Você está na página 1de 22
LU me CIO COSTA CONSIDERACOES ~ SOBRE ARTE s CONT! EMPORANEA SERVICO DE DOCUMENTAGAO MINISTERIO DA EDUCAGAO E SAODE LUCLOACOSTA CONSIDERAGOES SOBRE ARTE i : CONTEMPORANEA ; 4 | . ass oe f er Se MINISTERIO DA EDUCAGAO E SAUDE SERVICO DE DOCUMENTACAO i i ici ci i ze i ;
  • s4rio comecar-se por definir, com a desejavel objetivi dade, 0 que seja arquitetura. Arquitetura é, antes de mais nada, construcdo; mas, construcéo concebida com o propésito primordial de ordenar o espaco para determinada finalidade ¢ visando a determinada intencao. E nesse processe fundamental de ordenar e expressar-se ela se revela igualmente arte plastica, porquanto nos inumeraveis problemas com que se defronta o arquiteto desde a germinacio do projeto até a conclusao efetiva da obra, hA sempre, para cada caso especifico, certa margem final de opc&o entre os limites — maximo e minimo — determinados pelo cdlculo, preconizados pela téc- nica, condicionados pelo meio, reclamados pela funcao cu impostos pelo programa, — cabendo entao ao sen- timento individual do arquiteto (ao artista, portanto) escolher, na escala dos valores contidos entre tais limi tes extremos, a forma plastica apropriada a cada por menor em fungéo da unidade tltima da obra idealizada. A intengao plastica que semelhante. escolha sub- entende 6 precisamente o que distingue a arquitetura da simples construcio. Por outro lado, a arquitetura depende ainda, neces: sariamente, da época da sua ocorréncia, do mieio fisico e social a que pertence, da técnica decorrente dos ma- teriais empregados e, finalmente, dos objetivos visados e dos recursos financeiros disponiveis para a realizacao da obra, ou seja, do programa proposto. Pode-se entio definir a arquitetura como constru- cao. concebida com a intenc’o de ordenar plastica- mente 0 espace, em funcéo de uma determinada época, —5 aot he de um determinado meio, de uma determinada técnica e de um determinado programa. Estabelecidos, assim, os vinculos necessarios da intenc&o plastica com os demais fatéres fundamentais em causa, e constatada a simultaneidade e constancia dessa mitua presenca na propria origem e durante todo © transcurso da elaboracaéo arquiteténica, o que the justifica a classificacéo tradicional na categoria das belas-artes, pode-se ent&o abordar mais de perto a questao no propésito de elucidar, com o apdio do teste- munho historico e da experiéncia contemporanea, como Pprocede 0 arquiteto ao conceber e projetar. Constata-se desde logo a existéncia de dois con- ceitos distintos e de aparéncia contraditéria a orien- té&lo: 0 conceito organico-funcional, cujo ponto de partida é a satisfacao das determinacées de natureza funcional, desenvolvendo-se a obra como um organis mo vivo onde a expresso arquiteténica do todo de- pende de um rigoroso processo de selecéo plastica das partes que o constituem e do modo como sao entro- sadas e o conceito pldstico-ideal, cuja norma de proceder implica senéio o estabelecimento de formas plasticas a priori, as quais se viriam ajustar, de modo sébio ou engenhoso, as. necessidades funcionais (aca- demismo), em todo caso, a intengaio preconcebida de ordenar racionalmente as conveniéncias de nature- za funcional, visando a obtencdo de formas livres ou geométricas ideais, ou seja, plasticamente puras No primeiro caso a beleza desabrocha, camo numa flor, e o seu modélo histérico mais significativo é a arquitetura dita “gética”; ao passo que no segundo 6 ela se domina © contém, como num cristal, e a atqui- tetura chamada “classica” ainda 6, no caso, a manifes- tacio mais credenciada. As técnicas construtivas contemporaneas — carac- terizadas pela independéncia das ossaturas em relacao &s paredes e pelos pisos balanceados, resultando dai a autonomia interna das plantas, de carater “funcio- nal-fisinlégico”, e a autonomia relativa das fachadas, de natureza “plastico-funcional”, — tornaram possivel pela primeira vez na histéria da arquitetura, a perfei- ta fusio daqueles dois conceitos dantes justamente considerados irreconcilidveis, porque contraditérios: a obra, encarada desde 0 inicio como um organismo vivo, é, de fato, concebida no todo e realizada no pormenor de modo estritamente funcional, quer dizer, em obedi- éncia escrupulosa as exigéncias do calculo, da técnica, do meio e do programa, mas visando sempre