfreada, a contaminação dos alimentos, a devastação das flores­
tas, o efeito estufa, as técnicas centralizadoras até as injunções do
poder político que nos oprime e explora. Procurei refletir sobre o
porquê de invadirmos tantos campos diferentes, empregando deli­
beradamente um estilo que transita entre o rigor científico-filosófi­
co e o manifesto pülítico. Para tanto me vi obrigado a fazer uma
viagem por territórios que me eram pouco familiares e o fiz com o
cuidado que essas situações exigem: pisar devagar, sentir a con­
sistência do chão, sabendo que o próximo passo da caminhada não
seria necessariamente em solo tão firme quanto o que já havia pi­
sado e dominado. Estou, por outro lado, convencido de que os pla-
8 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

nos de viagem, as diversas filosofias que aprendemos ao longo de


nossas vidas estão comprometidos com os fundamentos histórico­
culturais que instituíram nosso mundo. Assim, esses planos . são
marcados não só pelo pensamento herdado, �as também pelas prá­
ticas sociais instituídas, sendo, portanto, parte do que queremos ver
superado.
A viagem é longa e para isso conto com a paciência do
leitor. Sei que a paciência não é uma virtude na sociedade em que
vivemos, marcada pelo pragmatismo, pelo imediatismo, pela preo­
cupação com a produtividade ·e com a eficácia. Quase sempre a
exigência é de respostas imediatas, pois, afinal, os problemas são
urgentes e parece que o apocalipse está próximo. Devo observar
que esta postura, todavia, é, ela própria, prisioneira deste mesmo
mundo que se pretende questionar. Assim, só me resta fazer o con­
vite para essa viagem pelas entranhas do pensamento-ação herda­
do, onde possamos localizar outras formas de pensar, sentir e agir
bastante próximas de nós e que quedaram sufocadas e silenciadas
como é o caso das formulações dos chamados filósofos pré-socráti­
cos. Por que ficaram sem nos ser apresentados, eles que falavam de
uma physis, de uma natureza muito próxima daquela que nós eco­
logistas intuúnos e que os físicos, biólogos e filósofos contemporâ­
neos redescobrem? Que motivos levaram a que ficassem silencia­
dos? Seriam os mesmos motivos pelos quais tentam nos silenciar,
nos desqualificar como interlocutores? Essa é uma das questões
que tentarei elucidar neste ensaio. Poderemos descobrir que mui­
tos, antes de nós, levantaram essas questões e que muito temos que
aprender com suas proposições e com suas derrotas. Afmal, a razão
nem sempre está com quem venceu, embora os vencedores sempre
apresentem as suas vitórias como sendo vitórias da Razão. Os ven­
cidos são assim desqualificados e, não sejamos ingênuos, a des­
qualificação dos derrotados de ontem é uma das estratégias para a
produção de novas vitórias-derrotas aqui e agora. Resgatar essas
· trajetórias nos pennite superar a arrogância muito comum naqueles
que se deixam levar pelos modismos e, devemos ser sinceros, o
movimento ecológico está na moda.
Estou consciente dos limites que um breve ensaio coloca a
tal empreitada, mas não poderia me furtar à oportunidade de defla-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 9

grar uma reflexão sobre questões que me parecem decisivas na


orientação das práticas ecológicas.
Minha proposta é realizar uma breve contextualização das
condições histórico-culturais das quais emerge o movimento ecoló­
gico no mundo e no Brasil. Logo a seguir, estabeleço um diálogo
com outros diversos movimentos sociais, procurando localizar o
que temos em comum e o que nos diferencia, temática que é reto­
mada ao fmal do trabalho. Analiso adiante o modo como a socie­
dade ocidental construiu o seu conceito de natureza, caracterizado
por uma espécie de deslocamento do homem, no processo de de­
senvolvinlento e declínio da Antiguidade.greco-romana. Procuro,
em seguida, tomando por base as novas descobertas de físicos, so­
ciólogos e antropólogos, fundamentar uma concepção em que Ho­
mem e Natureza são concebidos como parte de um mesmo processo
de constituição de diferenças. O homem é a natureza que toma
consciência de si própria e esta é uma descoberta verdadeiramente
revolucionária numa sociedade que disso se esqueceu ao se colocar
o projeto de dominação da natureza.
No capítulo subseqüente, busco as raízes mais recentes que
nos pennitem compreender melhor a progressiva devastação das
nossas condições de vida. Aí me deparo com a sociedade indus­
trial, ignorante das implicações metafísicas de seus próprios fun­
damentos.
Finalmente, procurei fundamentar o movimento ecológico
como um movimento de caráter político-cultural, demonstrando que
cada povo/cultura constrói o seu conceito de natureza ao mesmo
tempo em que institui as suas relações sociais.
Trata-se, portanto, de um ensaio sobre o conceito de natu­
reza subjacente às nossas relações sociais.
O CONTEXTO HISTÓR ICO-CULTURAL
DE ONDE EMERGE
O MOVIMENTO ECOLÓGICO

A década de 1960 marca a emergência, no plano político, de uma


série de movimentos sociais, dentre os quais o ecológico. Até en­
tão, o questionamento da ordem sócio-política e cultural estava por
conta dos movimentos. que- de diferentes maneiras- se reivindi­
cavam socialistas (os social-democratas, os comunistas e mesmo os
anarquistas). O movimento operário constituía o eixo em torno do
qual se fazia a crítica teórica e prática da ordem instituída e o ca­
pitalismo aparecia como a causa de todos os males com que os ho­
mens se defrontavam. Toda uma cultura, cujas matrizes estão loca­
lizadas no século XIX, havia se desenvolvido no interior do movi­
mento operário. No século XX, em alguns países do mundo, ocor­
rem revoluções que se proclamam socialistas e que vão tentar pôr
em prática outros princípios de organização social. Ao mesmo tem­
po, no interior dos países capitalistas mais desenvolvidos, os tra­
balhadores conquistam uma série de direitos cujo atendimento,
acreditava-se, seria impossível nos marcos daquela sociedade: jor­
nada de trabalho de oito horas, semana de cinco dias, férias remu­
neradas de trinta dias, salário-desemprego, aposentadoria, assistên­
cia médica gratuita e educação pública, entre outros. O movimento
Ôperário começa, de certa forma, a se institucionalizar porque cou­

be ao Estado gerir e administrar essas conquistas no interior dos


países capitalistas, enquanto que nos. Estados que se reivindicam
como socialistas os próprios trabalhadores vão perdendo, pouco a
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 11

pouco, o controle das instituições criadas no período revolucioná­


rio, em virtude da crescente centralização e burocratização. É nesse
contexto, na década de 1960, que começam a emergir com feições
autônomas uma série de movimentos, tais como os movimentos das
mulheres, dos negros, os movimentos ecológicos, etc. É possível
encontrar manifestações desses diferentes segmentos sociais em pe­
ríodos anteriores, mas é indiscutível· que eles não só não consti­
tuíam os mais significativos movimentos de questionamento da or­
dem instituída, como também tinham as suas especificidades su­
bordinadas aos interesses da causa maior da emancipação do pro­
letariado. A partir dos anos 60, contudo, observa-se a crescente
participação desses movimentos na cena política...
Uma verdadeira revolução nos costumes já começa a des­
pontar nos anos 50, a partir da descoberta dos anticoncepcionais e
das manifestações de rebeldia dos jovens, expressas em grande
parte em torno do rock-and-roll. Não se tratava mais, pelo menos
no caso dos países capitalistas desenvolvidos, de acabar com a mi­
séria e a exploração que caracterizaram o desenvolvimento capita­
lista no século XIX e primeira metade do século XX, até porque as
condições de vida haviam se modificado sensivelmente em virtude
das próprias lutas operárias. O italiano Antonio Gramsci, intelec­
tual-militante comunista, havia feito uma observação interessante
acerca dessa situação já na década de 1920. Dizia ele· que as pró­
prias conquistas operárias, na medida em que eram institucionali­
zadas pelo Estado capitalista, significavam também uma consolida­
ção deste regime sócio-polític<K:ultural. E chamava a atenção para
o fato de que as revoluções anticapitalistas haviam ocorrido exata­
mente nos países onde as classes dominantes, seja por característi­
cas histórico-culturais· próprias, seja devido à fragilidade do movi­
mento operário local, opunham maior resistência às demandas dos
"de baixo".
A década de 1960 assistirá, portanto, ao crescimento de
movimentos que não criticam exclusivamente o modo de produção,
mas, fundamentalmente, o modo de vida. E o cotidiano emerge aí
como categoria central nesse questionamento. É claro que cotidia­
no e História não se excluem; todavia, há um desÍocamento de ên­
fa.Se: enquanto o movimento operário em sua vertente marxista do
12 CARLOS WALTER P . GONÇALVES

minante (social-democt.:ata e Ieninista) insistia na "missão histórica


do proletariado" que, uma vez vitorioso sobre a burguesia capita­
lista, resolveria então todos os problemas cotidianos, os movimen­
tos que emergem na década de 1960 partem <41 situação concreta de
vida dos jovens, das mulheres, das "minorias" étnicas, etc. para
exigir a mudança dessas condições. É como se observássemos um
deslocamento do plano temporal (História, futuro) para o espacial
(o quadro de vida, o aqui e o agora).
Os exemplos dos beatnik e dos hippies são bem a expres­
são dessa postura. Neste sentido, muito contribuiu a visão da ver­
dadeira chacina que era cometida no Vietnã primeiro pela França,
depois pelos EUA, ao mesmo tempo em que ocorria a difusão dos
meios de comunicação de massa. Agora, a guerra podia ser vista
todo dia na hora do jantar, via satélite, enquanto crescia, em con­
trapartida, o movimento pacifista nos EUA e na Europa. Também
nesta direção e completando esse quadro, registre-se a crise no in­
terior do chamado "bloco socialista" entre a URSS e a China. O
socialismo de vertente stalinista que se autoproclamava uma via
única passa a ser questionado. Aímal, foram profundos os proble­
mas criados pelas tentativas de industrialização da China, um país
essencialmente camponês, segundo o modelo soviético. Uma ex­
pressão que parecia ter caído em desuso com a chegada da esquer­
da ao poder em alguns países voltou à baila: Revolução Cultural. •

O movimento ecológico tem essas raízes histórico-cultu­


rais. Talvez nenhum outro movimento social tenha levado tão a
fundo essa idéia, na verdade essa prática, de questionamento das
condições presentes de vida. Sob a chancela do movimento ecoló­
gico, veremos o desenvolvimento de lutas em torno de questões as
mais diversas: extinção de espécies, desmatamento, uso de agrotó­
xicos, urbanização desenfreada, explosão demográfica, poluição do
da água, contaminação de alimentos, erosão dos solos, dimi­
uu o das terras agricultáveis pela construção de grandes barra-
n , un a a nuclear, guerra bacteriológica, corrida armamentista,
I uolu 111 ue afinnam a concentração do poder, entre outras.
N o h , pr 1ticamente, setor do agir humano onde ocorram lutas e
1 v mi • 1 · que o movimento ecológico não seja capaz de in-
nrpurn ,
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 13

N o entanto, nem sempre a s pessoas que s e mobilizam em


tomo dessas questões o fazem enquanto movimento ecológico. Por ·

exemplo, quando os pescadores e camponeses de Ponta Grossa dos


Fidalgos, distrito do município de Campos, no norte do estado do
Rio de Janeiro, mobilizaram-se contra o assoreamento da Lagoa
Feia, estavam se batendo por um modo próprio de uso das condi­
ções naturais de produção - a terra e a água -, procurando garantir
o seu tradicional modo de viver e de produzir e não se mobilizando
· enquanto movimento ecológico. Por outro lado, isso não impediu
que jovens, sobretudo universitários, a eles se juntassem em nome
do movimento ecológico, dando apoio concreto à luta dos campo­
neses e pescadores contra o tipo de uso que os usineiros e fazen­
deiros queriam fazer dos mesmos recursos naturais. Quer dizer, a
ecologia tem interessado aos mais diferentes segmentos da socie­
dade, apesar de nem todos partirem da mesma motivação política e
ideológica. Essa situação, verifica-se, não está livre de ambigüida­
des e contradições.
No Brasil, o movimento ecológico emerge na década de
1970 em um contexto muito específico. Vivia-se sob uma ditadura
que se abateu de maneira cruel sobre diversos movimentos como o
sindical e o estudantil. A nossa esquerda de então acreditava que o
subdesenvolvimento do país se devia fundamentalmente à ação do
imperialismo, que tinha como aliado interno a oligarquia latifundiá­
ria. Essa era a razão do atraso e da miséria em que vivia o povo
brasileiro e, em decorrência, deveríamos nos bater por uma revolu­
ção antiimperialista; de caráter popular, e com o apoio de setores
da burguesia nacional. Assim, acreditava-se, estaria aberto o cami­
nho para a modernização da sociedade brasileira, etapa necessária
para consolidar uma classe operária que pudesse empunhar a ban­
deira do socialismo. E isso parecia particularmente possível quando
se tomava por referência o exemplo de Cuba que havia conseguido
se libertar do grupo imperialista, ou seja, Davi vencera Golias. To­
davia, aqui a burguesia nacional não optou por essa via e se aliou à
burguesia internacional. A FIESP - Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo foi a grande articuladora dessa aliança desde
a década de 50. Acusando a esquerda de "nacionalismo demagógi­
eo:-populista", a FIESP vai rotular de "verdadeiio nacionalismo"
J'fo

aquele que propõe o desenvolvimento da nação abrindo, assim, as


portas do país à penetração do capital estrangeiro para que venha a
contribuir para o seu desenvolvimento. Verifica-se, portanto, um
deslocamento da consideração da questão nacional do plano das
condições sociais - como era colocado pela esquerda - para um
plano técnico-econômico desenvolvimentista. A burguesia conse­
gue atrair não só os investimentos estrangeiros como também o
apoio da tecnoburocracia civil e, sobretudo, militar. A partir da
Junta Militar de 1969 e do governo Médici, assiste-se à consolida­
ção desse regime autoritário e desenvolvimentista que vai mostrar,
contrariando a crença da esquerda até então, que ao imperialismo
não interessava a não industrialização do país. Será justamente sob
a égide do capital internacional que o Brasil alcançará o maior de­
senvolvimento industrial de sua História. Esse desenvolvimento se
fazia ainda. num país onde. as elites dominantes não tinham por tra­
dição respeito seja pela natureza, seja pelos que trabalham. A he­
rança escravocrata da elite brasileira se manifestava numa visão
extremamente preconceituosa em relação ao povo,. que seria "des­
preparado". Quanto ao latifúndio, bastava o desmatamento e a am­
pliação da área cultivada para se obter o aumento da produção e
isto nos levou a umá tradição de pouco respeito pela conservação
dos recursos naturais, a não ser nas letras dos hinos e nos súnbolos
da nacionalidade. A distância entre o discurso e a prática· é gritan­
te: o próprio nome do país, Brasil, é o de uma madeira que não se
encontra mais, a não ser em museus e jardins botânicos e a nossa
bandeira cada vez corresponde menos ao ve�e de nossas matas ou
ao amarelo do nosso ouro. O azul de nosso céu é cada vez menos
nítido, seja pelas queimadas que impedem até que aviões levantem
vôo dos aeroportos, seja pela poluição de nossos centros indus­
triais. E o branco, bem ... a cor da paz só se compreende como pia­
da diante de uma realidade de conflitos entre a UDR e os campo­
neses ou da presença dos militares no poder quando chegaram no
ponto de prender líderes sindicais, em nome da "segurança nacio­
nal", porque estes faziam manifestações contra as empresas multi­
nacionais aqui instaladas para gerar o nosso desenvolyimento.
Eis o contexto histórico-cultural do qual emerge a preocu­
pação' ecológica no Brasil na década de 1970 ... Tecnocratas brasi-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 15

leiros, participantes de seminários e colóquios internacionais, de­


claram que a "pior poluição é a da miséria" e tentam atrair os ca­
pitais estrangeiros para o país. A pressão da preocupação ambien­
talista que cresce a nível internacional obriga as instituições finan­
ceiras públicas e privadas a colocarem exigências para a realização
de investimentos aqui: há que se ter preocupação com o meio am­
biente. Assim, antes que se houvesse enraizado no país um movi­
mento ,�ológico, o Estado criou diversas instituições para gerir o
meio ambiente, a fim de que os ansiados investimentos pudessem
aqui aportar. Diga-se de passagem que estas instituiç�s incluem,
nos seus quadros, técnicos que se preocupam efetivamente com as
condições de vida, porém a lógica destas instituições é determinada
pela política global de atração de investimentos e não pelo valor
intrínseco da questão ambiental. Por outro lado, são vários os
exemplos de concessão de empréstimos internacionais, sobretudo
do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento
- BID -, para que se fizesse a demarcação das terras indígenas, das
terras de posseiros e relatórios de impacto ambiental, cujos recur�
sos não foram utilizados para os fins aos quais se destinavam.
Uma outra questão importantíssima que é. preciso observar
é a que se refere à descentralização dos empreendimentos, fre­
·

qüentemente reivindicada pelo movimento ambientalista. É preciso


ter em conta que as grandes empresas multinacionais têm possibili­
dades efetivas de descentralizar seus estabelecimentos, mantendo,
todavia, o controle empresarial, o poder centralizado. Já uma em­
presa de pequeno porte não tem como o fazer. Deste modo, há que
se distinguir entre descentralização técnica, isto é, quando uma
mesma grande empresa descentraliza geograficamente seus estabe­
lecimentos que, no entanto, continuam sob um controle centraliza­
do da matriz e descentralização sócio-política, que diz respeito ao
direito efetivo de cada unidade de produção autodetenninar seus
destinos. Como se vê, só na aparência a descentralização multina­
cional se concilia com a descentralização proposta pelo movimento
ambientalista.
Também em fmais da década de setenta, com a anistia, re­
tomaram ao Brasil diversos exilados políticos que vivenciaram os
movimentos ambientalistas europeus e que vão trazer um enonne
16 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

enriquecimento ao movimento ecológico brasileiro. Juntar-se-ão a


outros que aqui já vinham defendendo teses ecologistas, como é o
caso de José Lutzemberger. É interessante observar que o movi­
mento ecologista é socialmente mais enraizado no Rio Grande do
Súl, onde a AGAPAM (Associação Gaúcha de Preservação Am­
biental) reuniu ecologistas a partir da luta contra a Borregaarde,
empresa multinacional que poluía as águas do Rio Guruba, na
Grande Porto Alegre e onde José Lutzemberger, ex-agrônomo de
uma grande empresa multinacional de agrotóxicos, rompe com a
perspectiva da agroquímica e assume profundamente a causa eco­
lógica e social. A maior parte dos exilados políticos que abraçam a
causa ecológica se concentra no Rio de Janeiro, estado onde já se
desenvolviam algumas lutas ambientalistas, sobretudo no norte­
fluminense (Campos e Macaé, por exemplo) e em Cabo Frio (luta
pela preservação das dunas).
São essas, portanto, as três fontes mais importantes de
preocupação ecológica no Brasil: o Estado, interessado nos inves­
timentos estrangeiros que só chegam caso se adotem medidas de
caráter preservacionista; o movimento social gaúcho e fluminense,
se bem que essas lu� ocorressem em todo o Brasil - vide a luta
nacional da Federação das Associações dos Engenheiros Agrôno­
mos do Brasil- FAEAB, liderada por Walter Lazarini, contra os
agrotóxicos usados indiscriminadamente e a elaboraçãó· de seu
"Receituário Agronômico"; e, finalmente, a contribuição dos exi­
lados políticos que aqui chegaram em finais da década de 70.
Assim, de diferentes lugares soci�s emergem discursos
ecológicos e práticas contraditórias entre si. Do ponto de vista das
elites empresariais e tecnoburocráticas, a maior parte dos ecolo­
gistas são românticos e contra o progresso e o desenvolvimento.
Em nenhum momento admitem que os ecologistas são contra a sua
concepção de progresso e de desenvolvimento. Se, por exemplo, o
movimento ecológico brasileiro não pode ficar indiferente à miséria
em que vive a maior parte da nossa população- e esse é um desa­
fio que dá uma certa especificidade ao movimento ecológico entre
nós - isso não significa que se deva fazer vista gro�sa ante a de­
senfreada utilização da agroquímica com o objetivo de propiciar o
aumento da produção agrícola. Ao contrário, deve-se propugnar
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 17

po r wna·refonna agrári a que incorpore outros princípios tecnológi­


cos e que não coloque, inclusive, os camponeses e demais agricul­
tores na extrema dependência dos bancos e das indústrias de agro­
tóxicos. Sabe-se que não é mera casualidade o fato de que um dos
diretores do Banco do Brasil, instituição responsável por mais de
80% do crédito agrícola no país; seja executivo de uma das maio­
res fábricas de produtos agroquímicos aqui instaladas. Considere­
se tamõ
' ém que a indústria bélica, a que mais cresceu na década de
1970, não é a única fonna de gerar emprego para os trabalhadores
brasileiros. Do mesmo modo, a defesa da Amazônia não ocorre
porque é considerada um santuário intocável, mas sim pelo reco­
nhecimento de que há mais de dez mil anos ali vivem povos indí­
genas e, há pelo menos um século, posseiros e seringueiros que fa­
zem uso da flo�sta sem a destruir. Esses povos da floresta reivin­
dicam hoje a constituição de "reservas extrativistas" na Amazônia,
proposta que tem recebido o apoio de diversos técnicos que nela
vêelh a possibilidade de valorização econômica da floresta, sem a
costumeira destruição. Enfim, ser contra a instalação de grandes
hidrelétricas não significa estar contra a energia. O que se deseja é
a abertura de l:un debate livre e democrático sobre as diversas al­
ternativas energéticas para o país.
Fica evidente, portanto, que o movimento ecológico está
inserido nwna sociedade contraditória e, por isso, são diversas as
propostas acerca da apropriação dos recutsos naturais. Saber dis­
tinguir dentre esses diferentes usos - o que implica estar atento a
quem os propõe - é wna das nossas tarefas políticas, pois se todos
· falam em defesa do meio ambiente por que as práticas vigentes são
tão contraditórias.e, pior, devastadoras?
LUTAS SOCIAIS, LUTAS ECOLÓGICAS

De onde emerge o movimento ecológico? Talvez seja interessante


observar os diversos movimentos sociais e verificar o que o ecoló­
gico tem em comum com eles e em que se diferencia. Vários são os
movimentos sociais que se apresentam: são os operários, os cam­
poneses, os indígenas, as mulheres, os negros, os homossexuais, os
jovens, etc. que se organizam e lutam... Há um traço comum a es­
ses movimentos: todos eles- emergem a partir de determinadas con­
dições sociais de existência que lhes dão substância.
Há uma determinada condição operária que foi instituída
através de acirradas lutas e que configura a vida de importantes
segmentos da sociedade. São homens e mulheres que não têm
meios de produzir a sua própria exi,stência; que foram expulsos da
terra ou nasceram filhos de famílias que foram·expropriadas· da ter­
ra e que se vêem obrigados a vender a sua força de trabalho, nem
sempre fazendo aquilo de que gostam ou que melhor saberiam fa­
zer. Em virtude dessa condição, lutam contra os baixos salários,
contra a insalubridade do meio ambiente da fábrica, contra os rit­
mos das esteiras e das linhas de montagem, enfim, contra uma de­
terminada forma de viver, por uma outra forma de viver . A condi­
..

ção operária pode ser observada com razoável grau de nitidez não
só no fluxo diário do "rush" das nossas cidades ou através dos
caminhões de bóias-frias, como também através de seus movimen­
tos reivindicativos como greves, "operações-tartaruga", passeatas,
etc...
OS (DES)CAMINHOSDOMEIO AMBIENTE 19

Os camponeses, ao contrário, dispõem geralmente de wn


pequeno pedaço de terra e de seus instrumentos de trabalho; tra­
balham com seus familiares e visam garantir a reprodução das suas
famílias praticando wna agricultura de subsistência e vendendo
uma pequena parcela excedente dessa produção. No interior de
uma SQ9iedade ·capitalista, como a nossa, com freqüência se vêem
ameaçados por "grileiros" que possuem títulos falsos de proprie­
dade; pela chegada de uma estrada que "valoriza" as su,as terras -
e atrás das estradas vêm os "grileiros", fazendeiros e especulado­
res; pela astúcia. das grandes empresas e dos bancos que prometem
pagar muito . bem se eles produzirem o tabaco, o tomate, a ervilha
ou o algodão... mas depois que se "especializam" vêem-se obriga­
dos a comprar o que não mais produzem, estabelecendo-se uma
troca desigual, onde, ao final e ao cabo, quase sempre perdem a
sua terra e vagam pelo território, indo para as frentes pioneiras, pa­
ra as amazônias da vida, onde se tomam posseiros e, como tal, re­
começam a sua vida camponesa, até que por lá cheguem, outra vez,
a estrada, o "grileiro'!··· Há, portanto, também, uma condição
camponesa que pode ser razoavelmente localizada, embora sua
maior ou menor nitidez, tal como na condição operária, dependa
das lutas sociais em curso.

Os povos indígenas com sua cultura e seus territórios ten­


tam resistir à extinção não só física, mas também cultural... Até·
porque a vida é mais que biológica: é wn detenninado modo de ser,
pensar, sentir e agir. Cada vez mais, os povos indígenas afirmam a
sua singularidade, a sua diferença, enfim, a sua cultura. Há, por­
tanto, uma existência que poderíamos chamar de objetiva, inspi­
rando o movimento dos indígenas e essa objetividade, sabemos, de­
riva exatamente da sua afirmação como sujeitos de sua própria
História, da sua singularidade.

As mulheres também vêm afumando a sua singularidade.


Recolhidas ao lar, consideradas como incapazes de agir senão pela
emoção, vistas como objeto sexual� as mulheres, sobretudo a partir
da década de 60, têm ocupado cada vez mais espaços na sociedade.
Cada vez se toma mais difícil que o tribunal absolva o homem que
matou sua mulher valendo-se da alegação de "defesa legítima da
20 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

honra". Há aqui, mais uma vez, uma condição-mulher razoavel­


mente delineada, da qual emerge o movimento feminista.
Os �egros, tidos como inferiores e por isso escravizados,
lutaram pela liberdade desde o primeiro dia em que, a contragosto,
puseram seus pés no Brasil. Em 1888 viram o reconhecimento for­
mal da sua liberdade, muito embora a favela em nada seja melhor
que um quilombo. Além dos diversos preconceitos a que ainda �e
acham submetidos, ou até mesmo por isso, os negros são a grande
parcela da população carcerária. Essa condição social de opressão
e exploração sob a qual se acham vem também sendo a base objeti­
va de onde provém a consciência da negritude, através dos seus
movimentos.
Os homossexuais, em virtude dos preconceitos da socieda­
de, se vêem compelidos a viver em guetos, escondidos, onde são ·

obrigados a conviver com outros excluídos. Lentamente, vão con­


seguindo o seu direito de romper barreiras formadas pelos muros
invisíveis do preconceito... Cada vez se mostram mais lúcidos, na
medida em que não afirmam a sua opção sexual como sendo a cor­
reta ou a verdadeira, conforme a ideologia sexista dominante. Cada
vez mais reivindicam o direito à diferença; o direito de não serem
discriminados pela sua opção sexual que, diga-se de passagem, é
da inteira responsabilidade de cada um. Também aqui existe uma
condição social objetiva de onde emerge um movimento.
O mesmo pode ser dito do jovem que se vê obrigado, à
medida que se aproxima da idade adulta, a aceitar regras de cuja
elaboração não participou. Eis a verdadeira raiz do chamado con­
flito de gerações. Toda aquela energia que durante a infância e
adolescência se desenvolveu através de folguedos e brinquedos lú­
dicos tem de sér reprimida para que se imponha o mundo "sério"
dos adultos, onde se trabalha sem prazer, onde a aceitação de tudo
se toma sinônimo de maturidade.
Muito embora a condição de jovem seja sempre passageira,
ela expressa com vigor problemas que a sociedade apresenta, mas
que a ideologia dominante desqualiftca como "coisas da idade".
Sem perder de vista que a condição-jovem é extremamente diferen­
ciada nas diversas classes sociais e que em determinadas classes,
como a operária por exemplo, os conceitos de criança, adolescente
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE· 21

e jovem são quase sempre destituídos do mesmo significado que


têm para as outras classes, é preciso destacar a existência de uma
condição social jovem de onde se originam movimentos sociais
que, via de regra, questionam os valores culturais dominantes.
E o movimento ecológico? Existe uma condição social
ecológica? Aqui. talvez se imponha uma maior precisão no que es­
tou chamando de condição social. Ela diz respeito, entre ·outras
coisas, ao modo como a sociedade, ao. instituir suas relações, con­
forma o cmpo dos indivíduos. Há um corpo operário, camponês,
indígena, mulher, negro, homossexual e jovem, por exemplo. Não
há um corpo ecológico enquanto condição social. Não há, para o
movimento ecológico, essa base objetiva, produzida e instituída
socialmente através de lutas. Essa é uma diferença extremamente
significativa: o movimento ecológico é mais difuso, não apreensí­
vel do mesmo modo que os demais corpos que se movimentam so-
cial'e politicamente. .
Esse caráter difuso não desqualifica o movimento ecológi­
co. Ao contrário, é a fonte da sua riqueza e dos.seus problemas en­
quanto movimento polítioo e cultural. Ao propugnar uma outra re­
lação dos homens (sociedade). com a natureza, aqueles que consti­
tuem o movimento ecológico estão, na verdade, propondo um outro
modo de vida, uma outra cultura. Chocam-se com valores já consa­
grados pela tradição e que, ao mesmo tempo, perpetuam os pro­
blemas que queremos ver superados. É por esse caráter difuso de
um movimento que, no fundo, aponta para uma outra cultura, que
os ecologistas se encontram envolvidos com questões tão diferentes
como a luta contra o desmatamento, contra os agrotóxicos, os ali­
mentos contaminados, o crescimento da população, a urbanização
descontrolada, o gigantismo tecnológico e o nuclear, a poluição, a
erosão dos solos, a extinção de animais, etc.
Na trajetória desse movimento, muitos têm sido os con­
frontos com outros movimentos que também procuram afirmar as
suas singularidades. Quando os ecologistas europeus se colocam
contra o complexo industrial militar, contra o militarismo, se de­
frontam não só com os empresários do setor, mas também com os
operários que nele trabalham e temem perder seus empregos.
Quando, no Brasil, denunciamos a contaminação de rios por mer­
cúrio usado por garimpeiros, pequenos produtores, nos vimos
"apoiados" pela grande imprensa, inclusive por uma grande central
de televisão que tem interesse no setor. Neste caso, a grande em-
22 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

presa se mostra mais competente para evitar a contaminação dos.


rios em virtude das técnicas mais sofisticadas de que dispõe. Os
pequenos produtores de ouro se vêem pressionados pela opinião
pública mobilizada pela )llÍdia em nome de causas ecológicas e,
/ /

proibidos de continuar sua atividade, migram para outros lugares,


indo disputar terras com posseiros ou . comunidades indígenas ou
indo engrossar o exército dos despossuídos urbanos.
Os ecologistas podem se considerar vitoriosos nesse caso?
De fato, aquele rio provavelmente ficou sem contaminação; no en­
tanto, a produção de ouro ficou concentrada em grandes empresas,
os conflitos pela posse da terra se intensificaram e a concentração
urbana aumentou. Mais ainda, o movimento ecológico se vê, com
freqüência, alvo de suspeita de cumplicidade com os poderosos.
Estes, por sua vez, não raro acusam os ecologistas de romantismo,
sempre que estes se colocam contra o gigantismo das cidades, o gi­
gantismo das ·indústrias, o complexo industrial militar, o nuclear,
etc. Costumam afmnar que os ecologistas querem voltar à Idade da
Pedra e outras coisas do gênero. Por tudo quanto é lado, pela
frente e pelos fundos, pela direita e esquerda, de cima e de baixo, o
movimento ecológico se vê cooptado ou rechaçado, ao sabor das
conveniências de interesses outros. Há ecologistas que identificam
nisso a afmnação da "verdade ecológica", o que não deixa de ser
uma posição estranha, uma vez que esse movimento se constrói em
·meio a desconfianças generalizadas. O estabelecimento 'de uma
outra relação, mais hannônica, dos homens com a natureza - tema
de que tratarei mais adiante - vincula-se, ou não, ao estabeleci­
mento da hannonia nas relações dos homens çntre si? -Em caso ne­
gativo, constata-se, no mínimo, uma incoerência, pois sendo o ho­
mem também natureza, do reino animal , por que não estaríamos
submetidos às leis da hannonia entre nós? Um leão não é mais rico
que o seu companheiro leão; um gato não é mais poderoso que seu
vizinho gato; uma andorinha não é mais do que sua irmã andorinha...
Como se vê, a problemática ecológica implica outras
questões extremamente complexas. Implica outros valores, o que
por si só coloca questões de ordem cultural, filosófica e política.
Implica um outro conceito de natureza e, conseqüentemente, outras
fonnas de relacionamento entre os seres vivos; com o mundo inor­
gânico; enfim, dos homens entre si.
O CONCEITO DE NATUREZA
N ÃO É NATURAL

É comum entre aqueles que se envolvem com a problemática eco­


lógica citar outras sociedades como modelos de relação entre os
homens e a natureza. As comunidades indígenas e as sociedades
orientais são, via de regra, evocadas como modelos de uma relação
hannônica com a natureza. Se em diferentes religiões o paraíso é
projetado no reino dos céus, para diversos ecologistas este se loca­
liza em outras sociedades. Há uma virtude nesse procedimento: ele
oferece um consolo, enquanto idéia, para o mundo em que vivemos
-que concretamente não tem consolo. Isto não deixa de ser, à sua
moda, uma crítica à sociedade que não é tal e qual os modelos ci-'
tados, daí as utopias. Nesse sentido, as utopias têm um lugar con­
.creto num mundo onde não existem concretamente, sendo por isso
sonhadas e projetadas enquanto utopias. Por outro lado, esse pro­
cedimento não deixa de ser também uma fuga dos problemas con­
cretos, muitts vezes derivada de uma incompreensão das razões
pelas quais em nossa sociedade e cultura as coisas são do jeito que
são.
Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma
determinada idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito
de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pe­
los homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens
erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual,
enfim, a sua cultura.
24 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Dessa forma, é fundamental que reflitamos e analisemos


como foi e como é concebida a natureza na nossa sociedade, o que
tem servido como um dos suportes para o modo como produzimos
e vivemos, que tantos problemas nos tem causado e contra o qual
constituúnos o movimento ecológico.
A NATUREZA NO DIA-A-DIA

