Você está na página 1de 117

FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

ANO LECTIVO 2021/2022


DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

SÍNTESE DAS AULAS PRÁTICAS (1)

1. Apresentação e indicações genéricas sobre a cadeira;


2. Apresentação do Código Penal.
3. Conceito material de crime como conceito base de ligação entre o sistema
normativo e as necessidades e possibilidades sociais.

Objectivos: compreender a noção e função do conceito material de crime e relacioná-las


com a teoria do bem jurídico; constatar a operacionalização da teoria do bem jurídico
como ferramenta normativa de legitimação das incriminações.

3. Conceito material de crime como conceito base de ligação entre o sistema


normativo e as necessidades e possibilidades sociais
• Crime e pena como elementos essenciais do Direito Penal (Direito Criminal e
Direito Penal).

• Concepção positivista-legalista: “É crime tudo e só aquilo que o legislador


considerar como tal”;
→ Insuficiente: função e limites do direito penal?
→ Inaceitável: não permite discernir o conteúdo essencial do crime enquanto
realidade merecedora de pena;
→ Importância do conceito formal de crime no contexto da afirmação do princípio
da legalidade.

• Legitimidade das incriminações e necessidade da pena – procura um critério de


legitimação material das condutas que podem ser consideradas crime;

• Fonte legitimadora da incriminação e da sanção;


• Características das condutas criminosas.

(1)
A presente síntese esquematiza, de forma breve, as matérias tratadas nas aulas práticas identificadas, e
não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência, bem como as leituras
suplementares recomendadas.

1
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

• Ao longo do tempo, foram apresentados vários critérios de legitimação material


do crime:
→ Perspectiva positivista-sociológica / ofensividade ou danosidade social: ideia
de unidade sociológica, que determinaria de forma objectiva e universal as
condutas socialmente ofensivas/danosas que, por esse motivo, deveriam ser
consideradas crime;
 Crítica: assenta numa pretensa comunhão que não existe: é difícil
afirmar uma coincidência total entre a ideia de danosidade social e a
incriminação.
→ Perspectiva moral (ético)-social [Welzel]: concepção moral ético-social do
crime = essência do crime relaciona-se com a violação de deveres ético-sociais
elementares ou fundamentais, e o Direito Penal deve garantir a validade desses
valores;
 Críticas: (i) possível confusão entre o Direito e a Moral; (ii) perda de
autonomia do Direito Penal enquanto sistema normativo; e (iii) resposta
desadequada no contexto de sociedades pluralistas.
→ Perspectiva normativista [Jakobs]: crime como frustração das expectativas e
função do Direito Penal como exercício de reconhecimento da vigência das
normas (estabilização de expectativas);
 Crítica: o reforço das expectativas sociais não deverá ser a função
primordial do Direito Penal, mas sim um objectivo complementar.
→ Perspectiva teleológico-racional:
➢ Legitimação do Direito Penal: perspectiva normativista, grosso modo;
➢ Recurso ao princípio da proporcionalidade (necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito);
➢ Função do Direito Penal: tutela subsidiária ou de ultima ratio de bens
jurídicos dotados de dignidade penal (bens jurídico-penais):
 Assinala a subsidiariedade do Direito Penal nos mesmos termos
assinalados para o Direito;
 Recorta os aspectos fundamentais da vida social.

2
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Princípio da lesão (harm principle) – direito a não ser criminalizado, i.e.,


a não ver o seu comportamento criminalizado; mais do que centrado nas
consequências, foca-se na própria forma de lesão – ou colocação em
perigo – do bem jurídico.
→ TEORIA DO BEM JURÍDICO
• O que é que tem dignidade penal?
→ Não há uma noção nítida e segura de bem jurídico-penal:
➢ Conteúdo material (mais do que uma norma penal posta); e
➢ Padrão crítico das normas penais (existentes ou a existir) e orientadas em
termos de política criminal.
→ A lesão destes bens jurídicos provoca uma disfuncionalidade no sistema
jurídico-penal, uma vez que estão em causa:
➢ Valores fundamentais ao desenvolvimento individual dentro de uma
comunidade (comunhão acerca da essencialidade destes bens jurídicos);
➢ Interesses fundamentais do sistema
 Fonte legitimadora → sistema social: fornece os bens jurídicos vitais
para a realização de cada pessoa;
 Ordenação/compatibilização com o sistema constitucional (ordem
axiológica jurídico-constitucional) encontro entre o Direito Penal e a
CRP 1. Quadro de referência para a ordenação de bens jurídicos;
2. Em caso de dúvida, recorre-se ao sistema jurídico-
constitucional;
3. Prevê formas de relacionamento entre os bens jurídicos
Regra de produção do sistema
(primazia de certos valores sobre outros).

3
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

CONCEITO MATERIAL DE CRIME:

• Ferramenta/instrumento normativo que pretende fornecer um critério de


legitimação material de uma conduta como criminosa - Maria Fernanda Palma:
instrumento teórico de controlo da validade das incriminações.
• Funciona como padrão crítico das normas penais:
o A priori: relativamente a uma potencial nova incriminação (ex: enriquecimento
ilícito/injustificado);
o A posteriori: relativamente a uma incriminação já prevista (ex: lenocínio, artigo
169.º do Código Penal).
• Conceito material de crime ≠ bem jurídico-penal
Instrumento teórico que Critério de legitimação material
procura um critério de proposto pela perspectiva teleológico-
legitimação material das racional; concretização da ideia de
condutas como criminosas. conceito material de crime.

TEORIA DO BEM JURÍDICO COMO CRITÉRIO DE LEGITIMAÇÃO MATERIAL DAS


INCRIMINAÇÕES

1) Bem jurídico + 2) penalmente relevante

Bem jurídico (individuais, supra-individuais ou colectivos):

• Figueiredo Dias: «expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na


manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso».
• Maria Fernanda Palma: «condições essenciais de liberdade da pessoa e de
funcionamento do Estado de direito democrático»;
• Claus Roxin: «condições e finalidades necessárias ao livre desenvolvimento do
indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento de
um sistema estatal construído em torno dessa finalidade».

Relevância penal:
a) Dignidade punitiva – referência à ordem axiológica constitucional;
b) Carência de tutela penal – necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP).

4
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

 Análise de acórdãos do Tribunal Constitucional (“TC”) à luz da teoria do bem


jurídico e da ideia de necessidade da pena: interrupção voluntária da gravidez
(“IVG”)

• Acórdão n.º 617/2006 de 15 de Novembro – Conselheira Maria Fernanda


Palma(2):
→ Apreciação da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo
aprovada pela Resolução nº 54-A/2006 da Assembleia da República, da norma
constante do artigo 142º, do Código Penal, que prevê a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas
primeiras 10 semanas.
→ Questão colocada: a despenalização da IVG até às 10 semanas, por opção da
mulher em estabelecimento de saúde legalmente autorizado implica uma
solução inconstitucional, por violar a protecção consagrada no artigo 24.º, n.º
1, da CRP?
→ Posição do Tribunal Constitucional: em causa estaria uma ponderação sobre o
conflito de direitos e valores e a obtenção de uma solução para esse conflito,
bem como a sua conexão com a intervenção do Direito Penal.

SOBRE RESPOSTA AFIRMATIVA QUANTO À DESPENALIZAÇÃO, I.E., A EVENTUAL

VIOLAÇÃO DA PROTECÇÃO CONSAGRADA NO ARTIGO 24.º, N.1, DA CONSTITUIÇÃO:

→ O TC rejeita a tese de inconstitucionalidade, com os seguintes argumentos:


➢ A inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não
exige que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do
feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo de protecção
objectiva da vida intrauterina;
➢ O facto de o feto ser tutelado em nome da dignidade da vida humana não
significa que haja título idêntico ao reconhecido a partir do nascimento;

(2)
Ponto 28 e ss. da Fundamentação.

5
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ A generalidade dos sistemas jurídicos considerar que o feto não é uma


pessoa titular de direitos;
➢ A inviolabilidade da vida humana e a necessidade de protecção da vida
intrauterina não impõem especificamente uma tutela idêntica em todas as
fases da vida;
➢ Há quem entenda que o artigo 24.º, n.º 1, da CRP, não pretendeu abranger
a protecção da vida intrauterina, afastando a necessidade de referência a
esse preceito e ao princípio da inviolabilidade da vida humana do
problema de despenalização da IVG;
➢ A criminalização da IVG constitui um modo sancionatório de tutela da
vida intrauterina, não sendo o meio preferencial de protecção jurídica,
atendendo à natureza do conflito e à relação emocional entre a mulher
grávida e o ser em gestação.

→ Quanto ao método dos prazos, e quanto a uma perspectiva que defenda a não
inconstitucionalidade de causas de exclusão da ilicitude ou um afastamento da
punibilidade através da ponderação de valores, que entenda que o método dos
prazos conduz a uma desprotecção jurídica da vida intrauterina nas primeiras
10 semanas de gravidez, fazendo prevalecer a liberdade da mulher grávida:
➢ O TC faz referência ao Acórdão n.º 288/98, no qual se defende que o
legislador numa lógica de harmonização dos interesses em presença –
livre desenvolvimento da personalidade da mulher e vida humana
intrauterina, tendo em conta o critério dos prazos e circunstâncias, em vez
de considerar que um interesse seria hierarquicamente superior ao outro;
➢ Não considerou que a vida intrauterina estaria desprotegida durante as 10
semanas de gravidez, mas que esta seria prevalecente nas últimas
semanas, enquanto nas primeiras se conferiria um maior relevo à
autonomia da mulher;
➢ A rejeição da protecção jurídica da vida intrauterina no âmbito do método
dos prazos só se verificaria se na nossa ordem jurídica não houvesse meios
legais de protecção da maternidade;
6
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ A criminalização da IVG constituiria uma sanção decorrente da tutela da


vida intrauterina, não sendo um meio preferencial de protecção jurídica,
atendendo à relação de proximidade entre a gestante e o feto, bem como
ao sentido da maternidade;
➢ Para efeitos de punição, num tempo determinado, a liberdade de opção
conferida à mulher poderia impedir a intervenção do Direito Penal, sem
que tal constitua “abandono jurídico” da vida intrauterina como bem
jurídico protegido pela Constituição;
➢ No âmbito da responsabilidade penal, prevaleceria o princípio da
necessidade da pena, não se discutindo o reconhecimento de valores ou
de meras lógicas de merecimento de protecção jurídica
= não há uma imposição constitucional de criminalização – princípio da
necessidade da pena – existem medidas mais eficazes que a
incriminação: obrigatoriedade de uma prévia consulta de
aconselhamento; estabelecimento e um período de reflexão entre a
consulta e a intervenção abortiva, assegurando que a decisão da mulher é
livre, informada e ponderada.
→ Conclusão: a resposta afirmativa à pergunta não foi considerada
inconstitucional pelo TC.

SOBRE A RESPOSTA NEGATIVA, I.E., CASO SE IMPEDISSE A DESPENALIZAÇÃO NAS

PRIMEIRAS 10 SEMANAS:

→ A não despenalização não implicaria qualquer alteração do sistema vigente,


que já permite a ponderação de valores, excluindo a incriminação em casos
em que tal afectasse a vida, a saúde, a dignidade pessoal ou as condições
físicas, psíquicas ou materiais;
→ O sistema penal consagra causas de desculpa que impedem a punição em
situações de não censurabilidade, com base no grave conflito existencial;
→ A resposta negativa não impediria a exclusão de responsabilidade, opção do
legislador, desde que de acordo com os princípios constitucionais.

7
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Decisão: o TC decide com base no que fora afirmado no Acórdão n.º 288/98,
no qual se entendeu que não havendo uma imposição constitucional de
criminalização da situação em apreço, cabe na liberdade de conformação
legislativa a opção entre punir criminalmente ou despenalizar a IVG. Neste
sentido, as duas respostas – afirmativa ou negativa – não constituiriam uma
solução jurídica incompatível com a Constituição.

• Acórdão n.º 75/2010 de 23 de Fevereiro – Conselheiro Joaquim de Sousa


Ribeiro(3).
→ É submetida a apreciação da constitucionalidade do regime de impunibilidade
da IVG introduzido pela Lei n.º 16/2007 e o imperativo constitucional de
protecção da vida humana.
→ Posição do TC: a vida intrauterina é um bem digno de tutela,
independentemente da fase em que se encontre a gestação, ainda que admita
diferentes níveis e formas de protecção, em correspondência com a
progressiva formação do novo ente.
➢ Não se justificaria a solução do conflito com a atribuição de prevalência
absoluta do interesse da mulher, sacrificando o bem “vida”, pois tal
constituiria o direito livre e incondicionado a abortar;
➢ Admite que as alterações biológicas durante o processo de gestação e a
progressiva formação do novo ser tenham incidência na valoração
jurídico-constitucional das soluções de conciliação dos bens em conflito.
→ Questões colocadas:
➢ Existe protecção do embrião e do feto na fase inicial de gestação?
➢ O meio concretamente escolhido satisfaz o mínimo de protecção?
➢ Os instrumentos penais de intervenção podem ser substituídos, sem perda
de eficiência/eficiência comprometedora da satisfação do imperativo de
tutela da vida antes do nascimento, por outros meios jurídicos de
conformação (de carácter não penal)?