igualmen- te alcancar a um apuro pléstico ideal, gragas & unida- de orginica que 2 autonomia estrutural facuica e & relativa liberdade no planejar e compor que ela enseja. # na fusio désses dois conceitos, quando o jégo dns formas livremente delineadas ou geométricamente definidas se’ processa espontaneo ou intencional ora derramadas, ora contidas —, que se escondem a sedu- co © as possibilidades virtuais ilimitadas da arquite- tura moderna. Esra dualidade de concepcaio sobre a qual assenta a nova técnica da composicao arquiteténica, prende-se, alias, do ponto. de vista restrito da expressdo plastica, —7 a uma dualidade formal mais profunda, que se mani- festa igualmente nos demais setores das belas-artes, independentemente de outras tantas particularidades por que também se possam conjuntamente caracterizar. Dualidade figurada, de um lado, pela concepeao estética da forma, na qual a energia plastica concen- trada no objeto considerado parece atraida por um su- posto niicleo vital, donde a predominancia dos volumes geométricos e da continuidade dos planos de contérno definido e a conseqiiente sensagao de densidade, de equilibrio, de contensio (arte mediterranea); 2, por outro lado, pela concepeio formal dindmica, onde a energia concentrada no objeto parece querer liberar-se e expandir, — seja no sentido unanime de uma resul- tante ascencional (arte gética), seja em diregdes con- traditérias simulténeas (arte barroca), seja revolyen- do-se e voltando sdbre si mesma (arte indu), seja rodopiando & procura de um veértice (arte Eslava), seja fragmentando-se aprisionada dentro de limites convencionais (arte arabe), seja ainda, abrindo-se em elegantes ramificacdes (arte iraniana), ou, final mente, recurvando-se para cima num ritmo escalonado (arte sino-japonesa) —- donde a fragmentacéo dos planos 2%a predominancia das massas de aparéncia arbitraria e silhueta ponteaguda, irregular, torturada, retorcida, intricada, graciosa ou ondulada, conforme o caso, e como conseqiiéncia, inversamente, as sensacées de embalo, de encantamento, de prestidigitacao grafica, de vertigem, de angiistia, de impulso extravasado e de serenidade ou exaltacdo. ‘so A cada uma dessas concepgdes formais, tanto a estatica quanto as diferentes modalidades da dinamica, corresponde portanto, originariamente, um habitat na- tural, muito embora as trocas culturais e as vicissitu- des préprias do desenvolvimento histérico as hajam seguidamente confundido a ponto de se apagarem muitas vézes os tracos de ligacéo a ésses focos de origem. A delimitacao de tais focos e 0 restabelecimento esquematico das linhas gerais de penetracéo e de fluéncias reciprocas, torna-se indispensdvel & perfeita compreenséo da arte moderna em geral, porquanto a sua principal caracteristica 6, precisamente, a predis- posigéio a aceitar e assimilar a contradicao daqueles conceitos, paradoxalmente englobados no mesmo corpo de doutrina. Procure-se pois resumir a fim de reconstituir men- talmente, dentro dos limites objetivos do quadro geo- grdfico e da perspectiva histérica, os caminhos percor- ridos pelas correntes plasticas fundamentais. Considere-se, primeiro, a arte das diferentes civi- lizacdes que se sucederam ao longo da bacia do Me- diterraneo — egipcia, grega, etrusca, romana, bisantina —ea esta simples enumeracZo ldgo se adivinha ai o berco do conceito estético da forma, conceito euja pureza geométrica ainda se manifesta ao vivo na arquitetura popular mediterranea, tanto a do Sul da Europa, quanto a do norte da Africa, das cidades as Baleares, das costas da Siria as costas da Catalunha. Encare-se, em seguida, a arte norte-européia j4 liberta das peias romanicas e se ha logo de reconhecer, 10 — na espontaneidade e exuberancia da maravilhosa flc- taco gética, a presenca latente de uma concepgao plas- tica peculiar que nao é outra coisa sendo a revelacio do conceito formal nativo, dinamico, até entao contido pelos complexos culturais latinos mas, finalmente, emancipado. E se a meméria visual for levada agora a vagar na direcao do oriente, se hA de constatar igualmente, nas manifestagdes da arte indu, bidica e braménica, a mesma seiva teldrica profunda expressa segundo o conceito dinamico da forma, embora num sentido plas- tico diametralmente oposto ao da concepcao nérdica, ocidental. A arte khmer, da Indo-China, tao bem