Sem que nos apercebamos, usamos em nosso dia-a-dia uma série de


expressões que trazem em seu bojo a concepção de natureza que
predomina em nossa sociedade. Chama-se de burro ao aluno ou a
pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao
mau-caráter; de cavalo ao indivíduo mal-educado; de vaca, pira­
nha e veado àquele ou àquela que não fez a opção sexual que se
considera correta, etc ... Juntemos os termos: burro, cachorro, ca­
valo, vaca, piranha e veado são todos nomes de animais, de seres
da natureza tomados - em todos os casos - em sentido negativo-r
em oposição a comportamentos considerados cultos, civilizados, e
bons. O antropólogo Lévi-Strauss nos ensina que os romanos cha­
mavam de bárbaros aos outros povos tidos por eles como não civi­
lizados e que a palavra "bárbaro" originalmente significava canto
desarticulado das
(llles. Portanto, bárbaro era o que é da natureza­
ave - por oposição ao que é da cultura- romano. Chama-se de sel­
vagem àquele que se encontra no pólo oposto da cultura. E, notem
bem, selvagem quer dizer da selva, mais uma vez, do plano da na-
tureza.
A natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que
se opõe à cultura. A cultura é tomada como algo superior e que
conseguiu controlar e dominar a natureza. Daí se tomar a revolução
,neolítica, a agriCULTURA, um marco da História, posto que com ela
o homem passou da coleta daquilo que a natureza "naturalmente" dá
26 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

para a coleta daquilo que se planta, que se cultiva. Com a agricul­


tura nos tomamos sedentários e não mais nômades. Primitivos são
aqueles que vivem da caça, da pesca e da coleta ou de uma agri­
cultura itinerante, posto que não conseguem manter a fertilidade do
solo, necessitando migrar periodicamente em busca do alimento.
Com a agricultura irrigada alguns povos se estabelecem sobre um
determinado território de maneira mais permanente, mais estável. A
vida se toma menos inconstante, domestica-se a natureza e, assim,
formam-se os berços das civilizações na Mesopotâmia, no Egito, na
China, etc. Dominar a natureza é dominar a inconstância, o impre­
visível; é dominar o instinto, as pulsões, as paixões.
Tem-se como necessário o artifício das leis para evitar que
retomemos ao reino animal, tido como lugar dos instintos. O Esta-
do, a lei e a ordem são tomados como necessários para evitar o
primado da natureza, onde reina o caos ou, no máximo, a "lei da
selva", onde todos lutam contra todos. Basta um rápido olhar sobre
os diversos Estados constituídos com suas leis e ordens para no­
tarmos o quadro de fome, de guerras, de opressões e violências de
todos os tipos que eles mesmos instituíram em nome da civilização
para constatarmos a inconsistência deste tipo de abordagem. Na
verdade, encontramo-nos diante de um conceito de natureza que
justifica a existência do Estado. Este é condição de "civilização" e
"primitivos" são os povos que não têm Estado. Esta é uma das ra­
zões para que se chame de ingênuo ao ecologista que cita o indíge­
na como modelo de relação entre o homem e a natureza.
Além disso, a expressão dominar a natureza só tem sentido
a partir da premissa de que o homem é não-natureza ... Mas se o
homem é também natureza, como falar em dominar a natureza? Te­
ríamos que falar em dominar o homem também ... E aqui a contra- .
dição fica evidente. Afinal, quem dominaria o homem? Outro ho­
mem? Isso só seria concebível se aceitássemos a idéia de um ho­
mem superior, de uma raça superior, pura - e a História já de­
monstrou à farta as conseqüências destas concepções.
A natureza é, em nossa sociedade, um objeto a ser domi­
nado por um sujeito, o homem, muito embora saibamos que nem
todos os homens são proprietários da natureza. Assim, são alguns
poucos homens que dela verdadeiramente se apropriam. A graride
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 27

maioria dos outros homens não passa, ela também, de objeto que
pode até ser descartado. A visão tradicional da natureza-objeto
versus homem-sujeito parece ignorar que a palavra sujeito com­
porta mais de um significado: ser sujeito quase sempre é ser ativo,
ser dono do seu destino. Mas o termo indica também que podemos
ser ou estar sujeitos - submetidos - a determinadas circunstâncias
e, nesta acepção, a wavra tem conotação negativa. . . Eis aí o para­
doxo do humanismo moderno: sua imperiosa necessidade de afrr­
mar uma visão de mundo antropocêntrica, onde o homem é o rei de
tudo, o faz esquecer o outro significado do termo "sujeito" - o
sujeito pode ser o que age ou o que se submete. A ação tem a sua
contrapartida na submissão.
Já vimos como em tomo do conceito de natureza se tecem
no dia-a-dia as relações sociais. Talvez seja agora interessante lo­
calizar de onde brota essa visão de natureza entre nós.
OS (DES)CAM INHOS DO
CONCEITO DE NATUREZA NO OCIDENTE

Podemos dizer que a separação homem-natureza (cultura-natureza,


história-natureza) é uma característica marcante do pensamento que
tem dominado o chamado mundo ocidental, cuja matriz filosófica
se encontra na Grécia e Roma clássicas. Quando afirmamos que é o
pensamento dominante no Ocidente, queremos deixar claro que a
afirmação desse pensamento - que opõe homem e natureza - cons­
titui-se contra outras formas de pensar. Não devemos ter a ingenui­
dade de acreditar que ele se afmnou perante outras concepções
porque era superior ou mais racional e, assim, desbaricou-as. Não,
a afmnação desta oposição homem-natureza se deu, no corpo da
complexa História do Ocidente, em luta com outras formas de pen­
samento e práticas sociais. Ter isso em conta é importante não só
para compreender o processo histórico passado, mas, sobretudo, pa­
ra compreender o momento presente. Isso porque o movimento
ecológico coloca hoje em questão o conceito de natureza que tem
vigorado e, como ele perpassa o sentir, o pensar e o agir de nossa
sociedade, no fundo coloca em questão o modo de ser, de produzir
e de viver dessa sociedade.
No Ocidente, já houve época em que o modo de pensar a
natureza foi radicalmente diferente do que tem dominado nas épo­
cas modema e contemporânea, muito embora possamos encontrar
na Idade Média e entre filósofos do período clássico grego essa
mesma visão dicotomizada, parcelada, oposta, entre homem e natu-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 29

reza. As coisas eram diferentes, por exemplo, na chamada época


pré-socrática 1 quando os filósofos Tales, Anaximandro, Anaxíme­
nes (todos de Mileto);- Xenófanes (de Cólofon); Heráclito (de Éfe­
so); Pitágoras (de Samos); Parmênides e Zenão (de Eléia); Melisso
(de Lamos); Empédocles (de Agrigento); Filolau (de Cróton); Ar­
quitas (de Torento); Anaxágoras (de ClazÓmena); Diógenes (de
Apolônia) e Le:ucipo e Demócrito (de Abdera) desenvolveram um
conceito de natureza bastimte diferente daquele que vai coinéçar a
se impor principalmente após Sócrates, Platão e Aristóteles.
E o filósofo Gerd Bornheim quem nos diz:

Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico, ao


anímico, ao espiritual, qualquer que seja o sentido que se
empreste a estas palavras. Mas para os gregos, mesmo de­
pois do período pré-socrático, o psíquico também pertence
à physis. Esta importante dimensão da physis pode ser
melhor compreendida a partir de sua gênese mitológica
( . . . ) Os deuses gregos não são entidades sobrenaturais,
pois são compreendidos como parte integrante da natureza
( . . . ) Esta presença (dos deuses) transparece ainda na frase
que é atribuída a Tales : "Tudo está cheio de deuses!" ( . . . )
Segu ndo Jaeg�r, Tales_ emprega a palavra deus "em um
sentido um tanto distinto daquele em que a empregariam a
maioria dos homens". Os deuses de Tales não vivem em
uma região longínqua, separada, . pois tudo, todo o mundo
que x:odeia o homem e que se oferece ao seu pensamento
está cheio de deuses e dos efeitos de seu poder. "Tudo
está cheio de misteriosas forças vivas; a distinção entre a
natureza animada e inanimada não tem fundamento algum;
tudo tem uma alma". Esta idéia da alma, de forças miste­
riosas que habitam a physis, transforma-a em algo inteli­
gente, empresta-lhe certa espiritualidade, afastando-a do
sem-sentido anárquico e caótico. Veja-se, como exemplo,
o fragmento 67, de Heráclito. "Deus é dia e noite, inver­
no e verão , guerra e paz, abundância e fome. Mas toma
formas variadas, assim como o fogo, quando misturado
com essências, toma o nome segundo o perfume de cada
uma delas . " Ou ainda o fragmento 64: "O relâmpago (que
é a arma de Zeus) governa o universo''. Esta idéia de que
deus pertence em algum sentido à physis é característica de
todo o pensamento pré-socrático e continua viva mesmo
em Demócrito ( ... ) À physis pertence, portanto, um princí-
30 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

pio inteligente, que é reconhecido através de suas mani­


festações e ao qual se emprestam os mais variados nomes:
espírito, pensamento, inteligência, logos, etc.
A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre,
emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se mani­
festa neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata­
se, pois, de um conceito que nada tem de estático, que se
caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética. "Di­
zer que o oceano é a gênese de todas as coisas é virtual­
mente o mesmo que dizer que é a physis de todas as coi­
sas " , aímna Wemer Jaeger referindo-se a Homero . Neste
sentido, a physis encontra em si mesma a sua gênesf(; ela
é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. O "pôr-se
no manifesto" encontra na physis a força que leva a ser
manifesto. Por isto pôde Heidegger dizer "a physis é o
próprio ser, graças ao qual o ente se toma e permanece ob­
servável" .

Há ainda um terceiro aspecto que caracteriza a physis para


os gregos:

A physis é a totalidade de tudo o que é . Ela pode ser apre­


endida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento
das plantas, no nascimento de animais e homens. E aqui
convém chamar a atenção para um desvio em que facil­
mente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa
compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita
e pobre que a grega; o perigo consiste em julgar a physis
como se os pré-socráticos a compreendessem a partir da­
quilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido,
se comprometeria o primeiro pensamento grego com uma
espécie de naturalismo. Em verdade , a physis não designa
principalmente aquilo que nós, hoje, compreendemos por
natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural.
Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o
mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo
o que existe. Não se compreende o psíquico , por exemplo,
a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual,
como não se entendem os deuses a partir do nosso conceito
mais parco de natureza. À physis pertencem o céu e a ter­
ra, a pedra, a planta, o animal e o homem, o acontecer hu­
mano como obra do homem e dos deuses e, sobretudo,
pertencem à physis os próprios deuses . Devido a esta am-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 31

plidão e radicalidade, a palavra physis designa outra coisa


que o nosso conceito de · natureza. Vale dizer que na base
do conceito de physis não está nossa experiência da natu­
reza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência
totalmente outra que não a que temos face à natureza. As­
sim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além
dela nada há que possa merecer a investigação humana.
Por isto, pensar o todo do real a partir da physis não impli­
ca � ·naturalizar" todos os entes ou restringir-se a este ou
aquele ente natural. Pen�ar o todo do real a partir da physis
é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a to­
talidade do ente.

Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser e a


partir da physis pode então chegar a uma compreensão da totalida­
de do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do ho­
mem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do
inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e
da justiça.
É com Platão e Aristóteles que se começa a assistir a um
certo desprezo "pelas pedras e pelas plantas" e a um privilegia­
menta do homem e da idéia. Não nos devemos esquecer de que os
consagrados fundadores da Filosofia, acima citados, viveram du­
rante o chamado apogeu da democracia grega2• Imediatamente, os
acontecimentos que desembocaram na guerra do Pelopon'eso colo­
caram em crise o regime social e político de Atenas. É exatamente
no interior dessa crise que desponta a chamada filosofia grega.
Três questões então aqui se colocam. A p�eira diz respeito à
paulatina desqualificação dos pensadores anteriores como expres­
sando um J)ensamento mítico e não filosófico. Assim, o filósofo se­
ria um pensador superior em relação aos que o antecederam. A re­
tórica, arte da argumentação, e o sofista, que tanto a cultivava,
passam a ser termos pejorativos. Ninguém quer ser retórico ou so­
fista. Em segundo lugar, observamos que com esse processo se ini­
cia uma mudança no conceito de physis, de natureza que, se num
primeiro momento não aparece senão debilmente, pouco a pouco se
afmnará até atingir contemporaneamente essa concepção de natu­
reza desumanizada e desta natureza não-humana. Relembramos que
esse processo se afmna com a crise da democracia grega. Final­
mente: hoje, como no passado, a reflexão se impõe exaú,Unente nos
32 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

momentos de crise, quando setores da sociedade se colocam a tare­


fa de repensar seus fundamentos, seus valores, seu modo de ser. O
movimento ecológico está bem no centro destas complexas ques­
tões. Não é por acaso que, modernamente, a problemática ecológi­
ca transita entre a Ciência, a Filosofia. e a Política, recolocando in­
clusive em novas bases a relação entre esses três planos.
Mas foi sobretudo com a influência judaico-cristã que a
oposição lwmem-natureza e espírito-matéria adquiriu maior di­
mensão. Os cristãos vão afmnar decididamente que "Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança". Note bem: o homem foi cria­
do à imagem e semelhança de Deus (Deus aqui aparece com letra
maiúscula e não como para os pré-socráticos). O homen{' é, assim,
dotado de um privilégio. Com o cristianismo no Ocidente, Deus
sobe aos céus e, de fora, passa a agir sobre o mundo imperfeit do Ó
dia-a-dia dos mortais. Localizado num lugar privilegiado, estraté­
gico, do alto, Deus a tudo vê e controla. A assimilação aristotélico­
platônica que o cristianismo fará em toda a Idade Média levará à
cristalização da separação entre espírito e matéria. Se Platão falava
que só a idéia era perfeita, em oposição à realidade mundana, o
cristianismo operará sua própria leitura, opondo a perfeição de
Deus à imperfeição do mundo material. Essa leitura de Aristóteles
e Platão efetuada pela lgrejá na Idade Média se fez evitando-se
outras leituras através da censura, como muito bem o demonstrou
Umberto Eco em O Nome da Rosa. Enfim, com o cristianismo, os
deuses já não habitam mais esse mundo, como na concepção dos
pré-socráticos. E, apesar da acusação de obscurantismo que mais
tarde os pensadores modernos lançarão. aos tempos medievais, a
dívida que a Ciência e a Filosofia modernas têm para com a Idade
Média é maior do que se admite. Foi na Idade Média, por exemplo,
que teve início a prática de dissecação de cadáveres no Ocidente
europeu. Esse fato é de uma importância muito grande e se consti­
tuiu numa decorrência lógica de uma Filosofia q� separa corpo e
alma. Se a alma não habita mais o corpo depois de morto, este,
como objeto, pode ser dissecado anatomicamente. Afinal, aquilo
que o anima (do grego ânima, alma) não está mais presente. O
corpo, matéria, objeto pode então ser dissecado; esquartejado, di­
vidido. O sujeito, o que faz viver, foi para os céus ou para os in-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 33

infernos e o corpo pode, então, virar objeto . . . O método experi­


mental já estava em prática nos monastérios e universidades católi­
cas muito antes de Galileu.
É com Descartes, todavia, que essa oposição homem-natu­
reza, espírito-matéria, sujeito-objeto se tomará mais completa,
constituindo-se no centro do pensamento moderno e contemporâ­
neo. Em seu Discurso sobre o Método René Descartes afirma que
"é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida"
e que

em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas es­


colas, pode-se encontrar numa outra prática pela qual co­
nhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos as­
tros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam
tão distintamente como conhecemos os diversos misteres
de nossos ofícios poderíamos empregá-los da mesma ma­
neira em todos os usos para os quais são próprios e assim
nos tomar como que senhores e possuidores da natureza
(os grifos são meus).

Dois aspectos da filosofia cartesiana aqui expressos vão


marcar a modernidade: 1 2) o caráter pragmático que o conheci­
mento adquire - "conhecimentos que sejam muito úteis à vida em
vez dessa fllosofia especulativa que se ensina nas escolas". Dessa
forma, o conhecimento cartesiano vê a natureza como um recurso,
ou seja, como nos ensina o Dicionário do Aurélio, um meio para se
atingir um fim, e 22) o antropocentrismo, isto é, o homem passa a
ser visto como o centro do mundo; o sujeito em oposição ao objeto,
à natureza. O homem, instrumentalizado pelo método científico,
pode penetrar os mistérios da natureza e, assim, toma-se "senhor e
possuidor da natureza". À imagem e semelhança de Deus, tudo
pode, isto é, é todo-poderoso. Lewis Munford percebeu com pro­
fundidade a herança medieval de Descartes ao afmnar que "des­
graçadamente persistiu o hábito medieval de separar a alma do ho­
mem da vida do mundo material, ainda que houvesse sido debilita­
da a teologia que o apoiava". O desprezo pelas coisas materiais da
Idade Média começa a ganhar, a partir dos séculos XVI, XVII e
XVIII , um outro sentido, positivo, na medida em que "se pode en-
entrar uma outra prática onde poderíamos empregá-los da mesma
34 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

maneira em todos os usos para os quais são próprios' ' , como dizia
Descartes. O antropocentrismo e o sentido pragmático-utilitarista
do pensamento cartesiano não podem ser vistos desvinculados do
mercantilismo que se afirmava e já se tornava, com o colonialismo,
senhor e possuidor de todo o mundo. Afmal, na Idade Média, a ri­
queza dos senhores feudais e da Igreja advinha da propriedade da
terra e, na verdade, da exploração dos servos que para a utilizarem
pagavam um . tributo ou renda. Com o desenvolvimento mercantil e,
com ele, da burguesia a riqueza passa cada vez mais a depender da
técnica (ver a esse respeito o capítulo sobre produtividade). A
pragmática filosofia cartesiana encontra um terreno fértil para ger­
minar. O antropocentrismo consagrará a capacidade humana de
dominar a natureza. Esta, dessacralizada já que não mais povoada
por deuses, pode ser tornada objeto e, já que não tem alma, pode
ser dividida, tal como o corpo já o tinha sido na Idade Média. É
uma natureza-morta, por isso pode ser esquartejada . . . ·

Com a instituição do capitalismo essa tendência será leva­


da às últimas conseqüências. O lluminismo, no século XVIII , como
que antecipando esse desfecho se encarregará de limpar a filosofia
renascentista de seus traços religiosos medievalistas. A crítica da
metafísica - de meta além e physis, natureza, ou seja, daquilo que
está além da natureza, na concepção iluminista, será feita em nome
da física, isto é, em nome da natureza tomada aqui no sentido do
concreto, do tangível, do palpável. Para compreender o mundo é
necessário partir do próprio mundo e não de dogmas religiosos ou
que estão além do mundo, quer dizer, metafísicas.
A Revolução Industrial evidencia a força dessas idéias ou,
como preferem alguns, a Revolução Industrial é a base dessas
idéias.
O século XIX será o do triunfo desse mundo pragmático,
com a ciência e a técnica adquirindo, como nunca, um significado
central na vida dos homens. A natureza, cada vez mais um objeto a
ser possuído e dominado, é agora subdividida em física, quúnica,
biologia. O homem em economia, sociologia, antropologia, histó­
ria, psicologia, etc. Qualquer tentativa de pensar o homem e a na­
tureza de uma forma orgânica e integrada torna-se agora mais difí­
cil, até porque a divisão não se dá somente enquanto pensamento.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 35

A realidade objetiva construída pelos homens - o que inclui, ob­


viamente, a subjetividade, sem o que o homem se transforma num
ser exclusivamente biológico - está toda dividida: a indústria têxtil
está separada da agricultura. Se, por exemplo, no início, cada in­
dustriài têxtil construía suas próprias máquinas, encomendando pe­
ças aos artesãos, com o aumento do número de indústrias têxteis se
criou um mercado para indústrias de m , áquinas; as 'indústrias de
máquinas se; especializam, etc. A divisão social e técnica do traba­
lho faz parte do mundo concreto dos homens e não pensar de modo
fragmentado, dividido, dicotomizado, passa a ser cada vez mais ca­
racterístico daqueles que parecem ter perdido o sentido de realida­
de... São "os que querem voltar ao passado" , que "não vêem o
progresso da História que está sob seus olhos", "são românticos",
"idealistas", dizem. São "irracionalistas" e, assim, "se refugiam
em seitas religiosas que os abrigam". Se o real é o racional abso­
luto que a civilização capitalista industrial cria, de fato, tem senti­
do chamar de irracionalistas e sonhadores os que não se identifi­
cam com essa razão, o que não quer dizer que não possa haver uma
razão crítica alternativa à razão que oprime e devasta.
A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o
que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza,
cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalis­
mo. As ciências da natureza se separam das ciências do homem;
cria-se um abismo colossal entre uma e outra e, como veremos mais
adiante, tudo isso não é só uma questão de concepção do mundo. A
ecologia enquanto saber e, sobretudo, o movimento ecológico ten­
tam denunciar as conseqüências dessas concepções, embora o fa­
çam, muitas vezes, permeados pelos princípios e valores dos seus
detratores. . .

NOTAS

1. Diga-se de passagem que chamar os pensadores que viveram antes do sé­


culo V a.C., na Grécia, de pré-socráticos já revela um preconceito, na
medida em que se os nomeia pela referência não aos atributos que lhes
são próprios, mas pela evocação daquilo (ou de quem) não são e que lhes
sucede - Sócrates -, o que na verdade significa recusar-lhes identidade e
36 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

cidadania. Esses homens que nos legaram teses das quais, infelizmente, só
nos chegaram fragmentos num estilo de linguagem para nós pouco fami­
liar, têm sido alvo de muitas atenções sobretudo nos últimos anos.
2. Esse marco, apogeu, só tem sentido para nós, porque para os gregos do
século V a.C. aquela época não implicava necessariamente o ápice de um
processo, muito embora fizessem referência aos perigos que rondavam a
democracia grega e que criavam a possibilidade do seu declínio.
A CIÊNCIA DIANTE DA NATUREZA

Temos insistido em que toda sociedade, toda cultura, cria um de­


tenninado conceito de natureza, ao mesmo tempo em que cria e
institui suas relações sociais. No interior destas relações sociais
está embutida, portanto; uma detenninada concepção de natureza.
Ora, a ciência moderna é também instituída por uma sociedade, por
uma cultura, num processo que começa a se configurar com o Re­
nascimento no século XVI e se con�olida nos séculos XVill e
XIX. Em conseqüência, a ciência instituída por esta sociedade traz
nela, subjacentes, os pressupostos do real-imaginário desta cultura
que a instituiu como relação social. Estamos, portanto, longe da
crença que vê a evolução das idéias - no caso, da ciência, - como
algo que paira acima dos mortais. Ao contrário, consideramos que
o saber científico, instituído socialmente, como todas as instifui-
ões, não é definitivo ou imortal.

Ainda que com os riscos de fazermos uma caracterização


umária dos pressupostos que incorpora da sociedade que a criou,
podemos �r que a ciência moderna se configura em torno de três
ixos:

1) A oposição homem e natureza.


2) A oposição sujeito e objeto.
3) O paradigma atomístico-individualista.
38 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

A OPOSIÇÃO HOMEM VERSUS NATUREZA

Já discorremos nos capítulos anteriores a respeito desta


oposição, tão marcante no pensamento ocidental, entre o homem, a
cultura, a história, de um lado, e a natureza, de outro. Nossas uni­
versidades estão ,estruturadas com base nesta oposição: de um lado,
as ciências da natureza e, de outro, as ciências humanas. As ciên­
cias humanas vivem radicalmente separadas das ciências da nature­
za e, assim, descobertas realizadas em um ou outro desses campos
ficam nele isoladas, como se houvesse uma alfândega proibindo
que saíssem das fronteiras de cada grande área do conhecimento.
Assim, por exemplo, se a descoberta do código genético abriu a
biologia para trocas com a quúnica, pois o gene está inscrito no
ácido desoxirribonucléico, o ADN, o mesmo não ocorre entre a
biologia e as teorias de comunicação, a informática e a cibernética,
muito embora a biologia trabalhe com as noções de código, pro­
grama e memória... Em síntese, é necessário romper as barreiras da
biologia não só para a <1J:ÚIDÍCa como também para as ciências so­
ciais, a teoria da comunicação, por exemplo. E tudo isso sem a
preocupação de reduzir o biológico ao social ou vice-versa, evitan­
do equívocos do darwinismo social que de modo unilateral reduziu
o social ao natural, ao biológico.
Mesmo a geografia que, em princípio, não caberia dentro
dessa oposição, reproduz no seu interior essa dicotomia através da
separação entre a geografia física e a geografia humana. Os geó­
grafos talvez tenham a chance de pensar em nova� ahordagcns
desta relação entre o físico e o humano. Todavia enquanto se
mantiverem dentro dos parâmetros do pensamen.o herdado, poucas
chances terão de superar o problema. Se refletirmos bem, observa­
remos que a ecologia vem ocupando esse espaço teórico e político
que os geógrafos não têm sabido ocupar. Na verdade, é de um ou­
tro conceito de natureza e, conseqüentemente, de homem que a
ciência, a sociedade e a cultura contempvrânea carecem.
A busca de algo que comprove que o homem não é nature­
za se constitui numa verdadeira obsessão do pensamento herdado
no Ocidente. O homem é um ser social, dizem-nos. Para o de­
monstrar, lança-se mão de exemplos de crianças que foram encon-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 39

tradas completamente isoladas de uma sociedade-cultura. As difi­


culdades de articulação da linguagem, os gestos incompreensíveis e
até a postura corporal diferente são citados como evidências de que
o homem só é homem se vivendo socialmente, no ambiente de uma
cultura. Ora, essa tese só teria substância se observássemos em vá­
rias comunidades animais como se dá o comportamento de cada in­
divíduo de cada espécie e depois observando o caso de um indiví­
duo em cada comunidade que também fosse encontrado completa­
mente isolado e verificássemos que o comportamento dos indiví­
duos isolados não apresentava diferenças fundamentais em relação
ao da sua mesma espécie, o que nos permitiria acreditar que o
comportamento dos animais diferentes do homem deriva exclusi­
vamente de características genéticas e não da convivência deles em
grupo. Mesmo que se pudesse dizer que um grupo de indivíduos da
mesma espécie apresenta determinadas características (enquanto
grupo) que advêm de sua estrutura genética, ainda assim caberia
explicar por que um indivíduo isolado não apresenta as mesmas ca­
racterísticas quando está sozinho e quando está vivendo em grupo.
Parece evidente que a diferença detectada se deve à sociabilidade
derivada da vida em grupo que teria, no mínimo, a capacidade de
selecionar certos atributos e potencialidades genéticas. Neste caso,
percebe-se a dimensão do pensamento de Spinosa quando afirmava
que todo ser é potência e que a potencialidade de cada ser se de­
senvolve na relação.
O desenvolvimento recente da etologia, ciência que estuda
o comportamento dos animais na sua vida em grupo e, também, da
sociobiologia indica, no mínimo, que o viver em sociedade é uma
característica do reino dos seres vivos, sobretudo dos animais.
Mais adiante veremos com mais detalhes que tal problema, em su­
ma, só se coloca em virtude do pressuposto atomístico-individua­
lista que tem dominado o pensamento ocidental e, por conseqüên­
cia, a ciência modema.
Dizer, portanto, que o homem é um ser social como se isso
o distinguisse dos demais seres da natureza pode ser uma afirmação
altissonante mas que pouco faz avançar qualquer esforço de dife­
renciação entre o homem e a natureza, na medida em que os seres
vivos, sobretudo os animais, já vivem socialmente. Isso não quer
40 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

dizer que o homem não seja um animal social, mas que é social
porque é animal e os animais vivem socialmente. Por outro lado,
essa constatação não autoriza uma interpretação ingênua que redu­
ziria o homem ao reino animal sem maiores reflexões. Assim como
entre os animais há diferenças significativas, e homem tem também
as suas especificidades.
Outros auto�s, como Uvi-Strauss , vão tentar distingqir o
homem da natureza pelo fato de os homens estabelecerem interdi­
ções ou proibições para o acasalamento. Ou seja, o relacionamento
sexual entre os hwnanos está sujeito a regras arbitrárias, artificiais,
culturais, onde uma série de possibilidades estão int�rditadas. Por
exemplo: irmãos consangüíneos, pai e filha, mãe e filho não podem
casar entre si. Assim, cada cultura teria suas próprias interdições,
seus próprios tabus, e nisso os homens se distinguiriam dos ani­
mais, da natureza, onde reinaria a promiscuidade ou, se se preferir,
nenhuma lei existiria regulando os acasalamentos. Essa tese, que
quase levou a que se confundisse o objeto da antropologia com o
estudo das relações de parentesco, trouxe-nos uma série de conhe­
cimentos importantes a respeito das relações entre os homens. To­
davia, o próprio Uvi-Strauss em prefácio recente a sua antiga obra
Estruturas Elementares do Parentesco reconhece que se houver
separação entre natureza e cultura a linha divisória é extremamente
tênue. E assÍlJ.l afirma em virtude de ter tido acesso a inúmeros tra­
balhos rigorosos e científicos que admitem a existência de relações
de parentesco e de interdições entre alguns primatas superiores.
Ironicamente, se a antropologia, com Uvi-Strauss, muito contri­
buiu para a compreensão do homem isso se deu apesar e até por
causa da ilusão de ter pensado encontrar o divisor de águas que se­
para a natureZa da cultura, isto é, as relações de parentesco...
E poderíamos alongar a lista de tentativas que se fizeram
no Ocidente para afirmar essa separação entre natureza e cultura,
evocando os exemplos em que a linguagem, a técnica e o trabalho
aparecem como a chave da separação.
Tais considerações nos levam a pensar na aparentemente
contraditória dificuldade que nós ocidentais temos para conviver
com a diferença. Se natureza e homem são diferentes e na chamada

i .natureza os seres são diferentes entre si, por que não aceitar com
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 41

tranqüilidade esse fato? Não se pode localizar aí a tendência sem­


pre presente no pensamento ocidental em sua vertente dominante e
hegemônica de querer justificar a dominação do homem sobre a
natureza e de alguns homens sobre outros homens argumentando
com as diferenças de natureza? Enfim, não seria a tendência a
transformar a diferença em hierarquia, em superior e inferior, o que
explicaria essa discriminação do diferente na nossa sociedade-cul­
tura? Retomaremos essas questões mais adiante. Por ora, avance­
mos um pouco mais na análise das dificuldades advindas para a
ciência modema em conseqüência da concepção de mundo . que tem
predominado em nossa sociedade.

A OPOSIÇÃO SUJEITO VERSUS OBJETO

No mundo moderno, com Descartes, o método ganha maior


destaque. O sujeito - o homem -, dispondo do domínio de método
científico poderá ter acesso aos mistérios da natureza e, assim, tor­
nar-se senhor e possuidor desta, utilizando-a para os fms que de­
sejar. Hoje, vemos jovens universitários desejando a todo custo
dominar o método científico que lhes dará a chave de acesso à rea­
lidade das coisas. Afinal, temos de ser pragmáticos, pois se conti­
nuarmos nessas discussões metafísicas, filosóficas e especulativas,
nunca chegaremos a nada - dizem-nos · não apenas os jovens, mas
tan�bém professores e pes_quisadores que estão certos de que dis­
põem do segredo do acesso aos mistérios do mundo. Não se aper­
cebem de que eles mesmos foram instituídos por esta sociedade e
cultura.
Para os gregos, a palavra método significava caminho a ser
seguido. Ora, a ciência tenta, exatamente, conhecer o que é desco­
nhecido. Em outras palavras, o cientista constrói um determinado
objeto que · considera significativo e que- aeredita ser indevida ou
insuficientemente conhecido. Daí a prática comum entre os cien­
tistas de passar em revista as diferentes abordagens de um determi­
nado fenômeno e, depois, propor uma outra interpretação, um outro
·aminho. Nesse sentido, a ciência caminha do conhecimento pre­
umido para o desconhecido, tenta de-cifrar o que está cifrado.
42 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Ora, se a ciência caminha em direção ao desconhecido, qual é o


caminho - o método que leva até lá? Estranho paradoxo esse o de
-

pretender dominar um método que nos permita desvendar o misté­


rio da natureza das coisas antes de entrar numa relação efetiva com
elas. Na verdade, como nos ensina o físico e filósofo Gaston Ba­
chelard, nenhum método pode ser construído a não ser na relação
com o objeto. Ou, como dizia Ernesto "Che" Guevara, "EI camiíio
se hace ai caminar" ... Estas observações, sabemos, poderão ser
classificadas de "espontaneístas" ou românticas e seremos, talvez,
censurados por essa associação pouco usual de Bachelard e Gueva­
ra, quando eles se envolviam com preocupações tão diferentes. To­
davia, talvez o que autoriza exatamente essa aproximação seja a
abertura e a flexibilidade de espírito que esses dois homens conse­
guiam ter diante de questões tão sérias como a ciência e a políti­
ca... Seriedade e rigor científico não devem ser, portanto, confun­
didos com dogmatismo.
Sujeito e objeto pressupõem uma relação, um diálogo per­
manente, pois é nessa tensão que se produz o conhecimento. O su­
jeito, o cientista, não é o lado ativo que se opõe ao objeto, o lado
passivo. Não se pode fazer qualquer pergunta ao objeto que nos
dispomos a investigar...
A separação entre espírito e matéria, tão cara à filosofia
medieval, assume feições modernas na separação en�e sujeito e
objeto. O homem - o sujeito - debruça-se sobre a natureza-objeto,
tomada coisa. Não há problema, portanto, se dividimos a natureza
em tantos objetos científicos quanto possível, pois se trata de uma
"natureza-morta". Estranho seria se nos dias de hoje a natureza e
os homens não estivessem devastados e massacrados em função
desses pressupostos. A revolução industrial, muito mais que uma
profunda revolução técnica, foi o coroamento de um processo civi­
Iizatório que almejava dominar a natureza e para tanto submeteu e
sufocou os que a ele se opunham. O absurdo é que tal projeto teve
- de antemão - de colocar o homem como não-natureza, pois se o
homem não fosse assim pensado a questão da dominação da natu­
reza sequer se colocaria. Ironicamente, a falácia dessas teses que
opõem peremptoriamente o homem à natureza fica' evidenciada na
constatação de que historicamente a dominação da natureza tem si-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 43

do, via de regra, a história da dominação do homem pelo homem e


isso, evidentemente, não tem nenhuma justificativa na natureza . . .
Pensar a natureza, portanto, significa trazer à tona profun­
das implicações filosóficas e nós que assumimos plenamente a
ecologia temos de ir o mais fundo possível nessa reflexão para não
resvalarmos nas simplificações que tantos danos nos têm causado.
Em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico,
tem-se justificado toda uma prática de dominação dos homens e da
natureza. Já vimos muitos afmnarem que a culpa por este desdo­
bramento não é da ciência. A ciência não é um saber que paira
acima dos homens, mas fruto de uma relação social instituída. Afi­
nal, foi em nome de um saber objetivo, capaz de promover a felici­
dade humana, que a ciência se afmnou frente à filosofia e à reli­
gião, com os iluministas do século XVIII. . . Os dogmas religiosos
que tantos obstáculos colocavam à compreensão do mundo deve­
riam ser abolidos para dar passagem à vida. . . Aqueles que hoje vê­
em a ciência servir para a destruição de hiroshimas e nagasakis, pa­
ra a corrida armamentista, para o genocídio e para o aniquilamento
das condições naturais da vida, devem-se interrogar sobre o con­
texto sócio-histórico que instituiu essa ciência . . . Muitos já o estão
fazendo e, sobretudo entre os jovens, vemos uma frontal recusa a
esse projeto civilizatório. Não é por acaso que a ecologia encontra
entre eles grande simpatia. Muitas vezes se tem tentado desqualifi­
car esse movimento exatamente por esse seu perfil de jovialidade.
E como os jovens, pela própria (de)formação que a sociedade lhes
impõe, não são iniciados nos argumentos "sérios", "científicos" e
"racionais", sentem-se deslocados, indo muitos buscar em seitas
religiosas e práticas místicas abrig�para as suas angústias e espe­
ranças. É comum entre eles se criticar a razão, pois o que consta­
tam é que em nome dela se explora, oprime e devasta. Recordemos
Herbert Marcuse que alertava os jovens para o fato de que chamar
de racional a General Motors era fazer-lhe um elogio que ela não
merecia. . .
É preciso enfatizarmos que a visão de mundo que tem sido
hegemônica em nossa sociedade, com seus conceitos de natureza e
d homem, não se afmnou porque era melhor ou superior. Aceitar
ssa tese só teria sentido se ignorássemos que muitas das questões
44 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

que hoje levantamos já o haviam sido no passado por outros que


foram sufocados, silenciados e oprimidos. É esse "silêncio dos
vencidos" que tentamos resgatar, vendo na história o lugar de ten­
são não sô entre teorias mas, sobretudo, entre práticas; percebendo
que aquelas que porventura são instituídas . fazem questão de se
apresentarem como naturais e, com isso, procuram ofuscar que, ao
se instituírem, o fizeram sufocando outras possíveis práticas que te-
·

riam dado origem a uma outra história.