(3)
Ponto 11.3 e 11.4 até ao ponto 11.4.12 da Fundamentação; e declarações de voto.

8
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Lei n.º 16/2007: exclusão de punição e admissão de um juízo subjectivo da própria


grávida, visto que apesar de a consulta ser obrigatória, não há imposição de uma
solução contrária à desejada pela grávida.
➢ Bens jurídicos em conflito: não se trataria de um conflito entre dois
titulares de direitos fundamentais, mas um conflito entre bens pessoais de
um sujeito e a tutela objectiva do “bem social” do respeito pela vida.
➢ Adequação e necessidade – carência de tutela penal – necessidade da
pena – artigo 18.º, n.º 2, CRP: não há uma imposição constitucional da
criminalização, tal como referido no Acórdão n.º 617/2006. No período
inicial da gravidez é dada preferência à solução que apela ao sentido de
responsabilidade da grávida, respeitando a sua liberdade decisória –
salvaguarda da autonomia de decisão da mulher + reconhecimento da
dignidade da mulher.
➢ Intervenção do Direito Penal: jurisprudência constitucional portuguesa
defende que a vida pré-natal é um bem constitucionalmente protegido
enquanto valor objectivo; a sanção penal deve constituir uma última
instância, que só se justifica quando essa protecção não possa ser
garantida de outro modo. Só faria sentido recorrer à aplicação de medidas
punitivas através do Direito penal para fazer cumprir o dever de protecção
do embrião e do feto nas fases em que a gravidez evidenciasse a
“dualidade” (mulher vs. embrião ou feto).
→ “Modelo dos prazos” e consulta prévia e obrigatória – condição da não
punibilidade
➢ Finalidade dissuasora da consulta como exigência do cumprimento pelo
Estado do mínimo de tutela: esclarecimento da gravidade da decisão e
apresentação de alternativas.
➢ Consciencialização feita junto da grávida acerca do valor da vida que
transporta em si – valoração pelo ordenamento jurídico do bem “vida”;
➢ Conhecimento dos vários apoios de que a grávida poderá beneficiar –
encorajamento para uma tomada de decisão que preserve o bem “vida”.

9
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ TC considera que as normas dos artigos 1.º, n.º1, alínea e) e 142.º, n.º 4,
alínea b), 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º2 da Lei n.º 16/2007 não são inconstitucionais.
→ Período mínimo de reflexão
➢ O TC considerou que o prazo de 3 dias era adequado e que se tratava de
um prazo mínimo, e que em caso de persistência de dúvidas da gestante
no termo do período, a intervenção, no limite das 10 semanas, poderia ser
retardada.
➢ A duração do período de reflexão não estaria ferida de
inconstitucionalidade.
→ Violação do direito à saúde física e psíquica da mulher
➢ No decurso da consulta obrigatória, prevê-se que a grávida seja informada
das consequências que a IVG poderá ter na sua saúde, que pode constituir
um desincentivo.
➢ A preocupação pela tutela da saúde é demonstrada quando se exige que a
IVG seja efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento
de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, impondo-se ainda aos
estabelecimentos a adopção de medidas que garantam uma boa prestação
do serviço.
➢ TC considerou que a Lei não desprotegia a saúde física e psíquica da
mulher.
→ Violação do direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade
➢ Em causa estaria a insuficiência informativa que impossibilitaria uma
escolha consciente, ideia contrária ao disposto no artigo 142.º, n.º 4, alínea
b), do CP, bem como ao disposto no artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º16/2007 –
toda a informação prevista como de prestação obrigatória deve ser
directamente fornecida no acto da consulta e não após a sua efectivação.
➢ Nesta linha, o TC rejeita a invocada inconstitucionalidade dos referidos
artigos.
→ Não participação do progenitor masculino no processo de decisão sobre a IVG

10
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ A questão só se suscitaria se a identidade do progenitor fosse susceptível


de ser estabelecida pela ordem jurídica, de forma legítima, caso contrário
não se poderia considerar o problema juridicamente. Pai desconhecido =
pai inexistente (excepção quanto à presunção de paternidade decorrente
do casamento, consagrada no artigo 1826.º do Código Civil). A
investigação das circunstâncias da concepção ou a indagação junto da
grávida constituiria uma intolerável violação do seu direito à reserva da
intimidade, consagrado no artigo 26.º da CRP.
➢ TC socorre-se do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, CRP,
não considerando inconstitucional a inexigibilidade do consentimento do
progenitor para a realização da IVG, prevista no artigo 142.º, n.º 4, alínea
e) do CP: não envolve qualquer desqualificação arbitrária da
paternidade enquanto valor social eminente, nem se apresenta carecida
de justificação objectiva e racional, em termos de poder ser considerada
violadora do princípio da igualdade; a solução estaria na natureza das
coisas, condicionada pela realidade biológica da gestação humana.
→ Não participação na consulta obrigatória dos médicos que invoquem a
objecção de consciência – artigo 6.º, n.º 2:
➢ Preservação da grávida face a qualquer forma de ingerência no processo
decisório, mesmo quanto a meras comunicações orientadoras;
➢ A posição dos médicos face à IVG não tem de interferir com a sua
colaboração no sentido de cumprimento da lei;
➢ Rejeição quanto ao entendimento de que a exclusão dos médicos
objectores de consciência diminui o nível da protecção da vida intra-
uterina; à luz do princípio da igualdade, donde decorre a proibição de
discriminação, o que estaria em causa seria apenas um impedimento de
participação, livremente manifestado;
➢ TC entendeu que não suscitaria reparos constitucionais, visto que tal não
viola o princípio da igualdade, a integridade moral ou o direito ao bom
nome dos médicos objectores de consciência.

11
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Decisão: o TC pronunciou-se pela não inconstitucionalidade da Lei n.º 16/2007.

TEORIA DO BEM JURÍDICO COMO CRITÉRIO DE LEGITIMAÇÃO MATERIAL DAS


INCRIMINAÇÕES

2) Bem jurídico + 2) penalmente relevante

Bem jurídico (individuais, supra-individuais ou colectivos):

• Figueiredo Dias: «expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na


manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo
socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso».
• Maria Fernanda Palma: «condições essenciais de liberdade da pessoa e de
funcionamento do Estado de direito democrático»;
• Claus Roxin: «condições e finalidades necessárias ao livre desenvolvimento do
indivíduo, à realização dos seus direitos fundamentais e ao funcionamento de um
sistema estatal construído em torno dessa finalidade».

Relevância penal:
c) Dignidade punitiva – referência à ordem axiológica constitucional;
d) Carência de tutela penal – necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP).

 Análise de acórdãos do TC à luz da teoria do bem jurídico e da ideia de


necessidade da pena: lenocínio (artigo 169.º/1 do CP)

• Acórdão n.º 144/2004 de 10 de Março – Conselheira Maria Fernanda Palma;


• Acórdão n.º 396/2007 de 10 de Julho(4) – Conselheiro Pamplona de Oliveira;
• Acórdão n.º 641/2016 de 21 de Novembro(5) – Conselheiro Fernando Ventura.
• Acórdão n.º 134/2010 de 3 de Março – Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
• Acórdão n.º 172/2021 de 27 de Janeiro– Conselheiro Teles Pereira
→ Recursos interpostos para o TC, ao abrigo do disposto no artigo 70.º/1, alínea
b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro), onde
– entre outras – se suscita a questão da inconstitucionalidade do actual artigo
169.º/1 do CP, que prevê o crime de lenocínio.

(4)
Ponto 4 da Fundamentação e declaração de voto.
(5)
Ponto 7 da Fundamentação e declarações de voto.

12
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Questão colocada: eventual inconstitucionalidade do artigo 169.º/1 do CP, por


violação das seguintes disposições(6):
➢ Necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP).
→ O TC recorreu à teoria do bem jurídico – centrando-se na ideia de carência de
tutela penal – para determinar a admissibilidade da incriminação referida,
procurando demonstrar a necessidade de sancionar criminalmente a conduta
descrita. A fundamentação desenvolvida pelo TC no acórdão 144/2004 foi
transposta para os demais arestos – com excepção do Acórdão n.º 134/2010
de 3 de Março – e assenta nos seguintes argumentos:
➢ Existem bens e valores que participam das duas ordens normativas, moral
e jurídica;
➢ Artigo 170.º/1 do CP (actual 169.º/1 do CP) refere-se a situações de
aproveitamento económico por terceiros cujo significado é o da
exploração da pessoa prostituída; uma ordem jurídica orientada por
valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não pode
permitir que uma pessoa seja utilizada como puro instrumento ou meio ao
serviço de outrem;
➢ Impera uma certa ideia cultural e histórica de pessoa a uma certa ideia do
valor da sexualidade; existem, por isso, deveres de protecção para com
pessoas em estado de carência social, protecção da liberdade e
“autonomia para a dignidade”;
➢ O aproveitamento económico por terceiros exprime uma interferência,
que comporta riscos intoleráveis ‒ dados os contextos sociais da
prostituição ‒ na autonomia e liberdade do agente que se prostitui
(colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de
uma dimensão especificamente íntima para fins de terceiro;

(6)
Apesar de em todos os casos o TC ter sido chamado a pronunciar-se sobre múltiplas questões de
constitucionalidade, limitámos a nossa análise ao problema da conformidade constitucional da
incriminação consagrada no artigo 169.º, n.º 1 do CP.

13
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Existe uma normal associação entre as condutas que constituem o


lenocínio e a exploração da necessidade económica e social (análises e
estudos empíricos);
➢ O facto de a disposição não exigir, expressamente, como elemento do
tipo, uma concreta relação de exploração, não significa que a previsão
desta não seja a motivação fundamental da incriminação;
➢ No fundo, pretende-se assegurar a protecção, por meios penais, contra a
necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência,
protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa
humana.
➢ Questão diferente relaciona-se com a possibilidade processual de
contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação.

! - Crimes de perigo (abstracto; abstracto-concreto; concreto)

→ Declarações de voto:
➢ Acórdão n.º 396/2007 - Conselheira Maria João Antunes:
▪ A eliminação da exigência de “exploração de uma situação de abandono
ou necessidade” – operada pela Lei 65/98 de 2 de Setembro – contraria
a evolução em matéria de crimes sexuais, marcada por um paradigma de
intervenção mínima do direito penal.
▪ Trata-se, como sabemos, do ramo do direito que afecta, mais
directamente, o direito à liberdade (artigo 27.º/1 e 2 da CRP), o que
implica que a sua intervenção se deva limitar ao necessário para a tutela
de bens jurídicos que não obtêm protecção adequada e suficiente de outra
forma.
▪ Neste sentido, com a eliminação daquela exigência, não se verifica uma
necessidade de restrição do direito à liberdade enquanto direito
necessariamente implicado na punição (artigo 18.º/1 e 2 e 27.º/1 e 2 da
CRP).
➢ Acórdão n.º 641/2016 - Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro:

14
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ A alteração verificada em 1998, ao suprimir o elemento o tipo relativo à


“exploração de situações de abandono ou necessidade económica”
tornou indefinido o bem jurídico tutelado, visto que eliminou a ligação
do comportamento descrito a esse bem jurídico, a liberdade e
autodeterminação sexual.
▪ Assim, apenas através de uma interpretação restritiva se logra identificar
o objecto de protecção da norma.
➢ Acórdão n.º 641/2016 - Conselheiro Manuel Costa Andrade:
▪ A incriminação constante do artigo 169.º/1 do CP viola o disposto no
artigo 18.º/2 da CRP, visto que não se encontra preordenada à
salvaguarda de direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
▪ Com efeito, a norma não se revela necessária à protecção de quaisquer
bens jurídicos, tratando-se de uma manifestação dos chamados “crimes
sem vítima”. Procura-se, assim, prevenir ou reprimir o pecado.
➢ Acórdão n.º 72/2021 - Conselheira Maria Assunção Raimundo:
▪ A conduta tipicamente descrita não resiste ao teste da necessidade, dada
a fragilidade do nexo entre a conduta que é descrita e o bem jurídico que
a norma pretende tutelar.
▪ O apelo directo à dignidade da pessoa humana, enquanto princípio
prescritivo, tanto impõe uma especial atenção para a necessidade de
tutela de situações de especial vulnerabilidade, como impõe uma especial
consideração pela própria liberdade e autodeterminação sexual do agente
que se prostitui. E, nesse sentido, a norma de incriminação afectará, de
forma desproporcional, o direito ao exercício dessa liberdade, em
violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição, o que
legitima um juízo de inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1 do
Código Penal.
→ A argumentação expendida nas declarações de voto foi, grosso modo,
transposta para o Acórdão n.º 134/2020 de 3 de Março, no qual o Tribunal
Constitucional decidiu:

15
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

«julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º,


n.º 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1 da
Constituição (…)».
→ No entanto, em sede de recurso de oposição de julgados (artigo 79.º-D, da
LTC), o Acórdão n.º 172/2021 de 27 de Janeiro, retomou a argumentação
expendida nas decisões “tradicionais” sobre a incriminação em causa,
pronunciando-se no sentido da conformidade constitucional da norma
constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal. Destacou, e síntese, que:
➢ A actividade que fomenta, favorece ou facilita a prostituição insere-se
numa constelação de relações sociais muito mais complexas, e desligadas
das circunstâncias referenciáveis à individualização do acto de
prostituição, que corresponde à perpetuação de situações de diminuição
da liberdade e de sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes,
escapa a qualquer controlo, visto que se exerce fora de relações
formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de
quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a
respectiva “utilidade comercial”.
➢ Tal actividade gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o
âmbito de protecção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se
trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário tende a
organizar-se de modo a potenciar o lucro, objectivo ao qual, mais tarde ou
mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das
pessoas que se prostituem.
➢ Mesmo que a expressão exploração esteja fora do tipo o risco da sua
materialização é suficientemente forte para conter a norma dentro dos
limites da proporcionalidade e, em particular, da necessidade da pena.