sin- tetizada nos recortes monumentais do Angkor-Vat, taru- bém participa das mesmas caracteristicas fundamentais. E ja que se chegou tao perto, assinale-se, para concluir a volta empreendida, a arte refinada do ex- tremo-oriente. Nao obstante a regularidade simétrica da planta dos templos e palacios chineses, e a massa imponente das muralhas que os enquadram, a sua plastica — onde predomina o gracioso capricho dos telhados escalonados dos pagodes — desenvolve-se igualmente, em elevacdo, segundo as normas da inten- c&o formal dinamica- O que também se aplica & arte, sob outros aspectos t&éo diferenciada, dos seus herdeiros culturais, os japoneses. Mas, para que o delineamento destas duas coorde- nadas gerais se possa precisar melhor, torna-se neves- saério voltar atras a fim de considerar ainda a arte das diferentes culturas milenares que se sucederam ao longo do Tigre e do Eufrates: de uma parte a —il | arte dos sumerianos, dos akades, dos caldeus, ou seja, a arte da Mesopotamia propriamente dita, que se pode considerar, com fundamento, uma das matrizes da concepeao estatica da forma; e de outra parte, a arte que resultou do desenvolvimento cultural das aguerricias Populacdes montanhesas descidas do norte — arte assiria —, a qual ja participa, por seus caracteres peculiares de expressfio, da concepedo plastica di- namica. Ter-se-&o désse modo estabelecido, finalmente, dois eixos culturais bem definidos quanto a concepcio plds- tica da forma: 0 eixo mesopotamo-mediterraneo, cor- respondente a concepgao estdtica, e 0 eixo nérdico- oriental, correspondente & concepcio dindmica. Contudo, para melhor se apreenderem os caracte- res diferenciadores désse dualismo formal basico, — ao qual se vieram apegar outros conceitos auténomes que em diferentes regides, culturas ou circunstAncias, puderam encontrar, nalguma das variadissimas expres- ses dessa dualidade, a forma plastica apropriada a Ihes traduzir 0 contetido racial, ideolégico ou cultural, — prossiga-se com a enumeracéio sucinta dos casos mais significativos de trocas e predominancias tempo- rarias das duas corfentes, constatando-se, de passagem, os estilos nacionais onde a presenca delas é simultanea ou o seu equilibrio manifesto. 1.° — A arte helenistica — reconhecida como o barroco da antiguidade — nAo é senao a conseqiiéncia logica do contagio do conceito formal estatico, ja entdo predisposto a ruptura da contensao plastica, com o BV EIXO MESOPOTAMO- MEDITERRANEO conceito que Ihe é oposto, isto é, 0 dinamico, dai a deflagracdo dramética que se seguiu. 2° — A pureza geométrica-da arte da antiga Bisancio, tao bem definida no sereno esplendor de Santa Sofia, resultou — quando do seu contato com as correntes profundas da concepeao plastica dinamica eslava, e apesar da intervencao de artistas italianos —, no bisantinismo espetacular da igreja do Bemaventu- rado Basilio, em Moscou. 3° — As peculiaridades da arte veneziana decor- rem da situacéo geografica especial da Republica, empério comercial para onde convergiam e se cruza- vam obrigatériamente as corrente nérdicas ¢ orientais da concepedo formal dinamica com a corrente nativa toscana, filiada a concepgdo estatica, mediterranea. 4° — A arte Arabe, situada, tal como a iraniana, na confluéncia dos dois cursos, sofreu-lhes a acdo re- ciproca, E assim que, por exemplo, da sua irrupcao vitoricsa na Siria, no norte da Africa e na peninsula Ibérica, decorreram expressées estilisticas de concepcaio estatica, onde a graca e a firmeza plastica se casam harmoniosamente, ao passo que da sua infiltracao no Ira e no Paquistéo resultou um estilo proprio cujo encanto e elegdncia, de inspiracio dinamica, sao hem a expresséo refinada de uma cultura de raizes embebi- das no lastro profundo das velhas civilizacdes orientais. 5° —- © “ultra-barroco” manoelino de Portugal — anterior portanto a Miguel Angelo e ao barroco histérico —, estilo tao bem simbolizado na bravura plastica da famosa janela capituiar do mosteiro de 14 — Tomar, néo é senéo a manifestacdo sensivel do con- ceito formal din&mico do oriente, revelado de chofre ao olhar deslumbrado dos portuguéses ainda mal saidos da concepcao estatica romanica da forma, j4 que a pene- tracao ogival ibérica sé adveio tardia. Assim, portanto, a constancia do ciclo “classico- barroco” ou “classico-romantico”, observada pela acui- dade intelectual do Sr. Eugénio D’Ors, teria outro fundamento, e significaco ainda mais profunda, por- quanto ja nao se trataria apenas, em esséncia, dos tempos sucessivos de um péndulo, mas, principalmen- te, da ocorréncia simultanea de duas: correntes bem definidas de conceitos plasticos antagénicos e dos seus contatos e trocas, sendo mesmo da sua eventual fusao. 