É por isso que devemos buscar na história, des-cobrir
aquilo que o discurso oficial encobre e, com isso, superar aquela
arrogância típica dos ignorantes que, muitas vezes, pensam que
estão sendo inovadores ou criativos . . .
A s instituições que se impuseram em nossa sociedade pre­
tendem aparecer a cada um de nós como habituais, rotineiras, eter­
nas, em suma, naturais. Não deve nos escapar esse sentido de na­
tureza que está embutido na afirmação que acabamos de fazer.
Nela o natural quer dizer o imutável. . . Com freqüência ouvimos di­
zer que sempre houve ricos e pobres ou opressores e oprimidos e
que, portanto, isso é natural - logo, imutável. Isso não passa de
uma boa maneira de se deixar tudo como está. Pretende-se congelar
a história, a sociedade e a cultura, enfim, manter o status quo. A
natureza é evocada como a imagem do "é assim" desde os primór­
dios, do sempre igual, do mesmo. Portanto, devemos ter muito cui­
dado quando nos tentam convencer de que isso ou aquilo é natur �
pois, quase sempre, o que se está querendo exatamente escamotear
é aquilo que é da natureza da história, da sociedade e da cultura,
isto é, a tensão e o conflito de onde o novo, o diferente, podem
brotar.
A ci_ência, ela própria, também é instituída e, dessa forma,
como expressão de uma relação social não pode ser encarada como
estando acima ou abaixo dos homens que a instituíram.

O PARADIGMA ATOMÍSTICO-INDIVIDUALISTA
DA CIÊNCIA MODERNA

Uma outra característica que tem marcado a ciência mo­


dema, e com ela a abordagem do que seja natureza e homem, é a
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 45

concepção atonústico-individualista nela predominante. Como nos


diz Serge Moscovici:

Tudo agora é moldado segundo esse padrão: átomo perma­


nente, indivisível, ou mônada s�m portas nem janelas , or­
ganismo lutando pela sobrevivência - o mais forte há de
vencer ! - animal agregado a uma horda; compmdor ou
vendedor no mercado ; sábio isolado às voltas com os
enigmas do universo. Em física, em biologia, em econo­
mia, em filosofia, em toda parte, o indivíduo é a unidade
de referência. Expressão acabada da essência das coisas e
do homem, encarna a natureza humana e atesta seu estado
originário.

Ao longo do século XIX, ·a investigação reducionista triun­


fou em todas as frentes. Nos diz Edgard Morin:

Isolou e recenseou os elementos constitutivos de todos os


objetos, descobriu as menores unidades da matéria, primei­
ro concebidas como moléculas e depois como átomos, re­
conheceu e quantificou os caracteres fundamentais de toda
a matéria, massa e energia. Assim, o átomo resplandeceu
como o objeto dos objetos, pmo, pleno, insecável, irredu­
tível, componente universal dos gases, líquidos e sólidos.
Todo movimento, estado ou propriedade podia ser conce­
bido como quantidade mensurável em referência à unidade
primeira que era própria dele. · Assim, a ciência física dis­
punha, nos finais do século XIX, duma bateria de grande­
zas que lhe permitia caracterizar, descrever e definir um
objeto, fosse ele qual fosse. Trazia, ao mesmo tempo, o
conhecimento racional das coisas e o seu reconhecimento.
O método de decomposição e de medida permitiu · experi­
mentar, manipular, transformar o mundo dos objetos: o
mundo objetivo.

Na física, o átomo; na biologi a� o organismo, depois a cé­


lula e, fmalmente, a unidade elementar, a molécula; nas ciências do
homem, o indivíduo - enfim, por toda a parte a unidade elementar,
ndivisível, nuclear, o indivíduo, reinava.
Todavia, foi no prosseguimento das pesquisas científicas
· esse paradigma começou a ser problematizado:
46 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

No início do século XX o átomo já não é uma unidade


primeira, indivisível e irredutível: é um sistema constituído
por partículas em interações mútuas - um sistema. E não
vai ser tão fácil transformar a partícula na nova unidade
indivisível e irredutível. Rutherford transformou o átomo
num pequeno sistema solar constituído por partículas gra­
vitando em .torno de um núcleo, tão maravilhosamente or­
denado como o grande sistema astral. No entanto, a ordem
newtoniana não foi transferida· dos céus para os subterrâ­
neos do átomo. As partículas sofrem de uma · ''crise de
identidade" : não é possível isolá-las de modo preciso no
espaço e no tempo e hesitam entre a dupla e contraditória
identidade de onda e de corpúsculo. Perde por vezes toda a
substância (o fóton, em repouso, não tem massa). É cada
vez menos plausível que seja um elemento primeiro: ora é
concebido como um sistema composto por quarks (e
o quark seria ainda menos redutível ao conceito clássico
de objeto do que a partícula), ora é encarado como um
"campo" de interação específica. Enfim, foi a própria
idéia de unida� elementar que se tornou problemática:
não existe talvez uma última ou primeira realidade indivi­
dualizável ou isolável, mas sim um con:tinuum teoria do
-

Bootstrap - ou uma raiz unitária fora do tempo e do espaço


(Morin, Edgard. D 'Espagnat, 1972).

Com o desenvolvimento da etologia, ciência que estuda os


hábitos dos animais e das suas acomodações às condições do am­
biente, ficou cada vez mais difícil compreender a evolução da vida
animal, tomando-se como parâmetro o comportamento de um indi­
víduo a partir da dissecação do seu corpo em laboratório. Há que
se reconhecer, hoje, que a vida em sociedade já existe naquilo que
chamávamos de natureza, sobretudo no reino animal:

Agora começamos a perceber a fragilidade dessa divisão.


Enquanto nosso interesse se voltava para os mecanismos
fisiológicos, para os aparelhos seO"soriais e para os esque­
letos, tomando o indivíduo como unidade de análise, tanto
no homem como no animal, as associações estabelecidas
por este último eram consideradas curiosas e esporádicas.
As colméias de abelhas e as colônias de formigas serviram
mais para tema de discursos morais, que matéria para con-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 47

clusões científicas. Entretanto, afluem as informações ar­


mazenadas e classificadas com muito cuidado por inúmeros
pesquisadores. O levantamento das associações estáveis
coin benefício recíproco, em numerosas espécies, mostrou
a correlação entre as exigências do me�o e as regularidades
de um comportamento eminentemente social. Em suma,
existe sociedade em toda a parte onde existe matéria viva
relativamente organizada; ela não começou com nossa -es­
pécie (. . . ) Primatas, golfinhos e até pássaros possuem fa­
culdades de aprendizagem e criação de novos comporta­
mentos e delas dependem para seu alimento e reprodução.
Contrariando o lugar-comum de uma maturação biológica
individual, os animais, à semelhança das crianças em esta­
do selvagem, isto é, sozinhos, isolados, não se desenvol­
vem normalmente e é-lhes indispensável o contato com a
mãe e os semelhantes (Serge Moscovici).

Essas descobertas não tomam os homens iguais aos outros


animais, pois cada espécie se organiza socialmente de modo pr&.
prio.

Na Economia, a mais bem situada das ciências h umanas,


onde se avançou no sentido da utilização dos recursos teóricos e
metodológicos das ciências da natureza, o paradigma continua a ser
o do indivíduo. É como se tudo tivesse começado com Robinson
Crusoé na sua ilha, sozinho, preocupado, não se sabe bem por que,
com a poupança e com o excedente. . . . A psicologia mais primária
está subjacente a essas teorias dominantes. Na economia o homo
economicus é visto sob a ótica da "propensão para o consumo" ,
' 'propensão para a poupança", etc. Verificou-se na economia um
verdadeiro retrocesso em relação a Quesnay, Adam Smith, David
Ricardo, Karl Marx e Stuart Mill que, · apesar das diferenças que os
Neparam, sempre pensaram o processo econômico como constituído
r - e constituindo - relações e classes sociais.

Se não houver, por exemplo, uma parte da sociedade to­


ta lmente desprovida de meios próprios para produzir a sua vida,
o trabalho assalariado não existe e sem ele o capital não tem senti­
d . . . E esse processo de expropriação do trabalhador da terra e de
us outros instrumentos e meios de produção não foi econômico.
48 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Ele se deu através da violência, com muito sangue, suor e lágrimas.


Isso quer dizer que para a economia funcionar sob a forma capita­
lista pressupõe, não só na origem mas no dia-a-dia, mecanismos
extra-econômicos dos quais lança mão para garantir que o traba­
lhador venda a sua capacidade de trabalho. Talvez uma história
acontecida no século passado sjrva para esclarecer o caráter social
da economia: um empresário inglês, de nome Peel, resolveu se
transferir para a Austrália. Levou consigo dinheiro e inúmeras fa­
mílias sob o seu patrocínio para migrarem. Deste modo, tinha o di­
nheiro, os trabalhadores e, na Austrália, recursos naturais em
abundância. Todavia, aquelas famílias que haviam sido expropria­
das da terra na Grã-Bretanha, uma vez chegadas à Austrália resol­
veram se apropriar das terras ali . disponíveis. Peel ficou com seu
dinheiro sem se valorizar, pois havia esquecido de levar para lá um
juiz para decretar que a terra era propriedade privada e, assim,
aquelas famílias ficaram privadas de as utilizar; a polícia para
prender quem desobedecesse à Lei; um padre para dizer que aquilo
era sagrado e o professor para dizer que tudo aquilo era natural.
Como nada disso foi instituído por Peel, o capitalismo teve de es­
perar mais alguns anos para se implantar com tudo isso que é ne­
cessário para a sua existência.
Como se vê, o capital é uma relação social que se instaura
num contexto de luta e não porque é melhor, mais racional ou natu­
ral. Estamos, portanto, muito longe de uma concepção atomísti­
co-individualista. A continuidade/reprodução de uma sociedade em
bases capitalistas pressupõe não só a garantia dos .meios materiais
necessários a cada ciclo de produção, mâs também a reprodução
das classes sociais, fazendo com que haja sempre pessoas sem con­
dições de produzirem/manterem as suas próprias vidas e que, as­
sim, precisam se submeter aos donos do capital. Como não há ne­
nhuma lei objetiva que governa essa luta para reprodução das rela­
ções sociais - posto que ela pressupõe luta - a economia nunca
poderá ser uma ciência exata. Em suma, não há como continuar
pensando em termos de indivíduos. A sociedade humana não é uma
soma de indivíduos !
Por todo o lado cai por terra o paradigma ãtomístico-indi­
vidualista e, com ele, toda uma visão que opõe natureza e cultura.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 49

Não é mais possível continuar dizendo que o homem é um animal


social, pois não é isso que nos distingue dos demais seres vivos.
Tanto Morin como Serge Moscovici, entre outros, informam-nos de
uma série de pesquisas rigorosamente controladas, onde existem
"comportamentos e papéis tradicionais transmitidos de uma gera­
ção a outra por iniciações individual e coletiva".

O DIA-A-DIA INDIVIDUALISTA

Esta concepção atomístico-individualista que penetrou a


imaginação do homem moderno - sua ciência, sua filosofia, seus
conceitos de natureza e de homem -, não se desenvolveu indepen­
dentemente do que ocorria na vida cotidiana dos homens do século
XVI.
Dessa época em diante, cada vez mais as relações mercan�
tis penetraram a vida dos homens. Não só nas cidades mas também
nas áreas rurais começou a se generalizar a prática de os senhores
feudais cobrarem aos seus servos taxações e tributos em dinheiro e
não somente em dias de trabalho ( corvéia) ou em produto (parte da
produção que podia ser a meia, a terça ou a quarta). A geografia
social muda: quando um servo paga o tributo ao senhor somente
em trabalho ou em produto, ele o faz no interior do feudo; quando
ele se vê obrigado a efetuar o pagamento em dinheiro, ele tem de ir
ao mercado, à feira, à cidade. Entre o senhor e o servo temos agora
não só o dinheiro, mas também a cidade e o comerciante. Entre os
camponeses começa a se produzir uma diferenciação social: de um
lado, alguns camponeses ricos, de outro, camponeses pobres. É
claro que o número desses últimos era maior, pois exatamente pelo
fato de muitos deles produzirem a mesma coisa para vender no
mercado, criava-se uma situação de oferta maior que a procura.
Assim, muitos deles se viam obrigados a contrair dívidas com juros
altíssimos junto aos comerciantes para, voltando ao feudo, pagarem
us tributos em dinheiro. Isso levava a que, no próximo ciclo de
produção, o camponês tivesse de produzir cada vez mais com o
lho no mercado, pois tinha que pagar não só o tributo devido ao
nhor, como também o que havia contraído de empréstimo, acres-
50 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

cido dos juros. Tudo isso, na prática, traduzia-se em dedicar cada


vez mais seu tempo à produção para o mercado, assim como desti­
nar parcelas cada vez maiores de sua gleba (parte da terra que usa­
va enquanto pagasse o tributo) com essa finalidade. Quanto mais
tempo e espaço passa a dedicar ao mercado, isto é, à produção de
valores de troca, menos tempo e espaço dedica à produção de va­
lores de uso. Assim se vê obrigado a adquirir na cidade as cojsas
que antes produzia no âmbito doméstico. Muitos camponeses joga­
dos nessa situação começam a perder as suas terras e a vagar pelo
território, como indivíduos isolados, desterrados, à procura de
quem os empregasse.
As comunidades camponesas começam a ser dissolvidas
não só por esse processo, mas também pela violência pura e sim­
ples de aristocratas ávidos em ganhar dinheiro, aburguesados, en­
quanto um grande número de indivíduos sós vagabundeia, mendi­
ga, perde seu emprego.
Éa isso que muitos vão chamar cinicamente de "conquista
da liberdade individual", na medida em que os servos-camponeses
passaram a ficar livres da opressão feudal e ganharam a liberdade
de ir e vir, não estando mais presos à terra. Adam Smith, no fmal
do século XVIII, afumará que essa mobilidade individual se cons­
tituía na forma mais livre de relacionamento social: os servos, li­
vres de opressão feudal, podiam ir para qualquer lugar e os capita­
listas também ganhavam maior liberdade na medida em que com
esses trabalhadores livres podiam empregar seus capitais produtiva­
mente. Se o servo, ao deixar de ser camponês e se transformar em
um assalariado em potencial pode, agora, trocar de senhor, ou me­
lhor, de patrão, ele se verá constrangido de múltiplas formas a pro­
curar sempre um patrão. Em outras palavras, ele pode trocar de
patrão mas terá sempre que buscar um patrão. Se antes era mais fá­
cil localizar no senhor o seu opressor, agora a questão se torna
mais difusa, mistificada pela idéia de liberdade individual.
Esse individualismo que cada vez mais se afirmava e que
concretamente aparecia legitimado, posto que contrariava a ordem
senhorial dos Estados absolutistas, permeará as diversas institui­
ções, inclusive a ciência, a filosofia e suas concepções de natureza
e homem. Portanto, o paradigma atomístico-individualista que ca-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 51

racteriza a ciência moderna tem profundas raízes na realidade his­


tórico-concreta dos homens, marcada por intensas revoltas campo­
nesas da burguesia mercantil e industrial contra o primado da
nobreza.

O NATURAL É O JUSTO. É?

Natureza e justiça se tornam quase sinônimos a partir de


finais do século XVill. Adam Smith . procura o preço natural, o
preço justo, enfim, o real valor das mercadorias. A natureza passa
a ser uma. espécie de modelo para a sociedade: tal ordem é justa
porque está de acordo com a natureia. A natureza, ao contrário dos
homens, não tem subjetividade, dizem. Portanto, pode ser estudada
objetivamente e a compreensão das suas leis, dos seus processos,
da ordem que a governa deve servir de ponto de referência para
uma sociedade racional, livre das paixões, das ideologias e da
subjetividade típica dos homens.
Atentemos para essas palavras tão caras à ciência moderna:
lei, regras (regularidades), processo e ordem. São todas palavras
de vocabulário jurídico e, conseqüentemente, político, na medida
em que o direito está bem no centro das relações sociais. A ciência
que vai aparecer ao cidadão comum como neutra, como ç . lugar da
verdade, retira do campo jurídico e político os seus conceitos mais
significativos. . . Acrescentemos, à guisa de maior esclarecimento,
que o campo jurídico-político, por sua vez, é o lugar da tensão, do
conflito e da luta, portanto, onde menos se pode falàr em neutrali­
dade.
No entanto, essa visão se imporá, não sem luta, sufocando
outras visões e práticas sociais. A busca de uma ordem natural para
os homens levará à supervalorização das ciências da natureza. A
física newtoniana será o paradigma da cientiftcidade. Augusto
Comte, considerado por muitos como o fundador da sociologia,
chamará a nova disciplina pelo nome de física social.
Todavia, se a concepção newtoniana do universo consegue
nos explicar o movimento sincronizado dos astros, elá não dá conta
inteiramente da evolução do universo, pois constitui uma visão
52 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

apenas sincrônica e não diacrônica. Tal e qual wn relógio, o mo­


vimento dos astros imaginado por Newton era eterno, sempre
igual . . . Ficava, portanto, em aberto o problema da evolução. Hegel
tentará explicar a evolução através de uma dialética fechada que ti­
nha wna finalidade dada de antemão, já que a humanidade caminha
em direção à Razão (ao Espúito Absoluto). Mas Hegel, apesar da
sua genialidade, não consegue explicar para o espírito do século
XIX a evolução com base na natureza e sim com base na idéia. O
século XIX terá de esperar por Charles DaiWÍil para conseguir wna
explicação "natural" da evolução. Com ele, a evolução fica prova­
da como wn processo natural e, portanto, objetivo. De DaiWÍil para
o "daiWÍilÍsmo" foi wn passo. O "darwinismo" tornou-se o para­
digma de cientificidade: Ratzel e Kropotkin, apesar de suas posi­
ções antagônicas, proclamam-se como geógrafos daiWÍilÍstas;
Spencer na sociologia e W. Morris Davis, na geologia, também. A
evolução passa a ser concebida como wn processo natural, inexo­
rável e independente da vontade dos homens. Tem o seu tempo
certo, como uma fruta que não pode ser arrancada antes ou depois
do tempo. . . Daí, com freqüência serem tachados de radicais ou
"ideológicos" aqueles que desejam mudar a ordem social e políti­
ca, posto que são contra a ordem natural das coisas que é uma
evolução lenta, gradual e segura. Portanto, a ordem é necessária
ao progresso.
E isso tudo em meio ao progresso concreto das chaminés
das indústrias na paisagem negra de poluição da Inglaterra e de to­
dos os países que se industrializavam. Cada fábrica especializada
também exigia um saber especializado e, assim, a ciência frag­
mentada, individualizada, dicotomizada, tornava-se, no mínimo,
coerente com wn mundo de homens fragmentados, onde uns pen­
savam e outros operavam, isolados, individualizados, fragmentados.
Se Adam Smith vai falar da "mão invisível" que estabele­
ce o equilíbrio entre a oferta e a procura, pouco a pouco essa ' 'mão
invisível" começará a ser associada cada vez mais ao Estado, auto­
ridade reconhecida para governar todos esses átomos erráticos. Em
alguns países, a "mão invisível" terá o nome de Plano, governando
a tudo e a todos para garantir o progresso material que, segundo se
acredita, antecede necessariamente a liberdade.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 53

O triunfalismo que envolve a visão do século XIX tem


alimentado o silêncio sobre aqueles que tentaram uma outra histó­
ria, outras instituições, outra relação dos homens com a natureza,
outra relação dos homens entre si, outra relação entre o saber e a
sociedade: os socialistas utópicos, os anarquistas e os comunistas
travaram batalhas memoráveis: 1848 e 187 1 , por exemplo. Marx
chamou a atenção para a historicidade da matéria, da natureza e
dos homens e fez considerações acerca de uma evolução n�o-linear
da história humana; Fourier foi sensível à opressão e exploração
das mulheres; Prol,ldhon e Bakunin nos falaram do poder opressor
do Estado; Freud recusou as interpretações biológicas e naturalistas
do psiquismo e encontrou na história de vida individual, condicio­
nada sócio-culturalmente, as razões do histerismo e outras mani­
festações do psiquismo; Nietzsche recusou a razão totalitária e re­
descobriu uma outra Grécia silenciada pelo triunfo do racionalis­
mo. Haeckel criou a ecologia e se colocou frontalmente contra a
fragmentação do .conhecimento em nome do monismo. Enfim, essas
falas apontavam para a gestação de um outro mundo e o fato de
estes projetos terem sido derrotados não significa que eles não ti­
vessem suas razões. Afinal, derrota não significa erro, mas, sim­
plesmente uma das conseqüências possíveis da luta. Só para os
vencedores a história é a história da Razão, com R maiúsculo, e
não a vitória de uma razão, de uma verdade, sobre outros possí­
veis históricos. Os problemas com que hoje nos defrontamos são
também-problemas dessa Razão e de suas práticas vitoriosas.

A CIÊNCIA CLÁSSICA EM CONFRONTO


COM OS NOVOS FUNDAMENTOS DA CIÊNCIA

Já vimos como o atomismo-individualista começa a ser


questionado pelas novas descobertas da física, da biologia, da so­
ciologia, da economia, etc. A separação platônico-medievalista en­
tre idéia e matéria ou espírito e matéria, traduzida modernamente
pela separação entre sujeito e objeto, através de Descartes, começa
também a ser abalada nos seus fundamentos pelas nova práticas
científicas em desenvolvimento.
54 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Freud, apesar de ter assinado wn manifesto em defesa do


positivismo em 1912, assenta wn poderoso golpe nesta concepção
filosófico-científica. Em primeiro lugar, ao não aceitar que a histó­
ria de cada wn derive de causas biológicas, ou melhor,fisiológicas.
Recusa, assim, o naturalismo que grassa no século XIX. Cada vez
mais, seu interesse se desloca para a etnologia, a arqueologia, a
filosofia, e a história, apesar de sua fonnação médica. O recém­
inaugurado Museu Freud, em Londres, revela que 70% da sua bi­
blioteca era constituída de livros dessas áreas e não de medicina.
Em segundo lugar, Freud estabelece com a psicanálise uma relação
entre sujeito e sujeito e não de sujeito-objeto. Na prática psicanalí­
tica, o sujeito cognoscente, aquele que se propõe a conhecer, não
se relaciona com wn objeto de conhecimento, mas com um outro
sujeito que também se propõe a conhecer.O "objeto" de conheci­
mento só tem sentido se ele de alguma maneira fala, isto é, existe
enquanto sujeito. Estamos assim diante de wna outra prática cientí­
fica, muito longe de positivismo.

Na antropologia, pelo menos desde os funcionalistas Mali­


nowski e Margareth Mead, não se pode julgar wn povo, uma cultu­
ra, enfim, wna comunidade a partir dos valores de quem as estuda.
Lévi-Strauss no seu excelente Raça e História nos aponta as limi­
tações do etnocentrismo. É peciso que os antropólogos não tomem
os povos que estudam como simples objetos, mas que deixem que
eles falem para compreenderem os seus valores como valores pró­
prios e irredutíveis a uma outra cultura. A crítica ao etnocentrismo
- que via os outros povos como sendo estágios de wn único desen­
volvimento da cultura européia - por sua vez, não pode descambar
para wna espécie de relativismo cultural que acabe por ignorar a
especificidade de cada cultura. Se isto muitas vezes ocorreu, foi
porque, nesse caso, a crítica também se fez de fora, como alguém
que compara de cima as diversas culturas e declara que cada povo­
cultura é diferente. Deve ficar claro, fmalmente, que essa crítica
necessária ao relativismo só se tornou possível pela crítica perti­
nente deste ao etnocentrismo. O antropólogo que se propõe a co­
nhecer wn povo-çultura deve deixar que ele fale para tentar com­
preendê-lo. As comunidades primitivas, por exemplo, não podem
mais ser tratadas como objeto. Voltaremos a esse assunto mais
adiante.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 55

Na biologia, também, cada vez mais se percebe a limitação


da prática científica apoiada no atomismo-individualista e na rela­
ção sujeito-objeto. Levar um exemplar, um indivíduo de uma espé­
cie para o dissecar no laboratório e daí explicar, pela sua anatomia,
as suas características comportamentais revela toda a tradição filo­
sófica do Ocidente. Cada vez mais os biólogos buscam desenvolver
práticas científicas estudando as plantas e animais em seu "labo­
ratório natural". Colocam placas, pulseiras e colares codificados
em animais e procuram observar os seus movimentos e relações no
seu próprio ambiente. Percebe-se que o comportamento de plantas
e animais, particularmente destes, não é, como se julgava, derivado
simplesmente da sua anatomia, do seu código genético, constatan­
do-se que as relações sociais entre os animais (biocenose) também
"selecionam" características genéticas, tornando mais complexas
as teorias biológicas. O fenótipo já não é mais, simplesmente, uma
exteriorização do genótipo, mas a emergência de uma complexa
relação entre este e o ecossistema.
Marx, se outros méritos não teve, pelo menos soube colo­
car a questão da relação do sujeito com o objeto, do conhecimento
com a realidade que existe fora de quem conhece, através do con­
ceito de "práxis". S� até então, dizia ele, os filósofos se encarrega­
ram de interpretar o mundo, cabe também transformá-lo. E aí se
coloca a questão: não é essa a essência do conhecimento desde a
Grécia clássica até a modernidade? A ciência e a filosofia não se
propõem exatamente a tornar conhecido o desconhecido, mergu­
lhando nos mistérios do mundo? Por que, então, essa separação
entre a interpretação e a transformação do mundo? A práxis, en­
quanto formulação de Marx, supera a dicotomia clássica ocidental
entre teoria e prática, entre sujeito e objeto, entre trabalho intelec­
tual e braçal, pois pressupõe a reflexão e a ação como dois mo­
mentos necessários do agir humano. Essa concepção implica neces­
sariamente o não dogmatismo.
Em vários campos do conhecimento a relação sujeito-ob­
jeto vem sendo repensada. Se antes todo o problema estava na
melhor compreensão/explicação do objeto, não havendo problema
no outro pólo da relação, isto é, o sujeito, cada dia niais se impõe
refletir sobre os limites do próprio sujeito que deseja conhecer e
56 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

que, tenha ele consciência ou não, está inserido numa cultura, num
detenninado momento, com as especificidades individuais psiqui­
camente traduzidas em cada um. Quando Gaston Bachelard, físico
e filósofo, diz que o objeto designa o método muito mais que nós o
designamos, uma leitura apressada pode ver um grande objetivismo
nessa formulação. Gostaria de fazer, exatamente, a leitura oposta: é
preciso que estejamos atentos ao objeto, abertos e flexíveis,. para
adequarmos o método de investigação às suas particularidades.
Quem dispõe de . um método a priori e o aplica rigidamente a um
objeto, é exatamente aquele que privilegia o sujeito. Daí decorre o
subjetivismo da análise. Na verdade, não há aí uma relação sujeito­
objeto, mas sim uma relação do sujeito consigo mesmo através de
um método geral. Em suma, a relação sujeito-objeto constitui um
diálogo permanente, portanto, o método de investigação terá de ser
constantemente adequado.
O desenvolvimento das práticas científicas, sobretudo no
século XX, tem apontado nessa direção tanto na física, como na
biologia, antropologia, pedagogia, sociologia, história e geografia.
Todavia, o peso da tradição, de uma espécie de condicionamento
histórico, ainda se coloca como obstáculo a uma ação transforma­
dora nos lugares onde se desenvolvem as práticas científicas: as
universidades administradas pelo Estado e os centros de pesquisa
das grandes corporações multinacionais. Em virtude de complexas
teias sociais, econômicas, políticas e culturais, os cientistas, em sua­
maior parte, têm ficado confmados em seus centros de pesquisa
e laboratórios consagrando, .deste modo, a separação entre trabalho
intelectual e trabalho braçal. Na comunidade acadêmica ainda do­
mina a crença de que a ciência é o guia de ação para uma prática
social racional. A tradição racionalista do iluminismo se faz pre­
sente entre nós com grande força: mesmo . entre os ecologistas
existem aqueles que acreditam que os técnicos e cientistas devem
orientar as práticas de apropriação da natureza. Ora, a ciência e
a técnica são condições necessárias mas não suficientes para ga­
rantir um uso racional dos recursos naturais. Até porque o conhe­
cimento científico se desenvolve numa relação sujeito-objeto, en­
quanto a prática social se dá numa relação entre sujeitos, onde
o agir racional está condicionado por outras variáveis, sobretudo
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 57

psíquicas, sociais e culturais. A ciência tem de reconhecer os limi­


tes de sua competência: um empresário capitalista vê na floresta
amazônica uma possibilidade de uso diferente da que, por exemplo,
concebem os/caboclos posseiros da região. Se o ponto de vista ca­
pitalista é o privilegiado, o desdobramento será uma ou várias so­
luções técnicas determinadas com este objetivo, porém, se o ponto
de vista dos posseiros e caboclos é o que prevalece, necessaria­
mente outras soluções técnicas advirão. A ciência efetivamente não
tem competência para decidir qual dos dois pontos de vista é o
mais racional, pois isto é uma decisão política que envolve lutas e
que, numa perspectiva democrática, implica sujeitos livremente
discutindo e deCidindo.
Aqueles que partem de um conhecimento científico obtido
de antemão e depois, em nome dele, tentam impor uma prática so­
cial estão, na verdade, consagrando essa separação entre conheci­
mento e ação, entre trabalho intelectual e braçal e, dessa forma,
desqualificando outros valores que se formaram em outros contex­
tos, com outros objetivos e fmalidades. É como se a "consciência
viesse de fora", formulação, aliás, defendida explicitamente por
Karl Kautsky, social-democrata-marxista alemão, herdeiro testa­
mentário de Engels e que uma vez assumida por Lenin virou ver­
dadeiro lema na esquerda bolchevique. Marx, pelo menos, dizia
que o comunismo é o movimento real que suprime o estado de coi­
sas existente, formulação bem diversa da dos marxistas que, como
criticava Marx, agem como os reformadores sociais utópicos, como
Platão e Thomas Morus que, de fora, pregavam o advento do mun­
do novo... Os mais variados movimentos sociais tentam à sua moda
suprimir o estado de coisas reinante em nosso mundo, como as lu­
tas dos operários, dos camponeses, das mulheres, da juventude, dos
negros, dos homossexuais, dos ecologistas, etc. Todos, no entanto,
são vistos ,por muitos marxistas como questões secundárias diante
da luta de classes . . . Talvez tenhamos aí uma boa pista para com­
preender a crescente perda de influência dos comunistas nos mo­
vimentos de contestação. A luta de classes tornou-se cada vez mais
retórica na boca dos marxistas, uma vez que estes persistem em
falar de fora de uma consciência ideal que os operários, os campo­
neses, a juventude, as mulheres, os negros, os indígenas, os ecolo-
58 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

gistas não têm. Não é aqui o lugar para desenvolver essa tese, mas
creio não ser impossível que a inspiração de Marx consiga nos aju­
dar a compreender esses movimentos e outros que se manifestam
particulannente no século XX; contudo, parece-me improvável que
os marxistas o façam.

E TUDO VIROU SISTEMA

Desde Isaac Newton que o universo foi cientificamente


concebido como um sistema. Todavia, não tinha evolução, sempre
repetia o mesmo movimento, tal como um relógio que marca o
tempo dos outros seres mas não o seu próprio tempo. No século
XIX, com Charles Darwin, verifica-se que há evolução da natureza
e o homem deixa de ser uma criação divina, passando a ter uma as­
cendência menos nobre: os primatas. No entanto, em todo lugar, os
cientistas andavam em busca daquela unidade elementar indivisí­
vel: o átomo, o organismo - ou a molécula - o indivíduo.
Ainda no século 'XIX, o segundo princípio da termodinâ­
mica, esboçado por Carnot e formulado por Clausius (1850), intro­
duz uma concepção inovadora que vai mexer profundamente com
os físicos. Edgar Morin reproduz bem a formulação de Clausius
quando diz que
. .. enquanto todas as outras formas de energia podem se
transformar integralmente umas nas outras, a energia que
tem a forma de calor não pode reconverter-se inteiramente
e perde assim uma parte de sua aptidão para efetuar traba­
lho. Ora, toda transformação, todo trabalho liberta calor,
contribuindo assim para esta degradação. Esta diminuição
irreversível da aptidão para transformar-se e para efetuar
um trabalho, própria do calor, foi chamada por Clausius de
entropia. Segundo Clausius "a entropia do universo tende
para o máximo", isto é, para uma morte térmica. Se, de um
lado, as premissas de Clausius foram contestadas na medi­
da em que ele pensou o conjunto do universo como um
megassistema fechado, por outro, abriu uma questão im­
portante, impensável nos marcos newtonianos. Nestes mar­
cos, o universo era eterno e, portanto, sempre igual a si
mesmo e Clausius aponta para a sua morte. Em 1 877,
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 59

Boltzmann "elucida a originalidade energética do calor a


um nível até então ignorado: o das microunidades ou mo­
léculas constituindo um sistema. O calor é a energia pró­
pria aos movimentos descoordenados das moléculas no
seio de um sistema e todo aumento de calor corresponde a
um aumento de agitação e a uma aceleração desses movi­
mentos' ' . Assim, todo aumento de entropia é um aumento de
desordem interna e a entropia máxima corresponde a uma
desordem molecular total no seio de um sistema ( . . . ) O se­
gundo princípio da termodinâmica já não se formula uni­
camente em termos de trabalho. Formula-se em termos de
ordem e desordem. Formula-se em termos de organização
e desorganização, visto que a ordem de um sistema é
constituída pela organização que combina num todo os
elementos heterogêneos. A Teoria dos Quanta se encarre­
garia de colocar mais um problema para quem acreditava
numa ciência exata, determinística. (E. Morin).

Apesar _dessas questões, o imaginário racionalista derivado


do llwninismo do século XVill sairá fortalecido no século XIX. A
degradação do calor que se observava em qualquer máquina, e que
no limite levava à perda de sua capacidade de trabalhar, levará à
invenção do termostato - que se desliga automaticamente sempre
que a temperatura atinge um determinado ponto. O alemão Diesel
trará uma importante contribuição à tecnologia modema ao inven­
tar um óleo com uma determinada viscosidade (o óleo diesel) que
evita o atrito mais intenso entre as peças de uma engrenagem, re­
tardando o seu aquecimento e aumentando, assim, a sua capacidade
de trabalho. A ciência traduzida em tecnologia marcava mais um
tento.
No século XX, cada vez mais, a idéia de sistema começa a
ganhar consistência. Já vimos como na física, com Rutherford, o
átomo deixa de ser uma substância indivisível e vira sistema. Com
E. Durkheim e, sobretudo, com o antropólogo Malinowski surge de
modo explícito a idéia de sistema social. Os urbanistas, os soció­
logos e geógrafos urbanos da Escola de Chicago - Burgess, por
exemplo - começam a ver a cidade como um sistema já na década
de 1920.
Por todo o lado o sistema resplandece: sistema atômico,
sistema solar, sistema celular, ou molecular, sistema social, sistema
60 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

urbano. Ao reducionismo atomístico-indi�idualista até então domi­


nante e que procurava o indivíduo e a substância indivisível opõe­
se agora o sistema holista. Onde reinava o indivíduo, reina agora o
todo, culminando com a teoria geral dos sistemas de Ludwig Von
Bertallanfy. Nesta, o termo forte não é só sistema, mas a pretensão
de uma teoria geral. Enfim, o sistema ganhou cidadania e o todo é
mais que as partes. Vê-se o todo em toda parte e não as particulari­
dades de cada sistema. Afmal, o átomo, a célula, os astros, a so­
ciedade, a cidade só têm em comum a palavra "sistema". Ironica­
mente, a floresta agora impede que se vejam as árvores. O modo
como cada um desses sistemas emergiu e se constituiu importa me­
nos do que o fato de serem sistemas. Nada de genealogias e qual­
quer preocupação com a história é denunciada como historicismo.
Fala-se até de miséria de historicismo ... Não se vê, porém, que os
sistemas existem sob determinadas condições e não sob qualquer
condição. Assim, não se percebe que os sistemas também se degra­
dam, se transformam... Ficamos, pois, diante de um novo reducio­
nismo: o do todo, o sistemismo. Não é à toa que E. Haeckel, que
em 1 866 criou o termo ecologia, se dizia monista, concepção filo­
sófica que vê o mundo como um todo articulado.
Dada a especificidade deste trabalho, deixamos o conceito
de ecossistema para um tratamento à parte. Todavia, tomava-se
importante perceber esse contexto geral onde o sistemismo ganhou
importância. De passagem, devemos anotar que esse processo se
desenvolveu paralelamente ao fortalecimento do papel do Estado
frente à vida dos indivíduos, tanto na sua vertente capitalista clás­
sica, como é o caso do nazismo e do fascismo, como na vertente
que se pretendia anticapitalista, o stalinismo. Também, por toda
parte, o Estado que fala em nome de todos se configura como tota­
litário. Coincidência ou não, o fato concreto é que os conceitos de
sistema e de totalidade se afirmam ao mesmo tempo que o Esta­
do-todo. E não é por acaso que cresce também a resistência a esse
estado de coisas.
A HARMON IA NATURAL. HARMON IA?