16
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

TEORIA DO BEM JURÍDICO COMO CRITÉRIO DE LEGITIMAÇÃO MATERIAL DAS


INCRIMINAÇÕES

1) Bem jurídico + 2) penalmente relevante


a) Dignidade punitiva – referência à ordem axiológica
constitucional;
b) Carência de tutela penal – necessidade da pena (artigo
18.º/2 da CRP).

a) DIGNIDADE PUNITIVA

FIGUEIREDO DIAS: os bens do sistema social transformam-se em bens jurídicos


dignos de tutela penal através da ordenação axiológica jurídico-constitucional;
necessidade de reflexão num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em
nome do sistema social total que, por isso, pré-existe ao ordenamento jurídico-penal;
relação de mútua referência; analogia material = correspondência de sentido e de
fins;

MARIA FERNANDA PALMA: exigência de compatibilidade, congruência ou


concordância prática entre o fim de protecção das normas penais e os direitos e
valores constitucionais, ou seja, a ordem axiológica constitucional:
o Vertente negativa: a incriminação não pode ser um modo de coarctar um
direito fundamental, constituindo uma previsão que atinja os limites
imanentes desse direito;
o Vertente positiva: a incriminação tem de se dirigir à protecção de bens
jurídicos essenciais, respeitantes às condições de liberdade da pessoa e de
funcionamento do Estado de Direito Democrático, que legitimam exercício
do poder punitivo do Estado → requer uma demonstração empírica: processo
argumentativo que demonstre a pertinência de qualquer nova incriminação.

COSTA ANDRADE: expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade social,


assente na valoração ético-social de uma conduta, na perspectiva da sua
criminalização e punibilidade.

ATENÇÃO!! – não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de


criminalização.

17
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

b) CARÊNCIA DE TUTELA PENAL

FIGUEIREDO DIAS: deriva do princípio da proporcionalidade, em sentido amplo


(artigo 18.º/2 da CRP); subsidiariedade e proibição do excesso, inadequação das
sanções penais.

MARIA FERNANDA PALMA: exigência de que a nova incriminação seja necessária,


proporcional e adequada ao fim que visa obter e à protecção dos bens jurídicos que
a justificam:
1) Probabilidade elevada de que se produza o efeito de protecção do bem
jurídico;
2) Não devem estar disponíveis meios menos gravosos do que as penas
públicas para assegurar essa protecção; e
3) Não deve haver efeitos colaterais que neutralizem ou contrariem as
vantagens da incriminação.

COSTA ANDRADE: duplo e complementar juízo:


o Juízo de necessidade: ausência de alternativa idónea e eficaz de tutela não
penal;
o Juízo de idoneidade: o direito penal assegura a tutela, e não impõe custos
desmesurados no que toca ao sacrifício de outros bens jurídicos, maxime, a
liberdade.

5. As sanções criminais: penas e medidas de segurança. 6. O problema dos fins das


penas: a discussão filosófica. O estado da questão. 7. Fins das penas e princípios
constitucionais.

Objectivos: identificar o problema dos fins das penas e conhecer as diferentes teorias;
compreender a respectiva aplicação prática e analisar criticamente o impacto de cada uma
das propostas à luz dos princípios fundamentais do direito penal; identificar e distinguir
as sanções penais; conhecer a noção de medidas de segurança.

18
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

 Análise de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”) e do Tribunal da


Relação do Porto (“TRP”) à luz das teorias dos fins das penas

• Acórdão STJ de 19 de Setembro de 2012, processo n.º 126.11.5JAFAR.S1–


Conselheiro Maia Costa;
• Acórdão TRP de 19 de Setembro de 2012, processo n.º 720/11.4PAOVR.P1 –
Desembargador Francisco Marcolino.
→ Recursos interpostos pelos respectivos arguidos, quanto à medida concreta da
pena aplicada pelo tribunal a quo, requerendo a redução dessa pena.
→ No primeiro aresto (STJ 19.09.2012), estava em causa a prática de um crime
de roubo agravado (p.e.p. nos artigos 210.º/ 1 e 2b) e 204.º/2e) do CP), e,
consequentemente, uma moldura legal de 3 a 15 anos de prisão; o recorrente
havia sido condenado numa pena de prisão efectiva de 5 anos e 6 meses,
solicitando a redução da mencionada pena para 3 anos e 6 meses, suspensa na
execução.
➢ O STJ indeferiu a pretensão do recorrente, argumentando com recurso à
ideia de prevenção geral positiva, sublinhando que a pena visa a protecção
de bens jurídicos, o que se materializa na salvaguarda das exigências de
prevenção geral positiva;
➢ Este Tribunal assinalou ainda que neste tipo de criminalidade, o
imperativo de salvaguarda da “paz doméstica” – decorrente da especial
intensidade e violência do ilícito – aumenta as necessidades de protecção
do bem jurídico;
➢ Em paralelo, referiu a proliferação dos crimes de roubo no interior das
residências, e o emergente sentimento de insegurança na generalidade das
pessoas;
➢ Afirmou, finalmente que «a confiança dos cidadãos na salvaguarda dos
bens jurídicos afectados por este tipo de crime exige, pois, uma pena
suficientemente dissuasora de nova violação da norma infligida».
→ No segundo caso (TRP 19.09.2012) vinha o arguido condenado pela prática
de um crime de roubo (p.e.p. no artigo 210.º/1 do CP), numa pena de prisão

19
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

efectiva de 2 anos. Situando-se a moldura penal da mencionada incriminação


entre 1 e 8 anos de prisão, o recorrente requer a redução da pena para, no
máximo, 1 ano de prisão.
➢ A Relação do Porto entendeu que a concreta pena aplicada se revelava
adequada, aludindo à função utilitária do Direito Penal num Estado de
Direito, Democrático e Social, e aos princípios da mínima intervenção, da
fragmentariedade e subsidiariedade;
➢ Concomitantemente, explicitou as funções eminentemente preventivas da
pena, articulando-as com uma ideia de prevenção especial ou individual;
▪ Numa primeira fase, o aresto centra-se numa ideia de prevenção geral
positiva, especialmente intensa nos casos de crimes como o roubo – em
que os sentimentos de insegurança e pânico gerados exigem uma reacção
contrafáctica forte, com aplicação de pena eficaz a fim de evitar a prática
de novos crimes;
▪ Num segundo momento, integra a prevenção especial, assacando-lhe
uma função de determinação do quantum exacto da pena, atendendo às
necessidades de ressocialização verificadas.
➢ Em nota de rodapé, o TRP menciona a posição de Roxin, explicitando que
este autor entende que «a aplicação da pena pelo juiz serve, em primeiro
lugar, de complemento à função de prevenção geral própria da
cominação legal pela confirmação da seriedade da ameaça abstracta
expressa pela lei, nunca ultrapassando a culpa do autor [sob pena de
instrumentalização]; em segundo lugar, serve a prevenção especial
fazendo sentir ao delinquente a necessidade de não voltar a violar bens
jurídicos fundamentais pela afirmação contrafáctica da validade da
norma».

20
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

 Análise de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (“TRL”), datado de 2 de


Outubro de 2014, processo n.º 548/12.4PTPDL-A.L1.9 – Desembargadora
Maria do Carmo Ferreira, à luz das teorias dos fins das penas

→ Cronologia dos factos:


➢ Em 18.07.2012, o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de
condução de veículo – um, sem habilitação legal e outro em estado de
embriaguez; foi aplicada uma pena única de 150 dias de prisão, suspensa
na execução, por um período de um ano; para além disso, o condenado
deveria frequentar um curso de segurança e prevenção rodoviária;
➢ Em 01.07.2013, o mesmo arguido foi condenado pela prática de um crime
de condução de veículo sem habilitação legal, numa pena de um ano de
prisão, substituída por 365 horas de trabalho a favor da comunidade;
➢ Nesta sequência, o MP promoveu a revogação da suspensão da pena de
prisão, por considerar verificado o previsto na alínea b) do número 1 do
artigo 56.º do CP;
➢ No entanto, o tribunal indeferiu a pretensão do MP, tendo decretado a
extinção da pena por decurso do período de suspensão, ao abrigo do
disposto no artigo 57.º do CP;
➢ Perante esta decisão, o MP recorreu para o TRL.
➢ O TRL identificou a questão sub judice através da seguinte interrogação:
“o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de
prognose que justificou a suspensão da execução da pena ou ainda
existem fundadas expectativas de ressocialização”?
➢ Trata-se, no fundo, de analisar as circunstâncias em que ocorreu a prática
do último ilícito e ponderar se as finalidades da suspensão se
encontravam, por essa via, prejudicadas;
➢ A este propósito, o TRL centrou-se na apreciação da personalidade e
percurso de vida do arguido, através de um Relatório Social; neste

21
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

contexto, atendeu sobretudo à respectiva situação pessoal, social e


familiar;
➢ Em paralelo, o Tribunal defendeu que o critério material para decidir
sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, i.e., haverá
que ponderar se as finalidades preventivas que sustentam a decisão de
suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma;
➢ Por outras palavras, impunha-se indagar se o juízo de prognose positiva
deveria manter-se, considerando a coincidência ou íntima relação entre os
bens jurídicos em causa;
➢ Em concreto, o TRL relaciona os factos criminosos entre si com a pessoa
do arguido, avalia de forma crítica o impacto de uma nova condenação,
baseando-se em documentos e declarações do arguido, compreendidos no
Relatório Social;
➢ Sumariamente, o Tribunal entendeu que o arguido acatou a ajuda que lhe
foi prestada, esforçou-se por dar um rumo diverso à sua vida, assumindo
obrigações familiares e mantendo hábitos de trabalho; com estes
fundamentos, indeferiu a pretensão do MP.

 Aplicação da proposta do Professor Figueiredo Dias para determinação da medida


concreta da pena aos acórdãos analisados na aula anterior

• Exemplo: Acórdão STJ de 19 de Setembro de 2012, processo n.º


126.11.5JAFAR.S1 – Conselheiro Maia Costa;
→ Crime de roubo agravado (p.e.p. nos artigos 210.º/ 1 e 2b) e 204.º/2e) do CP);
→ Moldura legal abstracta de 3 a 15 anos de prisão;
→ O recorrente havia sido condenado numa pena de prisão efectiva de 5 anos e
6 meses;
→ Requereu a redução da pena para 3 anos e 6 meses, suspensa na execução.

22
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

15 anos
DESNECESSÁRIA
9 anos: medida óptima de
tutela dos bens jurídicos e
expectativas da
comunidade

5 anos e 6 meses
4 anos: limiar mínimo defesa
INEFICAZ do ordenamento jurídico
3 anos

1) Prevenção geral positiva: imperativo de salvaguarda da “paz doméstica” –


decorrente da especial intensidade e violência do ilícito, que aumenta as
necessidades de protecção do bem jurídico; proliferação dos crimes de
roubo no interior das residências, e o emergente sentimento de insegurança
na generalidade das pessoas;
2) Prevenção especial positiva: vide ponto XIV do acórdão:
o Perigo de reincidência; personalidade revelada pelo arguido;
ausência de esclarecimentos ou de colaboração do arguido;
ausência de antecedentes; contexto familiar desfavorecido.
3) Culpa – artigo 40.º/2 e 71.º do CP:
o Elevada ilicitude dos factos; intensidade do dolo; sentimentos
revelados na execução do crime.
• FINS DAS PENAS – Por que é que se pune (retrospectiva)? / Para que é que se pune
(prospectiva)?