6° — © Renascimento significa 0 restabeleci- mento da concepedo estatica da forma nos seus proprios dominios. £, portanto, a reacdo contra os extravasa- mentos da concepgao dindmica ogival além do leito natural do seu curso. © contra-golpe dessa reacio formal, manifestacdo objetiva de um novo contetido ideolégico — o hurne- nismo individualista — empolgou a sociedade culta, passando-ce entao a refugar por téda a parte, na Euro- pa, sob o patrocinio pedante dos cortesios, 0 conceito dinamico da forma, identificado, j4 entdo, como confuso e barbaro, indigno, pois, do ideal plastico reconquistado de ordenacao e clareza. Conquanto na Italia essa legitima recuperacao dos direitos de cidadania ocorresse com espontaneo desembaraco desde as primeiras revelacées, seguidas da plenitude do “quattrocento”, até a elogiiéncia da — 15 alta-renascenca, na Europa do norte a nova concepcao formal provocou, de inicio, perplexidades, adquirindo gradacgées bem definidas segundo o carater nacional dos diferentes povos afetados pela febre renovadora. Nos paises germanicos e eslavos, por exemplo, de- pois da primeira fase, quando a interpretacdo gética das formas novas conduziu a imprevistos achados estilisticos, ela se caracterizou pelo desmedido das proporcées e pelo exagéro das massas tecténicas, pre- nunciadoras da énfase e desenvoltura barrocas que dentro em pouco haveriam de prevalecer ali. Na Inglaterra, 0 novo conceito formal baniu, de vez, a feicio espontanea das nobres residéncias rurais com grandes halls envidracados e alas assimétricas agenciadas a topografia local e &s conveniéncias fun- cionais — partido ainda em voga durante a renascenca elisabetiana —, em favor dos blocos regulares de como- dulacéo uniforme e aparéncia monétona. Todavia, a instintiva reserva britanica, guiada pela erudicéo de §tr CHRISTOPHER WREN e pela feliz influéncia pala- diana, soube conferir a tais estruturas uma distinco natural inconfundivel que resultou, mais tarde, na apurada elegancia georgiana e na modinatura algo séca dos irmos Adam, repercutindo igualmente na agra- dével arquitetura das mansées coloniais da Virginia ou da Nova Inglaterra. : ‘Ao passo que em Franca, cadinho onde se fundi- ram e temperaram, através dos séculos, es duas cor- rentes de influéncias formais que a atravessam (a estatica, do eixo mesopotamo-mediterraneo, e a dina- mica do eixo nérdico-oriental), pode-se sempre obser- 16 — var — seja na primeira renascenca, quando os mestres — pedreiros arquitetos interpretavam a seu modo o novo yocabulario importado da Italia, seja quando o novo estilo jA se desenvolvia seguro de si, gracas ao amestra- mento do Primaticcio em Fontainebleau, e as judicio- sas licdes de PHILIBERT DE L'ORME —, a expressdo do equilibrio e maturidade intelectual geralmente reco- nhecidos como caracteristicas do senso de medida pe- culiar ao gésto francés e do qual se féz tao mau uso aa chamada “arte-decorativa” do primeiro apés-guerra. 7° —- A viruléncia do alastramento da reacao barroca na Alemanha, na Tchecoslovaquia, na Hun- _eria, etc., deveu-se circunstancia de haver sido a corrente formal dinamica, latente nesses paises, muito bruscamente abafada pelo formalismo estatico renas- centista. Por outro lado, a assiduidade do comércio com as Indias Orientais contribuiu sem duvida, para © florescimento da arte barroca na Flandres e na peninsula Ibérica Quanto @ arquitetura colonial da América esps- nhola e portuguésa, cabe reconhecer que participa da corrente formal estatica devido A tradicdo meditersa- nea de suas culturas de origem, mas depende funda- mentalmente da corrente formal dindmica j4 que o seu desenvolvimento principal se enquadra em cheio no ciclo barroco dos séculos XVII e XVIII. £ curioso, aliés, assinalar a respeito que, das culturas autéctones Azteca e Inca, uma, a mexicana, participa do conceito formal dinamico, enquanto que a do Peru se ajusta melhor ao conceito formal estatico, = AT.
  • Você também pode gostar