A física foi indiscutivelmente a ciência entre as ciências até, pelo


menos, as décadas de 50/60 de nosso século. A valorização dos fí­
sicos segue paralela aos êxitos da Revolução Industrial, ao desen­
volvimento do maquinismo. Sem sombra de dúvida, vivemos numa
sociedade mecânica, a sociedade industrial. A razão técnica deve
muito à física. Não é essa a situação da física e dos físicos atual­
mente. A biologia começou a ganhar terreno, sobretudo, a partir
dos anos 60 e com ela a ecologia. A biologia, ciência da vida, pa­
rece que se afirma a partir dos escombros de Hiroshima· e Nagasa­
ki. Não é à-toa que esta referência é tão cara aos ecologistas que
comemoram em todo o mundo "Hiroshima nunca mais ! " É preciso
que tenhamos em conta que Hiroshima foi uma das vertentes possí­
veis da física que, até 1945, só era vista pelo lado das suas contri­
buições para o bem-estar da humanidade. Muitos repetirão · que o
problema não é da física nem dos físicos, mas sim de mau uso que
os políticos dela e deles fizeram. Deste modo, isenta-se de respon­
sabilidade o cientista que, assim, deve fazer ciência sem consciên­
cia. Mais adiante mostraremos que esta questão é mais complexa,
querendo, no entanto, desde já apontar o caráter mecânico e não
orgânico da sociedade em que vivemos e apontar que a física, na
sua vertende hegemônica, levou isso às últimas con�qüências.
É necessário cada vez mais afmnarmos a vida até porque
1945 abre, de fato, uma nova página na história da humanidade
62 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

introduzindo a possibilidade real de destruição completa de toda


fonna de vida. Tudo isso nos leva a uma reflexão mais profunda
acerca do conceito de natureza que está subjacente aos movimentos
ambientalistas.
Como já vimos, nosso cotidiano está povoado de expres­
sões pejorativas que opõem a cultura à natureza. Ao mesmo tempo,
existem outras expressões que apontam rumo a outra direção: cha­
mamos, por exemplo, de gatinho ou de gatinha a pessoa que ama­
mos ou por quem temos algum afeto. Nesse caso, cabe bem a de­
nominação de romantismo.
No chamado mundo ocidental, vivemos de fato essas duas
vertentes: ou vemos a natureza como algo hostil, lugar da luta de
todos contra todos, da chamada lei da selva, ou vemos a natureza
como harmonia e bondade. Se a natureza é o lugar de luta de todos
cootra todos, nada mais necessário do que o Estado para impor a
lei e a ordem. Relembremos que todo Estado em crise acusa os
seus críticos de serem aqueles que desejam o caos, a barbárie e a
selvageria e já sabemos qual é o significado desses tennos. Com is­
so desqualificam os seus críticos como sendo aqueles que querem
voltar ao Estado da natureza, à animalidade. Não se apercebem ou
não querem se aperceber de que a crítica a uma determinada ordem
não quer dizer necessariamente que se queira a desordem, mas sim
uma outra ordem... E nem que se queira retomar à Idade da Pedra...
Já entre aqueles que vêem a natureza como bondade e •

harmonia encontramos, infelizmente, muitos que contraditoria­


mente partilham do mesmo ponto de vista que acreditam criticar: a
natureza é bondosa e harmônica e os homens é que destroem a na­
tureza. Como se vê, o homem também não é natureza, mantendo­
se, portanto, a dicotomia sociedade-natureza, homem-natureza. A
primeira vertente aflnna o antropocentrismo e a segunda o natura­
lismo. Homem e natureza caem um fora do outro. Vemos reprodu­
zir-se entre os ecologistas a mesma ambigüidade que, por exemplo,
viveu a geografia no século passado. Frederic Ratzel, geógrafo
darwinista, afmnava a idéia de espaço vital e, com ela, a lei do
mais forte que predominaria na natureza. O Estado deveria estar
consciente dessa lei de ferro estabelecida pela natureza. Já P. Kro­
potkin e E. Reclus, também geógrafos darwinistas, valorizavam a
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 63

solidariedade entre as espécies, tirando daí conclusões opostas às


de Ratzel, sendo que tanto Kropotkin como Reclus eram núlitantes
anarquistas e, portanto, antiestatistas. . . A dificuldade está em rom­
per com um dos pressupostos da filosofia positivista que é o de
querer encontrar na natureza o paradigma ou modelo para a socie­
dade humana.
Não existem palavras naturais para falar de natureza. As
palavras são criadas e instituídas em contextos sociais específicos e
também por este modo o conceito de natureza não é natural. É por
isso que tem sentido - e poder-se-ia dizer de maneira mais contu­
dente que é necessário compreender bem o conceito de natureza
que nossa sociedade instituiu.

O ECOSSISTEMA

As descobertas científicas deste século, principalmente as


provenientes da biologia, conseguiram apontar para um conceito
mais sólido que é o de ecossistema, menos ambíguo e vago que o
de natureza e meio ambiente. Todavia, se o conceito de ecossiste­
ma tem servido para superar a concepção atomístico-individualista,
todo tem levado ao que Edgar
na verdade egoísta, ao privilegiar o
Morin chamou apropriadamente de concepção ecofsta.
O ecossistema compreende, antes de mais nada, o bi6topo - o
meio geofísico - e a biocerwse conjunto das interações entre os
-

seres vivos de todas as espécies que povoam este biótipo. Constitui,


assim, uma unidade complexa de caráter organizador ou sistema.
Faz sentido, num certo nível de reflexão, a idéia de harmonia
e de equilíbrio que reina em cada ecossistema. A regularidade e
a invariância sobressaem, tal como num relógio:

A ordem de relojoaria é a da rotação da terra sobre si própria


e em torno do sol, que arrasta na sua esteira a alternativa re­
gular do despertar e do adormecer; desencadeia à sua hora o
canto do rouxinol e o canto do galo; a caça da águiá, da rapo­
sa, do leão; o movimento dos rebanhos em direção aos seus
pontos de água; sazonalmente, recomeça a queda das folhas,
o surgimento dos rebentos, o estalar dos casulos, o cio dos
64 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

machos. A ordem física prolonga-se na ordem viva, ela


própria regida por "programas genéticos", fabricadores de
invariância e de repetição; assim, a natureza aparece como
permanência, regularidades, ciclos.
E, no entanto, quando olhamos, guer a muito longo term?
quer de perto, esta ordem subitamente vacila e se fende. A
escala de centenas de milhares de anos o subsolo fende-se
e se desloca; a crosta terrestre enruga-se, subleva-se, aba­
te-se, os continentes derivam; as águas inundam as terras e
as terras emergem da água; as florestas tropicais e as calotas
glaciais avançam ou recuam; as erosões cavam, nivelam,
pulverizam. Olhando muito de perto e a curto termo, ve­
mos uma confusão de seres unicelulares e de animálculos,
uma trapalhada e uma desordem de plantas misturadas, en­
treparasitadas através das florestas, selvas, savanas, mata­
gais, insetos agitados por movimentos desordenados, ani­
mais rla terra ou do céu de comportamento desconcertante
e, por todo o lado, uma autofagia permanente da vida co­
mendo a vida, uma luta feroz de todos contra todos, onde
se entrecaçam, se entredevoram, se entrecombatem, se en­
tredestroem, numa desordem sem lei, irrisoriamente cha­
mada lei da Selva.
Como conjugar estas duas visões que, até aqui, sempre se
repeliram u�a à outra, uma feita de ordem e de harmonia,
a outra de desordens e de luta? Estas duas visões, contrá­
rias , são ambas de per si 'verdadeiras', mas estas duas ver­
dades não podem encontrar o seu sentido senão na idéia de
ecossistema e de eco-organização. (Edgar Morin) .

ANTAGONISMOS E COMPLEMENTARIEDADES

Na verdade, cada ecossistema é um todo que se organiza a


partir das interações dos seres que o constituem. Assim, o todo,
o ecossistema, só existe pelas interações entre as partes e são essas
complexas interações que o constituem.

Nesse sentido, o todo não é mais que as partes. Todavia,


o ecossistema emerge a partir de uma série de ações
egoístas e retroage sobre os diversos seres que manifestam
qualidades de que não disporiam isoladamente. Nesse sen­
tido, o todo também seleciona as partes, condicionando-as.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 65

É esta complexidade que o pensamento reducionista, seja


ele egoísta ou ecoísta, não quer reconhecer. Cada ecossis­
tema · "é uma organização espontânea que, baseada em su­
portes geofísicos deterministas e em seres geneticamente
determinantes, faz-se a si mesmo, sem ser incitado ou
obrigado por um programa, sem dispor de uma memória
autônoma e duma computação própria, sem ser organizado
e ordenado por um aparelho de controle, regulação, deci­
são, governo. Pelo contrário, toda eco-organização nasçe
de ações "egoístas" , de interações "míopes" , de interco­
municações banhadas e por vezes submersas no vago, no
ruído, no erro, em nichos ou em meios sem clausuras nem
barreiras, abertos às correntes de ar, de água, abertos às
correntes de vida selvagem (evadidos, foras da Lei e fugi­
tivos de outros ecossistemas) abertos a correntes de morte
(vúus, epidemias). E é através deste fervilhar cego, míope,
egocêntrico, entre desordens, destruições, proliferações in­
descritíveis que um Universo - Umwelt - se organiza" .
(Edgar Morin).

Enfim, a espontaneidade é eco-organizadora.


Na natureza as interações que se operam na biocenose são
ao mesmo tempo complementares - associações, sociedades, sim­
bioses, mutualismos; - concorrenciais - competições, rivalidades; e
antagônicas - parasitismos, fagias, predações.

À primeira vista, o caráter organizador daquilo que é asso­


ciativo, ·solidário, cooperativo, parece opor-se ao caráter
desorganizador e destruidor daquilo que é concorrencial,
predador, biofágico. Mas, olhando pela segunda vez, esta
oposição toma-se ambígua e relativa. Se, por exemplo,
considerarmos no conjunto a relação animais/plantas, esta
é caracterizada já não apenas pela biofagia animal, mas
também pela simbiose generalizada que garante o circuito
oxigênio/gás carbônico de uns aos outros:
66 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Antagonismo e complementariedade não se excluem um ao


outro. Nada é mais complementar do que as interações que
constituem a cadeia tr6fica que nutre e reorganiza a vida de
um ecossistema. Nela o predador come a presa, que come
outra presa, que come a planta, que se alimenta da decompo­
sição de todas as mortes acumuladas e conjugadas. É, em su­
ma, a devoração em cadeia que constitui a cadeia alimentar.
A predação não é simplesmente destruição. Se considerarmos
a curva demográfica de uma espécie predadora que vive ex­
clusivamente de uma presa, por um período longo de tempo,
veremos que a diminuição de número de presas provoca, por
escassez, a diminuição do número de predadores, num pro­
cesso de retração que s6 um acidente exterior ao ciclo pode
interromper. Portanto, a relação antagônica externa, a do pre­
dador e sua presa, produz sua própria regulação e torna-se
fator organizacional. A predação, não deixando de ser fator
de destruição, torna-se também fator de conservação do co­
medor e do comido, fator de conservação deste antagonismo
organizacional. (Edgar Morin).

Deste modo antagonismo e complementariedade não se ex­


cluem.

A INTEGRAÇÃO DA VIDA NA ORDEM CÓSMICA

A radiação solar traz energia à vida. A rota da terra etn


tomo do seu próprio eixo e o movimento que faz em tomo do sol
produzem as variações dia/noite e as estações com suas alternân­
cias cíclicas de luz, temperatura, hidrologia, segundo as latitudes e
regiões.
Esses ciclos geofísicos condicionam a organização bioló­
gica dos indivíduos, das espécies, dos ecossistemas, que segundo a
alternância sazonal e de dias e noites sincronizam a sua atividade,
o sono/vigilância e os seus processos de fecundação, germinação,
hibernações, mortes, etc...
O desenvolvimento recente da cronobiologia veio mostrar
a profundidade dessa relação entre o mundo vivo e a ordem cósmi­
ca, através da idéia de ritmo circadiano, ou seja, da propriedade
que têm os ritmos biológicos internos - endógenos - de mostrar,
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 67

em condições ambientais constantes, uma periodicidade próxima de


vinte e quatro horas. É como se cada indivíduo, espécie e mesmo
ecossistema tivesse um relógio próprio que se movimentasse no pe­
ríodo de uma volta completa da Terra sobre si mesma (aproxima­
damente 24 horas) . Completa Edgar Morin:

Foi assinalado um número extremamente elevado de ritmos


circadianos numa grande diversidade de seres unicelulares
e pluricelulares, em todos os níveis da organização bioló­
gica, tanto molecular, celular e orgânica, quanto além do
organismo individual, ao nível da população e do seu
comportamento ecológico e social.
Assim, a ordem do sistema solar não se limita a comandar
os grandes ciclos da biosfera. Os cicJos cosmofísicos estão
no interior de cada indivíduo vivo. E próprio da eco-orga­
nização constituir um poli-relógio que concilia o grande
relógio astrogeofísico e os inúmeros micro-relógios vivos.
Constitui-se assim um grande ciclo eco-organizador, total­
mente físico e totalmente biológico, feito da conjun­
ção/sincronização dos ciclos geoclimáticos, atmosféricos,
biosféricos e das mitíades de microciclos individuais, in­
terconjugando-se e intersincronizando-se uns aos outros. E
esta periodicidade multiforme desencadeia, controla, ritma
todas as atividades fundamentais dos seres vivos: alimen­
tar-se, repousar-se, reproduzir-se.

Fora da faixa equatorial, o duplo ciclo dos recomeços coti­


dianos e anuais diversifica-se, diversificando sazonalmente a alter­
nância dia/noite, o clima, a exposição ao sol, a nebulosidade, a
pluviosidade, o calor, o frio. Arrasta na sua poliesteira os recome­
ços e metamorfoses, onde toda a natureza, vegetal e animal, des­
perta, renasce (primavera) , desabrocha (verão), murcha, definha
(outono), adormece, atrofia-se e morre (inverno).
Assim, os aumentos sazonais de temperatura desencadeiam
germinação e crescimento em certos vegetais e influem na sua fo­
tossíntese e na sua respiração. Mais freqüentemente do que as va­
riações 'de temperatura, as variações periódicas de luz desenca­
deiam e controlam a diferenciação e a floração vegetais. (Assim,
por exemplo, as plantas de dias longos, como os cereais ou as er­
vilhas, só florescem quando a luz do dia ultrapassa as doze horas,
68 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

enquanto as plantas de dias curtos, como o milho ou o milho-pain­


ço, só florescem em menos de doze horas.) Tudo se passa, portan­
to, como se o grande relógio cósmico desencadeasse e controlasse
quer direta (luz), quer indiretamente (temperatura), todas as opera­
ções vitais de cada vegetal, mas sincronizando-se com os relógios
biológicos internos que funcionam neste vegetal.
O próprio universo animal está sob o comando conjugado
do grande relógio geocósmico, dos relógios vegetais e dos relógios
individuais, tanto nas ações cotidianas como na atividade sexual, o
nascimento, o crescimento, e o desenvolvimento e, por vezes,
mesmo a senescência e a morte.
"Ao mesmo tempo os seres vivos modificam a nebulosida­
de, a insolação, a temperatura, a composição quúnica do ar. As ár­
vores fazem baixar as temperaturas e subir as mínimas; diminuem a
velocidade e a turbulência do vento; aumentam a umidade do ar e
conformam solos que retêm mais umidade''.
Na Amazônia, por exemplo, pesquisas recentes têm de­
monstrado que grande parte das chuvas que lá caem é proveniente
da evapotranspiração, isto é, da umidade que evapora da própria
70% dos corpos
floresta. Se atentarmos para o fato de que cerca de
dos seres vivos é constituído de água a Amazônia pode ser vista
como um grande "oceano verde'' que atua como um elemento
equilibrador daquele ecossistema e de vastas regiões para onde se
· desloca a massa equatorial continental, quente e únúda. Aqui fica
evidente o papel do mundo vivo no equilíbrio dinâmico de proces­
sos físicos como as chuvas. A vida está, portanto, inserida na or­
dem cósmica não só ao nível micro os ri�os circadianos - como
-

também ao nível macro como elemento de redistribuição de umida­


de de que, por sua vez depende para existir.

NATUREZA, VIDA E MORTE

Viver de morte, morrer de vida.


(Heráclito)

Apesar das inúmeras espécies vivas que hoje conhecemos,


é preciso considerar que elas constituem uma ÚÜima parcela das
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 69

que existiram. As profundas alterações por que já passou nosso


planeta com a formação/de�truição de montanhas, avanços e recuos
das calotas polares, invasões e recuos da água do mar fazem da
história da natureza um campo onde, em vez de ser ressaltada a
estabilidade dos ecossistemas em estado de clím� , deveríamos res­
saltar a aptidão que apresentam para construir estabilidades novas.

Cada ser· vivo expele incessantemente resíduos, matéria�


degradadas e tóxicas que tendem a poluir o seu ambiente, e
o ecossistema produz assim incessantemente a sua própria
poluição. Ao mesmo tempo, sofre um excesso de morte em
relação à morte· "natural": perece-se não só de senescência
(velhice) e não só para alimentar os outros, mas também de
acidente, de risco, de fome, de carência. Simetricamente, o
ecossistema sofre de um excesso de vida, de uma orgia de
ovos, espermatozóides, germes, esporos que se alcanças­
sem a existência quebrariam todas as regulações ecológi­
cas, destruiriam as condições de vida para a maior parte
das espécies e provocariam a morte generalizada. Dema­
siada vida (crescimento exponencial duma população) é
mortal quer para si próprio quer para as outras vidas. O
excesso de vida destrói as suas próprias possibilidades de
vida e trabalha para o excesso de morte.
Assim, a cadeia trófica mostra-nos que toda podridão se
converte em alimento, que todo o resíduo se converte em
ingrediente, que todo o subproduto se converte em maté­
ria-prima., que todo resíduo 'morto é reintroduzido no ciclo
de vida. As decomposições, excreções, defecações são os
festins dum fervilhar de insetos e microorganismos ; adu­
bam e remineralizam os solos que alimentam a vegetação.
O ecossistema come não só a sua própria vida e sua pró­
pria morte, mas come a sua própria merda, e o excremento
pode tomar-se o alimento do alimento do seu defecador
( . .. )
Temos de ver agora que o excesso de vida responde ao ex­
cesso de morte (é porque a morte fulmina cegamente que
uma louca proliferação de esporos, germes, ovos, sementes
é necessária à vida) e que o excesso de morte responde ao
excesso de vida (pois é sobretudo ao nível dos esporos,
germes, ovos, sementes, embriões, larvas, recém-nascidos,
que a morte devasta a vida nas suas hecatombes). Assim, a
oposição entre a fecundidade desenfreada e a mortalidade
desenfreada desempenha um papel global de freio mútuo e
70 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

toma-se regulação demográfica. O excesso de morte tem­


pera o excesso de vida que tempera o excesso de morte, e
a confrontação da sua ubris cria a regulação na recorrência
fundamental vida - morte. A eco-organização é alimentada
e regenerada, não pela vida, mas também pela morte, e é
regulada pelo antagonismo entre os dois excessos.
Entrevemos aqui que a morte é muito mais que a morte,
visto que é, não só desorganizadora/destruidora, mas tam­
bém nutritiva, regeneradora e, enfim, reguladora. O desen­
cadeamento desorganizador da morte integra-se na cadeia
organizadora da vida, impulsiona-a e regula-a. A morte de­
sorganizadora é também reorganizadora. (Edgar Morin).

É em meio a essa turbulência destruidora/criadora que os


ecossistemas aparentam harmonia. Atingem o clímax que é o esta­
do de equilíbrio para o qual tendem todos os ecossistemas e no
qual podem manter-se indefinidamente, se não houver nenhum aci­
dente externo aos ciclos que os constituíram. Uma modificação mí­
nima, mas duradoura, de temperatura, por exemplo, pode transfor­
mar toda a existência de um ecossistema.

Há evolução ecossistêmica porque há ao mesmo tempo


uma história planetária irreversível e entrechocada, uma
extrema sensibilidade dos ecossistemas, uma extrema apti­
dão para reconstruir estados-clímax. Todas estas mudanças
e metamorfoses se efetuaram através de clímaces sucessi­
vos, que provieram de mudanças e metamorfoses. Assim, a
natureza viva tende para o estado estacionário enquanto
efetua a sua evolução. (Edgar Morin).

É por isso que é preciso afinnar, como o faz Morin, que:

a qualidade eco-organizadora mais notável não é manter


incessantemente em condições iguais, através de nasci­
mentos e mortes, o estado estácionário do clímax: é ser
igualmente capaz de produzir ou inventar novas reorgani­
zações a partir de transformações irreversíveis que sobre­
vêm no biótopo ou na biocenose. Assim, surge-nos a virtu­
de suprema da eco-organização: não é a estabilidade, é a
aptidão para construir estabilidades novas, n�o é o re­
gresso ao equilíbrio, é a aptidão da reorganização para
reorganizar-se a si mesma de modo novo sob o efeito de
'os (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 71

tWvas reorganizações. Por outras palavras, a eco-organi­


zação é capaz de evoluir sob a irrupção perturbadora do
novo e esta aptidão evolutiv:a é o que permite à vida, não
s6 sobreviver mas desenvolver-se, ou antes, desenvolver­
se. para sobreviver (os grifos são meus).

Infelizmente, a concepção atomístico-individualista conce­


beu a evolução tomando como princípio fundamental a mutaÇão
genética. A eco-evolução está marcada por inúmeras mutações
ecológicas, isto é, reestruturações novas sob o efeito de perturba­
ções a longo e a curto prazo: submersões, emersões, enrugamentos,
elevações, erosões, tropicalizações, glaciações, desertificações,
migrações, aparecimentos de novas espécies.

A concepção atomizada da evolução vê como princípio de


sobrevivência a seleção "natural" das espécies. Não vê que esta
seleção é inseparável duma integração ecossistêmica,

não vê que as condições de seleção se modificam em ftm­


ção da evolução dos ecossistemas que produz fWVas re­
gras de integração e tWvos critérios de seleção. Não vê,
sobretudo, que o que é · "selecionado" não são apenas as
espécies aptas para sobreviver em tais ou tais condições,
mas tudo aquilo que favorece a regulação e a reorganiza­
ção dos ecossistemas. Não foram apenas indivíduos e es-.
pécies que se selecionaram, mas retroações, anéis, que
auto-estabilizando-se à custa de outras possibilidades, se
tomam selecionadoras em relação a indivíduos e espécies.
Aquilo que é selecionado é tudo aquilo que pode fortalecer
uma cadeia, um ciclo, um circuito; é tudo aquilo que reor­
ganizá. (Edgar Morin).

E, mais complexo ainda, não são apenas essas retroações e


novas inter-relações que "selecionam" os indivíduos e as espécies.
Estas também elegem ecossistemas, como é o caso das migrações
de pássaros e outros animais que sazonalmente chegam a se deslo­
car de um hemisfério a outro, atravessando oceanos e continentes
para adotar outros ecossistemas.
72 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

DIVERSIDADE, RESISTÊNCIA
E VITALIDADE ECOSSISTÊMICA

A diversidade genética no seio de um ecossistema aumenta


a sua capacidade de resistência às perturbações. Onde existe ho­
mogeneidade, quando um indivíduo é atingido, todos os seus se­
melhantes rapidamente também o são. É conhecida a experiência
implantada no início deste século na Amazônia pela empresa norte­
americana Ford. Num ecossistema de extrema variedade genética
como o da Floresta Amazônica, a homogeneização para o cultivo
da borracha tornou extremamente vulnerável o novo ecossistema,
levando à falência a grande plantation. Mais recentemente a "Re­
volução Verde" experimentou o mesmo insucesso, na medida em
que selecionava uma espécie de alto rendimento e a cultura assim
implantada perdia toda a defesa diferenciada em relação às pragas.
Num ecossistema de grande diversidade genética a bioce­
nose também se complexifica, criando múltiplas relações de anta­
gonismos e complementariedade que tornam tal ecossistema, deste
modo, mais apto a observar perturbações.
No entanto, não basta distribuir aleatoriamente múltiplas
espécies num determinado lugar para constituir um ecossistema.
Entre as espécies e o ecossistema se inscrevem as complexas rela­
ções biocenóticas que constituem o ecossistema que co-seleciona
as espécies.
E mais: a diversidade ecológica apresenta resistência maior
contra agressões e perturbações quando o ecossistema tem uma
fronteira aberta para outros ecossistemas; e quando o limite entre
dois ecossistemas é impreciso, o que faz com que cada um dos
ecossistemas vizinhos se constituam tendo como um de seus com­
ponentes as sucessivas invasões e migrações de um a outro.
Todavia, há que se ressaltar que a diversidade não é in­
compatível com a existência de uma espécie dominante. Aliás, todo
ecossistema é dominado por uma ou várias espécies que fonnam o
grosso da biomassa. As estepes e pradarias são dominadas pela
aliança erva-herbívoros; as florestas são dominadas por uma espé­
cie (carvalho, pinheiro, castanheira ou seringueira) ...
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 73

Mas espécies dominantes fornecem justamente uma enorme


quantidade de alif!iento a uma grande variedade de espé­
cies: os carvalhos das florestas de carvalhos são acompa­
nhados por uma multidão de comedores de carvalhos, de
comedores de detritos de carvalhos, d� comedores destes
comedores. As espécies dominantes, longe de impedirem a
diversidade, arrastam consigo uma esteira de diversidade.
Mas favorecem não um máximo mas um 6timo de diversi­
dade. (Edgar Morin).

Podemos afmnar que a riqueza de variedade de espécies


favorece a flexibilidade dentro de certos lirrútes, muito mais largos
do que um ecossistema mais homogêneo. Assim como uma espécie
perfeitamente adaptada às condições ambientais se mostra mais
frágil diante de reequilibrações necessárias, os ecossistemas diver-
.
sificados estão mais aptos para se reorganizarem, sobretudo quando
estão abertos a outros ecossistemas.
Deste modo, diversidade, vitalidade, resistência, abertura e
complexidade caminham juntas e parecem mutuamente interligadas.

ESPONTANEIDADE, AUTONOMIA E DEPENDÊNCIA

É, de fato, surpreendente v.eri:ficar que milhões de seres di­


ferenciados - que vão desde o substrato geofísico até os seres vi-.
vos mais variados (plantas e animais aos milhares), sem nenhum
aparelho central, sem nenhum controle, sem nenhum governo -
consigam produzir situações de equihbrio ou que tendam para esse
estágio. . . Mais ainda, onde cada ser vivo não está voltado para a
sobrevivência e para a organização do todo, do ecossistema, mas,
pelo contrário, é "introvertido" para O· seu próprio interesse, a sua
própria sobrevivência de indivíduo, de grupo, de espécie. Está na
verdade destinado ao "para-si" e não ao "para-todos". Isso pode­
ria sugerir que o individualismo grassa com toda a força. Todavia,
cada ser vivo autônomo e singular é, ao mesmo tempo, uma exi­
gência existencial para o outro. Esta exigência é que cria imedia­
tamente uma solidariedade e uma complementariedade do outro em
relação a si próprio. No dizer de Morin:
74 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

a exigência existencial do outro introduz literalmente o ser


egocêntrico nas interdependências e nas inter-retroações
policêntricas/acêntricas. Nas e pelas retroações regulado­
ras e as cadeias tróficas, o ser autocêntrico anela-se na
eco-organização policêntrica. Assim, as ações ''egoístas' ' ,
sendo constitutivas das interações nas quais se engrenam e
tomando-se por isto co-produtoras das regulações e dos
anéis de que fazem parte, transformam-se sem cessar de ser
egocêntricas, em ações solidárias, e isto ao mesmo tempo
em que o anel transforma a destruição em regeneração, a
podridão em alimento, a morte em vida. A exigência do
outro é a dependência de si não só em relação ao outro,
mas também em relação ao processo eco-organizacional,

isto é, o plurianel, onde o autos adquire e assume a sua


dupla identidade, a sua identidade "egoísta" e a sua iden­
tidade ecológica. Onde, em- suma, o "egoísmo" produz
"generosidade" . Deste modo, toda autonomia é depen­
dente.
É preciso compreendermos que a espontaneidade que está
no interior de cada ecossistema produdor de ciclos, ca­
deias, interações e retroações é fruto de uma longa história
evolutiva através da qual, exatamente, constitufram-se es­
sas interações complementares, antagónicas, bem como es­
sas cadeias trópicas. Desde modo, a complexidade espon­
tânea dos ecossistemas evoluídos precisa de uma história e
de uma ·experiência onde acaso e necessidade, incertezas e
determinações produzem os equilíbrios dinâmicos. Em su­
ma, é a aliança entre espontaneidade e não-espontàheidade
que permite à espontaneidade enriquecer-se e desenvolver.

Todas essas considerações nos lev� à necessidade de su­


perar as duas concepções de natureza que dominam na sociedade
ocidental: ou a natureza é o lugar onde todos lutam contra todos,
onde impera a "Lei da Selva" ou a natureza é o lugar da bondade e
da hannonia. .. Ora, a natureza não é nem um caos nem tampouco
um cosmos perfeitamente ordenado e organizado. Ela é, na oportu­
na expressão de Morin, um caosmo.
É preciso romper com o pensamento simplificador e exclu­
dente e afirmar a complexidade. Afinal, alguns só querem falar da
rosa. Outros só destacam o espinho. É necessáriq qu� se · elabore a
visão que comporta tanto a rosa quanto o espinho: a visão da roseira.
t. •.?X:W.• •

O HOMEM NA NATUREZA
E A NATUREZA DO HOMEM

Um dos problemas da ecologia e do pensamento ecológico tem sido


a questão do tratamento dado ao homem. Já vimos que essa difi­
culdade tem profundas raízes no nosso processo civilizatório. Não
/ é raro ouyirmos fr�es do tipo: "o homem está destruindo a nature­
za!", ao mesmo tempo que se evoca o exemplo de comunidades in­
dígenas como modelo e paradigma da relação homem-natureza. E
aqui cabe a interrogação: não são os indígenas homens? Se o são, e
essa é uma verdade inquestionável pelo menos para a biologia, de
que tipo de homem estamos falando quando se afirma que o "ho­
mem está destruindo a natureza"? Claro que quando se trata dos
indígenas está-se falando de uma outra sociedade - de uma outra
organização social, de uma outra cultura. Ora, se isto é verdadeiro,
não são os homens enquanto categoria genérica que estão destruin­
do a natureza, mas sim o homem sob determinadas formas de orga-
nização social, no seio de uma cultura.
Na verdade, quando evocamos o indígena como modelo
estamos remetendo para a idéia de um passado idealizado, de um
paraíso perdido, de um "bom selvagem". É como se se tratasse da
lembrança de uma infância, boa por natureza, que foi pervertida no
seu processo de desenvolvimento civilizatório... Ora, toda cultura é
uma criação dos homens; é instituída num processo cheio de ten­
sões entre diversos possíveis históricos. Se a nossa sociedade-cul­
tura instituiu a forma presente de relação com a natureza e dos ho-
76 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

mens entre si, é necessário percebermos que esse conceito de natu­


reza e de homem que temos não é mais nem menos natural que
qualquer outro e se ele não nos agiada, temos de superá-lo através
de um pensar e de um agir mais lúcidos.

AS DIFICULDADES DA BIOLOGIA E DA GEOGRAFIA

A biologia ao se afirmar como ciência, sobretudo após


Darwin e mais recentemente através da descoberta do ADN e da
ecologia, tem encontrado dificuldade para tratar do homem na sua
especificidade, na sua complexidade. Dificuldade essa que parece
não existir quando se trata das especificidades e complexidades
relativas a outros seres vivos que não o homem.
As dificuldades da biologia são muito semelhantes às da
geografia, instituída como ciência no século XIX. A geografia, na
divisão do trabalho científico, não ficou nem entre as ciências da
natureza nem entre as ciê.ncias do homem... DiZiam os geógrafos,
ignorando a complexidade dessa relação homem-natureza, que a
geografia é uma ciência-charneira; uma ciência-ponte; uma ciência
de síntese entre o homem e a natureza. Basta acompanhar de perto
a produção geográfica mundial para observar como os geógrafos
reproduziram no interior da própria geografia a grande dicotomia
do pensamento ocidental, instituindo a geografia física e a geogra­
fia humana.
O pensamento herdado nos prende através de suas arma­
dilhas e se, de um lado, instrumentaliza-nos com teorias e metodo­
logias, por outro, é fortemente responsável pelos problemas con­
cretos com que nos defrontamos, pelas práticas que estimula e va­
loriza e pelas dificuldades que coloca para a sua superação.
Tanto a biologia, a ecologia como a geografia têm tratado
o homem exclusivamente como espécie biológica, não levando em
consideração a especificidade e a complexidade desse animal-ho­
mem- e, inclusive, passando por cima do fato, importantíssimo, de
que o homem por natureza produz cultura.
Dentre as questões que gostaríamos de propor, uma, de ca­
ráter teórico com suas implicações metodológicas, impõe-se à aná-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 77

lise das dificuldades da biologia, da ecologia e da geografia, pois


ela nos parece de fundamental importância. Essas disciplinas mos­
tram-se prisioneiras do conceito de população.
Etimologicamente, população deriva do latim populus que
significa povo. A partir de 1785 a palavra população começou a
ser utilizada numa outra acepção, que nada mais tem a ver com a
idéia de povo. O surgimento deste novo significado está relaciona­
do à instituição do Estado nacional moderno que tinha a necessida­
de de unificar sob a égide de um só poder, de um só governo, os
diversos povos e culturas que habitavam a sua base territorial.
O novo conceito de população inspirava-se nas preocupa­
ções de controle, de quantidade, de medida, de informação, ou se­
ja, tomava-se um conceito estatístico. A palavra estatística, por
sua vez, surgida por volta de 18 15, deriva do alemão Statistik que
se relaciona a Estado. Obscura relação essa que envolve estatística
e poder de Estado. . . Logo ela que se pretende a rainha da neutrali­
dade ! Não nos esqueçamos, ainda, de que a estatística foi criada
como forma de aumentar ou de estabelecer o conhecimento e o
controle do Estado sobre o povo, sobre a população. Desta forma,
o conceito de população foi perdendo gradualmente a sua qualida­
de de povo e se transformando num conceito genérico, matemático­
estatístico. Quer dizer, a população enquanto conceito estatístico
paradoxalmente se despolitiza quanto mais faz parte da · política,
sobretudo do Estado. O conceito de população passa cada vez mais
a se associar à idéia de conjunto, tal como definida pelo matemáti­
co Cantor como "uma coleção de óbjetos distintos e definidos de
nossa percepção ou de nosso pensamento": Podemos falar de uma
população de cadeiras, de uma população de coelhos, de uma po­
pulação de automóveis, de uma população de canhões, de uma po­
pulação de romances, etc. Assim, são abstraídas as especificidades
dos objetos - cadeiras, coelhos, automóveis, canhões, romances - e
se privilegiam os aspectos matemático-estatísticos. Não é de estra­
nhar, portanto, que as teses e idéias formuladas a partir desta pre­
missa culminem em conclusões apocalípticas do tipo malthusiano
que falam de explosão demográfica, urbanização deserifreada, etc.1
E sabemos o quanto essas idéias estão presentes na -biologia, na
ecologia, na geografia e no movimento ecológico.
78 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Se projetássemos o fudice de crescimento demográfico da


Inglaterra do século XIX para o século XX, obteríamos, no míni­
mo, o triplo da populaçãó já alcançada hoje, mas se tal não ocor­
reu, isso não se deveu à existência de alguma política de caráter
neomalthusiano que revertesse essa curva, mas sim às conquistas
sociais efetuadas sobretudo pelos trabalhadores,' que levaram à mu­
dança da qualidade de vida.
Ao privilegiarem o lado matemático-estatístico, os cientis­
tas e técnicos como os do Clube de Roma, por exemplo, deixam de
lado a consideração da natureza dos fatos de que estão tratando e
por isso podem falar em "crescimento exponencial" das máquinas
e dos homens. Em primeiro lugar, deve ficar claro que colocações
que apontam uma reprodução exponencial de um pretenso "esto­
que" de máquinas e de homens exigem uma análise do caráter des­
sa .reprodução2. Entre os homens, por exemplo, é possível funda­
mentar a idéia da reprodução em algum critério biológico, já que a
espécie humana comporta o macho e a fêmea. No entanto, o fato de
existir um mesmo número de homens e mulheres em dois países di­
ferentes não quer dizer que o crescimento demográfico será o
mesmo em ambas as regiões. Por outro lado, quando consideramos
a (também no dizer do Clube de Roma) "população" de máquinas,
não encontramos qualquer fundamento biológico para - com base
num detenninado número de máquinas - prever qual será o seu
futuro número. O aumento do núÍnero de máquinas depende do
modo como a sociedade institui sua relação com elas, o que obvia­
mente nos remete para um outro campo de análise que, embora te­
nha suas conseqüências quantitativas, não é detenninado por isso.
Se a máquina é instituída socialmente, assim como a dinâmica do
crescimento do. seu número, a crítica ao crescimento exponencial
do número de máquinas corresponde à. crítica a uma detenninada
forma de organização sócio-cultural, organização essa que, diga-se
de passagem, foi afirmada pela negação de outros possíveis modos
de instituir relações com as técnicas. Enfim, uma população de má­
quinas não gera, nem biologicamente, uma outra população de má­
quinas. Se a "população de máquinas" está aumentando exponen­
cialmente isso se deve à instituição da propriedade privada capita­
lista, às conveniências da concorrência, da busca do lucro, da con-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 79

quista de novos mercados; em suma, à acumulação do capital e


não, simplesmente, número anterior de máquinas.
Mesmo quando cónsideramos duas populações matemático­
estatísticamente da mesma ordem de grandeza, como é o caso das
populações da Nigéria e da Alemanha em 1980, veremos que elas
não se reproduzem demograficamente da mesma forma. É comum
compararem-se essas situações para denunciar a "explosão demo­
gráfica" nigeriana, aliás a única conclusão possível para qúem
parte de premissas conceituais do tipo população. Insisto: em tais
procedimentos "científicos" a conclusão/solução está pronta desde
o início e a pesquisa é feita para comprovar o que já está decidido
anteriormente. Tudo isso para deleite de certos pesquisadores cujas
polpudas bolsas e salários saem daquelas pessoas que estão se re­
produzindo exponencialmente em virtude, entre outras coisas, da
ignorância a que estão submetidas e dos parcos salários que perce­
bem.. . Ninguém em pleno gozo do seu juízo pode considerar a
Alemanha um modelo ou paradigma de reprodução demográfica,

/
até porque há duas décadas que esse crescimento é negativo (-0, 1%
ao ano). Essa situação aponta p ara o envelhecimento da população
e, salvo novas e possíveis descobertas no campo do rejuvenesci­
mento, ameaça o país com a possibilidade de não garantir a sua re­
produção demográfica. É claro que essa situação não tem trazido
maiores problemas à Alemanha em virtude: 1) do crescente proces­
so de automação de suas empresas' e da conseqüente tendência à
diminuição da demanda de força de trabalho; 2) da enorme liquidez
de capital de que dispõe o país para assegurar um bom sistema de
atendimento à velhice e à saúde em geral; 3) das precárias condi­
ções de vida em algumas regiões do Mediterrâneo europeu, no
norte da África . e no Oriente Próximo, sobretudo na Turquia que
geram uma forte emigração de pobres para a Alemanha, garantin­
do-lhe o contingente populacional que vai exercer as funções mais
indesejáveis para aquela sociedade, numa versão realista só compa­
rável à imaginação de Fritz Lang quando fez seu excelente filme
Metrópolis (1926).
Estas considerações, por outro lado, não autorizam a inter­
pretação de que se deveria aplaudir o comportamento demográfico
do povo nigeriano. Estou perfeitamente consciente do que significa
80 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

para os nigerianos� sobretudo para os explorados e oprimidos, su­


portar cerca de um milhão e meio de novos habitantes por ano.
Estou consciente também das profundas desigualdades sociais que
lá existem devido entre outras questões à injusta distribuição da ri­
queza. Só citei esses dois exemplos - Nigéria e Alemanha em 1980
- pela sua comparabilidade matemático-estatística, que nos permite
refletir sobre a precariedade do conceito de população.