→ Legitimação / Fundamentação / Função da intervenção penal estatal

Teorias absolutas
Teorias absolutas
≠ Teorias relativas
Teorias absolutas
• A pena corresponde à • A pena traduz-se num mal
compensação do mal do para quem a sofre, que se
crime, e é função exclusiva justifica apenas para alcançar
do facto que se cometeu. finalidades preventivas.

23
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

• Retribuição: a pena é a • Prevenção geral: pena como


justa paga do mal que com instrumento político-criminal destinado a
o crime se realizou, a actuar sobre a generalidade dos membros
contrapartida do mal do da comunidade, afastando-os da prática
crime, contendo um fim em de crimes através da ameaça penal
si mesma (KANT / HEGEL); estatuída pela lei, da realidade da sua
• Expiação: a pena é o justo aplicação e da efectividade da sua
equivalente do dano do execução
facto e da culpa do agente o Negativa: forma de intimidação das
(visando o expurgo dessa outras pessoas através do sofrimento
culpa). infligido ao delinquente e cujo receio
as conduzirá a não cometerem factos
puníveis;
o Positiva: forma de manutenção e
reforço da comunidade na validade e
na força de vigência das suas normas
de tutela de bens jurídicos e,
consequentemente, no ordenamento
jurídico.
• Prevenção especial: pena como
instrumento de actuação preventiva sobre
o Positiva: a pena visa criar as condições a pessoa do delinquente com o fim de
necessárias para que o delinquente evitar que, no futuro, ele cometa novos
possa, no futuro, continuar a viver a sua crimes (ideia genérica de prevenção da
vida sem cometer crimes (reinserção reincidência)
social/ressocialização). o Negativa: a pena visa atemorizar o
delinquente até ao ponto em que ele
não repetiria, no futuro, a prática de
crimes
[neutralização: efeito de pura defesa
social através da separação ou
segregação do delinquente, logrando a
neutralização da sua perigosidade
social]
o

• PRINCIPAIS CRÍTICAS ÀS SOLUÇÕES TRADICIONALMENTE PROPOSTAS


→ Retribuição
➢ Não é uma teoria dos fins das penas: propõe a consideração da pena como
entidade independente de fins;

24
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Inadequação à legitimação, fundamentação e ao sentido da intervenção


penal: o Estado de Direito Democrático não pode arvorar-se em entidade
sancionadora do pecado e do vício, mas tem de limitar-se a proteger bens
jurídicos; de facto, nem toda a culpa humana legitima a aplicação de uma
pena; assim, uma pena conscientemente dissociada de fins constitui um
“cheque em branco” atribuído ao legislador;
➢ Uma pena retributiva esgota o seu sentido na imposição de um mal ao
delinquente, como compensação ou expiação do mal que lhe provoca
(social-negativa); deste modo, não prossegue qualquer objectivo de
controlo ou domínio do fenómeno da criminalidade, representando um
verdadeiro acto de fé;
➢ A ideia de compensação da culpa pressupõe a liberdade da vontade (livre
arbítrio), que é indemonstrável.
→ Prevenção geral
➢ Não esclarece o âmbito do criminalmente punível;
➢ Viola a dignidade da pessoa humana porque instrumentaliza a pessoa em
nome de fins preventivos;
➢ Por esta via não se consegue justificar a atribuição da pena ao criminoso
por algo que ele tenha feito e com base na medida da gravidade do facto
(i.e., a pena deixaria de poder ser vista como consequência do crime);
➢ Poderia justificar uma progressiva severidade das penas (direito penal do
terror);
➢ Dificuldade na determinação do quantum da pena necessário para
alcançar a intimidação, no caso da prevenção geral negativa;
➢ Inexistência de comprovação da eficácia da prevenção geral negativa.
→ Prevenção especial
➢ Não possibilita uma delimitação material e temporal do poder punitivo do
Estado;
➢ O Estado não detém qualquer legitimidade para proceder à correcção ou
emenda moral do delinquente, impondo um tratamento coactivo das suas

25
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

inclinações e tendências para o crime (ausência de legitimação jurídica do


fim);
➢ A pena seria dispensável, mesmo nos crimes de elevada gravidade, nos
casos em que não existisse qualquer necessidade de ressocialização;
➢ Dificuldade em proceder a um juízo de prognose sobre a delinquência
futura com base em investigação empírica.

• LEGADO DA TEORIA DA RETRIBUIÇÃO


→ Relevância do princípio da culpa como princípio absoluto da aplicação da
pena;
→ MARIA FERNANDA PALMA: “A ideia retributiva não abandonou o pensamento
contemporâneo, mas tende a justificar-se hoje pela eficácia preventiva-geral
do Direito Penal, perdendo a natureza de teoria absoluta da pena. Com efeito,
a defesa da ideia retributiva faz-se sobretudo na perspectiva de que a
retribuição é o único modo de demonstrar a eficácia das penas e garantir as
expectativas dos cidadãos relativamente à punição dos criminosos”.

• FIGUEIREDO DIAS
→ As finalidades prosseguidas pela pena só podem ter natureza preventiva;
→ O exercício do poder punitivo do Estado justifica-se enquanto meio de
preservação dos bens jurídicos essenciais ao livre desenvolvimento do
indivíduo na comunidade;
→ Deste modo, a pena criminal partilha desses fins, procurando prevenir a prática
de futuros crimes;
→ Por esse motivo, a finalidade primordial da pena há-de ser a da tutela
necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, traduzida pela
necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na
manutenção da vigência da norma violada;
→ Consequentemente, poderá afirmar-se que a finalidade primária da pena
consiste no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime

26
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

(prevenção geral positiva), dando conteúdo ao princípio da necessidade da


pena (artigo 18.º/2 CRP);
→ As exigências de prevenção geral positiva fornecem (i) uma medida óptima
de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, que a pena se
deve propor alcançar, e que não pode ser excedida; e (ii) um limiar mínimo
de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual não é possível tutelar o
bem jurídico lesado;
→ Dentro desta moldura devem actuar pontos de vista de prevenção especial,
sobretudo atendendo à medida da necessidade de socialização do agente;
→ A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da
culpa;
→ “Toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não
exceda a medida da culpa é uma pena justa”.

• MARIA FERNANDA PALMA


→ Negar a finalidade retributiva da pena é irrealista, uma vez que a primeira
necessidade humana que a pena pública satisfaz é a da substituição psicológica
da vingança privada;
→ Esta substituição psicológica racionaliza-se através de dois princípios
constitucionais: o princípio da culpa, derivado da essencial dignidade da
pessoa humana (artigo 1.º da CRP), e o princípio da necessidade da pena
(artigo 18.º/2 da CRP);
→ Consequentemente, a retribuição ancora-se na necessidade social numa dupla
vertente: (i) controlo das emoções geradas pelo crime (pacificação social); e
(ii) protecção perante o delinquente;
→ Paralelamente, quer a prevenção geral quer a prevenção especial apenas se
legitimam, como fins das penas, através da pena da culpa;
→ Em rigor, é o próprio CP que estabelece – no artigo 71.º – que a culpa do
agente é o critério fundamental da medida da pena, que justifica a sua variação
entre o máximo e o mínimo;

27
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ A culpabilidade do agente é um elemento do conceito de crime e um


pressuposto essencial da responsabilidade penal (vide artigos 17.º, 35.º e 37.º
do CP), que não pode ser reduzida a um critério restritivo, acessório, de uma
responsabilidade baseada na prevenção geral positiva coadjuvada pela
prevenção especial;
→ Assim, a culpabilidade deve operar ab initio, condicionando e reconfigurando
os critérios de necessidade, não a partir de uma ideia retributiva, mas a partir
da consideração do merecimento da conduta do agente;
→ Em suma, a prevenção é um princípio restritivo, funcionando nos quadros
dos limites máximo e mínimo da culpabilidade que o comportamento justifica.
No entanto, a culpa não é alheia à prevenção.

• HELENA MORÃO – dois princípios constitucionais que se limitam reciprocamente:


culpa e necessidade da pena
→ Augusto Silva Dias – a retribuição é uma função da pena, é a sua essência
(porquê);
→ A culpa também é fundamento da pena (não sendo o único);
➢ A culpa permite distinguir a pena de medidas de segurança, por exemplo
– não têm carácter punitivo;
→ Retribuição: justificar a aplicação da pena porque houve crime;
→ No limite, a prevenção geral pode prescindir do facto; e admite a condenação
de alguém diferente do agente do crime;
→ Legado da retribuição = referência ao facto;
→ Uma teoria pura da retribuição seria incompatível com a CRP;
→ Assegurar condições colectivas de segurança – nessa medida, a pena é
preventiva.

• CLAUS ROXIN (Teoria unificadora dialéctica)


→ No que respeita à previsão das incriminações, importa esclarecer que o Estado
moderno apenas se encontra legitimado a punir condutas lesivas dos bens

28
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

jurídicos constitutivos da sociedade e a garantir as prestações públicas


necessárias ao livre desenvolvimento dos cidadãos;
→ Desta acepção resulta então que o direito penal tem carácter subsidiário e que
o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela
imoralidade de condutas não lesivas de bens jurídicos;
→ A partir desta dupla restrição contida no princípio da protecção
subsidiária de prestações e bens jurídicos, será legítimo afirmar que o fim
das disposições penais é o da prevenção geral;
→ A aplicação da pena justificar-se-á através da harmonização da sua
necessidade para a comunidade jurídica com a autonomia da personalidade do
delinquente, que ao direito compete garantir;
→ O particular deve ser tratado, durante o processo, com respeito pela sua
dignidade, encontrando-se vedados os tratos que o privem da livre
determinação das suas declarações;
→ O fim da prevenção geral da punição apenas se pode conseguir na culpa
individual; neste sentido, o princípio da culpabilidade constitui um meio
imprescindível para limitar o poder penal estatal num Estado de Direito;
→ “A aplicação da pena serve para a protecção subsidiária e preventiva, tanto
geral como individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, através de
um processo que salvaguarde a autonomia da personalidade e que, ao impor
a pena, esteja limitado pela medida da culpa”.
→ Assim, tanto quanto a autonomia da personalidade do condenado e as
exigências iniludíveis de prevenção geral o permitam, os únicos fins legítimos
de execução são os ressocializadores.

9. Conceito material de sanção criminal e constituição penal (os princípios relativos


às penas). O problema à luz do Direito internacional. 10. Delimitação do Direito
Penal relativamente a outros ramos do Direito. 11. Direito Penal Especial, Direito
Penal Secundário e Direito de Mera Ordenação Social.

29
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

• CONCEITO DE PENA(7) – ideia de conceito material de pena = imposição de limites


constitucionais ao legislador na definição das sanções penais:
→ Quanto à aplicação: artigo 27.º/2 CRP – princípio da jurisdicionalidade das
sanções penais.
→ Artigo 24.º/2 CRP – proibição da pena de morte;
→ Artigo 25.º/2 CRP – proibição de tortura;
→ Artigo 30.º/1 CRP – proibição de penas com carácter perpétuo ou indefinido;
→ Artigo 30.º/4 CRP – proibição da automaticidade das sanções acessórias –
articulação com o princípio ne bis in idem (artigo 29.º/5 da CRP)  dupla
valoração do mesmo conteúdo de ilicitude;
→ Princípio da culpa (artigo 1.º e 27.º CRP) – pressuposto da imputação penal:
➢ Não há pena sem culpa: ninguém pode ser punido se não for susceptível
de um juízo de censura  a medida da pena não pode ultrapassar a medida
desse juízo de censura (manifestações deste corolário – artigos 17.º/1, 35.º
e 37.º do CP);
➢ Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa: artigo 40.º/2
CP  culpa como critério de determinação da medida da pena (artigos
71.º e 72.º do CP).
➢ A moldura legal prevista para a incriminação reflecte os limites mínimos
e máximos do juízo de censura tipicamente associado à conduta descrita
no tipo de ilícito:
▪ Permite ao juiz adequar a medida concreta da pena em função do juízo
da culpa revelada pelo agente.
• REGIME DAS SANÇÕES PENAIS (artigo 41.º e ss. CP):
→ Não há pena sem crime, mas a condenação não leva sempre à aplicação de
uma pena (p.e., dispensa de pena – artigo 74.º/1 CP).

(7)
Atendendo ao carácter marcadamente descritivo desta parte da matéria, não se tratou destes pontos em
sede de aula prática. No entanto, será importante conhecer as bases legais relevantes neste contexto.