O comprometimento da biologia com o pseudoconceito de


população é histórico. A biologia foi alçada ao primeiro plano da
ciência no século XIX, mais precisamente depois da publicação da
grande obra de Charles Darwin A Origem das Espécies. Nela,
Darwin demonstrou o que até então não tinha explicação, ou seja,
que a evolução das espécies é um fenômeno natural. Isto trouxe um
grande alento para o imaginário racionalista-iluminista do século
XIX, que via na natureza livre das paixões, das subjetividades e
ideologias a fonte onde devíamos buscar os fundamentos para uma
ordem humana evidentemente justa porque natural. Há uma infor­
mação de caráter biográfico que me parece importantíssima para
analisar o comprometimento da biologia com o pseudoconceito de
população: ao partir para sua viagem de pesquisa pela América no
navio "Beagle", Darwin leva consigo o livro Ensaio sobre os
Princípios da População, do pastor Thomas R. Malthus. Como é
amplamente sabido, Malthus afmnou que havia uma tendência para
o crescimento da população maior que a do crescimento da dispo­
nibilidade de alimentos. E concluía que a escassez de alimentos,
por sua vez, acabava por provocar epidemias que dizimavam o ex­
cedente populacional, repondo o equilíbrio.

Esta idéia se constituirá num dos pilares da teoria darwi­


niana da seleção das espécies. Diga-se de passagem que quando
Malthus formulou o seu princípio da população, ele tinha em mente
combater a "Lei dos Pobres" (Poor Law), que destinava boa parte
dos impostos ingleses ao atendimento dos necessitados. Dizia
Malthus que tais leis eram contrárias à ordem natural (ou divina)
das coisas; constituíam uma interferência indevida do Estado, e,
assim, deviam ser abolidas. Como vemos, com Darwin, o conceito
de população migrava de um campo político-moral para o da biolo-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 81

gia e ganhava nesse novo terreno wna validade que talvez não ti­
vesse onde originalmente fora pensado e elaborado.
Ora, se as plantas e animais (inclusive o how.em em certas
circunstâncias) extraem do ambiente aquilo que este espontanea­
mente oferece, o homem, após o advento da agricultura, interfere
diretamente na produção de alimentos. E aqui devemos sublinhar
cultura na palavra agricultura. Enfini, quando se trata do animal­
homem, da espécie humana, devemos ter em conta a sua complexi­
dade para não transportarmos "darwin-malthusianamente" para os
homens aquilo que não lhes corresponde. Isto se torna tanto mais
importante quanto sabemos que o pensamento darwin-malthusiano
constitui a fonte liberal-conservadora que ainda domina a ecologia,
a geografia e o movimento ecológico. Malthus encarna bem essa
ideologia: é liberal na medida em que propõe a não intervenção do
Estado no que chama de "leis naturais" e, por outro lado, é con­
servador na medida em que argumentando em defesa das "leis na­
turais", busca ignorar que a pobreza e a miséria convivem com a
riqueza, o luxo e o desperdício, não sendo, portanto, o problema
/
do descompasso entre popUlação e produção de alimentos uma
questão natural, mas sim uma decorrência do modo como são pro­
duzidos, distribuídos e consumidos esses alimentos3. É interessante
observar que a transformação da lei de população de Malthus nwna
mera relação matemática entre PA (progressão aritmética para a
produção de alimentos) e PG (progressão geométrica para o cres­
cimento da população) é wna redução simplificadora da sua teoria.
Aí, mais uma vez, constatamos o deslocamento matemático-estatís­
tico de modo a escamotear o caráter político-ideológico do con­
ceito de população. Tal procedimento, a bem da verdade, foi ado­
tado pelos neomalthusianos, sobretudo após a Segunda Guerra
Mundial, quando o Terceiro Mundo começa o seu "grande desper­
tar" e a questionar as estruturas mercantis-coloniais atualizadas
pelo imperialismo que os mantêm em situação de profunda miséria
apesar do invejável estado das suas elites que vivem (bem) de ex­
portar -alimentos e outras matérias-primas.
Os cientistas que trabalham com o "conceito" de popula­
ção abstraem a natureza dos fatos que analisam, considerando-os
exclusivamente do ponto de vista matemático-estatístico. Ora, que
82 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

validade tem uma análise que deixa de lado exatamente o essencial,


isto é, o modo de organização social e cultural que instituiu uma
determinada dinâmica de crescimento? Mais sério ainda: estes auto­
res se esquecem de que eles próprios, enquanto pesquisadores, re­
fletem a organização social e cultural que os instituiu e criou e, por
não considerarem a formação sóci<Kultural que· cria sujeitos-pes­
quisadores que só vêem objetos, acreditam ser a sua pesquisa mais
objetiva porque alicerçada na pretensa neutralidade do métódt>
matemático-estatístico. Enfatizemos que, acreditando-se livres das
paixões, subjetividades e ideolúgias esses autores estão, na verda­
de, comprometidos até a medula com a ordem instituída em meio a
conflitos e lutas, sufocando outras possibilidades históricas. Assim,
é perfeitamente coerente que eles mantenham a ordem social e
cultural reinante à margem de suas análises ou, para usar uma lin­
guagem que lhes é familiar, considerem a ordem social e cultural
como um dado constante, na verdade imutável. É a miséria do neo­
positivismo ...
Talvez pela falta de oportunidade de acesso a outras abor­
dagens, os militantes ecologistas ainda se acham prisioneiros des­
sas análises que, ao invés de contribuir para a superação dos pro­
blemas com que nos defrontamos, perpetua-os.

A HOMINIZAÇÃO OU DE COMO A NATUREZA


SE FEZ HOMEM

Estávamos acostumados à idéia de que nossa fisiologia,


nossa anatomia descendem da dos primatas ; deveríamos
habituar-nos à idéia de que o mesmo acontece com nosso
corpo social.
(Serge Moscovici)

Estudos recentes de arqueologia e sociologia vêm permi­


tindo dar maior consistência à intuição genial de F. Engels a res­
peito do processo de hominização. A tradicional dicotomia homem­
natureza que conformou o saber na sociedade ocidental volta a ser
questionada. A questão ambiental parece exigir um novo paradig­
ma onde natureza e cultura não caiam uma fora da outra.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 83

Até então contentávamo-nos com teses do tipo "o homem


é um animal social" como se a sociedade nos distinguisse dos de­
mais animais. A socialidade está inscrita no reino animal muito
mais profundamente do que até bem pouco tempo podíamos imagi­
nar. Dizer que o homem é um fabricador de instrumento, um homo
·
faber, como caráter distintivo do homem, é ignorar que os chim­
panzés são ocasionalmente fabricadores de instrumentos. Como
demonstraram Premack e Gardner, esses mesmos chimpanzés têm
virtualmente aptidão para a linguagem elementar, para o .exercício
lógico e semântico. Reduzimos o homem então ao reino da nature­
za, da animalidade? Não, simplesmente colocamos em outras bases
a especificidade do homem. A cultura humana não sai da natureza,
ao contrário, é uma das suas qualidades. O homem, por natureza,
produz cultura. E o faz desenvolvendo-se a partir de um patamar já
alcançado pelos primatas, pelos homínidas até chegar ao homo sa­
piens. Há, portanto, continuidade e descontinuidade no processo
de constituição do homem.

A Natureza se fazendo Homem

Já vimos que os seres vivos, animais e vegetais, interiori­


zam os ciclos astrofísicos como, por exemplo, o do dia e da noite
(movimento de rotação da Terra) e o das estações (movimento de
translação). Todavia, ocorrem ainda movimentos a curtd ·e médio
prazos que perturbam essa constância "relojoeira" e provocam
perturbações nos ecossistemas. Sabe-:-se que no fmal da era terciária
verificou-se uma mudança cliinática que f�z com que· a Terra ficas­
se menos úmida. A seca decorrente levou a uma diminuição da co­
bertura florestal e a um aumento pronunciado da área de savana.
Animais gigantescos, que estavam bem adaptados a uma enorme
disponibilidade de alimentos (biomassa), desapareceram. Outros,
que habitavam as florestas, viram-se obrigados a se aventurar nas
savanas e a desenvolver um outro modo de vida diante de novas
condições ecossistêmicas. Como disse Leroi-Gourhan, a partir de
então a hominização jamais deixaria de andar sobre os próprios
pés. O homfuida diferencia-se do chimpanzé não pelas suas apti­
dões intelectuais nem simplesmente pelo peso do cérebro, mas sim
84 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

pela locomoção bípede e pela postura ereta. O bipedismo é o ele­


mento decisivo que libertará a mão de toda e qualquer obrigação
locomotriz. A oposição do polegar em relação aos demais dedos
aumenta a força e a precisão da preensão e faz da mão um instru­
mento polivalente. Assim, o bipedismo abre o caminho que conduz
ao homo sapiens: a posição de pé liberta a mão; a mão liberta os
maxilares; a verticalização e a liberação dos maxilares libertam a
caixa craniana das sujeições mecânicas, abrindo assim novos cami­
nhos ao processo evolutivo. Processo esse que estabelece profun­
das interações entre o ecossistema, o sistema genético, o cérebro e
a sociedade-cultura através de uma nova práxis - a c!lça.
Vários estudiosos têm apontado certas características que
já se mostram em primatas evoluídos tais como separações, provo­
cadas entre outras coisas pela pressão demográfica, e que acabam
por levar à constituição de colônias extraterritoriais. Acredita-se
que, com a substituição progressiva da floresta alimentadora pela
savana, grupos de jovens primatas tenham iniciado essa aventura
que conduziu ao homo sapiens. Todavia, novas mutações haveriam
de ocorrer, tornando mais complexa a vida que se desenvolve na
savana.
A savana é um campo favorável para o emprego total das
aptidões bípedes, búnanas e cerebrais partindo das necessidades e
perigos que ela significa. Servirá de estúnulo ao desenvolvimento
das aptidões de todos os tipos já existentes no antepassado da flo­
resta. A busca do alimento torna-se perigosa. É preciso poder in­
terpretar em sinais os movimentos mais ínfimos, em indícios os
vestígios mais sutis, é preciso estar sempre alerta, individual e co­
letivamente para a defesa e, se for preciso, para o ataque. É nessas
condições que vão se espalhar pela savana pequenos grupos que,
provavelmente saídos de uma só fonte, vão no decorrer de centenas
de milhares de anos e até mesmo de milhões de anos, diferenciar-se
geneticamente.
É sobre esses seres que agirão pressões seletivas em bene­
fício de tudo aquilo que desenvolve a agilidade, a habilidade, a
técnica, isto é, as características cada vez .mais hominídeas. Já por
aí se vê que sobreviver na savana exige cada vez mais o desenvol­
vimento da memória, da articulação dos estúnulos advindos do ex-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 85

terior. Deste modo, "wna relação cada vez mais intensa e comple­
xa vai estabelecendo-se entre o ecossistema e o homfuida. O ecos­
sistema para o caçador-caçado é wn emissor de informações múlti­
plas que ele saberá decifrar cada vez mais sutilmente; neste aspec­
to, o ecossistema é co-produtor e co-organizador da caça, práxis
produtora e organizadora que vai sobreestimular os desenvolvi­
mentos físicos, cerebrais, técnicos, cooperativos, sociais" . (Edgar
Morin). Esse ecossistema favorece a seleção de mutações genéticas
que apontam para uma práxis mais complexa.

A Caça Civilizadora

A caça teve início há milhões de anos. Progrediu lenta­


mente e acentuou-se nos últimos 500 mil anos até por volta de 8
mil anos atrás, quando deixou de ser a principal atividade de maior
parte dos povos, muito embora sobreviva ainda hoje (em condições
� muito mais adversas que no passado) em algwnas regiões da Áfri­
ca, da Austrália, da Amazônia e da Ásia.
Edgar Morin nos diz que

a caça deve ser considerada um fenômeno humano total;


não só atualizou e exaltou aptidões pouco utilizadas e sus­
citou novas aptidões ; não só transformou a relação para·
com o meio ambiente; também transformou a relação de
homem para homem, de homem para mulher, de adulto pa­
ra jovem. Mais ainda; seus próprios desenvolvimentos ,
correlativamente à s transformações operadas, transforma­
ram o indivíduo, a sociedade, a espécie. A caça na savana
habiliza e habilita o homínida: faz dele o intérprete de um
número muito grande de stimuli sensoriais ambíguos e tê­
nues que se transformam em sinais, indícios e mensagens,
com o reconhecedor transformando-se em conhecedor. A
caça faz com que a inteligência tenha de se haver com o
que há de mais hábil e astuto na natureza, o animal-presa e
o animal-predador, com ambos dissimulando-se, esquivan­
do-se, enganando-se. Faz com que encontre o que há de
mais perigoso: o grande carnívoro. Estimula aptidões es­
tratégicas: a atenção, a tenacidade, a combatividade, a au­
dácia, o ardil, o engodo, a armadilha, a espreita.
86 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Com a caça se desenvolve também uma complexa organi­


zação social que, partindo da socialidade já presente nos primatas,
dela se diferencia.
É que as sociedades primáticas vão passar por significati­
vas mudanças a partir da caça: a sociedade dos primatas mantinha
no mesmo espaço os machos e as fêmeas, com os jovens se afas­
tando somente para a periferia próxima. Já a sociedade hominídea,
com a caça, viria separar ecológica, econômica e culturalmente os
sexos.
Assim a caça produz novas relações entre os sexos, pois
enquanto a caça leva os homens cada vez mais longe, a
maternidade, por seu lado, conserva as mulheres nos abri­
gos, à exceção dos babuínos em cujas sociedades as fê­
meas vão com o grosso do bando e com o seu filho às
costas. As crianças bímanas não podem, como os pequenos
quadrúmanos, agarrarem-se nas costas de sua mãe e o
prolongamento da fase infantil viria fazer com que as mu­
lheres se dedicassem cada vez mais aos cuidados matemos.
Permanecendo sedentárias, as mulheres passam, então, a
dedicar-se à forragem e à colheita, cuidando das necessi­
dades vegetais do grupo. Uma dualidade ecológica e eco­
nômica instala-se, a partir de então, entre homens e mulhe­
res. (Edgar Morin).

A caça implicana cada vez mais

uma organização coletiva para a escolha do terreno, a pre­


meditação do ataque, a sincronização dos movimentos es­
tratégicos, o desenrolar de um programa de operações
tanto preparado como improvisado e, finalmente, a divisão
do produto da caçada. ( . . . ) Pouco a pouco formar-se-á uma
densa solidariedade entre os homens: as longas relações de
homem para homem nas provas, nos perigos, nos triunfos
vividos juntos ; as homossexualidades latentes ou pratica­
das que alimentam a amizade; o prolongamento da adoles­
cência à medida que a caça praticada por adultos se com­
plexifica, faz com que as amizades juvenis sejam transferi­
das para a idade adulta (amizade juvenil já presente entre
os chimpanzés). (Idem) .

Enquanto se desenvolve essa solidariedade entre os machos


OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 87

as mulheres permaneceram uma "camada" social em que a


ajuda mútua estava sempre subordinada à fidelidade espe­
cífica e essencial às crianças e, eventualmente, ao macho.
Surge, então, uma extraordinária diferenciação sociológica
e que se toma diferença cultural entre o grupo de homens e
o de mulheres. (Idem) .

Todo esse processo levará ainda a uma profunda diferen­


ciação entre as sociedades primáticas e a hominídea que instaura
uma verdadeira economia.

Se considerarmos a economia como o sistema organizador


da extração de recursos (produção), da sua distribuição,
circulação e consumo, podemos dizer que a sociedade pri­
mática não dispunha de uma economia. A extração dos re­
cursos entre os primatas não era socialmente organizada,
exceto em momentos esporádicos da caça coletiva; a extra­
ção dos recursos não era tecnologicamente organizada,
-
embora eventualmente técnicas rudimentares fossem utili­
zadas; o consumo não era distribuído segundo regras e
normas mais ou menos igualitárias. (Idem) .

Já a sociedade hominídea organiza suas duas práticas eco­


lógicas - a caça e a colheita - segundo uma divisão do trabalho
entre homens e mulheres e segundo uma técnica inerente sobretudo
à caça. Já existem, com a caça, regras coletivas de repartição (dis­
tribuição e consumo) articuladas a uma "produção coletiva".

Assim, esboça-se com tais regras um primeiro sistema eco­


nômico. Sem ele a coesão e a complexidade social (homi­
nídea) desmoronam-se. . . Estas regras não servem apenas
para manter a complexidade adquirida, também a autopro­
duzem de modo permanente. Deste modo, a economia não
é apenas um setor específico que tem por objetivo a produ­
ção de recursos e ainda mal é um sistema especializado de
produção de artefatos . É bem mais do que uma organiza­
ção de sobrevivência, pois uma sociedade pode sobreviver
sem economia, como o fizeram, sem dúvida, as primeiras
sociedades de australopitecos, e podemos ver que o fim­
damento original da economia não é a "produção" dos re­
cursos, que é pré-econômica, mas sim a organização da
relação ecológico-social, segundo um modo autoprodutor
88 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

de complexidade social. É verdadeiramente um modo de


organização/produção de alta complexidade, partindo (já)
de um certo nível de complexidade. A organização econô­
mica emerge, assim, como cultura no sentido elevado do
termo. Essas regras de organização/produção são, princi­
palmente após o homo erectus, adquiridas e, portanto, de­
vem ser transmitidas, ensinadas, apreendidas, reproduzidas
em cada novo indivíduo no seu período de aprendizado pa­
ra poder autoperpetuar-se e perpetuar a alta complexidade
social. Assim, toda cultura organiza uma economia e lhe
confere um determinado significado no interior de uma
determinada complexidade social. (Idem) .

O PATRIMÔNIO CULTURAL
COMO CONDIÇÃO NATURAL DO HOMEM

Edgar Morin distingue, com propriedade, a reprodução da


cultura em cada indivíduo da auto-reprodução da cultura "que é a
reprodução de uma nova sociedade a partir de uma colônia de jo­
vens culturalmente formados que se separa da antiga". É através
dessas novas colônias que os grupos sociais se multiplicam partin­
do de um tronco comum. Foi assim que as sociedades hominídeas,
do homo erectus, puderam se estender pelo mundo antigo manten­
do sua alta complexidade. Assim, diversos grupos puderam desen­
volver novas aptidões na convivência com novos ecossistemas, di­
versificando as culturas dos povos não só no sentido de novas pro­
gressões, mas também de retrocessos.
A regressão de comportamentos inatos no homo sapiens
através do que estamos chamando de cultura não significa que os
códigos que toda cultura institui sejam capazes de substituir o có­
digo genético:

Ao contrário, o código genético do hominídeo desenvolvi­


do, principalmente do sapiens, produz um cérebro cujas
possibilidades organizadoras são cada vez mais aptas à
cultura, isto é, à alta complexidade social. No entanto a
cultura constitui, a partir de então, para a sociedade, um
centro epigenético dotado de relativa autonomia, tal como
o próprio cérebro, do qual ela não pode ser dissociada, e a
verdade é que ela contém em si informação organizacional
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 89

que será cada vez mais rica. Isso é o mesmo que dizer que
a cultura não constitui um sistema auto-suficiente, já que
precisa de um céreõro desenvolvido, de um ser biologica­
mente muito evoluído; neste sentido, o homem não se re­
duz à cultura. Todavia, a cultura é indispensável para pro­
duzir o homem, isto é, um indivíduo altamente complexo
numa sociedade altamente complexa, a partir de um bípede
nu cuja cabeça se vai dilatar cada vez mais. (Edgar Morin).

Essa complexidade cultural adquirida, que necessita de um


cérebro desenvolvido e apto para a complexidade, vai permitir que
uma sociedade, através desse patrimônio genético-cultural, conser­
ve essa complexidade culturalmente desenvolvida em condições
ecológicas inteiramente novas.

A cultura constitui com efeito uma estrutura de acolhi­


mento favorável a toda e qualquer mutação biológica indo
no sentido da complexificação cerebral, sobretudo se num
setor primordial, o cérebro se encontra saturado e já não
pode mais ocupar-se de um novo progresso organizacional.
A partir de então, todo salto cultural qualitativo para a
frente e todo salto cerebral qualitativo, também para a
frente, favorecem-se mutuamente e a evolução sóciocultu­
ral representa um papel decisivo na evolução biológica que
/
conduz ao sapiens. (Idem) .

O Cérebro, o Jovem e a Linguagem Hominizante

Com vistas a evitar uma interpretação ingênua que localiza


num simples e súbito acaso da mutação genética o surgimento de
um cérebro pronto e acabado e a partir daí o surgimento da cultura
e do homo sapiens, torna-se melhor falarmos de um processo de
cerebralização e da juvenilização.
A idéia de cerebralização deve ser entendida na sua com­
plexidade biológica e sóciocultural como um processo que não é
linear nem paralelo, onde esses termos se conjugam e se relacio­
nam. O cérebro do sapiens possui muito mais aptidões do que as
que utilizamos ainda hoje.
3
O cérebro p�sou de 500 cm nos antropóides para 600 a
3 3
800 cm nos hominídeos e em seguida para 1 . 100 cm com o homo
90 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

erectus, antes de atingir l ·SOO cm3 no homem de Neanderthal (ho­


mo sapiens neanderthalensis) e no lwmo sapiens sapiens.
O desenvolvimento da complexidade social exige por parte
do cérebro individual um �onhecimento cada vez mais preciso do
meio ambiente exterior e t<lmbém da própria organização interior à
sociedade; uma memóriil U\ais ampla e apurada; possibilidades de
associações; aptidões para �scolher, decidir e julgar grande número
de situações diversas e imPrevistas. Tudo isso contribui para favo­
recer toda e qualquer Jl)UUl.ção que aumente as potencialidades do
cérebro e não só quanto ao número de neurónios do córtex superior
do cérebro. Favorece t:am�m as mutações genéticas que permitam
conexões entre partes do Cérebro até então independentes entre si
e, com isso, a emergência de novos centros cerebrais associadores
e organizadores. Trata�se de "uma reorganização sistêmica mais
complexa, para o que conl:tibui, justamente, o aumento do número
de neurónios". (Idem).
Relembremos que � próprio crescimento do cérebro se fez
possível pelo bipedismo e pelo advento do fogo, que libertou o
maxilar de sujeições mecânicas.

Devemos ter clllfO que o aumento da complexidade social,


que o desenvolvimento d� caça permite, exigiu o desenvolvimento
da linguagem, que, por sua vez só pôde se desenvolver plena­
mente a partir de detefl)'Üll<tdas mutações genéticas. "A caça coleti­
va, a repartição dÕ afurle11lo, o transporte de urna crescente varie­
dade de coisas, tudo isso f<tzia pressão para uma organização social
mais complexa, que solll�nte é possível com uma comunicação
mais flexível". (Idem). N�o se trata, portanto, de uma sociedade
mais complexa que precis<t de uma maior comunicação entre seus
indivíduos; é preciso acres�entar que estamos diante também de in­
divíduos mais complexos que vão exigir uma mais complexa co­
municação. "Talvez seja 1\iais sensato pensar que foi a linguagem
que criou o homem e n� o homem a linguagem, desde que se
acrescente que o homíni� �riou a linguagem", diz Morin. Também
aqui, no que concerne à Iitt.guagem, vemos o quanto é difícil com­
preendê-la a não ser SllpCbndo a dicotomia ocidental consagrada
entre cultura e natureza.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 91

É sabido que o homo sapiens nasce em média com apenas


23% do tamanho médio do seu cérebro, enquanto que os chimpan­
zés nascem com cerca de 70%. De certo modo, esse cérebro menor
do sapiens à época do nascimento é o que permite a conformação
biológica atual do corpo da mulher, que teria necessariamente outra
configuração caso ele já apresentasse a sua dimensão total nos re­
cém-nascidos. Além disso, sabemos que o sapiens recém-nascido
não dispõe de condições biológicas para garatir sua sobrevivência.
Ele vai precisar de uma nova "placenta", de um novo "útero" para
se desenvolver plenamente, o que implica o conjunto de saberes
acumulados que terá ·que adquirir para tomar-se homem. Esse fato
de per si já permite que o desenvolvimento do cérebro se dê con­
comitantemente com os estúnulos não só ecológicos mas, sobretu­
do, culturais. "Assim, o prolongamento da infância está ligado de
modo multidimensional à sociedade: permite integrar as estruturas
sócioculturais nos cérebros e as estruturas fundamentais dos cére­
bros nas estruturas sócioculturais, permite o desenvolvimento tanto
intelectual como afetivo do indivíduo". (Idem).
\ Quanto mais complexo socioculturalmente for o desenvol-
vimento, mais a infância se prolonga na adolescência (processo de
juvenilização), pois maior é o patrimônio cultural adquirido que
tem de ser aprendido, assimilado, reproduzido.
O interessante ainda é que o adulto, apesar de na nossa so­
ciedade se pensar e agir de modo contrário, pode continuar apren­
dendo, alcançando novas adaptações, adquirindo novas estratégias,
novos conhecimentos, mesmo depois da infância e da adolescência,
pois cerebralmente dispõe de caracteres genéticos para isto. É
exatamente a morte da criança e do adolescente que ainda sobrevi­
vem no adulto que podemos caracterizar como o fenômeno da se­
nilidade.
Assim, "é perfeitamente evidente que o grande cérebro do
sapiens só podia surgir, ser bem-sucedido, triunfar, depois da for­
mação de uma cultura mais complexa, e é surpreendente que se te­
nha podido durante muito tempo acreditar exatamente o contrá­
rio". (Idem).
O papel da evolução biológica na evolução social e cultu­
ral do homem é muito maior do que se pensava; todavia, vimos
92 CARLOS WALTER P. GONÇAL-VES

também que a cultura, coisa que até recentemente sequer se sus­


peitava, é capital para a continuação da evolução biológica até
o sapiens.
O fato de as sociedades humanas desenvolverem ao longo
do tempo um patrimônio de saber sem o· qu� cada indivíduo no
interior de uma sociedade-cultura não conseg11e viver, não quer di­
zer que os homens saltaram da natureza para a cultura. Na verdade,
desenvolvem a sua natureza. O fato de se apropriarem dos proces­
sos de reprodução biológica e de darem um sentido a eles através
da agricultura e da pecuária não significa a anulação dos processos
de reprodução biológica. Quando essa reproàuç ão não se dá, em
virtude de desequilíbrios nos novos processos de fluxo de matéria e
energia que escapam ao controle do_s homens, é preciso reconhecer
os limites que se colocam ao absoluto domínio pelos homens -

desses processos. Quando a sociedade humaJla passa a controlar


processos físicos de produção de energia, coroo o que se dá com a
máquina a vapor, aumenta incrivelmente o poder de produzir novas
sínteses de matéria e energia. Com o aprofundamento e generaliza­
ção desse processo desencadeia-se uma enorme devastação que
aponta novamente para esses processos, que escapam ao domínio
dos homens. Com isso revela-se o que a sociedade moderna tenta
realizar e teima em ignorar: que a cultura nso exclui a natureza,
mas se desenvolve no interior dela, realizando novas sínteses de
matéria e energia socialmente instituídas e, pOrtanto, passíveis de
novos caminhos, novas agri-culturas, novas fonnas de mediação
entre o homem e o seu outro orgânico-inorgânico.
É preciso romper com o cartesianismo do res cogitans, o
sujeito que pensa e a res extensa, o mundo que se apresenta diante
de nós. Entre a cabeça que pensa e o mundo qve e stá à nossa frente
existe o corpo que é o que cada um de nós tetll p ara estar no mun­
do. E o corpo não admite a separação entre o holllem e a natureza:
ele comporta os dois indissociavelmente. E esse corpo é, como vi-
mos, não só descendente fisiológico dos prunatas mas desdobrou,
sob novas formas, a socialidade que neles já estava presente.
É
como nos ensina Serge Moscovici: "Estávamos acostu­
mados à idéia de que nossa fisiologia, nossa anatomia descendem
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 93

da dos primatas; deveríamos habituar-nos à idéia de que o mesmo


sucede com nosso corpo social" .

NOTAS

1. O famoso relatório do Clube de Roma, Os Limites do Crescimento, publi­


cado em 1972, está fundado nessas premissas teórico- metodológicas.
2. Os termos "estoque" de homens e "nicursos" humanos, largamente utili­
zados pelos cientistas do Clube, são bastante reveladores dos pressupos­
t9s que orientam as reflexões "científicas" da. prestigiosa instituição ...
3. E importante destacar a nova onda liberal que grassa nas décadas de 70 e
80 e ataca a intervenção do Estado em nome da liberdade do mercado,
quando este já está completamente dominado pela presença dos grandes
monopólios empresariais. É a hipocrisia neoliberal que quer a livre con­
corrência entre desiguais: as pequenas, médias e grandes empresas de
caráter multinacional. Ironicamente, são essas grandes empresas que têm
manifestado enorme preocupação com o problema ambiental, pois a exi­
gência de combate à poluição pode ser um importante pretexto para fa­
vorecer a maior concentração ainda do poder econômico, já que as pe­
quenas e médias empresas não teriam condições de atender a essas exi­
gências. Aqui os que se interessam pela questão ambiental não podem ser
ingênuos: tal desdobramento claramente contraria uma das principais
propostas do movimento ecológico que defende uma autêntica descen­
tralização do poder a nível local e regional e não uma simples descentrali­
zação geográfica das empresas, sob o controle de um poder econômico e
político cada vez mais concentrado.
SOCIEDADE NATURAL. NATURAL?

No capítulo anterior, procuramos expor à luz das novas descober­


tas científicas a complexidade que envolve o conceito de natureza,
sobretudo no que diz respeito ao animal-homem. Já salientamos
que o homem infelizmente tem sido analisado, nos diversos estudos
ecológicos, como um ser estritamente biológico.
Ora, o homem é um ser que por natureza produz cultura;
esta é a sua especificidade natural. Diferentemente do pensamento
corrente, os homens ao longo da história criam normas , regras e
instituições não para evitar cair no estado de natureza. Ao contrá­
rio, eles o fazem desenvolvendó a sua própria natureza não so­
mente em função dos estímulos advindos do meio ambiente, mas
também das relações que os homens estabelecem entre si.
O homem é um animal que vive nos mais diferentes ecos­
sistemas, não só se adaptando a eles mas, também, sobretudo a
partir da rev�lução neolítica, moldando-os a ele, em virtude das
suas necessidades histórico-culturalmente desenvolvidas. É empiri­
camente observável que mesmo em ecossistemas com características
similares, os povos que os habitam não apresentam as mesmas ca­
racterísticas sócioculturais. A história precedente com o patrimônio
cultural herdado, em certos casos trazidos de outras experiências
em outros ecossistemas, as influências sofridas em contato com
outros grupos - tudo isso leva a que cada povo-cultura seja singu­
lar e irredutível a qualquer outro. Cada povo-cultura é uma expe-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 95

riência única e radical e é no interior desse ambiente cultural que


se desenvolvem os atributos e qualidades sem os quais, para os in­
divíduos que nele vivem, a vida não vale a pena ser vivida.
Tudo isso implica que devemos aprofundar a reflexão a
respeito da idéia de sociedade natural, tão comum entre aqueles
que se envolvem com a ecologia. O que é uma sociedade natural?
Ora, o simples fato de existirem diversOs povos e culturas já nos
indica que é um atributo próprio da espécie humana desenvolver
múltiplas formas de organização sóciocultural e, assim, nenhum
desses povos-culturas pode ser apontado como natural em relação
aos outros. Essa diversidade de povos e culturas resulta das cria­
ções e invenções efetuadas pela espécie humana em situações his­
tóricas singulares e irredutíveis. Deste modo, todos os povos e
culturas são e não são naturais, a não ser que os queiramos sub­
meter a um modelo único que consideremos natural. E qual seria
esse modelo cultural? Isso, mais uma vez, faz-nos lembrar dos hor­
rores da experiência nazifascista . A idéia de uma sociedade natu­
. .

ral tem, de fato, uma forte conotação ecofascista.


Na verdade, esta tendência a buscar na natureza o para-
\
digma para a sociedade está fortemente enraizada na cultura oci­
dental, particularmente após os séculos XVIII e XIX, em certas
vertentes do Iluminismo e do Racionalismo. A ftlosofia positivista,
com absoluta hegemonia nos meios científicos, é a maior expressão
desse fato. Afmal, conforme já constatamos, sob a ótica positivista
a natureza é algo objetivo e, portanto, suas leis estão livres das
paixões, das ideologias e das subjetividades. Deste modo, aplicar
aos homens estas leis objetivas seria encontrar a sociedade natu­
ralmente justa.
O que o Iluminismo racionalista não conseguiu incorporar
foi a idéia de que as relações humanas, sócio-historicamente insti­
tuídas, não se estabelecem exclusivamente em função de interesses
práticos imediatos como aqueles que se desenvolvem na mediação
homem-natureza (técnica), mas também num campo de relações
intersubjetivas que é mediado simbolicamente (relação homem-ho­
mem) . Todo o racionalismo moderno veio se desenvolvendo em
tomo da relação sujeito-objeto, sem levar na devida conta que é
uma outra razão que move a relação sujeito-sujeito na sociedade. É
96 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

da incompreensão dessa problemática que parte a mania de chamar


de irracional ao povo indi�o que se recusa a comer carne de vaca
- animal considerado sagrado pelos hindus - quando grande parte
da população morre de fome, ao mesmo tempo em que se esquece,
todavia, de que no nordeste brasileiro assim como na periferia de
nossas grandes cidades, milhões de seres humanos' morrem de fome
sem que essas pessoas se atrevam a comer carne de cachorro. E
neste último caso sequer existe a atenuante de esse animal ser con-·
siderado sagrado ... :Por que não o fazem? Do ponto de vista bioló­
gico não há nada que os impeça e, no entanto, ficamos horroriza­
dos quando lemos nos jornais que se anda comendo rato no nor­
deste. Em contrapartida, não nos causa incômodo ler também nos
jornais que apesar da nossa alarmante crise habitacional foram
construídos nos últimos anos mais metros quadrados de residências
para automóveis (garagens) do que de casas para seres humanos
que "subvivem" nas favelas, cortiços e alagados. Olhada assim, de
um ponto de vista crítico, nossa sociedade também aparece como
irracional o que não nos imJY�de de encontrarmos explicações ra­
cionais para esses fatos...
Toda cUltura observada de fora ou sob a ótica de outros
valores aparece como irracional. Em suma, toda e qualquer cultura
é wn sem sentido que faz sentido para as pessoas que nela vivem.
Nenhuma cultura é, assim, racional,, ao mesmo tempo que todas o
são do ponto de vista de seus próprios valores.
É importante sublinhar que no interior de cada povo-cultu­
ra, dependendo da natureza de sua organização social, desenvol­
vem-se tensões, conflitos e lutas de caráter variado. Sabemos que
aquilo que genericàmente denominamos de cultura ocidental (ou
greco-romana ou judaico-cristã) comporta profundas diferenças no
espaço e no tempo.
As diversas culturas não são imutáveis; novas formas de
organização sóciocultural são inventadas e criadas; novos atributos
e qualidades desabrocham e outros são inibidos num processo ab­
solutamente sem fim. O homem não é simplesmente um ser inaca­
bado, é mais do que isso: é um ser inacabável. E esta é uma idéia
politicamente essencial, pois significa que se o homem não tem fun, a
tolerância e o respeito, sobretudo para com quem pensa diferente,
OS (DBS)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 97

devem estar absolutamente assegurados entre nós. Isto não nos


termos colocados pela tradição liberal que fala de direito à liberda­
de, inclusive para que um homem possa oprimir e explorar outro
homem em nome do progresso e da livre iniciativa quando a ini­
ciativa dos demais está sendo negada. A li®rdade fundada na pro­
priedade privada se é positiva para quem é proprietário, significa
para aquele que não o é o cerceamento da possibilidade de pleno
desenvolvimento de suas potencialidades. A sociedade que pode­
mos imaginar a partir da situação concreta em que vivemos não se­
rá mais natural do que essa à qual estamos submetidos e questio­
namos. Ela, talvez, permita que outras potencialidades floresçam.
Talvez mais pessoas consigam se libertar do jugo a que estão sub­
metidas... mas ela não significará de modo algum o fim da história,
pois novas tensões, conflitos e lutas nela se desenvolverão. Outros
possíveis históricos estarão nela sendo inibidos e são eles que
apontarão o sentido das mudanças e transformações que terão que
advir.
À primeira vista, estas considerações acerca do complexo
desenvolvimento dos povos e das culturas, na verdade, sobre a
\
história, parecem fugir à temática central d�ste ensaio que propõe
uma reflexão sobre a .ambígua idéia de natureza. No entanto, tais
observações são fundamentais às nossas reflexões, pois toda cultu­
ra elabora os seus conceitos, inclusive o de natureza, ao . mesmo
tempo em que institui as suas relações sociais. Em nossa soc iedade,
por exemplo, a natureza é vista como algo passível de ser domina­
do e submetido ao Homem todo-poderoso... E só não vê quem não
quer a íntima relação dessa idéia com os propósitos de · dominação e
submissão de um homem por outro homem. Veremos com mais
detalhes adiante que curiosamente aqueles seres humanos que estão
submetidos, explorados e oprimidos é que são, com freqüência, as­
sociados à natureza: os índios, os negros, as mulheres, os operá­
rios, os camponeses, os jovens, as crianças.
Um conceito-chave de toda cultura é o conceito de nature­
za. Essa afirmação talvez abra uma pista interessante para novas
reflexões, libertando-nos da armadilha em que até agora estivemos
enredados tentando buscar aquela característica que faria o homem
saltar do reino da natureza para o reino da cultura. O homem é um
98 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

ser social? É um fabricador de instrumentos, um lwmo faber? É um


animal falante, lwmo linguisticus? É a existência da interdição para
os casamentos, as relações oe parentesco que o distinguem dos ou­
tros animais? . . . As novas descobertas científicas fazem cair por ter­
ra todas essas tentativas, pois como nos diz Serge Moscovici, "tu­
do nos incita a pôr fim à visão de uma natureza não-humana e de
um homem não-natural".
Talvez o necessário seja que todos os que se interessam
pela ecologia afirmem com veemência - com todas as implicações
daí decorrentes - que a sociedade tem limites na . sua relação com
os outros seres orgânicos e inorgânicos, que habitam o nosso pla­
neta. . . Mas falar em limites - o que à primeira vista pareceria uma
solução é, na verdade, problemático. Quem determina os limites?
Quem, em nome do que ou de quem terá o poder de impor esses
limites? Poder-se-ia alegar que quando se trata da vida, da sobrevi­
vência da espécie, essas questões tornam-se menores porque o que
importa é a sua preservação antes que seja tarde. Porém aqui, sa­
bemos, não há consenso. Ao contrário, há um verdadeiro divisor de
águas entre os próprios ecologistas: para aqueles que consideram a
vida num sentido estritamente biológico, não há problema quanto à
forma de preservação, desde que isso seja feito com eficácia. To­
davia, existem outros - entre os quais me incluo - que acreditam
que o desenvolvimento da vida humana em toda sua plenitude exi­
ge um terreno onde os homens livremente possam definir seus des­
tinos e a inexistência dessa condição impede o desabrochar ine­
rente à vida humana que é negado em nome de uma vida puramente
vegetativa, biológica. Esta questão não é nova, e está mesmo na
origem da filosofia na Grécia antiga: os gregos originariamente
chamavam pólis ao muro que demarcava, delimitava, a cidade do
campo. Posterimmente, pólis passou a designar o que estava conti­
do intramuros. Cidadão era aquele que podia participar da discus­
são sobre os destinofi da pólis. Escravo era aquele a quem estava
vedado esse direito,. também fora do alcance das mulheres. Política
era a arte de definir os limites para a vida na pólis. Tirania, quando
wn definia os limites para toda a pólis. Democracia, quando todos
os cidadãos governavam e autodefiniam esses limites.
As revoluções burguesas estenderam os direitos de cidada­
nia não distinguindo, como os gregos, cidadãos de escravos, ao
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 99

afirmar que todos são iguais perante a lei. Nos quadros da socieda­
de burguesa, permanece a interrogação acerca de quem vai definir
os limites o que, tal como no mundo grego, coloca-nos no cerne da
política, da arte de definir os limites. Avulta aí a contradição de
muitos ecologistas que querem definir limites mas não querem se
envolver com a política. . . Quanto a ist<y_n:�;.n't�ternativa: a
questão ecológica é essencialmente polítjé�.: IY rundà ',gue encontre­
..

mos em nosso país boas razões para terq{g�� ay�� p\;ll(tica, a se­
riedade dos problemas que levantamqs· �xj��LJ?!� �so mesmo,
�j .

muita criatividade e lucidez política PaTI\ nãf deixarm§s ty questão


nas mãos daqueles que só lembram da e�qlõ ia_na �-�á das elei-

ções. "' �� �.�::�;;;:/.'�
·

Do movimento ecológico parte um brado que precisa ad­


quirir um contorno político-cultural profundo: nossa sociedade está
destruindo as fontes vitais à sua própria sobrevivência. E esse bra­
do traz em si uma das características mais especificamente huma­
nas: a consciência da morte. Sabemos que muitos animais deixaram
de existir porque, como predadores, extinguiram suas presas...
Nós, ecologistas, chamamos a atenção para a possibilidade de re­
versão dessa tendência eco-suicida enquanto há tempo, desenvol­
vendo outras formas de reíação com a extensão de nosso corpo que
é a natureza, o que, como já vimos, implica a adoção de ou�s téc­
nicas de outras relações entre os homens, enfim, o desenvolvi­
mento de uma outra cultura. Insistimos: 1945 - Hiroshima-Nagasa­
ki - é um marco singular na his�ória do processo civilizatório, pois
colocou concretamente a possibilidade efetiva de extinÇão da vida
não só da espécie humana, mas de toda espécie de vida.
Eis a razão maior do movimento pela vida que, como não
podia deixar de ser, é um impulso radical, no sentido mais profun­
do do termo, ou seja, que busca ir à raiz das coisas para dela fazer
emergir um pensar, um agir e um sentir mais lúcido. A história já
demonstrou que não caminha necessariamente para a frente. As so­
ciedades que se consideram os mais civilizados foram as responsá­
veis pelas maiores barbáries do nosso século: Auschwitz, gulag e
os bombardeios de napalm no Vietnã, por exemplo, não'podem ser
apontados como súnbolos de progresso da humanidade.
SOCIEDADE MODERNA E NATUREZA

A extrema fragmentação do conhecimento, sobretudo a partir do sé­


culo XIX, consagrou a separação entre o homem e a natureza. A in­
fluência de Descartes, Galileu, Leibniz e, particularmente, de Isaac
Newton contribuiu para form;rr o imaginário iluminista, fundado na
idéia de uma physis ordenada tal e qual um relógio, cujos ponteiros
fazem sempre os mesmo movimentos. O universo newtoniano é
''relojoeiro", mecanicista, sincronizado e não diacronizado. Como
j á salientamos, Hegel ainda tentou formular uma história das socie­
dades, mas o fez enquanto história das idéias, história do espírito.
Só na segunda metade do século XIX, com Darwin e o seu Origem
das Espécies, teremos uma história da evolução dos seres vivos.
Mas o mundo concreto, cotidiano, já estava profundamente mer­
gulhado no universo mecânico da Revolução Industrial; no turbi­
lhão da vida urbana; no esvaziamento do campo; na fuligem das
cidades e regiões negras de poluição. Daí em diante, veremos a in­
compatibilidade entre o mundo mecânico da física e o mundo orgâ­
nico da biologia, incompatibilidade essa instituída pela modema
sociedade industrial burguesa.
A física modema começou pelos céus, com a astrofísica,
onde màis · facilmente se percebem as regularidades, ao contrário do
Jllundo das plantas e dos animais, menos constante à escala da vida
cotidiana dos homens. Afmal, os dias e as noites se sucedem regu­
larmente: a Lua, o Sol e os demais astros podem ter as suas locali-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 101

zações previstas através de cálculos matemáticos. Já o mesmo não


podia ser feito com as plantas e animais, que têm ciclos vegetativos
variados: nascem, florescem e morrem em tempos diferenciados.
Enfnn, o mundo vivo se mostrava de uma outra complexidade não
redutível aos mecanismos da lei da gravitação universal.

A idéia de mecanismo, proveniente da física, rapidamente


deixou os céus e desceu à terra para - através das máquinas - se
constituir na imàgem de progresso palpável e tangível para a hu.:
manidade. A "razão técnica" se impunha à medida que a burguesia
e o seu capitalismo se afmnavam.

A vida concreta dos indivíduos inseridos nas relações so­


ciais capitalistas passou cada vez mais a ser controlada pelo reló­
gio, esse mecanismo regular por excelência, cuja função é sincro­
nizar os movimentos de cada um: para que a fábrica funcione é ne­
cessário que todos estejam a postos, à mesma hora, no mesmo lu­
gar; a fábrica exige que as matérias-primas cheguem no tempo
certo; os comerciantes devem estar a postos para comprar e vender
na hora certa; as demais fábricas devem fornecer em tempo hábil os
insumos; enfun, tudo deve ser sincronizado através de uma rede de
transportes e comunicações com o máximo de precisão horária pos­
sível. Afmal, ' 'time is rrwney' ' Deste modo, nesse mundo, o reló­
.

gio se toma um mecanismo de significado fundamental, pois per­


mite regular, controlar e sincronizar. a vida social fazendo-a fun­
cionar.

Assim, ficam evidentes as profundas raízes, socialmente


instituídas, que darão suporte real às concepções teórico-metodoló­
gicas que privilegiarão nas suas análises o sincrônico e não o dia­
crônico. O Funcionalismo, o Estruturalismo e a Teoria Geral dos
Sistemas - que piivilegiam o estudo do modo como um determina­
do fenômeno (sistema) atua, em detrimento da análise do modo
como se constitufram as condições do seu funcionamento - ganham
uma solidez mais aparente que real. Isso porque embora a realidade
apareça à primeira vista como funcional - no caso da relação cida­
de-campo, por exemplo, dando a impressão de que tais pressupos­
tos são capazes de dar conta teoricamente da realidade do dia-a-dia
-, logo aparece uma greve, um conflito e múltiplas tensões que si-
102 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

nalizam a existência de contradições no interior da aparente fun­


cionalidade do sistema.
Em relação às chamadas ciências da natureza, essa prima­
zia do sincrônico foi tão longe que levou à extinção dos cursos de
história natural e a sua segmentação nas áreas da química, biologia,
geologia e, mais recentemente, da ecologia.
Nas duas últimas décadas, todavia, tem-se notado a reali­
zação de inúmeros seminários, congressos e colóquios de caráter
interdisciplinar que tentam reverter essa situação. Não são peque­
nos os obstáculos a essa abordagem no interior das universidades,
pois o corporativismo se enraizou nos corações e mentes da maior
parte dos nossos cientistas e pesquisadores que acreditam que o
modo como nossa sociedade instituiu a divisão do trabalho científi­
co é a única possível... Não conseguem perceber que essa postura
está profundamente comprometida com a sociedade existente e, em
parte, é co-responsável pelos problemas vivenciados por ela.
TEMPO E TRABALHO : PRODU TIVIDADE

O relógio, não a máquina a vapor, é a máquina-chave da modema


era industrial.
(Lewis Munford)

Com o advento da sociedade capitalista nos fmais do século XVIII ,


a ciência e a técnica passaram a assumir um lugar central na vida
dos homens. A idéia de progresso é associada à industrialização,
um dos sinônimos de modernização. É a técnica, acredita-se, que
tomará possível menores custos de produção, maior quantidade de
produtos num mesmo tempo de trabalho. Produtividade, eis a pala­
vra-chave !
O conceito de produtividade implica o de tempo e o de
trabalho. Produtividade é um conceito temporal, pois é medida
(número) do resultado do trabalho numa determinada quantid,ade de
tempo. Assim, a idéia de produtividade só podia ganhar a impor­
tância que alcançou se as noções de tempo e de trabalho já estives­
sem também consagradas. E o mundo ocidental nem sempre teve a
concepção de tempo e de trabaiho que apresenta hoje. · Em outras
palavras, as noções de tempo e de trabalho passaram por uma pro­
funda transformação até serem apropriadas modernamente pelas
burguesias mercantil e industrial em sua preocupação com a pro­
dutividade.

O TEMPO E A ORDEM MONÁSTICA

Os físicos que modernamente levaram mais longe o con­


ceito de tempo não perceberam o quanto a sua concepção estava
enraizada no mundo medieval. Lewis Munford constata:
104 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Foi, sem embargo, nos monastérios do Ocidente que o de­


sejo de ordem e poder ( . . . ) se manifestou pela primeira vez
, depois da larga incerteza e sangrenta confusão que acom­
panhou a derrocada do Império Romano. Dentro dos muros
do monastério estava o sagrado : sob a regra da Ordem fi­
caram de fora a surpresa e a dúvida, o capricho e a irregu­
laridade. Opostas às flutuações erráticas e aos ruídos da vi­
da mundana se achava a férrea disciplina da regra. ( . . . ) Por
uma bula do Papa Fabiano, no século VII, decretou-se que
os sinos dos monastérios seriam tocados sete vezes nas
vinte e quatro· horas. Estas divisões do dia ficaram conhe­
cidas como horas canônicas , fazendo-se necessário encon­
trar um meio para contabilizá-las e assegurar sua repetição
regular.

Acredita-se que os relógios mecânicos que a seguir come­


çaram a ser implantados - como o primeiro, que se atribui ao mon­
ge Gerberto, depois Papa Silvestre II, no século X seriam prova­
-

velmente de água e teriam sido legados dos tempos romanos ou


trazidos ao Ocidente através dos árabes. Todavia,

o monastério foi a sede de uma vida regular, e um instru­


mento para dar as horas a intervalos ou para lembrar o res­
ponsável que era hora de tocar os sinos. É um produto
quase inevitável desta vida. Se o relógio mecânico não
apareceu até que as cidades do século XIII exigiram uma
rotina metódica, o hábito da ordem mesma e da regulação
formal da sucessão do tempo, havia se convertido em uma
segunda natureza do monastério ( . . . ) Assim, pois, não es­
tamos exagerando os fatos quando sugerimos que os mo­
nastérios - em um momento determinado houve quarenta
mil homens sob a regra beneditina - ajudaram a dar à em­
presa humana a batida e os ritmos regulares coletivos da
máquina: pois o relógio não é simplesmente um meio de
manter a regularidade das horas, mas também para a sin­
cronização das ações dos homens (Idem) .

No século XIII já existem vários registros de relógios me­


cânicos e em 1370, Heirich Von Wyck havia construído um relógio
moderno bem projetado. O interessante é que são as torres das
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 105

igrejas os lugares preferidos para fazer soar as horas nas cidades da


Idade Média:

As nuvens que podiam paralisar o relógio de sol, o gelo


que podia deter o relógio de água numa noite de inverno,
não eram já obstáculos para medir o tempo: verão ou in­
verno, de dia ou de noite, se dava a conta do ritmo do soar
das horas. O instrumento prontamente se estendeu para fo­
ra dos monastérios e o som regular dos sinos trouxe uma
nova regularidade à vida do trabalhador e do comerciante
- as batidas do relógio da torre quase determinavam a
existência urbana (Idem).

O relógio, instrumento de medida do tempo, é o súnbolo


que sintetiza a ordem monástica e a ordem comercial na cidade da
Idade Média. Assim como a ordem monástica é auto-instituída,
coq�. suas horas canônicas, e independe dos tempos físicos ou bio­
lógicos, o crescente desenvolvimento do comércio que experimen­
tam as cidades da Idade Média vai ser regulado pelos relógios me­
cânicos. Esse tempo abstrato, medido matematicamente, advindo
dos monastérios, vai ser apropriado pela burguesia mercantil, cujas
preocupações - pelo próprio caráter da sua atividade - são sempre
de ordem quantitativa. Afinal, um negócio mostra-se melhor do que
outro pelo seu rendimento medido em cifrões. Assim, pouco a pou­
co, a idéia de quantidade passou a prevalecer nas análises e avalia­
ções sobre a noção de qualidade. E ·o dinheiro, sabemos, é uma
medida abstrata que serve de equivalente para qualquer mercado­
ria. É o equivalente geral, cujo valor varia na razão direta da sua
quantidade. Pode-se adquirir mais ou menos mercadorias de quali­
dades diferentes em função da quantidade de dinheiro que se pos­
sui. O tempo abstrato instituído com o relógio (horas canônicas)
encontra na prática burguesa mercantil um _terreno sólido.
Lewis MUinford chega mesmo a dizer que "hoje nenhuma
máquina é tão onipresente como o relógio". Diz, ainda, que

na origem mesmo da técnica moderna, apareceu profetica­


mente a máquina automática precisa, que só depois de sé­
culos de ulteriores esforços ia também provar a perfeição
desta técnica em todos os setores da atividade industrial.
Houve máquinas movidas pela energia humana, como o
106 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

moinho hidráulico, antes do relógio; houve também diver­


sos tipos de autômatos que assombraram ao povo no tem­
plo , ou para agradar à ociosa fantasia de algum califa mu­
çulmano; encontramo-las ilustradas em Herón e em Al-Ja­
zari. Mas agora tínhamos uma nova espécie de máquina, na
qual a fonte de energia e transmiss�o eram de tal natureza
que asseguravam o fluxo regular de energia dos trabalhos e
faziam possível a produção regular de produtos estandardi­
zados. Em sua relação com quantidades determináveis de
energia com a estandarc:lização, com a ação automática e,
finalmente, com seu próprio produto, o tempo exato, o re­
lógio tem sido a máquina principal na técnica modema: e
em cada período tem seguido à cabeça: marca uma perfei­
ção para a qual aspiram outras máquinas ( . . . ) Ademais, o
relógio é uma máquina produtora de energia cujo "produ­
to" é segundos e minutos: per sua natureza essencial dis­
socia o tempo dos acontecimentos humanos e ajuda a criar
urna crença em um mundo independente de seqüências
matematicamente mensuráveis: o mundo essencial da ciên­
cia. Existe relativamente pouco fundamento para esta cren­
ça na comum experiência humana: ao longo do ano, os
dias são de duração desigual e a relação entre o dia e a
noite não somente muda continuamente, senão que uma
pequena viagem do leste ao oeste muda o tempo astronô­
mico em um certo número de minutos. Em termos de orga­
ni smo humano mesmo, o tempo mecânico é ainda mais es­
tranho: enquanto a vida humana tem suas próprias regula­
ridades, o bater do pulso, o respirar dos pulmões • mudam
de hora em hora segundo o estado de espírito e a ação e,
no mais largo lapso dos dias, o tempo não se mede pelo
calendário senão pelos. acontecimentos que os preenche. O
pastor o mede segundo o tempo que a ovelha dá a luz a um
cordeiro; o agricultor o mede a partir do dia da semeadura
ou pensando na colheita; se o crescimento tem sua própria
duração e regularidades, por detrás destas não há somente
matéria e movimento, senão fatos do desenvolvimento: em
b:teve, história. Enquanto o tempo mecânico está formado
por uma sucessão de instantes matematicamente isolados, o
tempo orgânico - o que Bergson chama duração - é cu­
mulativo em seus efeitos. Ainda que o tempo mecânico
PQssa em certo sentido, acelerar ou ir para trás, como os
ponteiros de um relógio ou as imagens de um filme, o tem­
po orgânico se move só em uma direção, através do ciclo
do nascimento - crescimento - desenvolvimento - deca-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 107

dência e morte e o passado que já é morto segue presente


no futuro que ainda há de nascer.

Ao redor de 1345, segundo nos infonna Thornike, o tempo


já estava dividido pelo sistema sexagesimal - minuto com 60 se­
gundos; a hora com 60 minutos; o dia com 24 horas (múltiplo de 6)
e o ano em 365 dias. Este marco abstrato do tempo dividido serviu
de referência para a ação e para o pensamento e "em um esforço
para chegar à precisão neste aspecto, a exploração astronômica dos
céus concentrou mais ainda a atenção sobre os movimentos regula­
res e implacáveis dos .astros através do espaço". Já nos anos que
correm pelo século XVI, um jovem mecânico de Nuremberg, Peter
Henlein, cria "relógios com muitas rodas com pequenos pedaços
de ferro" e, no final deste mesmo século, os relógios domésticos já
haviam sido introduzidos na Inglaterra e, como não podia deixar de
ser, na região de Flandres. Portanto, o relógio sai do ambiente fe­
chado dos monastérios, ganha as torres das igrejas, governa o coti­
diano das cidades comerciais e, fmalmente, entra em casa. Assim,
antes de Galileu dizer que "a linguagem da natureza está escrita
\ em números" ou é matemática, ou de Benjamin Franklin dizer que
"Tempo é Dinheiro", o dia-a-dia dos homens já estava marcado
pela quantificação de horas, do tempo ...
Diz Lewis Mumford:

Quando se considera o tempo não como uma sucessão de


experiências, mas sim como uma coleção de horas, minutos
e segundos, aparecem os hábitos de acrescentar ou de eco­
nomizar tempo. O tempo cobra um caráter de espaço fe­
chado: pode dividir-se, pode preencher-se, pode, inclusive,
dilatar-se mediante o invento de instrumentos que ecomi­
zem tempo.

E continua:

O tempo abstrato se converteu no novo âmbito da existên­


cia. As mesmas funções são reguladas por ele: se come não
porque se tem fome, mas porque está na hora; se dorme
não porque se está cansado, mas poque está na hora. Uma
consciência generalizada do tempo acompanhou o emprego
mais extenso dos. relógios. Ao dissociar o tempo das se-
108 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

qüências orgânicas, se faz mais fácil para os homens do


Renascimento satisfazer a fantasia de reviver o passado
clássico ou os esplendores da antiga civilização romana. O
culto da História, aparecendo primeiro no ritual diário,
abstraiu-se finalmente como uma disciplina especial. No
século XVII apareceram os jornais e a literatura periódica:
inclusive no vestir, seguindo Veneza como centro da mo­
da, as pessoas mudavam a moda a cada ano em vez de a
cada geração.

Não se pode ainda esquecer que o relógio mecânico, ao fa­


zer os ponteiros se -moverem no espaço de um círculo permitiu
também uma concepção de espaço abstrato que nada tem a ver com
o espaç() concreto da geografia de cada dia dos homens. As cartas
geográficas, a cartografia; passam a ter um grande desenvolvi­
Ill:ento, pois as viagens podiam se feitas com economia de tempo se
auxiliadas pelo sistema de coordenadas geográficas. Os mercadores
muito se interessaram por essas cartas, tendo ficado famosa a pro­
jeção Mercator, cujo nome, diga-se de passagem, não faz referên­
cia a seu inventor, mas sim a uma profissão (mercador).

TRABALHO:
DE SO\?RIMENTO A REDENÇÃO DA HUMANIDADE

'trabalho, do latim vulgar tripaliare, torturar, derivado de


tripaliwn · "instrumento de tortura composto de três paus" ;
<la idéia inicial de "sofrer passou-se à de esforçar (se), lu­
tar, pugnar e, por fim, trabalhar.
'trabalhador, século XIV.
(Dicionário Etimológico da Lfngua Portuguesa, de Antô­
nio Gera1do da Cunha, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1 982).

A relação entre a sociedade e a linguagem é evidente, pois


é atravé� da linguagem que cada um comunica aos outros os seus
sentimentos, desejos e aspirações. É no contexto da sociedade que
as palavras ganham (e mudam de) significado com o devir da socie­
dade. A palavra trabalho, por exemplo, nem sempre teve o mesmo
significado no mundo ocidental. De sinônimo de sofrimento, can-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 109

saço, penalização e até tortura, pouco a pouco, yai . ganhando um


significado positivo à época do Renascimento. A palavra inglesa,
de origem latina, labor; ponos, do grego; travai!, do francês e Ar­
beit, do alemão, todas remetem ao significado de dor e esforço da­
queles que trabalham, estando · também associadas à idéia de misé­
ria e penúria, sobretudo em grego e em alemão, onde têm a mesma
raiz etimológica que pobreza (penia e Armut, respectivamente).
A partir do século XVI, segundo Hannah Arendt, o traba-
·

lho passa

da mais humilde e desprezada posição ao nível mais eleva­


do e à mais valorizada das atividades humanas, quando
Locke descobriu que o trabalho era a fonte de toda pro­
priedade. Seguiu seu curso quando Adam Smith afirmou
que o trabalho era a fonte de toda a riqueza e alcançou seu
ponto culminante no 'sistema de trabalho' de Marx, onde o
trabalho passou a ser a fonte de toda a prodÚtividade e ex­
pressão da própria humanidade do homem.

Para o cristianismo, o sofrimento tem um significado ao


mesmo tempo positivo, pois "é mais fácil um camelo passar pelo
\ buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus' ' . O
trabalho enquanto sofrimento é, assim, a depuração dos pecados
para que se alcance o paraíso. O desprezo que o cristianismo tem
pelo corpo, pela carne, locus do prazer e da sensualidade, é que le­
va à idéia de que "o trabalho dignifica o homem". O corpo está
sempre à mercê da sedução demoníaca por isso é preciso mortificá­
lo. Todo esse desprezo judaico-cristão pelo trabalho, pelo corpo,
ficou consagrado no Ocidente pelas oposições trabalho manual
versus trabalho intelectual e idéia versus matéria. É possível identi­
ficar já em Platão essa distinção entre trabalho intelectual e braçal,
que o cristianismo levará longe. A práxis cristã é plena de evidên­
cias que apontam nesse sentido, como, por exemplo, a autoflagela­
ção dos corpos e a identificação do cristão com os corpos que so­
frem, os corpos doentes, sobretudo o dos leprosos. Maior sofri­
mento consequentemente maior depuração. É dos pobres, dos so­
fridos, o reino dos céus . . .
A partir dos séculos X V e XVI, com o desenvolvimento do
comércio e das manufaturas, começamos a observar uma mudança
1 10 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

no conceito de trabalho, através da crítica ao ócio aristocrático. É


sabido que a riqueza da aristocracia feudal e da Igreja provinha da
propriedade territorial, imóvel, através dos tributos que os servos­
camponeses estavam obrigados a pagar para continuar tendo direito
ao usufruto das terras senhoriais. Nos interstícios da sociedade
feudal, a partir dos séculos X/XI e sobretudo do século XIII , cres­
ce a burguesia mercantil, cuja riqueza é expressa em dinheiro, um
bem móvel. Para a burguesia mercantil, a riqueza dependia da sua
capacidade de empreender, de gerar cada vez mais dinheiro em cir­
culação e esta é a sua razão de .ser. À burguesia mercantil não inte­
ressa o ócio. Ao contrário, é da negação do ócio, do negócio, que
ela vive: a preocupação de ampliar seus negócios impele a burgue­
sia a se interessar pelo conhecimento das técnicas que tomem pos­
sível aumentar a gama de produtos que comercializa no mercado. A
preocupação com a produtividade, sinônimo de eficácia do trabalho
no universo burguês, expresso pelo mais (e não pelo melhor) que
se produz numa determinada unidade de tempo, vai ser consagrada,
sobretudo com a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. É
preciso ter em conta que entre os séculos XVI e XVIII ocorreu
uma verdadeira revolução agrícola, caracterizada pela introdução
de novas técnicas de cultivo, de drenagem de rios e construção de
canais nas terras arrendadas com objetivo de produzir para o mer­
cado; terras essas que antes eram cultivadas pelos servos-campone­
ses com a fmalidade de garantir seu próprio alimento. Assim, terras
que eram usadas para produzir o que se destinava ao próprio uso
de quem as cultivou (produção .de valores de uso) passam a ser uti­
lizadas tendo em vista a produção para a venda ao mercado (pro­
dução de valores de troca).
Para a burguesia que começa a se formar, a riqueza depen­
de do crescimento da capacidade de trabalhar a terra, do rendi­
mento do trabalho. O trabalho, portanto, com a ascensão da bur­
guesia, passa a se tomar. um conceito positivo e, pouco a pouco, a
máquina, pela sua capacidade de potencializar o trabalho, vai ad­
quirindo um significado cada vez mais importante.
Como o Renascimento falava de um homem genérico que,
conforme advogou Descartes no século XVII , com sua capacidade
de penetrar os mistérios da physis poderia descobrir novos usos pa-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 111

ra a natureza, pennaneceu a crença numa divisão natural entre os


que pensam e os que fazeJ!l, entre os que trabalham com a mente e
os que trabalham com as mãos ou com o corpo. Todavia, não foi
fácil consagrar essa distinção entre os séculos XVI e XVTII até
porque muitas das "invenções" desse período foram realizadas por
homens comuns como artesãos e camponeses.
O advento do mundo das máquinas, sobretudo da máquin�
a, vapor, consagrou toda uma tradição filosófica e política atualiza­
da pela burguesia. A máquina não é propriedade de todos, mas da­
queles que conseguiram concentrar o capital em suas mãos e vai
ser usada para ampliá-lo. Assim, desde o início, o burguês tem um
olho no mercado, nos seus competidores, e outro no aumento da
produtividade, condição para ganhar a concorrência. O ritmo das
máquinas fica subordinado à competição e desde o início os que
trabalham vão ter que sofrer os seus desígnios. A máquina é a ex­
pressão palpável e tangível que encarna toda uma filosofia, toda
uma concepção de mundo. Tal como um relógio pode funcionar de
dia e de noite, no inverno e no verão independentemente dos ciclos
da natureza e dos corpos dos homens, a máquina subordina os ho­
mens a sua batida indiferente. Daí a idéia de universalidade contida
na máquina, pois o seu princípio pode ser levado aos mais dife­
rentes campos da ação humana.. . Todavia, cada ecossistema tem
. seu próprio ritmo e processo de propução-reprodução. Cada ser
humano tem seus próprios humores e movimentos não redutíveis ao
movimento retilíneo e uniforme das máquinas ...
No caso da agricultura, a mecanização será mais tardia,
pois as máquinas tendem a ser especializadas, exigindo para isso a
homogeneização dos processos de cultivo. Já sabemos que essa
prática, a formação de plantações homogêneas, implica simplifica­
ções e torna os ecossistemas muito mais vulneráveis. A tentativa
recente da chamada "Revolução Verde" mostrou a impossibilidade
de transplantar a lógica do mundo físico-mecânico para o campo
biológico-orgânico. Os gastos cada vez maiores com adubos quí­
micos para garantir o equilíbrio dos ecossistemas simplificados têm
apontado para rendimentos decrescentes, quando olhados pela ótica
· fmanceira, conforme demonstra o relatório do Clube de Roma Os
· Limites do Crescimento.
1 12 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Se ainda considerannos a questão do uso das máquinas


pelo lado dos homens que as operrun nas indústrias, veremos quão
graves são as suas conseqüências no que diz respeito ao barulho, à
poluição do ambiente interno das fábricas, ao stress, aos acidentes,
etc. Aliás, se considerannos o si gnifi
cado da' palavra acidente - do
senso comum, dicionarizado: "acontecimento casual, fortuito, im­
previsto" - veremos que a expressão não é oportuna com relação
ao processo de trabalho. Afmal, o ritmo uniforme e regular das
·

máquinas, acelerando ou diminuindo a sua intensidade ao sabor das


circunstâncias do mercado e da concorrência, submete os operários
a uma exigência de monotonia impOSsível de ser atendida por um
ser humano. Deste modo, o "acidente de trabalho" é inerente à ro­
tina do sistema de fábrica, nada tendo de acontecimento casual,
fortuito, imprevisto como diz o dicionário do Aurélio. O mesmo
pode ser dito com relação ao trânsito de automóveis que também
exige uma atenção sobre-huffiana. Neste campo, os acidentes po­
dem ser minimizados mas não evitados, como o demonstra o siste­
ma de trânsito dos países tidos como mais civilizados. O que seria
de estranhar é a ausência de acidentes nas fábricas ou no trânsito e
não a sua ocorrência. . .