30
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

PENAS PRINCIPAIS PENAS ACESSÓRIAS


Aplicáveis de forma autónoma Não se aplicam autonomamente,
mas em articulação com uma
➢ Prisão (artigos 41.º a 46.º
pena principal (artigo 65.º e ss. CP)
CP)
o Em regra, duração ➢ Proibição de exercício de
mínima: 1 mês; função (artigo 66.º CP);
o Em regra, duração ➢ Proibição de conduzir veículos
máxima: 20 anos (artigo com motor (artigo 69.º CP)


41.º/1 CP). (…)

➢ Multa (artigos 47.º a 49.º CP) ➢ Eventual


o Em regra, duração inconstitucionalidade da
mínima: 10 dias; aplicação de penas acessórias,
o Em regra, duração por violação do artigo 29.º/5 da
máxima: 360 dias (artigo CRP?
47.º/1 CP). o Tem-se entendido que
o Valor multa/dia: entre €5 apresentam uma
e €500 (artigo 47.º/2 CP). justificação diversa da pena
principal, prosseguindo
➢ Pena compósita alternativa finalidades próprias. Neste
≠ sentido, não constituem
➢ Pena compósita cumulativa uma repetição da mesma
valoração.
➢ Suspensão da pena de prisão
(artigo 50.º e ss. CP) ➢ ATENÇÃO: as penas acessórias
não podem ser automáticas
➢ Possibilidade de substituição (artigo 30.º/4 CRP).
de penas principais, em
certos casos (penas
substitutivas)
o a pena principal foi
aplicada, mas não é
executada.
o Prisão (artigos 43.º/1 e 3;
58.º/1 do CP);
o Multa (artigos 48.º/1 e 60.º/1
do CP).

31
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

• MEDIDAS DE SEGURANÇA (artigos 91.º e ss. CP)


→ Sistema de sanções jurídico-criminais de direito penal (artigo 40.º CP):
➢ Penas (princípio da culpa)
▪ Prisão (artigos 41.º e ss. CP);
▪ Multa (artigos 47.º e ss. CP).
➢ Medidas de segurança (perigosidade individual do delinquente – artigo
40.º/3 CP)
▪ Inimputáveis (= incapazes de culpa);
▪ Imputáveis (especial perigosidade que justifica a necessidade de
aplicação de uma medida de segurança)

Sistema dualista, dupla via ou binário: possibilidade de aplicação


cumulativa, ao mesmo agente, pelo mesmo facto, de uma pena e de uma
medida de segurança.

▪ Finalidades medidas de segurança (Figueiredo Dias):


o Primária: prevenção especial (socialização e segurança);
o Secundária: prevenção geral.
ATENÇÃO:
• Artigo 91.º/2 CP – internamento mínimo de 3 anos, em certos casos;
• Artigo 92.º/3 CP – possibilidade de prorrogação do internamento (artigo 30.º/2 CRP);
• Artigo 93.º/2 CP – apreciação obrigatória decorridos 2 anos;e
• Artigos 98.º e 99.º CP – suspensão da execução do internamento e regime de execução.

• COIMA ≠ PENA DE PRISÃO/MULTA Jurisdicionalidade

Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro


• Sanção exclusivamente patrimonial (artigo 17.º);
• Não se liga à personalidade do agente e à sua atitude interna; serve como mera
admonição, como especial advertência ou reprimenda;
• Efeito da falta de pagamento: execução da soma devida (artigo 89.º); não é susceptível
de conversão em prisão subsidiária, como sucede com a multa criminal (artigo 49.º);
• O artigo 89.º-A permite a substituição da coima por prestação de trabalho a favor da
comunidade, a requerimento do condenado.
32
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

• SANÇÕES DISCIPLINARES (públicas): esgotam a sua função e finalidade no


asseguramento da funcionalidade, da integridade e da confiança do serviço
público; não prosseguem uma finalidade primária de prevenção geral, mas apenas
de prevenção especial; constitui a violação de um dever funcional; não tem que
ser aplicada por um juiz; não se transforma em prisão (medida disciplinar é
cumulável com a sanção penal).

• REPARAÇÃO COMO TERCEIRA VIA?


→ Possível concertação entre o agente e a vítima, através da reparação dos danos
causados pelo crime;
→ Referências à reparação no CP: 51.º/1; 74.º/1b); 206.º/1 e 2;
→ CLAUS ROXIN: procura erigir um sistema tripartido de sanções (penas, medidas
de segurança e reparação dos danos);
→ Emergência do paradigma político-criminal da restorative justice;
→ FIGUEIREDO DIAS: a concertação agente-vítima só poder ter o sentido de
contributo para o restabelecimento da confiança e da paz jurídica, o que se
reconduz aos ditames da prevenção geral positiva;
→ HELENA MORÃO: a reparação não tem, propriamente, uma finalidade diferente
da pena:
➢ É uma reparação do mal do crime;
➢ Confronto com a vítima: prevenção da reincidência;
➢ Autor – vítima: se o agente e a vítima estiverem de acordo, na medida da
reparação, os fins de prevenção geral positiva estarão, em princípio,
satisfeitos.
➢ Possibilidade de encarar a reparação como consequência autónoma do
crime?
o Preocupação com a vítima (prepondera sobre o mal do crime);
o Desvio ao monopólio punitivo do Estado;
o Autonomia (o próprio agente aceita a punição).

33
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Lei 21/2007 de 12 de Junho – Regime da Mediação:


➢ Preocupação processual com a vítima (envolvência da vítima na
determinação da solução justa);
➢ Até certo ponto, escapa à lógica do monopólio do Estado na aplicação do
processo penal;
➢ Propõe a consideração de novas finalidades para o direito penal.

12. Funções do Direito Penal no Estado de Direito democrático e social: os


princípios constitucionais de Direito Penal (legalidade, culpa, necessidade das
penas e das medidas de segurança, igualdade, humanidade e socialidade).

• O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DE A INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO


PENAL(8)
→ Intrinsecamente ligado à ideia de conceito material de crime = função de tutela
subsidiária de bens jurídico-penais;
→ A utilização pelo Estado de meios penais deve ser limitada / excepcional, só
se justificando pela protecção de direitos fundamentais (limite substancial do
Direito Penal; secundarização dos meios penais na resolução dos problemas
sociais) – subordinar a intervenção penal do Estado à realização de fins
necessários à subsistência e desenvolvimento da sociedade;
→ Carência de protecção penal do bem jurídico – não pode haver outro meio
menos restritivo da liberdade, que se revele tão ou mais eficaz na protecção do
bem jurídico;
➢ MARIA FERNANDA PALMA:
▪ Probabilidade elevada de que se produza o efeito de protecção do bem
jurídico = eficácia concreta da incriminação;

(8)
Uma vez mais, tratando-se de uma matéria eminentemente descritiva, estes princípios não foram tratados
à exaustão, no contexto de aula prática. Todavia, para compreensão da estrutura do direito penal, será
essencial conhecer o respectivo conteúdo.

34
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Não devem estar disponíveis meios menos gravosos do que as penas


públicas para assegurar essa protecção = falta de alternativas à
penalização da conduta – meios penais indispensáveis, não existindo
outros meios sociais capazes de evitar determinados comportamentos
(subsidiariedade);
▪ Não deve haver efeitos colaterais que neutralizem ou contrariem as
vantagens da incriminação.
→ A pena pode ficar aquém da medida da culpa – pode não ser necessário ir
até à medida da culpa, quando uma pena menos gravosa se mostrar suficiente
para tutelar o bem jurídico lesado ou colocado em perigo.
→ Os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade encontram-se
simbioticamente ligados, conhecendo consagração legal no artigo 18.º/2 da
CRP;
→ No entanto, poderá considerar-se que a ideia de subsidiariedade abrange o
direito penal como um todo, traduzindo uma característica genérica do sistema
criminal;
→ Equivale isto a afirmar que o princípio da subsidiariedade se manifesta
principalmente através da ideia de tutela subsidiária de bens jurídicos, inerente
à concepção teleológico-racional proposta no âmbito das teorias relativas ao
conceito material de crime;
→ Nesse sentido, justifica-se aludir à noção de fragmentariedade do direito penal
em articulação com este princípio: como explica FARIA COSTA, tal
fragmentariedade traduz-se em dois graus distintos:
➢ Num primeiro grau, reflecte o entendimento de que o direito penal protege
apenas alguns bens jurídicos – aqueles que são dotados de dignidade
penal;
➢ Num segundo grau, sublinha a circunstância de que apenas certas lesões
dos bens jurídicos reclamam a intervenção penal, i.e., que nem todos os
ataques aos bens jurídicos impõem a aplicação de uma sanção criminal;

35
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Neste contexto, e na sequência da referida ideia de fragmentariedade de


segundo grau, cumpre aludir ao princípio da ofensividade (harm principle),
que sublinha que apenas os comportamentos que ofendam bens jurídicos –
lesando-os ou colocando-os em perigo – poderão ser legitimamente
criminalizados.

• O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUAS DECORRÊNCIAS

→ Num sentido mais lato, o princípio da proporcionalidade consubstancia a


proibição do excesso na aplicação de sanções criminais;
→ Este decorre do teor do artigo 18º/2 da CRP e pode considerar-se que se divide
em três outros subprincípios:
1) Adequação;
2) Necessidade;
3) Proporcionalidade em sentido estrito.
1) Adequação – restrição de direitos fundamentais
→ A pena é a mais grave restrição dos direitos fundamentais que se encontra ao
dispor do Estado;
→ Esta restrição de direitos fundamentais deve limitar-se à medida do necessário
para salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos, isto é, os bens
jurídicos com dignidade penal;
→ Logo, a pena tem que ser adequada e eficaz para a protecção destes bens
jurídico-penais;
→ Neste âmbito, importa atentar novamente ao princípio da ofensividade, no
sentido de que a aplicação de uma pena só será adequada quando a conduta
sancionada tiver efectivamente lesado o bem jurídico tutelado;
➢ Assim, muito embora possa estar prevista a criminalização da conduta,
esta só deve ser punida se o comportamento for ofensivo para o bem
jurídico;
➢ Por outro lado, este critério da ofensividade explica que não se pode
penalizar uma pessoa, por muito más intenções que tenha, se não ocorrer
uma efectiva lesão – ou colocação em risco – do bem jurídico.

36
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

2) Necessidade (da pena) – artigo 18.º/2 CRP


→ Não basta a pena ser adequada, também tem que ser necessária;
→ Não pode existir um meio alternativo que seja tão ou mais eficaz na protecção
do bem jurídico;
→ Articulação com a ideia de carência de tutela penal referida a propósito do
princípio da proporcionalidade(9), de forma a verificar se existem alterativas
menos gravosas à pena;
→ Desta forma, o subprincípio da necessidade da pena poderá não justificar a
adopção de uma pena concreta que corresponda integralmente à medida da
culpa;
→ Em suma, a conclusão pela necessidade da pena resulta de considerações de
eficácia e subsidiariedade.
3) Proporcionalidade em sentido estrito
→ Esta vertente do princípio da proporcionalidade deverá ser articulada com uma
lógica de igualdade e ainda com o princípio da culpa, referindo-se à exigência
de um equilíbrio (proporção), entre a gravidade da pena e a gravidade do
comportamento empreendido;
→ Em consequência, não se pode aplicar uma pena muito grave a uma conduta
considerada pouco gravosa (princípio da culpa e necessidades preventivas);
→ Se o comportamento for considerado pouco danoso para o bem jurídico - ou
ainda se o bem jurídico tutelado for entendido como de menor importância -
deve ser aplicada uma pena menos gravosa;
→ Paralelamente, as penas mais gravosas devem ser reservadas para os casos
em que a conduta do agente merece um elevado grau de censura;
→ No fundo, a aplicação da pena deverá obedecer a uma lógica de igualdade e
culpa.

(9)
Cfr. supra, os critérios indicados pela Professora MARIA FERNANDA PALMA a este propósito: eficácia
concreta da incriminação, falta de alternativas à penalização da conduta e inexistência de efeitos colaterais
que neutralizem ou contrariem as vantagens da incriminação.

37
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ O princípio da subsidiariedade e o princípio da proporcionalidade interligam-


se:
➢ Enquanto o primeiro se relaciona com Direito Penal em termos globais ‒
e com o conceito material de crime ‒, o princípio da proporcionalidade
está mais ligado à pena, à sua necessidade e adequação para a protecção
dos bens jurídicos.