A mudança do conceito d e trabalho de uma conotação ne­


gativa a ·outra positiva está, portanto , associada à ascensão da bur­
guesia mercantil e depois industrial ao poder; à produção de mer­
cadorias; ao tempo abstrato. Não é à-toa que foi nos lugares onde
era maior o desprezo pelo corpo, isto é, nos monastérios, nas minas
e nos exércitos que as máquillas iniciaram sua trajetória até se
constituírem no mito de redentoras da humanidade.

ECONOMIA/ECOLOGIA:
VALOR DE USONALOR DE TROCA

Enquanto os ecologistas falam do uso racional dos recur­


sos naturais, os economistas se preocupam com o preço e com o
valor de troca das mercadorias. Essas são falas excludentes, onde
valor de uso e valor de troca necessariamente se opõem.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 1 13

Ora, toda mercadoria, é, como tal, produzida não para o


uso de quem a faz, mas sim para a troca. Exclua-se o caso dos
camponeses que normalmente vendem o pequeno excedente da sua
produção, porque isto não é característico da produção capitalista
de mercadorias: um capitalista do setor siderúrgico, por exemplo,
não produz aço para si próprio e depois vende o excedente. Para o
capitalista, o "uso" precípuo da mercadoria é lhe servir como valor
de troca medido em cifras. Não é nada incompatível um empresário
diabético, dono de uma usina de açúcar. Na verdade, o capitalista
se abstrai do valor de uso podendo mudar de setor de atividade ao
sabor das circunstânciàS do mercado. Para ele, o valor de uso é
simplesmente um veículo para o valor de troca. Tal fenômeno ob­
viamente não é natural, ao contrário, foi instituído com a sociedade
burguesa. Não é de estranhar, portanto, que o ecológico fique su­
bordinado ao econômico numa sociedade onde a generalização das
relações mercantis é a tônica. A começar pela separação do traba­
lhador das condições naturais de produção.
O esvaziamento do campo e a urbanização· são manifesta­
ções evidentes desse processo. Afinal, a expropriação do trabalha­
dor é condição da mobilidade do capital. O capital não pode migrar
de um setor para outro ou de uma região para outra se não houver
trabalhadores que o acompanhem. Pode-se observar nitidamente
que os fluxos migratórios seguem o rumo da expansão do capital.
Como foi na indústria que o capital mais plenamente se apoderou
do processo produtivo, não é de estranhar que tenha sido em torno
das fábricas que se constituíram as grandes aglomerações urbanas
após o advento do capitalismo. A organização do espaço é social­
mente instituída. Deste modo, com a separação do trabalhador da
terra, as relações sociais começam também a ser mercantilizadas. A
maior parte da população agora expropriada se vê obrigada à venda
de sua capacidade de trabalho por um preço, por um salário. Para
satisfazer as suas necessidades, sejam do estômago, sejam da fanta­
sia, tem de pagar o preço da mercadoria. O uso de uma mercadoria,
isto é, à satisfação do desejo de consumi-Ia está, portanto, na de­
pendência da disponibilidade de dinheiro para adquiri-la e, por­
tanto, do salário que se percebe. O valor de . uso está subordinado
ao valor de troca. Deste modo, pode-se compreender a aparente ir-
1 14 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

racionalidade do ato de se atirar tomates, cebolas ou pintinhos aos


rios, como a imprensa dive�as vezes divulga, quando o preço por
eles oferecido não garante aos proprietários dessas mercadorias os
lucros que esperavam, enquanto milhões de pessoas passam fome
nas periferias urbanas e nos campos, assistindo m�itas vezes ao es­
petáculo pela televisão.
Nas terras liberadas pela expulsão dos camponeses, passa­
se a produzir não o que é mais adequado à composição físico-quí­
mica-orgânica dos solos, mas aquilo que o mercado demanda. Se o
produto é perecível, como o são a maior parte dos produtos agrí­
colas, há que se dar uma sobrevida ao valor de uso, pois se eles se
deterioram deixam de ser comprados, perdendo assim o valor de
troca. Daí a prática da utilização de conservantes químicos para ga­
rantir que o produto fique mais tempo nas prateleiras à espera de
alguém que pague o seu preço. Mais uma vez, o econômico se so­
brepõe ao ecológico: o valor de troca ao valor de uso.
A noção de tempo que está por trás desse processo é o
tempo do capital e não a temporalidade dos ecossistemas ou dos
trabalhadores. É o tempo da concorrência, traduzido no interior das
unidades de produção, nas fábricas e fazendas, pela preocupação
com o rendimento do trabalho, com a produtividade. São profundas
as implicações recíprocas entre a ecologia e a economia instituídas
pela ordem capitalista. Todavia, os economistas pouca atenção de­
dicam à ecologia, ·sendo raro o curso de economia que ofereça em
seu currículo a disciplina ecologia. O mesmo pode ser dito dos cur­
sos de ecologia que pouca atenção dedicam à economia, a despeito
de as duas disciplinas terem, inclusive, o mesmo radical - oikos =

eco , que significa "casa" , "morada", "habitat" . De fato, o que


-

parece existir entre elas é um diálogo de surdos, onde os interlo­


cutores falam mas não ouvem: o ecologista fala do valor de uso e o
economista fala do valor de troca. A segmentação do conhecimento
mostra aqui concretamente as suas conseqüências. Valor de uso e
valor de troca são as duas faces da mesma moeda, a mercadoria,
embora o específico da mercadoria seja o valor de troca.
O valor de uso diz respeito à qualidade de um produto, às
necessidades que ele pode satisfazer, seja a fome, seja a fantasia.
Toda mercadoria tem uma utilidade determinada culturalmente. Já
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 115

o valor de troca diz respeito à quantidade, remete diretamente ao


dinheiro, essa mercadoria que faz com que inevitavelmente em
nossa sociedade o maior seja o melhor, pois quanto maior a quanti­
dade de dinheiro disponível, maiores são as chances de usufruir
dos bens e serviços de que temos necessidade, Em suma, no mundo
capitalista é o valor de troca que move a sociedade e não o valor
de uso que é simplesmente um veículo para a realização daquele. É
a quantidade, portanto, que se impõe à qualidade; a economia à
ecologia, o abstrato (o tempo de trabalho, a produtividade) ao con­
creto (as qualidades de cada produto).
Assim, de nada adianta aos ecologistas acusar os econo­
mistas por não manifestarem preocupações ecológicas, se os pró­
prios ecologistas não superarem o ecologismo naturalista - que só
se preocupa com os efeitos naturais - das práticas sócio-econômi­
cas, instituídas estas através de muitas tensões e lutas e que, por­
tanto, nada têm de naturais. Tal procedimento nos permitirá enten­
der por que se todos se dizem em princípio a favor da ecologia
muitos, na prática, agem contra ela. . . Em outras palavras, é preciso
romper com a tese muito difundida entre os ecologistas de que "os
homens estão destruindo a natureza", afirmação que mais confunde
do que esclarece quem �ão os verdadeiros amigos e inimigos de
uma prática socialmente justa e ecologicamente responsável. Afi­
nal, na nossa sociedade, a maior parte da população não dispõe da
terra e dos demais recursos naturais e, portanto, não é diretamente
responsável pelo uso que é dado a esses recursos. Os proprietários
das terras e de outros meios de p�odução é que, em função da pró­
pria concorrência, vêem-se compelidos a auméntar a produtividade
de suas empresas sob pena de deixarem de ser capitalistas. E, para
isso, lançam mão das técnicas mais eficazes, sejam elas ecológicas
ou não. Deste modo, não respeitam os tempos dos ecossistemas ou
os humores do trabalhadores, como bem o demonstrou Charles
Chaplin em Tempos Modernos. Se os homens, em sua maior parte,
ficam separados da extensão natural dos seus corpos, isto é, da
natureza, vêem�se obrigados a comprar no mercado aquilo que po­
deriam produzir, caso as condições fossem outras. Para o capita­
lismo isso significa desenvolvimento, pois são mais pessoas ven­
dendo a sua capacidade de trabalho, gerando lucros para os empre-
1 16 CARLOS W. PORTO GONÇALVES

sários e comprando mercadorias. Assim, quanto mais se separa o


homem da natureza, mais mercadorias podem ser vendidas e maior
produção é contabilizada pelos indicadores de desenvolvimento,
como PID , PNB , a renda per capita, etc. . .
É interessante neste aspecto verificar o lugar reservado à
mulher na nossa sociedade: a casa. Restrita sobretudo ao lar, a
mulher desenvolve no âmbito doméstico uma economia cuja mag­
nitude causaria espanto caso fosse contabilizada. Todavia, a mu­
lher em casa usualmente não produz para o mercado; não produz
valores de troca, mas sim bens para o uso familiar. Sua produção
não é em série, ao contrário, cada casa tem um sabor próprio,
mesmo que se use o mesmo arroz e o mesmo feijão. O tempero de
cada casa é próprio, cada um tem a sua própria singularidade, ao
contrário do mundo dos homens, competitivo e repetitivo na busca
da eficiência, da maior produtividade. Trata-se de duas lógicas
contrapostas; a da mulher - enfatizando o valor de uso e a qualida­
de; e a dos homens - centrada no valor de troca e na quantidade.
Enfim, o capitalismo se afirma ao desorganizar os diversos
sistemas de produção fundados no valor de uso e a primeira condi­
ção para isso é separar os indivíduos da sua ambiência sócio-natu­
ral. Alguém compraria o seu arroz e o seu feijão se dispusesse de
condições naturais para produzi-los por conta própria? Alguém
compraria máscaras de oxigênio, como já ocorre no Japão, se o ar
da sua cidade fosse puro? Alguém compraria água engarrafada se
os mananciais que abastecem a cidade fossem limpos? Alguém
compraria plantas ornamentais se existissem bosques na cidade ou
quintal em suas casas? . . . Separar o homem da natureza é, portanto,
uma forma de subordiná-los ao capital. O pior é que mais recente­
mente surgiram empresas que vendem "ar puro", "água limpa" ou
companhias imobiliárias que vendem paisagens despoluídas, fazen­
do uso, inclusive, de jargões ecológicos em sua propaganda. . . O
que seria de uma empresa que vende máscaras de oxigênio se o ar
das nossas" cidades não fosse contaminado? É pura ideologia, senão
deslavado cinismo fazer propaganda "ecológica" quando se vive
da poluição.
O movimento ecológico precisa de muita lucidez para se
mover nesse universo contraditório. Se queremos estabelecer uma
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 1 17

outra relação com a natureza, devemos ter claro que isso implica
uma outra :relação dos homens entre si e, dessa forma, se faz neces­
sária muita luta para reverter o quadro atual. Nesse sentido temós
muito a aprender com a luta dos trabalhadores que, a despeito do
discurso dominante, foram os verdadeiros "civilizadores'' do capi­
talismo... Como hoje é comum falar-se no Brasil de capitalismo
selvagem, é importante lembrar que inicialmente também na Euro­
pa e nos Estados Unidos as condições que o capitalismo .impôs aos
trabalhadores e ao meio ambiente foram extremamente duras. Por
volla de 1 830, a jornada de trabalho era de 14 a 16 horas; começa­
va-se a trabalhar aos 6-7 anos de idade, como bem o demonstraram
Charles Dickens, no caso da Inglaterra e Vítor Hugo, para a Fran­
ça. Apesar das acusações de desordeiros e subversivos, foram os
trabalhadores com suas lutas que conquistaram a joma�a de traba­
lho diária de 8 horas, a semana de 5 dias, as férias remuneradas de
30 dias e limitações adicionais ao trabalho das crianças e das mu­
lheres. Em Manchester, por volta de 1840, segundo fontes oficiais
das autoridades britânicas, a expectativa média de vida de um ope­
rário ao nascer era de 1 7 anos ! Essas' conquistas efetivamente ate­
nuaram as condições de vida . e de trabalho dá grande maioria dá
população. Não nos esqueçamos de que foi a partir dessas con­
quistas operárias e populares que o capitalismo desenvolveu a in­
dústria de roupas esportivas para o lazer de fim de semana e toda a
"indústria do turismo", passando a mercantilizar o tempo livre do
trabalhador que hoje, indiscutivelmente, é .responsável pela expan­
são de empresas capitalistas para novas áreas, levando para regiões
longínquas - com seus hotéis e outras atividádes comerciais - um
sistema de "preços de turista" que a população local desconhecia e
a que tem de se subordinar. Dessa forma, se hoje nosso ambiente
está poluído e nossa qualidade de vida prejudicada, depende de nós
com nossa luta, e sabendo encontrar nossos verdadeiros aliados, a
conquista de um ambiente-sociedade saudável.
A TÉCN ICA, A SOCIEDADE
E A NATUREZA

Nenhuma sociedade humana teve com a técnica a relação que a so­


ciedade européia estabeleceu para si própria e depois expandiu
mundo afora ao longo do século XIX. Que qualquer sociedade use
técnicas é uma verdade banal. Todavia, o aparato técnico da cha­
mada sociedade industrial é outro, a ponto de ele ser visto como a
condição por excelência do desenvolvimento dos povos a partir de
então. A "razão técnica" ganha uma dimensão inimaginável, daí a
exaltação da ciência e da técnica em oposição à filosofia especula­
tiva e aos dogmas religiosos. A "razão técnica" está preocupada
com o agir-com-vistas-a-um-fim-imediato, com a eficácia. Está li­
gada à intervenção do homem na natureza, aos processos de traba­
lho. Todavia, este é um dos campos da ação humana que é consti­
tuído também pela relação dos homens entre si, mediatizada por
relações simbólicas, intersubjetivas. São relações complexas de
duas ordens diferentes, porém imbricadas: relação sujeito-objeto,
no que diz respeito à relação do homem com a natureza e sujeito­
sujeito, no que diz respeito aos homens. Uma não pode ser reduzi­
da a outra, embora haja influências recíprocas. No entanto, como
vivemos· numa sociedade marcada pelo produtivismo, a "�ão téc­
nica" tornou-se a única razão. Os próprios homens, os trabalhado­
res, passaram a ser levados na conta de objetos, de fatores de pro­
dução, de recursos humanos . !
. . .
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 1 19

Vários aUtores assinalaram que a sociedade capitalista pro­


priamente dita começou a se afirmar efetivamente quando o capital
se deslocou da esfera do comércio para a esfera produtiva. A ma­
nufatura é a primeira expressão disso, ao reunir sob um mesmo teto
vários trabalhadores, combinando os trabalhos parcelares de cada
um deles sob o comando do capitalista. A partir daí o advento da
máquina tomar-se-á uma possibilidade e no processo de desenvol­
vimento capitalista a manufatura foi sendo pouco a pouco substi­
tuída pela "maquinofatura". A inovação tecnológica toma- se sinô­
nimo de progresso e a história recente da tecnologia é vista como
uma sucessão permanente de técnicas que substituem umas às ou­
tras . Por que a maquinofatura substitui a manufatura? Porque é su­
perior tecnicamente, nos respondem. Mas por que a maquinofatura é
mais produtiva? Porque produz mais unidades físicas de mercado­
rias na mesma unidade de tempo. Ora , esta resposta é tautológica: a
maquinofatura produz mais, por isso é mais produtiva! Todavia, a
resposta a esta questão é fundamental para que compreendamos a
relação que nossa sociedade instituiu com a técnica. Na verdade, a
maquinofatura é superior no sentido de mais produtiva, porque im­
plica para o capitalista um maior controle sobre os homens e a na­
tureza. Vejamos:
1 - Sobre os homens: Na manufatura a energia é funda­
mentalmente dos próprios homens, dependendo dos seus corpos o
ritmo do processo de trabalho. Daí, manu (mão) e fatura (fazer).
Ora, por mais que se queira exigir de um trabalhador, o seu corpo
tem um limite psíquico e biológico que constitui um obstáculo efe­
tivo à demanda do capital por ampliar permanentemente· a sua pro­
dução. Aqui adquirem pleno sentido as lutas operárias pela redução
da .jornada de trabalho. A manufatura apresentava, pois, limites à
dinâmica da acumulação capitalista. Com a maquinofatura o capital
se liberta desses limites. Agora é a máquina que faz (maquino +
fatura), ficando o trabalhador subordinado ao ritmo que o capital
impõe. Deve-se destacar ainda que na manufatura o saber fazer
estava encarnado no · próprio corpo do trabalhador, já na maquino­
fatura há todo um saber contido na máquina que o trabalhador vê
diante de si, que não lhe pertence uma vez que ficou transformado
num mero apêndice dela, alimentando-a.
120 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Com a maquinofatura o trabalhador sofre uma segunda ex­


propriação - a primeira foi a da terra e demais meios de produção -
agora é expropriado do seú saber. Com a maquinofatura, a batida
regular e constante da máquina marcará o ritmo. O físico-mecânico
se impõe ao biópsicossocial dos homens, bem no coração da socie­
dade industrial: a fábrica. O taylorismo, técnica organizacional de­
senvolvida a partir de fmais do século XIX e que se generalizará
no século XX, perceberá isso com acuidade. A "gerência científica
e racional do trabalho" - é assim que o taylorismo se autodenomi­
na - será, no dizer do próprio Taylor, pautada no: 1) "O adminis­
trador assume •.. o cargo de reunir todo o conhecimento tradicional
que no passado foi possuído pelo trabalhador e ainda de classificar,
tabular e reduzir esse conhecimento a regras, fórmulas"; 2) "Todo
possível trabalho cerebral deve ser banido da oficina e centrado no
d�partamento de planejamento ou projeto"; 3) "Talvez o mais
proemiente elemento isolado da gerência científica modema seja a
noção de tarefa. O trabalho de todo operário é inteiramente plane­
jacto pela gerência pelo menos com um dia de antecedência, e cada
homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas,
pormenorizando a tarefa que deve executar, assim como os meios a
serem utilizados ao fazer o trabalho (... ) Esta tarefa especifica não
apenas o que deve ser feito e o tempo exato permitido para isso
. (... ) A gerência científica consiste muito amplamente em preparar
as tarefas e sua execução" .
O que era feito d e uma maneira empírica no início do sé­
culo XIX, é agora efetuado com o conhecimento prévio das regras,
leis e fórmulas. O controle rigoroso do movimento do corpo do
trabalhador submetido ao tempo do capital ! Eis o cerne da cientifi­
cidade aplicada ao. campo das relações sociais no sistema de fábri­
ca ... Na verdade, trata-se da ei.imi.t:.ação o. mais completa possível
da subjetividade daqueles que não detêm a propriedade das máquinas
e dos outros meios de produção. Trata-se de um desmembramento
do corpo: a cabeça, de um lado, planeja e projeta, e, de outro, os
braços, as pernas, os dedos e ouvidos, executam. No limite dessa
tendência à eliminação do elemento subjetivo temos a recente ro­
botização. Afmal, os robôs não reclamam da jornada de trabalho,
não fazem "cera" , não fazem greve. São trabalhadores mecânicos,
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 121

programados. A robótica comporta essa irônica contradição. Nela,


alguns trabalhadores altamente qualificados têm por função prepa­
rar rotinas de trabalho para uma. grande parcela de trabalhadores
que, em contraste, não precisam de qualquer qualificação, mas
simplesmente de serem capazes de ler as rotinas. Talvez resida aqui
uma das razões da implantação dos chamados sistemas de ensino
de massa hoje. Assim, o extremo preparo de uma parcela diminuta
de trabalhadores corre paralela à não qualificação da grande maio­
ria. Aqui se coloca a questão: o que significa a natureza humana
nesse contexto sócio-histórico específico? A natureza, os demais
objetos de trabalho e .instrumentos de produção, as máquinas por
exemplo, tomam-se um outro para os trabalhadores e não um seu­
outro. Não cabe a eles pensar, planejar e projetar em íntima rela­
ção com seus objetos de trabalho. Essas práticas são desenvolvidas
· em outros lugares: nas universidades, centros de pesquisa ou nos
"departamentos de planejamento ou de projetos" como diz Taylor.
Assim, se consagram no plano da sociedade lugares que cristalizam
a separação entre trabalho intelectual e trabalho braçal. Coroa-se o
processo de separação homem-natureza, ao ser negada à grande
maioria da população aquilo que é próprio da natureza humana, ou
seja, a faculdade de criar, imaginar, inventar, sonhar que os ho­
mens arrogantemente exaltam como indicadores da sua superiori­
dade...
2 - Sobre a natureza: O deslocamento da fonte da rique­
za - que nas sociedades agrárias pré-capitalistas se localizavam na
terra - para a indústria deu um novo sentido M trabalho.
Ora, a capacidade de realizar trabalhos está relacionada ao
dispêndio de energia. Não há trabalho sem energia. Imaginemos,
.por exemplo, uma situação em que um empresário tenha adquirido
todos os meios de trabalho: matérias-primas, máquinas, edifícios;
tenha contratado o número adequado de trabalhadores para operar
a produção, mas tenha ficado na dependência da energia do vento
para mover o seu empreendimento ... Se não ventasse em suas pla­
gas e sim nas do vizinho, ele perderia a concorrência em virtude
dos "humores" do deus Eolo. . . A inconstância dos ventos não
permite impelir a máquina com a regularidade que o capital �quer.
Eis uma das razões de o capital não desenvolver esse tipo de ·ener-
122 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

gia. As manufaturas holandesas, por exemplo, que tradicionalmente


utilizaram a energia eólea não conseguiram resistir à concorrência
das maquinofaturas inglesas, sobretudo após essas passarem a utili­
zar o carvão · na produção do vapor como fonte de energia. Enfim,
com o uso da máquina a vapor o capital conseguiu um controle so­
bre a energia e assim se "libertou" das imposições dos ciclos da
natureza.
A energia hidráulica, tradicionalmente usada através das
rodas d'água, ficou secundarizada em virtude da oscilação do re­
gime dos rios, seja pelo desmatamento desenfreado, seja pelo con­
gelamento do inverno. Só após a invenção do fio de cobre que
permitiu conduzir à longa distância a energia produzida pelas que­
das d'água com o auxílio de retransmissores é que as grandes cen­
trais hidrelétricas ganharão importância, pois anteriormente a pos­
sibilidade de utilização da força hidráulica pelas empresas trazia,
em contrapartida, a inconveniência de restringir a �herdade de sua
localização.
Fica evidente, wrtanto, que o capital não pode ficar · na
dependência dos tempos da natureza, mas requer, ao contrário, a
subordinação a si dessas temporalidades.
Como vemos, não é simplesmente por uma razão técnica
que a nossa sociedade se desenvolve tecnologicamente, mesmo
porque nenhuma técnica tem em si mesma razão. O motor das mu­
danças e do desenvolvimento tecnológico, demonstra-o ampla­
mente a história, tem sido fundamentalmente da ordem do político,
na medida em que se trata da tentativa de obtenção de um maior
controle sobre os trabalhadores e sobre a natureza.
Assim, a téemca não pode ser vista independentemente de
um determinado contexto social, político e cultural. A técnica, me­
diação entre o social e o natural, é instituída num campo de rela­
ções intersubjetivas e, dessa forma, logge__e stá de ser neutra. Ela
reflete uma razão que venceu e com a qual se compromete: "Todas
as pessoas que se encontram trabalhando nos teares mecânicos es­
tão ali de modo forçado, porque não podem existir de nenhum ou­
tro modo; via de regra são pessoas cujas famílias foram destruídas
e seus interesses arruinados ... ", dizia um inspetor governamental
inglês em 1834.
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 123

Os ecologistas não podem ficar, portanto, prisioneiros do


mito da razão técnica, dessa verdadeira armadilha ideológica que a
sociedade moderna instituiu e que se torna muitas vezes co-respon­
sável pelos problemas que enfrentamos. As técnicas são apenas
meios concebidos para realizar determinados fins. Isso não quer di­
zer que só existe uma técnica para alcançar determinado fim. . E se
.

existem diferentes metas para a vida humana, devemos ter bem


compreendida essa questão entre meios e fms que rege a relação da
sociedade-cultura com a técnica. Se a técnica assumiu o lugar
proeminente que ocupa na nossa sociedade, isso não é uma questão
natural, inas decorrência de um processo de muitas tensões e con­
flitos no qual outros possíveis históricos, acusados de inexeqüíveis
ou românticos foram sufocados. Dois séculos de revolução indus­
trial já nos permitem concluir que a técnica é uma condição neces­
sária mas não suficiente para resolver os problemas com que a hu­
manidade se defronta, competência essa que a "razão técnico-cien­
tífica", também conhecida como "razão instrumental" pretensio­
samente avocou para si.

O exemplo da Revolução Verde deve permanecer bem vi­


vo em nossas mentes. Baseada no princípio da seleção de sementes
mais produtivas e em certas técnicas de manejo da terra, foi alar-
deada como a solução defmitiva para os problemas da fome no
mundo. O geneticista Ernest Borlaug chegou a ganhar o prêmio·
Nobel da Paz pelas suas descobertas que, acreditava-se, acabariam
com a fome, uma das mais fortes razões dos conflitos e das guer­
ras. A necessidade de adquirir as sementes num banco, além dos
recursos fmanceiros inerentes à implantação do conjunto de técni­
cas da revolução verde levou a uma maior concentração de terras, a
expropriação dos c�poneses, enfim, aumentou a miséria nos paí­
ses e regiões onde foi implantada. Além disso, a homogeneização
provocada pela seleção genética tornou os ecossistemas mais vul­
neráveis e, portanto, mais dependentes de insumos como defensi­
vos, aumentando, por conseqüência, a dependência fmanceira dos
produtores.

Assim, é preciso que fique claro que a solução dos pro­


bl mas ambientais não é de natureza técnica, mas de uma opção
124 CARLOS W. PORTO GONÇALVES

político-cultural, pois, afinal, a técnica deve servir à sociedade e


não esta ficar subordinada àquela.

NOTA

1 . Recurso, segundo o dicionário do Aurélio, é meio para se atingir um fim.


Quando se fala de recursos humanos, qual é o fim, a finalidade desses re­
cursos? O uso da expressão nos revela que, ironicamente, a vida humana
deixou de ser a meta da sua própria existência...
NATUREZA E RELAÇÕES SOCIAIS

Ao longo deste ensaio, em diversos momentos, defendemos a tese


de que toda sociedade-cultura cria um determinado conceito de
natureza, ao mesmo tempo em que institui as suas relações sociais.
Dissemos, inclusive, que a tradição ocidental tem ficado prisioneira
de uma verdadeira obsessão na tentativa de encontrar o que fez
com que o homem saltasse do reino da natureza para o da cultura.
De nossa parte, procuramos demonstrar como natureza e cultura se
condicionam reciprocamente, o que pressupõe não assimilar uma
coisa a outra, mas procurar entender que o homem, por natureza,
produz cultura1 . Esta tese nos remete a uma outra perspectiva de
reflexão que é a de considerar o conceito de natureza como um
conceito-chave de cada cultura e, através dele, compreender as re­
lações sociais que a caracterizam.
Na sociedade ocidental, veremos que subjacentemente às
relações sociais instituídas em meio a tensões, conflitos e lutas,
elabora-se um conceito determinado de natureza que fundamental­
mente dela desloca o homem. E aí se toma fácil perceber por que o
imaginário ocidental costwneiramente associa à natureza os seg­
mentos ou classes sociais oprimidos e explorados, naturalizando
ssas condições:

I . As mulheres, por natureza, são frágeis e emotivas e, assim, de­


vem ser mantidas em lugares protegidos, como o lar.
126 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

2. Os povos indígenas são selvagens, sendo da selva, da natureza,


também são passíveis de dominação e de discriminação.
3. Os negros são, por natureza, inferiores, portanto, incapazes de
pensar racionalmente (leia-se cartesianamente).
4. Os operários, por natureza, são incapazes de planejar, projetar,
enfim, de pensar e, por isso, devem ficar restritos às operações
manuais, ao fazer.
5. Os homossexuais, porque transgridem uma lei da natureza,
adotam um comportamento desviante em relação à sua condição
biológica. Como se o ser homem ou mulher fosse definido ex­
clusivamente pela genitália.
6. Os velhos� que pela natureza da idade, estão incapacitados para
o trabalho, sofrem naturalmente essa discriminação.
7. E também são discriminados os adolescentes que, pela natureza
da idade, são irievitavelmente rebeldes e contestadores. Com re­
lação aos adolescentes verifica-se, ainda, uma certa tolerância,
pois se trata de uma condição passageira uma vez que também
inevitavelmente amadurecerão, perdendo essa disposição con­
testatória "típica da idade".
8. As crianças são consideradas na perspectiva do que elas serão e
não pelo que são efetivamente. São por isso educadas para o
futuro. Não têm presente porque, pela natureza da sua idade,
são irre sponsáveis.

Ao olhannos para esse elenco de segmentos e classes so­


CiaiS instituídos e consagrados pela cultura ocidental, atualizado
pela sociedade modema, deduzimos o seu perfil dominante: uma
sociedade branca, européia, machista e burguesa.
Toda a tessitura de relações sociais aparece como sendo
obra da natureza: é por natureza que operários, camponeses, ín­
dios, negros, mulheres, homossexuais, crianças, adolescentes e
velhos são oprimidos e explorados e os homens brancos e burgue­
ses são os que dominam. Como se essas categorias não tivessem
sido instituídas nas e pelas lutas sociais ao longo da nossa história.
É preciso observar que todo povo-cultura classifica, dis­
tingue e separa os diversos seres da natureza, formando conjuntos,
tal como CantO'r os definiu para a matemática, ressaltando inclusive
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 127

que a idéia de conjunto era uma noção intuitiva. Deste modo, todo
povo-cultura distingue as diferenças macho e fêmea; branco, preto,
amarelo (e as demais cores); criança, adolescente e velho, etc. Po­
de-se dizer que toda cultura tem um substrato primário que se
apropria das diferenças da natureza. Entretanto, nem toda cultura
transforma essa diferença em hierarquia, em superior e inferior, em
dominante e dominado, como o faz a nossa, justificando como obra
da natureza aquilo que, na verdade, nela foi instituído ao longo de
tensões e conflitos.
As contradições dessa ideologia dominante, que torna na­
turais as suas práticas de dominação, ficam evidentes quando anali­
samos seu próprio discurso: sobre os negros e indígenas diz-se que
são indolentes e preguiçosos. Ao mesmo tempo, fala-se que são
povos tecnicamente rudimentares e que por isso passam a maior
parte do seu tempo procurando o alimento. Ora, das duas uma: ou
eles passam u dia todo dormindo, dançando e não trabalhando,
mostrando-se, assim, indolentes e preguiçosos ou passam o dia to­
do procurando alimentos e, portanto, trabalhando.
Na verdade o que ocorre é que não se respeitam as dife­
renças entre os modos de vida que caracterizam cada povo-cultura.
Os europeus quando impuseram a sua dominação mercantil-colo­
nialista, a partir do século XVI, viram-se em contato com outros
povos que tinham uma outra relação com o tempo, o espaço, o tra­
balho, a natureza, enfim. Esses povos não aceitaram passivamente
a dominação mercantil-colonial, daí a escravidão que lhes foi im­
posta. E foi uma escravidão muito mais cruel do que aquela que os
gregos e romanos conheceram na Antiguidade, em virtude do seu
caráter mercantil. A escravidão grega, por exemplo, definia-se pela
negação à vida pública, considerada atributo e privilégio dos cida­
dãos. Escravo, portanto, era aquele que, tal como as mulheres e os
strangeiros, não tinha direito à vida pública. Mesmo a servidão da
Idade Média era mais branda que a escravidão moderna, instituída
pelo mercantilismo colonial. Afmal, o senhor feudal cobrava dos
liCrvos uma determinada renda sob a forma de produto in natura,
ou através de dias de trabalho prestados (corvéia). Ora, se esses
pr dutos eram cobrados in natura, como o trigo, o vinho, etc.,
d 'tia um limite para o seu consumo, que seria maior ou menor em
1 28 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

função do número de membros da corte da aristocracia feudal. Em


tennos mais claros: de nada adiantava exigir toneladas de trigo se
não havia como consumi-tos na própria corte. Esclareça-se que a
aristocracia feudal não se colocava o objetivo de comercialização
dos excedentes. Assim, por se cobrar o tributo in natura, estabele­
cia um limite para a exploração do servo-camponês. Somente à
medida que os senhores feudais se viram cada vez mais enredados
pela burguesia ·mercantil através das dívidas com ela contraídaS é
que começaram a cobrar seus tributos em dinheiro ou mais dias de
trabalho dos servos. A partir daí, as revoltas camponesas se acir­
ram, como que antecipando a recusa que os demais povos coloca­
rão à dominação européia colonial-mercantil. Isso porque quando o
objetivo é acumular dinheiro, não há mais limite para a exploração
do trabalhador e da natureza. Mmal, qual é o limite do dinheiro? É
o limite dos números e estes, sabemos, não têm limites. Essa preo­
cupação abstrata com os números, que adquire concretude sócio­
histórica com o dinheiro, levará a burguesia mercantil a uma im­
piedosa dominação dos demais povos, tudo em virtude da preocu­
pação com o "crescei e multiplicai". Daí a consideração dos povos
que não se submetem a essa lógica como indolentes e preguiçosos.
Diga-se de passagem que não foi só na América, Ásia e África que
os europeus impuseram a sua lógica mercantil. Mesmo no interior
da Europa diversos povos sofreram o etnocídio inerente à lógica
mercantil. No afã de unificar territó�os, estabelecer uma língua
· única, um exército. único e um sistema de pesos e medidas único · .

que facilitasse as trocas mercantis, vários povos foram arrasados


culturalmente por essa lógica homogeneizadora, de unificação, que
nega fundamentalmente a diferença. Assim, à medida que os Esta­
dos nacionais iam-se fonnando na Europa, unificando o mercado e
tudo aquilo que ele implica, vários povos foram sendo cultural­
mente dizimados na própria Europa, antes _que os europeus se im­
pusessem destruindo outros povos-culturas fora do velho conti­
nente. Os bascos, por exemplo, são expressão da resistência cultu­
ral de um desses povos ainda hoje, na Europa.
São profundas, portanto, as implicações decorrentes do
não reconhecimento das diferenças inerentes a cada povo-cultura.
Já vimos que o tempo abstrato, traduzido em linguagem
matemática e assimilado pela física modema, transfonnado em tec-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 129

nologia mecânica da indústria, é uma instituição que se afmna com


a quantidade, com o valor de troca, com o mais e não com o me­
lhor. Os tempos de cada ecossistema e de cada homem inserido em
uma determinada cultura são, assim, submetidos e subordinados
pela roda viva de uma cultura, a ocidental burguesa; o que não
quer dizer que não haja no interior dessa própria sociedade-cultura
p
burguesa outras possibilidades o que é evidente nos pró rios con­
flitos que se dão no seu interior, onde vários segmentos e classes
sociais tentam afmnar sua singularidade.
As mulheres talvez sejam as maiores responsáveis pelas
mudanças culturais e comportamentais que se verificaram nessa se­
gunda metade do século XX. Para a ideologia machista dominante,
a diferença-mulher seria dada pela sua natureza biológica que a
fragiliza. A condição biológica de reprodutora da espécie serve
freqüentemente de justificativa para o seu confmamento ao âmbito
restrito do lar, ignorando-se, por exemplo, o fato de que em diver­
sas "sociedades primitivas" o resguardo após o nascimento cabe
aos homens e não às mulheres. Portanto, não é natural o tratamento
que damos a essa diferença biológica. Não sendo, para a ideologia
machista dominante, o corpo-mulher adequado ao trabalho, lugar
do sofrimento, como vimos, ele acaba sendo considerado como me­
ra fonte de sensualidade e prazer. Daí a tradicional concepção da
mulher-objeto sexual. Tudo isso numa sociedade tecnologicamente
sofisticada como a nossa, onde o argumento da disponibilidade da
força física, atributo que se acredita restrito aos homens, não se
coloca para impedir que a mulher ocupe outros lugares sociais.
O importante é que, apesar das práticas machistas, as mulheres com
suas lutas têm demonstrado que diversos outros atributos e quali­
dades delas poderiam se desenvolver plenamente nos marcos de
uma outra relação social homem-mulher, uma vez que não é a natu­
reza biológica da mulher que define o lugar que elas ocupam so­
cialmente.
O mesmo pode ser dito quando se analisa a condição ope­
rária. O que justificaria que determinados homens e mulheres pas­
sem todo o dia de trabalho exercendo funções rotineiras, onde não
se exige nenhuma criatividade? Já vimos o que Taylor pensava a
respeito do papel do trabalhador no processo produtivo. Há toda
1 30 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

uma ideologia e, sabemos, toda ideologia é ideologia de uma práti­


ca concreta, que acredita ser natural que alguns pensem e mujtos
outros façam. Ora, uma análise minimamente atenta e sem precon­
ceitos é capaz de perceber que nenhum processo produtivo se de­
senvolveria se não houvesse a manifestação criativa de quem pro­
duz concretamente. Mesmo uma análise da história da técnica re­
velará todo o talento e criatividade que sempre acompanharam a
vida de quem trabalha. Um grande número de inventos, de artesãos
e camponeses foram apropriados pelas primeiras manufaturas. O
interesse dos trabalhadores pelo conhecimento elaborado é reco­
nhecido historicamente. Vejamos o depoimento de um artesão que
viveu por volta de 1860 em Nova Iorque:

O sindicato do cobre dava oportunidades para estudos re­


gulares, assim como conferências todo sábado à noite, que
eram assistidas por 2.500 a 3 .000 pessoas. Nunca houve
força humana que me impedisse de freqüentar aquelas con­
ferências de sábado. Eu palpitava em meu intenso desejo
de saber. A fome mental é tão dolorosa quanto a fome físi­
ca. Todo sábado à noite alguns grandes eruditos falavam
numa audiência pública e proporcionavam os resultados
mais encantadoramente iluminantes das experiências e es­
tudos. Algumas vezes o professor Proctor nos falava das
maravilhas da astronomia, ciência da qual aprendíamos so­
bre o tempo, o espaço, luz, movimento, etc. As verdades
colhidas nessas conferências tornavam-se parte vital de.
mim e davam-me significado maravilhosamente inspirador
do mundo. Aquelas conferências eram oportunidades pre­
ciosas para ouvir autoridades em ciência falarem do que
faziam e pensavam. Assisti a essas conferências e fre­
qüentei as aulas por um período de vinte anos. (Henry
Brawerman).

Esse depoimento é altamente demonstrativo do interesse


dos trabalhadores pelo con.ftecimento científico.
Um outro depoimento dessa mesma época, de Henry
Mayhew, dá conta da preocupação dos trabalhadores com a ciência
e a cultura.

Os tecelões eram antigamente quase os únicos botânicos da


metrópole e seu amor às flores até hoje é uma característi-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 131

c a marcante da classe. Estamos informados que há alguns


anos eles passavam suas horas de lazer, e em geral toda a
família, pintando aos domingos, nos pequenos jardins nas
proximidades de Londres, agora em sua maioria cheios de
edifícios. Não há muito tempo, havia uma sociedade ento­
mológica, e eles estavam entre os mais aplicados entomo­
logistas do Reino. Esse gosto, embora muito menos geral
que antigamente, continua ainda sendo um tipo da classe.
Houve certa vez uma sociedade floricultura, uma socieda­
de histórica, uma sociedade matemática, todas mantidas
pelos tecelões da seda; e o famoso Dolland, inventor do
telescópio acromático, era tecelão, do mesmo modo Simp­
son e Edwards, os matemáticos, antes de saírem de seus
teares para o serviço público para ensinar matemática aos
cadetes de Woolwich e Chatham.

E ainda nos informa Henry Bravennan:

A Royal Institution, que existia na Inglaterra para estimu­


lar o progresso da ciência e sua aplicação à indústria, foi
obrigada, quando se tornou lugar elegante de visitar e de­
sejou preservar sua exclusividade, a tijolar sua porta trasei­
ra de modo a impedir o acesso de mecânicos que entravam
sorrateiramente na galeria.

E não precisaríamos ir à Inglaterra ou aos Estados Unidos


para colhennos exemplos da criatividade, interesse e capacidade de
sistematizar conheciinentos dos operários. Aqui mesmo no Brasil,
na primeira década deste século, foram inúmeras as escolas criadas
pelos anarco-sindicalistas que gozavam de grande simpatia entre os
trabalhadores. Portanto, não têm o menor fundamento as alegações
de que os trabalhadores só estão aptos a desenvolver tarefas sim­
ples, rotineiras e, sobretudo, manuais. É preciso considerar, ainda,
que novos acontecimentos vieram modificar a condição de vida
operária, como a exigência da qualificação de uns poucos, cuja
função é preparar a rotina de trabalho da maior parte dos trabalha­
dores e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa;
li bretudo, da televisão, cuja penetração nos meios operários e po­
pulares parece deslocar as suas preocupações não mais para o de-
�o de aquisição de conhecimentos, mas para um lazer instrumen­
talizado e alienante.
132 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

No entanto, se quisermos ver a criatividade operária nos


dias atuais, teremos de mergulhar no espaço da fábrica. Essa criati­
vidade é usada, sobremaneira, para ludibriar os patrões, seus ca­
patazes e a legislação existente, amenizando as duras condições de
vida e trabalho a que estão submetidos.
Dois exemplos, talvez, ilustrem essa criatividade: na déca­
da de setenta, os operários da COSIPA - Companhia Siderúrgica
Paulista - instituíram o Dia da Amnésia, assim relatado por Mari­
lena Chauí:

Como se sabe, para entrar na COSIP A, diariamente os


operários devem apresentar documentos de identificação
fornecidos pela empresa quando são admitidos. A entrada
e a saída se fazem por turnos fixos, pois os altos-fornos
não podem ser apagados, de modo que a empresa funciona
durante vinte e quatro horas ininterruptamente. Sendo
"Zona de Segurança Nacional" e sendo a greve ilegal, a
COSIPA está sob rigorosa vigilância militar e seus operá­
rios não têm direito a formas internas de organização e de
controle do trabalho. A informação é controlada e as rela­
ções entre os trabalhadores são vigiadas. Sob essas condi­
ções, os operários realizaram uma greve espetacular, que
não pôde ser reprimida nem punida: O "Dia da Amnésia" .
Nas condições de disciplina e vigilância existentes, sem
contar com um espaço para troca de idéias e de informa­
ções, sem possuir imprensa própria e sem poder confiar
naquela produzida pelo sindicato oficial, "pelego" , os
operários da COSIPA criaram uma imprensa sui generis
para a preparação da greve: as portas dos banheiros foram
convertidas em páginas de jornais e boletins informativos,
os escritos sendo apagados ao fmal de cada turno pelos úl­
timos operários a usarem os banheiros. Estabeleceu-se a
comunicação entre os trabalhadores dos vários turnos,
neutralizando as informações vindas tanto do sindicato
quanto da administração.
No "Dia da Amnésia" , todos os operários da COSIPA so­
freram um repentino esquecimento: esqueceram em casa o
documento de identificação. Isto significou que cada ope­
rário, para ser admitido no interior da fábrica, precisava
passar por longo e minucioso exame de identificação. Mi­
lhares de trabalhadores foram se acumulando em longas
filas de espera, aguardando a identificação. Os turnos fo­
ram sendo interrompidos e as atividades da COSIPA foram
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 133

sendo lentamente paralisadas, até alcançar os altos-fomos.


Alannada, a direção da empresa aceitou negociar com os
grevistas que, perante a lei, não eram grevistas.

O segundo exemplo ocorreu no Rio de Janeiro, no ano de


1 987, entre os trabalhadores da Rede Ferroviária Federal S . A -.

REPESA. Como se sabe, toda categoria profissional tem uma data­


base para acordos salariais anuais. Os ferroviários haviam estabe;.
lecido um acordo com os patrões, no caso o próprio Estado, quan­
do dois meses depois, mudanças na política económica do governo
detonaram uma espiral inflacionária que, nesse breve período, cor­
roeu o salário dos trabalhadores. Sem condições de desencadear
llill movimento reivindicativo por melhores salários fora da data­
base, os trabalhadores desencadearam um movimento pela imediata
garantia de condições de segurança no trabalho, conforme especifi­
cado no próprio regulamento da empresa. Isso porque as condições
operacionais dos trens não estavam de acordo com as próprias
normas estabelecidas pela empresa, colocando em risco a vida dos
trabalhadores e dos usuários daquele sistema de transporte. Desta
fonna, os trabalhadores forçaram a direção da empresa a vir rene­
gociar com eles não só as condições de segurança, mas também os
seus salários já corroídos pela inflação. Foi a "Greve do Zelo",
semelhante à realizada pelos metalúrgicos de São Paulo no início
do s anos 80. Neste último caso, os trabalhadores executavam "as
tarefas e os trabalhos seguindo rigorosamente, zelosamente, todas
as normas técnico-científicas impostas pela produção", e o resulta­
do foi que nenhum dos produtos pôde ser convertido em mercado­
ria, pois todos eles apresentavam defeitos de fabricação que os tor­
navam inaproveitáveis.
Podemos concluir, portanto, que sem a interferência ativa e
consciente dos trabalhadores, sem suas habilidades e experiências,
sinlplesmente não há produção. A "Greve do Zelo" é nada mais
nada menos que "a batalha da competência real contra a compe­
tê11cia ideológica. É uma batalha cultural." (Marilena Chaw')
É importante sublinhar que toda essa criatividade é usada
contra os patrões, seus capatazes (executivos ou não) e as leis vi­
gentes, embora muitas vezes cumprindo-as formalmente. A utiliza­
ção dessa criatividade acionada com vistas a burlar a opressão e a
1 34 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

exploração, explica-se pelas próprias condições sociais de existên­


cia dos trabalhadores. Certamente uma criatividade capaz de uma
interferência positiva e de um desenvolvimento pleno sob outras
relações sociais. Não há, portanto, nenhum fundamento para a dis­
criminação dos trabalhadores manuais, como se eles fossem inca­
pazes de gerir, planejar, projetar. É possível, por exemplo, perce­
ber uma dimensão política em versos aparentemente apolíticos co­
mo " . . . As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfu­
me que roubam de ti" , de autoria de Cartola, do morro da Man­
gueira. A sofisticação literária desses versos, que chegaram até nós
graças à sensibilidade de Sérgio Porto, mostra que a imaginação e
a criatividade são atributos da espécie e não de grupos, camadas ou
classes eleitas (na verdade autoproclamadas). Se na maior parte dos
seres humanos essas qualidades não são desenvolvidas plenamente,
não é efetivamente por incapacidade absoluta, mas sim por viver­
mos numa sociedade onde não existe só a dominação da natureza,
mas também, a dominação do homem pelo homem. Assim se des­
perdiça levianamente o maior patrimônio criativo que a natureza
produz: o. próprio ser humano.
A naturalização das relações sociais, em suma, escamoteia
o seu caráter de relações instituídas através de lutas e conflitos e
que, portanto, nada têm de naturais, a não ser para as classes do­
minantes que concebem a sua dominação como obra da própria
natureza, como se fossem por ela eleitos. Para as classes dominan­
tes, as relações sociais instituídas e que são as da sua dominação,
são relações não só naturais, mas também irracionais, desqualifi­
cando, assim, outros possíveis históricos que não tiveràm continui­
dade. Aliás a idéia de continuidade histórica esconde outras vonta­
des e desejos que, por terem sido derrotados em determinadas si­
tuações de luta, aparecem como fragmentos, o que é típico da his­
tória dos oprimidos e explorados. Éo "silêncio dos vencidos". As­
sociar à natureza os segmentos e classes sociais oprimidos e explo­
rados é decorrência de uma sociedade que vê o homem como se­
nhor e possuidor da natureza, que criou um "Deus (que) criou o
homem à sua imagem e semelhança", alijando desse privilégio os
demais seres que devem, por isso, servir ao homem. São futimas as
relações que se estabelecem entre a concepção de que o homem
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 135

deve dominar a natureza e a idéia de que o homem deve dominar


outros homens (mulheres, crianças, adolescentes, velhos, negros,
índios, homossexuais, operários, camponeses, etc.) - na medida em
que estes últimos são socialmente vistos como seres da natureza.
É preciso, pois, desenvolver um outro modo de pensar e de
agir que incorpore uma outra relação com a natureza-mulher; a
natureza-negro; a natureza-índio; a natureza-criança; a natureza­
adolescente; a natureza-velho; a natureza-homossexual; a natureza­
operário; a natureza-camponês, enfim, com a natureza-natureza,
sobretudo, com a natureza-homem, que sabemos é independente­
dependente do seu ecossistema. Em suma, é de uma outra cultura
que falamos, partindo, é claro, da situação histórico-concreta em
que vivemos, com seu conceito de natureza instituído e instituinte.
Eis a questão maior que os movimentos ecológicos apontam ainda
que de maneira diferenciada: como abordar as diferenças da natu­
reza sem transformá-las em hierarquias? Assim, trata-se de um ou­
tro projeto de sociedade; de um outro sentido para o viver; de uma
outra cultura que subordine as técnicas aos seus fins e não fique
subordinada a elas. Afmal, um outro modo de vida exige um outro
modo de produzi-Ia.
ECOLOG IA, LIBERDADE E IG UALDADE :
AUTONOMIA

Vivemos um momento crítico. Um momento que clama por lucidez,


criatividade e imaginação. De todos os lados, à direita e à esquer­
da, avalia-se que vivemos uma intensa crise no plano econômico,
no plano jurídico-político, no plano dos valores e das normas, da
arte e da cultura. A ciência, cada vez mais transformada em força
produtiva, encontra-se com a necessidade de repensar seus funda­
mentos epistemológicos . e metodológicos, enfim, sua relação com a
filosofia.
Há, indiscutivelmente, uma ideologia da crise. Nela, as
contradições e os conflitos do mundo moderno aparecem numa
perspectiva apocalíptica. É o fim do mundo ! Para o pensar-agir
conservador a crise de valores � o prenúncio do caos e da desor­
dem, já que não se apercebe que o que está· em crise é a sua ordem
de dominação.
Por outro lado, os meios que se pretendem críticos acusam
a razão científica e técnica de suprimir a liberdade por sua íntima
relação com o Poder. Saber é Poder! E se deixam conquistar pelo
irracionalismo . . A esse respeito observa Sérgio Paulo Rouanet:
.

Há um núcleo de verdade no novo irracionalismo: o con­


ceito clássico de razão deve ser efetivamente revisto. De­
pois de Marx e de Freud, não podemos mais aceitar a idéia
de uma Razão soberana, livre de condicioname ntos mate­
riais e psíquicos. Depois de Weber não há como ignorar a
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 137

diferença entre uma razão substantiva, capaz de pensar fins


e valores, e uma razão instrumental, cuja competência se
esgota no ajustamento de meios a fins. Depois de Adorno
não é mais possível escamotear o lado repressivo da razão,
a serviÇo de uma astúcia imemorial, de um projeto de do­
minação da natureza e sobre os homens. Depois de Fou­
cault, não é lícito fechar os olhos ao entrelaçamento do sa­
ber e do poder. Precisamos de um racionalismo novo, fun­
dado numa nova razão.

É preciso reconhecer: a razão que numa das perspectivas


iluministas se pretendia emancipadora fica associada à dominação,
quando o Estado que oprime e domina o faz e fala em nome da ra­
zão. É compreensível que a rebeldia contra o Estado se transforme
em rebeldia contra a razão, a ciência e a técnica. Como nos lembra
Rouanet, Marcuse chamara a atenção dos jovens "mostrando-lhes
que considerar racional a General Motors era fazer-lhe um cum­
primento que ela não merecia, para que eles começassem a dar-se
conta de que existe uma outra Razão que, longe de se opor à vida,
permite combater as forças que verdadeiramente a asfixiam". Tor­
na-se necessário, portanto, o exercício da razão crítica, como con­
dição de um agir crítico e lúcido.
O desenvolvimento da razão não foi e não é linear, pois
não está imune ao processo de desenvolvimento histórico que efe­
tivamente o inventa. e institui. É contraditório. É por isso que se
exige lucidez. Em nome da razão a humanidade pode se libertar,
mas quando ela se faz ideologia, em seu nome se oprime e devasta.
É preciso ainda distinguir, como J. Habermas, a razão instrwnen­
ta/, em torno da qual se desenvolve a mediação homem-natureza (a
técnica), da razão comunicativa, que se desenvolve no plano das
normas e cujo terreno é a intersubjetividade. Confundir esses dois
planos é uma das características do capitalismo monopolista de
Estado (campo ocidental) e do capitalismo de Estado monopolista
(campo oriental, URSS, sobretudo) uma vez que em ambos tudo se
transforma em questão técnica.
A intervenção estatal na vida cotidiana do cidadão é uma
demonstração do caráter cada dia mais autoritário das sociedades
contemporâneas. Esse aspecto, contudo , o liberalismo na sua mio-
138 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

pia não reconhece como uma das decorrências "naturais" do seu


próprio modo de ver, que só fala de liberdade e igualdade no plano
do mercado, sem considerar ·o autoritarismo opressor e explorador
que se desenvqlve por detrás das portas das fábricas, dos bancos,
das fazendas, escolas, quartéis, hospitais, igrejas e lares.
Quando se procura refletir sobre o conceito de natureza
que está no centro da constituição de cada povo-cultura, é preciso
muito cuidado, pois a questão envolve múltiplos aspectos, do ético
ao tecnológico, do econômico e político ao cultural . . .
Quando falamos em uso racional de recursos, e sabemos. o
quanto essa bandeira é cara aos ecologistas, é preciso ficar atentos
para as múltiplas conseqüências que a palavra racional evoca. A
razão técnica e científica não é a razão no seu todo. Uma das con­
quistas da modernidade é o reconhecimento de que não só a nossa
relação com a natureza deve ser regida de modo racional, mas tam­
bém as relações entre os homens. Sabemos que o imaginário racio­
nalista separou a relação homem-natureza - lugar da relação sujei­
to(homem)-objeto(natureza), da relação homem-homem(sujeito-su­
jeito) e, o pior, tornou-as equivalentes. Em outras palavras, deu à
relação homem-homem o mesmo caráter atribuído à relação ho­
mem-natureza(sujeito-objeto) , instrumentalizando, assim, as rela­
ções sociais.
Ora, as relações sociais são mediatizadas simbolicamente
através das normas, valores e objetivos histórico-culturalmente
·
instituídos e instituintes. Sabemos hoje, principalmente após Freud
e graças também a alguns antropólogos, que a razão não está sepa­
ra da "irrazão" por uma muralha da China: o homo sapiens é tam­
bém homo demens. A vida está povoada de "sem sentidos" sem os
quais não teria SeJ?.tido viver, como o amor, a paixão, a arte , o jo­
go, o prazer. Neste campo intersubjetivo, a razão instrumental en­
contra os seus limites, pois ele é o campo do conflito, da luta; en­
fim, da política. O fato de esses campos serem confundidos leva a
que as normas e valores fiquem subordinados à razão instrumental.
Aí se concentra um dos propulsores do crescente autoritarismo tec­
nocrático das sociedades contemporâneas. Confusão que, diga-se
de passagem, encontra-se entre cientistas, filósofos e técnicos, que
não se apercebem de que o agir humano é mediatizado simbolica-
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 1 39

mente num campo de intersubjetividade onde, muitas vezes, os in­


teresses específicos de um grupo, segmento ou classe social se im­
põem graças, inclusive, à utilização de argumentos de caráter téc­
nico-científicos para justificar a sua dominação, sem o demonstrar
explicitamente.
Ao mesmo tempo, a questão ambiental coloca na ordem do
dia a reflexão sobre a tradicional distribuição de competência por
áreas de conhecimento. No campo do saber científico, qual seria o
lugar da ecologia?
Não é fortuito que em torno dela venham sendo chamados
diversos colóquios, encontros e seminários interdisciplinares. Veri­
fica-se que a questão ambiental não pode ser reduzida ao campo
específico das ciências da natureza ou das ciências humanas. Ela
convoca diversos campos do saber, pois a questão ambiental , na
verdade, diz respeito ao modo como a sociedade se relaciona com a
natureza. Estão aí implicadas, portanto, as relações sociais e as
complexas relações entre o mundo físico-quúnico e o mundo orgâ­
nico. Nenhuma área de conhecimento específico tem competência,
pois, para decidir sobre ela, embora muitos tenham com que con­
tribuir. . . A não ser que se acredite que cabe aos cientistas e técni­
cos decidir sobre o devir . da sociedade. Por aí se abre o caminho
em direção ao totalitarismo que entende a razão técnico-científica
como sendo a razão absoluta. A opinião discordante dessa racio­
nalidade é taxada, por oposição, de irracional e por aí se produz
simbólica e politicamente o louco, o desordeiro, o dissidente, o
subversivo.
A questão ambiental é, assim, mais que um canipo inter­
disciplinar, pois nela se entrecruzam o conhecimento técnico-cien­
tífico; as normas e valores; o estético-cultural, regidos por razões
diferenciadas, porém não dicotômicas. Ela requer um campo de
comunicação intersubjetiva não viciado e não manipulado para que
a região comunicativa possa se dar efetivamente. Enfim, requer,
fundamentalmente, democracia. Vemo-nos, assim, lançados no ter­
reno da pólis, da política, ou seja, dos limites que os homens livre
e autonomamente se auto-impõem. Qual o uso (correto ou incorre­
to) que se há de fazer de um determinado ecossistema, por exem­
plo? O que. é o verdadeiro ou o falso? Essas questões, que aparen-
140 CARLOS WALTER P. GONÇALVES

temente são abstratas, apresentam-se concretamente no dia-a-dia de


cada um de nós e foi em tomo desses temas da lei e da justiça que
emergiu o logos grego - a ideia de um conhecimento racional - a
filosofia.
A complexidade da questão ambiental decorre do fato de
ela se inscrever na interface da sociedade com o seu-outro, a natu­
reza. A dificuldade em lidar com ela, nos marcos do pensamento
herdado, é evidente: no mundo ocidental, natureza e sociedade são ·
termos que se excluem. As ciências da natureza e as do homem vi­
vem dois mundos à parte e, pior, sem comunicação. Não há como
tratar a questão ambiental nesses marcos. Hoje sabemos que essa
é uma das formas de se organizar o saber, não a única! Nas diver­
sas regiões do conhecimento científico, percebemos a inquietação
que se manifesta no questionamento dos seus fundamentos. Mais
que .a interdisciplinariedade se impõe uma atitude mais radical, no
sentido de ir à raiz do problema: se impõe uma transdiciplinarieda­
de. O primeiro passo já vem sendo dado na medida em que vários
pensadores e pesquisadores sensíveis percebem que a razão não
governa toda a vida e que o paradigma atomístico-individualista
não dá conta da complexidade da physis.
Tudo nos leva a crer que parte desse imbroglio em que nos
vemos imersos se deve ao fato de termos aceito, durante muito
tempo, sem mais refletir, a idéia de que a razão se reduzia à razão
científica e técnica . . A relação sujeito-objeto, característica da ra­
zão científica, não pode ser transposta sem as necessárias media­
ções para o terreno do social, campo onde se desenvolvem as rela­
ções sujeito-sujeito expressas simbolicamente. Aqui é o terreno dos
valores e das normas, do imaginário, do estético, do político. Não
se pode tratar esse _campo com os mesmos procedimentos da rela-
ção teórica, onde sujeito e objeto se colocam como pólos de uma
relação dialógica de um certo tipo de complexidade. Não há solu­
ção científica para o desejo ou para o prazer estético. Não existe,
aliás, resposta científica para o que seja a ciência. O máximo que
se pode desejar no campo do agir humano é a garantia, que se ob­
tém na luta, de que nele haja liberdade; que não haja dominação,
manipulação ou repressão para que o agir comunicativo seja efeti­
vamente livre e a sociedade possa decidir com conhecimento de
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 141

causa. Os cientistas, filósofos e técnicos têm uma grande responsa­


bilidade nesse processo; por isso mesmo devem reconhecer preli­
minarmente os seus limites e possibilidades. A eles se atribui a res­
ponsabilidade de elucidar e desvendar os mistérios do mundo para
que nele se possa agir racionalmente. Tal projeto, gestado a partir
do século XVITI, é de uma forma ou de outra ainda hoje assumido
acriticamente pela melhor parte dos que se dedicam à universidade
ou à política. (Obviamente não se incluem nesse rol aqueles, infe­
lizmente muitos, que estão ocupando esses lugares por motivos me­
ramente fisiológicos.)
Acredita-se costumeiramente que a ciência e a técnica
constituem a salvação para a miséria e a injustiça sem se colocar
em discussão o significado dessa idéia. Ora, na medida em que não
se apontam os limites, no sentido mais profundo do termo, do co­
nhecimento científico e técnico para resolver os problemas com
que a sociedade humana se defronta, o que implica reconhecer
também o seu campo de validade, estaremos ajudando a perpetuar
o mito. O iluminismo, que tanto lutou contra o apelo à religião e à
autoridade como argumentos de verdade, acaba, pela prática acríti­
ca, por produzir novas autoridades e novos mitos. Ironicamente
temos agora o "Papa da Física"; o "Papa da Matemática"; o "Papa
do Direito" , o "Papa da. . . " Tal título, surgido no século Xill para
designar "o sucessor de São Pedro na chefia da Igreja Católica",
nomeia um caso específico de poder, definido no interior de uma
instituição que se vale de critérios que não são racionais do ponto
de vista científico, mas sim do teológico. Estranho caminho percor­
re a razão iluminista na sua versão instrumental dominante !
A relação da sociedade com o seu-outro, a natureza, de­
senvolve-se através do agir comunicativo que estabelece os fms
imaginários, sócio-historicamente instituídos, plano em que a razão
técnico-científica não dispõe de plena autoridade para decidir, pois
este é o campo da relação sujeito-sujeito e não da relação sujeito­
objeto. Confundir esses dois campos é ajudar a manter o imbroglio
e a perpetuar os graves problemas que precisamos superar. Não se
trata de dizer, como tem sido comum na crescente tendência ao ir­
racionalismo, que a ciência e a técnica são os responsáveis pelos
problemas da sociedade, uma vez que elas próprias são sempre ins-
CARLOS WALTER P. GONÇALVES

tituídas socialmente e esta é uma verdade que precisamos relem­


brar. A questão nos seus devidos termos é, portanto, indagar o que
a sociedade quer fazer com a ciência e a técnica. É preciso que a
sociedade se aproprie no sentido forte do termo, isto é, político, da
ciência e da técnica, o que não é simples no contexto histórico
concreto da sociedade em que vivemos. Que a sociedade rompa de
vez com a idéia de que seus problemas serão solucionados mera­
mente pela aplicação de uma determinada técnica, seja ela qual for,
pois este é o terreno seguro que leva à tecnocracia. Evitar tal risco
exige, portanto, maior lucidez quanto mais graves se tomam os
problemas com os quais hoje nos defrontamos, o que demanda uma
outra atitude por parte dos técnicos, cientistas e filósofos.
É preciso reconhecer que foi efetivamente de fora dos mu­
ros das universidades e centros de pesquisa que ecoou o grito con­
tra a degradação das condições de vida. O crescente interesse pela
questão ambiental ganhou dimensão enquanto questão social e po­
lítica a partir da década de sessenta sob contornos românticos e
idealistas e a crescente desconfiança em relação à ciência e à técni­
ca. Comelius Castoriadis percebeu com acuidade esse problema
quando observa:

Há mais do que dependência material, política e social da


ciência instituída com respeito ao sistema instituído . Há, e
igualmente importante , a sua dependência com respeito à
metafísica implícita e não consciente dessa sociedade, li­
nhas de força ideológico-imaginárias do campo histórico
contemporâneo. Experimentação, quantificação a todo pre­
ço, mesmo se trivial ou não pertinente, no mínimo formali­
zação, expansão ilimitada do paradigma cibemético-infor­
macional (que toma o lugar dos paradigmas "mecânicos"
do século XVIII e energético-evolucionistas, do século
XIX), preocupação exclusiva com o poder-fazer e com a
organização com fins em si - estes não são, no domínio
científico como nos outros, senão sintomas manifestos da
transformação do homo sapiens em homo computans, do
zoon logon echon em zoon logistikon.

Como . se surpreender, portanto, quando uma determinada


situação não se deixa modificar por colóquios científicos? Como se
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 143

surpreender com a dificuldade quase insuperável de apreensão das


questões que ultrapassam este quadro e virtualmente o destroem?
Com a verificação de que tal tentativa não pode ser efetuada pelos
prisioneiros da caverna científica com seu olhar pregado nos viso­
res luminosos, nas telas dos · aparelhos e nos resultados emitidos
pelos computadores? Como se surpreender também com o fato de
que tantos jovens, recusando-se a se transformarem em animais lO­
gísticos, sem possibilidades, todavia, precisamente em virtude do
sistema que os "educou", de mostrar a inconsistência teórica desse
sistema, dêem freqüentemente uma expressão irracionalista a sua
revolta? (Cornelius Castoriadis).
Sabemos o quanto nos dias atuais o tratamento da questão
ecológica vem sendo domesticado, institucionalizado. Há uma cor­
rente muito forte entre os ecologistas que tenta transformar a
questão ambiental em problema exclusivamente técnico, tornan­
do-a, assim, prisioneira do que pretende questionar. É a tecnocra­
cia ambientalista que não quer reconhecer que a técnica é, ela
mesma, como vimos, instituída socialmente e que somente a partir
da Revolução Industrial é que passou efetivamente a ser considera­
da como o motor da sociedade.
Sabemos, ainda, que a dominação da natureza é um projeto
absurdo, pois se o homem é também natureza quem o dominaria?
Deste modo, a formulação de um outro conceito de natureza envol­
ve também um outro c"Onceito de homem e, obviamente, de uma
outra sociedade que tome a técnica por aquilo que ela verdadeira­
mente é, ou seja, apenas um meio para se atingir um determinado
fim. E os fms que um determinado povo-cultura se coloca, como
vimos, não são externos e imutáveis.
Nas condições histórico-concretas em que vivemos hoje é
preciso ir mais longe que o verde, súnbolo do movimento ecológi­
co. É preciso também ir além do vermelho, súnbolo do socialismo
que tem, pelo menos, a virtude de apontar para a igualdade social
efetiva entre os homens. Todavia, essa luta pela igualdade deve ser
capaz de reconhecer a diferença e não reivindicar a homogeneidade.
Enfim uma luta para que todos tenham condições iguais de
afirmar a sua diferença. A luta contra a desigualdade social não é
uma luta pela igualdade no sentido de que todos os seres humanos
144 CARLOS W. PORTO GONÇALVES

são iguais. Ao contrário: o que os seres humanos têm de igual é a


sua diferença. É no plano da pólis, isto é, da política que havere­
mos de instituir condições iguais para que as individualidades flo­
resçam. A autonomia de cada ser huinano se desenvolve no seio da
sociedade, portanto, todos devem ser igualmente livres para esta­
belecer as regras, as normas, as leis. Não foi a Biologia quem dis­
tinguiu homens para pensar, planejar e decidir e homens para fazer.
Foi o terreno movediço, tenso e contraditório da História que os
instituiu assim. E a História não é o passado. Ela se dá aqui- e ago­
ra e cabe a cada um de nós decidir seus (nossos) destinos.
NOTAS B IBLIOGRÁFICAS

De modo deliberado optei por indicar aqueles livros que, de uma


maneira mais direta, influenciaram este trabalho. O leitor pode no­
tar que em . cada capítulo há uma detenninada obra em que me
apóio. A escolha desses trabalhos foi sendo feita ao longo de mui­
tos anos de leitura. Seria enfadonho, portanto, fazer aqui uma lon­
ga lista de livros sobre os quais me debrucei, até porque muitos fo­
ram lidos com objetivos outros que os desse ensaio.

Indico, por capítulo, aqueles livros em que um detennina­


do autor, segundo a minha avaliação, melhor conseguiu tratar a
problemática em questão. Talvez o meu mérito esteja nas relações
que estabeleço entre as teses de diversos autores diferentes. Eles
não são, obviamente, responsáveis pela leitura que deles faço.

Fugindo às regras estritamente acadêmicas, não indico as


páginas de onde retirei as citações de cada autor. Não foram so­
mente essas partes que achei importantes. Foi a obra como um to­
do. Se as cito é porque acredito que o autor formulou a questão de
um modo que eu não conseguiria fazer melhor. Por outro lado, se
alguém quiser conferir, a obra está indicada e o leitor poderá seguir
as minhas pegadas. Para isso indico ainda livros e artigos que es­
crevi sobre o tema ao longo dos últimos anos.
146 CARLOS W. PORTO GONÇALVES

Cap. II
GONÇALVES, C. W. P. Paixão da Tara: Ensaios Críticos de
Geografia e Ecologia, Rio de Janeiro, Rocco/SOCII, 1 984.
---- . "A Geografia está em Crise. Viva a Geografia", in
Boletim Paulista de Geografia, São .Paulo, Associação de
Geógrafos Brasileiros - AGB , 1978.

Cap. III
DANIEL, H. e MICOLIS, L. Jacarés e Lobisomens. Rio de Janei­
ro, Achiamé, 1 982.
. CASTORIADIS, C. e COHN-BENDIT, D. Da Ecologia à Auto­
nomia. São Paulo, Brasiliense, 1983.

Cap. IV
GONÇALVES , C. W. P. e BARBOSA, J. L. Geografia da Natu­
reza, Coleção Geografia Hoje, Rio de Janeiro, Ao Livro
Técnico, 1988.

Cap. VI
BORNHEIM, G. Os Filósofos Pré-Socráticos, São Paulo, Cultrix,
1985.
DESCARTES , R. Discurso sobre o Método, Coleção Os Pensado­
res, Ed. Abril, São Paulo.

Cap. VII
GONÇALVES , C. W. P. "Possibilidades. e Limites da Ciência e
da Técnica Diante da Questão Ambiental" , in Anais do IIÇ?
Seminário Universidade e Meio Ambiente, SEMA, Belém,
1987.
MORIN, E. O Enigma do Homem, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
---- . O Método: A Natureza da Natureza, Publicações Eu­
ropa-América, Portugal, s/d.
MOSCOVICI, S. A Sociedade Contra a Natureza, Petrópolis, Vo­
1 975.
zes,
MARX, K. O Capital, Livro 1 , vol. 2., Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 197 1 .
OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 147

MARCUSE, H. Razão e Revolução, Rio de Janeiro, Paz e Terra,


1978.
HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. 1982, Rio de Janeiro,
Zahar, Coleção Os Pensadores, Vol. XLVTII , São Paulo,
Abril, 1 975.

Cap. Vlli
MORIN, E. O Método II: A Vida da Vida, Portugal, Publicações
Europa-América, s/d.

Cap. IX
GONÇALVES , C. W. P. Os Limites do "Limites do Crescimento" :
Contribuição ao Estudo da Relação Natureza e História. Tese
de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Geografia da
U.F.R.J., 1 985.
MEADOWS, D. e outro. Os Limites do Crescimento, 2� edição,
São Paulo, Perspectiva, 1 978,
MOSCOVICI, S. Idem.
•r'__...-�·· •..�"- ---. .."!1 -

/
••

MORIN, E. Idem.

Cap. X · _.., � :;::d _ ,

ROUANET, S. P. As Razões do Ilwnin


"'
i�:
....
"'"-- >'

\,< ���-�����:��- -· .
---- . A Razão Cativa.

Cap. XI
MUMFORD, L. Tecnica Y Civilizacion, Madri, Alianza Editorial,
1982.
DE DECCA, E. O Nascimento das Fábricas, Coleção Tudo é
História, São Paulo, Brasiliense, 1985, 3� edição.

Cap. Xlll
HABERMAS , J. Idem.
BRESSIANI, M. S. M. Londres e Paris no Século XIX: O Espetá­
cu/o da Pobreza. 4� edição. Coleção Tudo é História, São
Paulo, Brasiliense, 1987.
148 · CARLOS WALTER P. GONÇALVES

Cap . XIV
BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista, Ed. Zahar,
198 1 , 3!! edição.
Rio de Janeiro,
CHAUÍ, M. Confonnisrno e Resistência: aspectos da cultura po­
pular no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1986.

Cap. XV
ROUANEf, S. P. Idem.
CASTORIADIS , C. As Encruzilhadas do Labirinto, Rio de Janei­
ro, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987.

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