• O PRINCÍPIO DA CULPA (deduzido da dignidade da pessoa humana – artigo 1.º da


CRP, e do direito à liberdade – artigo 27.º da CRP; factor de determinação da
medida da pena – artigos 40.º/2, 71.º e 72.º do CP)

→ MARIA FERNANDA PALMA: este princípio não é objecto de uma formulação legal
tão nítida como o princípio da legalidade;
→ O princípio da culpa assume um tríplice significado:
1) Como fundamento da pena;
2) Como factor de determinação da medida da pena;
3) Como princípio da responsabilidade subjectiva.
1) Princípio da culpa como fundamento da pena
→ Não é unânime:
→ Argumento principal: o princípio da culpa pressupõe uma ideia de
responsabilidade penal alheia aos fins de Estado de Direito democrático e
social - não é racional atribuir à culpa a função de legitimar a realização dos
fins do Estado;
→ Direito Penal é legítimo porque os seus comandos e proibições tal como o
processo que conduz à sua aplicação, realizam ideias culturais de
justiça/expectativas da sociedade;
→ Esta afirmação pressupõe a relação do princípio da culpa com a ideia de
justiça: o princípio só pode ser fundamento da pena no pressuposto da
realização de justiça:
➢ Censurabilidade ético-pessoal não torna a pessoa num instrumento do
poder ou da sociedade:

38
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Dignidade da pessoa humana;


▪ Kant: pessoa tem que ser tomada como um fim em si mesma.
➢ Só a censurabilidade ético-pessoal permite a discussão do acusado com o
poder:
▪ Realização da justiça através de um processo em que a sociedade e
acusado se defrontam como partes de um conflito

▪ O princípio da culpa passa a assumir uma função de segurança jurídica –


torna-se um princípio restritivo (mas a relação entre o princípio da culpa
e a ideia de justiça ultrapassa o papel restritivo). O princípio da culpa
torna-se ainda a expressão do direito natural, “a cada um o que lhe é
devido”.

2) Princípio da culpa como factor de determinação da medida da pena


→ Não se refere a um critério quantitativo;
→ Maior possibilidade de chegar a comparações entre comportamentos e agentes
através da referência à ideia de culpa do que através de outros critérios, como
os que são próprios da prevenção geral (como reforço da vigência de normas
e segurança).

→ FIGUEIREDO DIAS
→ Quando menciona a discussão acerca das teorias absolutas, refere-se ao facto
de que em última análise o que está em causa, é “tratar o homem segundo a
sua liberdade e a sua dignidade pessoais”, e tudo conduz directamente ao
princípio da culpa como máxima do Direito Penal humano.
➢ “Não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso
algum exceder a medida da culpa”
➢ Atribui mérito às doutrinas absolutas: concepção retributiva teve o mérito
irrecusável de ter erigido o princípio da culpa em princípio absoluto de
toda a aplicação da pena e ter levantado um “veto incondicional à
aplicação de uma pena criminal que viole eminentemente a dignidade da
pessoa”;

39
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ “A culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento da pena” (≠ Professora


Fernanda Palma)
→ Refere-se à prevenção geral positiva como prevenção de integração de tutela
da confiança geral na validade e vigência das normas:
➢ Pena justa e adequada à culpa do delinquente
➢ Medida concreta da pena a aplicar a um delinquente deve ter limites
inultrapassáveis ditados pela inviolável dignidade pessoal.
→ Culpa como limite e pressuposto da pena
➢ A função da culpa reside no sistema punitivo como:
▪ Uma incondicional proibição do excesso;
▪ A culpa não é fundamento da pena, mas constitui o seu pressuposto
necessário;
➢ Culpa estabelece o máximo da pena ainda compatível com as exigências
da preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre
desenvolvimento da sua personalidade, nos quadros próprios de um
Estado de Direito Democrático;
→ Menciona ROXIN – as razões de diminuição da culpa, determinam, no caso
concreto, as exigências de tutela dos bens jurídicos e estabilização das normas.
→ Dispensa que a ideia de legitimação da pena repousa no duplo fundamento de
prevenção e culpa.
→ A culpa é o pressuposto indispensável e limite inultrapassável da pena.

• O PRINCÍPIO DO «FACTO» E AS MANIFESTAÇÕES DO DIREITO PENAL DO AGENTE

→ Não está previsto na CRP mas decorre dos princípios da legalidade (artigo 29.º
CRP), da culpa, da ofensividade e da necessidade da pena, contrapondo-se ao
direito penal do agente;
→ O crime tem de ser um facto objectivo e com existência na realidade exterior,
como um comportamento certo e determinado;

40
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Impõe-se, por isso, uma proibição de punição de atitudes, desejos ou estados


de espírito (estes momentos subjectivos podem interessar apenas para
concretizar o facto objectivo em causa);
→ Só se pode restringir a liberdade das pessoas depois de já ter sido praticado o
comportamento que constitui o ataque aos bens jurídicos;
→ Assim, se o comportamento lesivo já tiver sido iniciado, admite-se uma
eventual actuação defensiva, como por exemplo no caso da legítima defesa
(artigo 32.º do CP);
→ Em paralelo, este princípio sustenta a previsão do artigo 21.º do CP, que
estabelece a regra da não punibilidade dos actos preparatórios;
→ De acordo com FIGUEIREDO DIAS, todo o direito penal é direito penal do facto
e não do agente, o que se repercute em duas dimensões:
➢ Toda a regulamentação jurídico-penal liga a punibilidade a tipos de factos
e à sua natureza, e não a tipos de agentes e às características da sua
personalidade;
➢ As sanções aplicadas ao agente constituem consequências desses factos e
fundamentam-se nelas, não são formas de reacção contra certa
personalidade ou tipo de personalidade.
→ Pode-se assim dizer, segundo esta acepção, que a construção dogmática do
conceito de crime é em última análise, a construção de facto punível.

→ OS PRINCÍPIOS DA TOLERÂNCIA E DA HUMANIDADE DAS PENAS


→ Ideia de responsabilidade social pela delinquência e disposição de respeitar e
recuperar a pessoa do delinquente;
→ Desta forma, são rejeitadas sanções atentatórias do respeito pela pessoa
humana, tais como:
➢ Pena de morte (artigo 24.º/2 da CRP);
➢ Prisão perpétua (artigo 30.º/1 da CRP);
➢ Tortura e penas cruéis e degradantes (artigo 25º/2 da CRP).

41
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ A humanidade é, deste modo, expressão da dignidade da pessoa humana;


como tal, constitui um limite aos objectivos da política criminal.

4. Princípio da legalidade e reserva de lei. 5. Princípios sobre a interpretação da lei


penal. Proibição da analogia incriminadora. A questão da interpretação da lei penal.
6. Princípio da legalidade e configuração das normas penais: tipicidade e precisão.

Objectivos: conhecer os fundamentos do princípio da legalidade penal e os respectivos


corolários; compreender as suas consequências e aplicações práticas. Compreender a
exigência de determinabilidade da lei penal e a relação com o problema das normas penais
em branco. Resolver hipóteses.

→ O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (artigo 29.º da CRP; artigo 1.º do CP)


→ Impõe uma submissão da intervenção penal a certos requisitos, com vista a
evitar a intervenção estadual arbitrária ou excessiva;
→ Constitui, assim, uma exigência de utilização de padrões legais para a
qualificação de um facto como merecedor de sanção penal, e para a aplicação
dessa mesma sanção;
→ Nesse sentido, pretende garantir uma vinculação total do acto de aplicação de
uma sanção no caso concreto, a uma decisão previamente tomada pelo
legislador;
→ Princípio nullum crimen, nulla poena sine lege: não pode haver crime nem
pena que não resultem da lei; a lei deve ser prévia, escrita, estrita e certa.
➢ Prévia: a lei tem que ser anterior à prática do facto, pois o agente tem de
se poder motivar pela norma (artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP; artigo 1.º/1 do
CP);
➢ Escrita: exigência de lei formal, ou seja, Lei da Assembleia da República
ou Decreto-Lei devidamente autorizado (artigo 165.º/1 c) da CRP);

42
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Estrita: só é valorizado o que consta da lei; só será considerada típica a


conduta que se encontre descrita na norma; daqui resulta a proibição da
analogia em Direito Penal (artigo 29.º/1 e 3 da CRP; artigo 1.º/3 do CP).
➢ Certa: a previsão da norma tem de ser determinável, ou seja, o conteúdo
das normas penais tem de revelar um elevado grau de determinação na
descrição das condutas incriminadas e das respectivas consequências
(artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP).

→ Fundamentos do princípio da legalidade


➢ Externos: ligados à concepção fundamental do Estado:
▪ Princípio Liberal – traduz a ideia de que toda a actividade
intervencionista do Estado na esfera dos direitos, liberdades e garantias
tem de ligar-se à existência de uma lei geral, abstracta e anterior (artigo
18.º/ 2 e 3 da CRP).
▪ Princípio Democrático e princípio da separação de poderes – exprimem
a ideia de que para a intervenção penal só se encontra legitimada a
instância que represente o Povo como titular último do ius puniendi; ou
seja, há uma exigência de lei formal emanada do Parlamento ou por este
competentemente autorizada (artigo 165.º/ 1c) da CRP).
➢ Internos: de natureza especificamente jurídico-penal:
▪ Através da prevenção geral e do princípio da culpa entendemos que não
pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do
comportamento da generalidade dos cidadãos se estes não puderem
saber, através de lei prévia, estrita e certa, por onde passa a fronteira que
separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis;
▪ Consequentemente, a lei tem de ser anterior ao crime para que o autor
possa orientar a sua conduta pois só assim merece ser punido.

→ O princípio da legalidade assume consequências ou efeitos em cinco planos:


➢ Plano do âmbito ou da extensão: o princípio da legalidade não cobre
toda a matéria penal, apenas a que se traduza em fundamentar ou agravar
a responsabilidade do agente;

43
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Plano da fonte: exigência de lei formal, ou seja, lei da AR ou decreto-lei


autorizado (artigo 165.º/ 1c) da CRP);
➢ Plano da determinabilidade: importa que a descrição da matéria
proibida ‒ e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto
uma punição ‒ seja levada até um ponto em que se tornem objectivamente
determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e,
consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a
conduta dos cidadãos;
➢ Plano da proibição da analogia: o julgador não pode “reescrever a
norma”; não só por uma questão de segurança jurídica mas também tendo
em conta os ditames do princípio da culpa (artigo 29.º/1 e 3 da CRP; artigo
1.º/3 do CP).
➢ Plano da proibição da retroactividade: a proibição da retroactividade
funciona apenas a favor do agente; por isso, vale relativamente a todos os
elementos da punibilidade, à limitação de causas de exclusão, justificação
ou diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime, qualquer
que seja a sua espécie.

→ Princípio da legalidade (artigo 29.º da CRP; artigos 1.º e 2.º do CP):


➢ A lei tem um primado como fonte do direito penal português: reserva
relativa de competência (artigo 165.º/ 1c) da CRP;
▪ Lei como resultado de um conjunto de procedimentos, constituindo
normas jurídicas gerais e abstractas, oriundas de um órgão com poder
legislativo → condicionador do próprio critério de decisão;
➢ Excepcionalmente, admitem-se outras fontes:
▪ Artigo 29.º/2 da CRP – princípios gerais de direito internacional
comummente reconhecidos = costume internacional também pode ser
fonte de direito penal:
 Convicção generalizada na sociedade internacional sobre o
carácter criminoso de certas condutas Vs. “legalidade criminosa”;

44
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

 Limites da lei interna (artigos 40.º a 46.º do CP); penas concretas


em observância da conexão crime-pena;
➢ Reserva de lei (artigo 29.º da CRP) – impõe uma conexão estrita entre o
crime e a pena:
▪ Estado de Direito Democrático;
▪ Princípio liberal;
▪ Separação de poderes;
▪ Direitos, liberdades e garantias.
→ Costume de direito internacional (artigo 8.º/1 da CRP);
→ Convenções internacionais (artigo 8.º/2 da CRP);
→ Direito da União Europeia (artigo 8.º/4 da CRP);
→ Jurisprudência e doutrina relevam sobretudo como fontes de conhecimento do
direito.

o AS FONTES E A DETERMINABILIDADE DA LEI PENAL; O PROBLEMA DA NORMAL


PENAL EM BRANCO

→ Lei certa: clara, precisa e determinável – previsão e segurança dos


destinatários do comando;
→ Rui Patrício: são um exemplo de um tipo aberto, ou seja, que não descreve de
modo completo o comportamento proibido, transferindo para o intérprete o
encargo de o interpretar:
→ Potenciais problemas de lei certa e de reserva de lei: impõe-se verificar da
existência de um critério autónomo de ilicitude.

 Análise de acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ, datado de 25 de


Junho de 2008, processo n.º 07P1008 – Conselheiro Carmona da Mota

→ Enquadramento normativo:
➢ Artigo 40.º/1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro (“DL 15/93”): «quem
consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas,

45
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido


com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias»;
➢ Artigo 40.º/2 do DL 15/93: «se a quantidade de plantas, substâncias ou
preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a
necessária para o consumo médio individual durante o período de 3
dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias»;
➢ Artigo 2.º/1 da Lei 30/2000 de 29 de Novembro (“Lei 30/2000”): «o
consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas,
substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no
artigo anterior constituem contra-ordenação»;
➢ Artigo 2.º/2 da Lei 30/2000: «para efeitos da presente lei, a aquisição e
a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número
anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo
médio individual durante o período de 10 dias».
➢ Artigo 28.º da Lei 30/2000: «são revogados o artigo 40.º, excepto quanto
ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem
como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente
regime».
→ Problema: que enquadramento terão as situações de consumo e de aquisição
ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para
o consumo médio individual durante o período de 10 dias?
→ Soluções possíveis:
1) Constituem uma contra-ordenação, nos termos do disposto no artigo
2.º/1 da Lei 30/2000 – posição adoptada pelo acórdão fundamento,
proferido pelo TRP em 18 de Outubro de 2006;
2) Continuam a reconduzir-se ao crime de consumo, nos termos do disposto
no artigo 40.º/2 do DL 15/93 – posição adoptada pelo acórdão recorrido,
proferido pelo TRP em 22 de Novembro de 2006;
3) Devem ser analisadas à luz do crime de tráfico, p.e.p. pelos artigos 21.º e
ss. do DL 15/93;

46
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

4) Não poderão ser reconduzidos a nenhuma das opções anteriores, por


ausência de norma incriminadora.

1) CONTRA-ORDENAÇÃO
→ Lei 30/2000 – necessidade de descriminalização do consumo:
➢ Separação consumo (contra-ordenação) e tráfico (crime); e
➢ Sentido global e irrestrito (descriminalização de todo o consumo)
→ Princípio da legalidade (artigo 29.º/1 da CRP): exigência de lei escrita, estrita,
prévia e certa:
➢ Certeza, clareza ou previsibilidade da estatuição
▪ Clara, precisa, acessível e previsível;
▪ Legislador deve fixar os limites entre os comportamentos permitidos e
proibidos (previsibilidade da condenação por certo comportamento);
▪ Esta previsibilidade depende, em larga medida, do conteúdo do texto em
causa;
➢ FIGUEIREDO DIAS: esquecimentos/lacunas/deficiências de
regulamentação funcionam contra o legislador, a favor da liberdade;
➢ Proibição da analogia (artigo 1.º/3 do CP) – interpretação permitida
(teleologicamente fundada; funcionalmente justificada);
→ Artigos 2.º/1 e 2 e 28.º Lei 30/2000:
➢ Disfunção normativa ou vazio sancionatório:
▪ Tipicidade/legalidade/não retroactividade in malam partem e proibição
de analogia impedem a recondução aos artigos 21.º ou 25.º (tráfico):
▪ O consumo nunca fora punido no contexto do 21.º, portanto esta hipótese
traduziria uma aplicação analógica de normas incriminadoras
expressamente proibida pelo artigo 29.º/1 e 3 da CRP e pelo artigo 1.º/3
do CP;
▪ Para além disso, não faria sentido que um agente que detivesse 11 doses
fosse agora punido com uma pena de 1 a 5 anos – quando o artigo 40.º/2

47
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

do DL 15/93 previa uma pena de prisão até 1 ano ou até 120 dias de multa
– num contexto de desagravamento do consumo;
→ Impossibilidade de enquadrar estas condutas no crime do artigo 40.º/2 do DL
15/93:
➢ Interpretação restritiva da norma revogatória (artigo 28.º da Lei 30/2000)
– redução teleológica: princípio da legalidade opõe-se, por causa da
revogação expressa operada:
1) Esta construção interpretativa não respeita a função de garantia do
princípio da legalidade, que exige a qualidade da lei, previsibilidade e
acessibilidade: perceber as consequências sancionatórias de uma acção
ou omissão;
▪ O requisito da qualidade da lei refere-se à necessidade de a norma
descrever, de um modo preciso e não susceptível de interpretações
díspares, a natureza, o âmbito e o círculo material da conduta proibida;
2) O artigo 28.º da Lei 30/2000 é peremptório, directo e com alcance
imediatamente apreensível:
▪ A revogação expressa de uma norma penal incriminadora não é
compatível, na perspectiva de garantia plena do princípio da legalidade
penal, com uma interpretação que privilegie uma (possível) compreensão
no plano sistémico, contrariando, pelo mecanismo interpretativo de
compatibilidade (óptima) de sistemas, o efeito da revogação expressa;
▪ Ao encurtarmos o sentido e alcance da revogação, provocamos uma
extensão que faz permanecer parte da norma incriminadora, apesar da
revogação, contrariando decisivamente o conteúdo essencial do princípio
de aplicação in melius em casa de sucessão de leis sancionatórias; opera-
se, por esta via, uma ampliação da incriminação que afecta a legalidade
material;
▪ Este exercício metodológico corresponde, por isso, a uma extensão da
norma revogada, que seria determinada pela teleologia que uma
particular concepção do intérprete considerasse presente no plano do

48
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

legislador, ao formular a sequência normativa na execução de uma ideia,


directamente expressa, de política legislativa:
o Esta concepção teleológica não é patente;
o A consequente extensão teleológica é inadmissível (adensa a
dimensão penal de comportamentos, enfraquecendo e encurtando o
princípio da legalidade).
3) Esta construção parte de um modelo imaginado, que não correspondia
ao modelo da construção típica, dogmática e valorativa do artigo 40.º:
▪ Esta norma não previa um crime de perigo, muito menos abstracto, em
relação às quantidades detidas ou adquiridas para consumo (essas
quantidades só relevavam para efeitos de determinação das molduras
penais aplicáveis, consoante o maior ou menor dano potencial para o
consumidor);
▪ Assim, esta interpretação procede à criação de um novo crime, que
materialmente se reconduz a um crime de tráfico;
4) Esta hipótese parte do pressuposto que não foi contemplada a totalidade
do plano normativo e que se verificaria uma imperfeição ou
incompletude na regulamentação;
▪ Se assim fosse – e, como tal, estivéssemos perante uma lacuna – ao
intérprete sempre estaria vedada a possibilidade de determinar a natureza
ou o conteúdo do esquecimento do legislador;
→ Estas condutas devem ser consideradas contra-ordenação, se a finalidade
exclusiva demonstrada for o consumo privado próprio; o artigo 2.º/2 da Lei
30/2000 permite a recondução ao crime de tráfico, mediante prova da
intenção.

2) CRIME (artigo 40.º/2 do DL 15/93)


→ Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga (ENLCD)

49
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Descriminalização do consumo de drogas e respectiva recondução a um


ilícito de mera ordenação social, que levou à alteração do artigo 40.º (≠
revogação);
➢ Não se tratou de legalizar ou despenalizar, mas apenas de substituir a
proibição através de um ilícito criminal pela proibição através de um
ilícito de mera ordenação social;
➢ A manutenção da proibição era imperativa: evitar o previsível aumento
do consumo, sobretudo entre os menores, devido à maior acessibilidade;
concentrar os esforços no combate ao tráfico; cumprir compromissos
internacionais;
➢ Ilícito administrativo como sanção mais adequada, em termos de eficácia,
racionalização e optimização de meios;
➢ O Estado deve conservar o desvalor legal que possa dissuadir
comportamentos potencialmente prejudiciais para a saúde e a segurança
públicas, bem como para a saúde dos menores, e deixar intocados os
mecanismos que permitem às autoridades intervir onde a autoridade dos
educadores não chega, e perseguir eficazmente o tráfico;
→ Lei 30/2000
➢ Artigo 2.º/2 – norma definidora e limitativa do pressuposto formal típico
integrante do ilícito contra-ordenacional;
➢ CRISTINA LÍBANO MONTEIRO: diploma define/qualifica dogmaticamente
a conduta descrita: a contra-ordenação refere-se ao consumo/aquisição ou
detenção para consumo próprio de certas substâncias, distinguindo-a do
tráfico por referência ao fim do agente (intenção específica) e às
quantidades;
➢ O projecto inicial desta lei não previa um limite à quantidade de droga
para consumo;
➢ Posteriormente, introduziu-se essa menção no número 2 do artigo 2.º:
▪ De acordo com SOUTO DE MOURA, daqui resultam duas consequências:
1) Não poderá estar em causa a mesma contra-ordenação,
independentemente das quantidades, uma vez que dessa forma
50
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

estaríamos a proceder a uma interpretação abrogatória do artigo 2.º/2


da Lei 30/2000, cuja redacção é clara e categórica;
2) Não será possível invocar a previsão do artigo 2.º/2 da Lei 30/2000
para defender a despenalização de todas as condutas, visto que desse
modo a interpretação abrogatória abrangeria os números 1 e 2 do
preceito;
➢ Todavia, não se adaptou a redacção do artigo 28.º da Lei 30/2000 → esta
redacção não afecta a criminalização da aquisição e detenção referidos no
artigo 2.º, em quantidade superior à necessária para o consumo médio
individual durante o período de 10 dias;
➢ Logo, a restrição do artigo 2.º/2 terá que se repercutir em toda a lei,
incluindo o respectivo artigo 28.º, mantendo a criminalização prevista no
artigo 40.º/2 do DL 15/93;
➢ CRISTINA LÍBANO MONTEIRO: lógica e teleologia do regime; a teia
garantística não pretende dar lugar a vazios de punição; haverá que
“buscar o direito através da lei”; deve-se evitar desfasamentos
sancionatórios indesejáveis e, provavelmente, não queridos;
➢ Ademais, a lei derrogada diferenciava claramente as situações de
consumo e de tráfico (critério compósito de intenção e quantidade):
▪ Tráfico (artigo 21.º e ss.) – pena de prisão de 1 a 5 anos;
▪ Consumo/aquisição/detenção superior a certa quantidade (artigo 40.º/2)
- pena de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias;
▪ Consumo/ aquisição/detenção até certa quantidade (artigo 40.º/1) – pena
de prisão até 3 meses ou de multa até 30 dias;
➢ Na Lei 30/2000, mantém-se o critério da quantidade: 10 dias dose média
individual = contra-ordenação;
➢ 11 doses diárias, para consumo próprio – é crime, que crime?
▪ O artigo 40.º do DL 15/93 foi revogado (artigo 28.º da Lei 30/2000);
▪ O artigo 40.º funcionava como elemento excludente do crime de tráfico
(artigo 21.º do DL 15/93) → substitui-se pelo artigo 2.º da Lei 30/2000?

51
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ 11 doses diárias passa a ser tráfico?


▪ Argumento sistemático: não faria sentido que, no contexto de uma lei
descriminalizadora, esta situação fosse tratada de forma mais gravosa do
que no âmbito do regime anterior;
▪ Assim, será mais consequente com o espírito do diploma interpretar
restritivamente o artigo 28.º da Lei 30/2000: (i) mantém-se em vigor o
artigo 40.º/2 do DL 15/93, como forma de delimitar negativamente o
tráfico (a quantidade não transforma o consumidor em traficante); (ii) é
mais favorável ao arguido porque limita a pena a 1 ano de prisão ou a
multa até 120 dias)(10);
▪ A única forma de conciliar o objectivo legal com o texto imperfeito do
artigo 28.º da Lei 30/2000 será, nos termos do artigo 9.º/3 do CC,
confinar a revogação do artigo 40.º ao contexto do diploma;
▪ Dessa forma, o artigo 40.º/2 do DL 15/93 permanecerá em vigor, não só
quanto ao cultivo, mas também quando estejam em causa quantidades
superiores às 10 doses médias individuais;
▪ Motivo: perigo de a droga adquirida para consumo próprio, quando
superior às necessidades pessoais mais urgentes, vir a ser proporcionada
a outrem.
→ Justificação da criminalização da aquisição e detenção excessivas
➢ MARIA FERNANDA PALMA: necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP);
intervenção mínima do direito penal; relevância ética prévia das condutas:
culpa como factor de inibição;
▪ O consumo generalizado de estupefacientes produz danos sociais graves
que reclamam a intervenção do Estado:
▪ Consumo como problema social + consumidor como doente ou potencial
doente → justificação da tutela penal: incriminação de condutas que

(10)
Contra, FARIA COSTA, que refere não encontrar nenhuma razão que tivesse levado o legislador a querer
continuar a punir como crime, em função de um critério meramente quantitativo, uma conduta que decidiu
despenalizar. No entanto, opõe-se a este argumento a circunstância de não se ter tratado de uma
despenalização irrestrita, justificando-se, por isso, a previsão do artigo 2.º/2 da Lei 30/2000.

52
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

fomentem ou possibilitem o consumo (carência de tutela penal no


cumprimento pelo consumidor de certos deveres, e não do próprio facto
do consumo);
▪ Possibilidade de outras pessoas acederem à droga;
▪ Tráfico: relação de exploração de outros seres humanos;
▪ Distinção entre tráfico, consumo e aquisição e detenção de quantidades
excessivas evita uma presunção inilidível de tráfico, admitindo-se a
prova da intenção exclusiva para consumo próprio;
▪ Redução teleológica: evita um vazio sancionatório, que atendendo aos
princípios da igualdade e da proporcionalidade, só poderá ser dirimido
desta forma;
▪ Adicionalmente, afigura-se manifesto que o artigo 2.º/2 da Lei 30/2000
contém uma proibição forte; concluir que nesse caso se deve alargar
contra legem o ilícito contra-ordenacional constitui uma violação
princípio da legalidade, tal como previsto no artigo 2.º do Decreto-Lei
433/82 de 27 de Outubro;
→ Estas condutas devem ser consideradas crime, visto que «não obstante a
derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o
artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor
não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para
consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas
tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio
individual durante o período de 10 dias».

 Análise do acórdão do Tribunal Constitucional, número 79/2015 datado de 28 de


Janeiro, processo n.º 495/13 – Conselheiro Fernando Ventura(11)

→ Enquadramento:

(11)
Tal como o anterior, este acórdão não foi tratado no contexto das aulas práticas, mas deve ser
devidamente examinado, em articulação com o acórdão uniformizador de jurisprudência supra indicado.

53
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ MP acusou o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes


de menor gravidade (artigo 25.º/a) do DL 15/93);
➢ 1.ª Instância: absolveu o arguido do crime de que vinha acusado,
condenando-o pelo crime de detenção de estupefacientes para consumo
p.e.p. pelo artigo 40.º/2 do DL 15/93;
➢ Recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que manteve a condenação;
➢ Recurso para o Tribunal Constitucional: inconstitucionalidade da
aplicação do artigo 40.º/2 do DL 15/93:
➢ Revogação pelo artigo 28.º da Lei 30/2000 – violação nullum crimen sine
lege (lei anterior que puna a conduta) e violação do artigo 9.º do Código
Civil, proibição de analogia e integração de lacunas;
→ Apreciação pelo Tribunal Constitucional (controlo normativo do processo
interpretativo);
➢ Consumo: lugar à parte, privilegiado, particulares finalidades jurídico-
penais;
➢ Artigo 40.º do DL 15/93: delimitação negativa do tráfico (≠ consumo);
➢ ENLCD: descriminalização do consumo – princípio humanista
(subsidiariedade, ultima ratio do direito penal);
➢ Manter proibido o consumo e aquisição e de detenção com essa
finalidade;
➢ A questão suscitada poderá ser solucionada de 3 formas: (i) recondução
ao crime de tráfico; (ii) interpretação extensiva do artigo 2.º/1 da Lei
30/2000, enquadrando-a no contexto do ilícito contra-ordenacional; (iii)
manter a punibilidade a título de ilícito criminal, nos termos do artigo
40.º/2 do DL 15/93;
1) Quanto à primeira possibilidade, o TC julgou pela não
inconstitucionalidade desta opção, no acórdão número 295/03; de forma
sintética, o TC entendeu que, numa ponderação de proporcionalidade,
seria plausível o risco de a mencionada conduta levar à introdução da
droga no círculo social ou de acessibilidade a outrem; sublinhou ainda

54
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

que esta problemática constitui um verdadeiro flagelo, que exige


medidas de prevenção adequadas;
▪ Actualmente, o TC parece não concordar com esta perspectiva, sugerindo
que esta interpretação violaria o princípio da necessidade da pena (artigo
18.º/2 da CRP);
2) A propósito da tese que sugere uma interpretação extensiva do artigo
2.º/1 da Lei 30/2000, o TC classifica-a como “metodologicamente
adequada”, referindo que o artigo 2.º/2 é categórico; nesse sentido, a
descriminalização do consumo de droga não vale para todo o tipo de
detenção ou aquisição, sem cuidar dos riscos associados às quantidades
efectivamente detidas e dos fins a que se destinam; ademais, acrescenta
que o elemento histórico não suporta este entendimento, aludindo ao
artigo 26.º/3 do DL 15/93;
3) Quanto à terceira opção, o TC aprecia esta possibilidade à luz do
princípio da legalidade penal, identificando-o como um princípio-
garantia;
▪ Paralelamente, destaca a carga axiológico-normativa deste princípio,
esclarecendo que traduz uma clara opção pela liberdade do cidadão, em
detrimento das exigências do poder punitivo;
▪ Desta forma, o texto legal funciona como limite às conclusões suportadas
por interpretações teleológicas, o que equivale a afirmar que a linguagem
se contém dentro de um sentido semântico que abstrai da concreta
teleologia da norma legal;
▪ Partindo destas premissas, o TC refere que a meridiana literalidade do
preceito poderia levar a conclusões equívocas;
▪ De facto, admite-se a conexão entre uma pluralidade de normas e
enunciados linguísticos, de forma a obter um sentido normativo cabível
nas palavras da lei e conforme com a vontade do legislador;
▪ Alude-se, assim, a uma ideia de conexão normativa ou prisma normativo
complexo, que traduz a coordenação entre diversas proposições
normativas;
55
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Por esse motivo, o TC considera que não se identificou qualquer lacuna


de regulamentação, uma vez que esta noção pressupõe uma lei que aspira
a uma regulação completa e esgotante do domínio material em que actua,
o que não se verificava nesta situação (Lei 30/2000);
▪ Em rigor, o âmbito restritivo encontrava-se suportado pela previsão do
artigo 2.º/2, prevendo-se ainda a vigência parcial do artigo 40.º/2 do DL
15/93;
▪ Consequentemente, revelava-se inequívoco que a regulação de 2000 era
fragmentária e incompleta, limitada em função de um tecto quantitativo
fixo;
▪ Da mesma forma, o referente normativo da revogação operada pelo
artigo 28.º da Lei 30/2000 seria apenas o segmento ideal do tipo criminal
sobreponível ao novo tipo contra-ordenacional;
▪ Neste contexto, o tribunal a quo procedeu a uma interpretação restritiva
da revogação, limitando-a ao sentido contextual do diploma e a uma
redução teleológica do artigo 40.º/2 do DL 15/93;
▪ Este processo interpretativo surge como metodologicamente admissível,
a partir de uma base textual que existe e comporta, congregando os
diferentes elementos semânticos em conexão íntima, uma amplitude de
sentidos indesejada pelo legislador;
▪ De acordo com o TC, o tipo abrange, na sua literalidade, e desde a edição
do preceito, a aquisição e detenção para consumo próprio, em quantidade
superior à necessária para o consumo médio individual durante o período
de 10 dias, obedecendo em sede própria ao imperativo constitucional de
tipicidade e determinabilidade;
→ Pelos fundamentos expostos, o TC decidiu «não julgar inconstitucional a
norma, extraída interpretativamente da conjugação dos artigos 1.º, 2.º, n.ºs 1
e 2, e 28.º, da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, e 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei
n.º 15/93, de 22 de janeiro, com o sentido de que se mantém em vigor este
último preceito, não só quanto ao cultivo, como relativamente à aquisição e
detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações
56
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para


o consumo médio individual durante o período de dez dias».

→ CRITÉRIOS PARA AFERIR DOS LIMITES DA INTERPRETAÇÃO PERMITIDA EM

DIREITO PENAL

→ MARIA FERNANDA PALMA:


➢ Sentido possível e previsível das palavras;
➢ Essência do proibido;
→ CASTANHEIRA NEVES: intencionalidade normativa do critério legal = o sentido
jurídico da expressão não é limitado pelo sentido possível das palavras;
➢ Limites: controlo da interpretação que o juiz fez:
1) Condição legal: critério legal concreto;
2) Condição dogmática: na aplicação do critério legal há-que considerar
doutrina e jurisprudência (para aferir o respectivo sentido normativo);
3) Condição sistemática: a solução, ou pelo menos os seus fundamentos,
devem ser generalizáveis e não implicar contradições;
4) Condição institucional: controlo pelo STJ.

 RESOLUÇÃO DE CASOS PRÁTICOS(12)(13)

1. Em 30.08.2017, no âmbito da reforma da prevenção e combate aos fogos, é


aditado um novo n.º 9 ao artigo 274.º do Código Penal, que dispõe: “Se o incêndio for
provocado nos meses de maior risco de ocorrência de fogos, o agente é punido com a
pena aplicável ao crime respectivo agravada em um terço nos seus limites mínimo e
máximo.”

(12)
Algumas das hipóteses apresentadas não foram discutidas ou resolvidas em aula prática. A respectiva
inclusão na presente síntese destina-se a servir de exemplo, para estudo dos alunos.
(13)
As resoluções apresentadas constituem uma mera proposta de solução, não pretendendo esgotar todas
as vias de argumentação possíveis. Visa-se apenas fornecer um indicador quanto à forma de exposição
sugerida.

57
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

No mesmo dia é aprovada uma portaria que inclui nesse período os meses de Maio
a Outubro de 2017 e 2018.
Aprecie a constitucionalidade da norma que constava do n.º 9 do artigo 274.º do
Código Penal.

De forma a apreciar a constitucionalidade da norma constante do artigo 274.º, n.º 9 do


CP impõe-se aludir à problemática das normas penais em branco, relacionando-as com
as exigências do princípio da legalidade. Com efeito, a norma descrita reconduz-se a este
conceito, tanto numa acepção ampla – que as define como aquelas em que se observa
uma incompletude do tipo incriminador, visto que a integralidade do comportamento
proibido resulta da articulação de duas normas – como numa acepção restrita – que
reserva esta classificação para os casos em que o preenchimento do sentido normativo se
faz com recurso a uma disposição de nível inferior. Na situação descrita, o conceito de
“meses de maior risco de ocorrência de fogos” é determinado por uma norma extrapenal
– no caso, uma portaria.
Os problemas de constitucionalidade tipicamente suscitados pelas normas penais em
branco relacionam-se, sobretudo, com o princípio da legalidade. Por um lado, poderá
observar-se uma situação de inconstitucionalidade orgânica, por definição dos elementos
do crime através de órgão constitucionalmente incompetente (artigo 165.º, n.º 1, alínea
c) da CRP). Em paralelo, nas hipóteses em que se remete para uma norma de nível
inferior, estará potencialmente em causa o vício de inconstitucionalidade formal, por
violação da reserva de lei (artigos 29.º, n.os 1 e 3 e 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP).
Finalmente, o recurso a normas penais em branco poderá implicar uma insuficiente e
imprecisa definição do comportamento proibido, em violação da exigência de
determinabilidade do tipo penal – lei certa (artigo 29.º, n.os 1 e 3 da CRP).
Todavia, estes problemas de constitucionalidade nem sempre se encontram associados
às normas penais em branco. Isto é, nem todas as normas penais em branco padecem do
vício de inconstitucionalidade. De acordo com os critérios propostos pelo Tribunal
Constitucional, haverá que aferir se a norma sancionadora (remissiva) respeita, de forma
cabal, a função de determinação de condutas dos preceitos penais. Assim, serão
admissíveis as normas que contenham em si mesmas o conteúdo material de ilicitude,
58
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

permitindo identificar o bem jurídico protegido, o resultado cuja produção se pretende


evitar (desvalor do resultado) e a acção perigosa que se proíbe (desvalor da acção). A
norma complementar surge, quando muito, como mera concretização/quantificação da
norma que contém a ameaça de sanção penal.
Na hipótese em análise, afigura-se claro o bem jurídico protegido, reconduzível, na
verdade, ao objecto de protecção do tipo base: a floresta e, mediatamente, a vida, a
integridade física e o património de outrem. Paralelamente, os desvalores da acção e do
resultado espelham a previsão do artigo 274.º, n.º 1 do CP, observando-se a adição de um
elemento especializador: a realização da acção e a produção do resultado proibido no
período referido.
Ainda neste contexto, importa referir que a alusão aos “meses de maior risco de
ocorrência de fogos” corresponde ao emprego de um conceito indeterminado. No
entanto, é possível descortinar o especial conteúdo de ilicitude que justifica a protecção
penal mais intensa. Com efeito, “nos meses de maior risco de ocorrência de fogos”, a
potencialidade lesiva dos incêndios – desde logo pelo risco acrescido de expansão e
propagação, e consequências inerentes – é exponenciada, transcendendo a danosidade
típica que subjaz ao crime base. Neste sentido, a restrição operada por portaria –
limitando o “maior risco de ocorrência de fogos” aos meses de “Maio a Outubro de 2017
e 2018”) – não fixa critérios novos ou autónomos de ilicitude, limitando-se a recortar
temporalmente o período de maior danosidade potencial dos incêndios que justifica a
agravação. A norma em causa deve, por conseguinte, considerar-se compatível com o
princípio da legalidade.

2. No dia 28 de Novembro, A, professor de 54 anos, deixou um bilhete no caderno


de um dos seus alunos, B, de 10 anos. Nele prometia ajudar B com os trabalhos
escolares se B aceitasse deslocar-se a casa de A depois das aulas. A tinha em vista
praticar relações sexuais com B.
Pode A ser condenado pelo crime previsto no artigo 176.º-A, n.º 1, do Código
Penal?

59
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

Com o intuito de determinar se A poderá ser condenado pelo crime previsto no artigo
176.º-A, n.º 1 do CP, cumpre averiguar do preenchimento dos elementos típicos da
incriminação. Em primeiro lugar, dir-se-á que o agente assume a qualidade de maior, tal
como descrita no tipo incriminador. Todavia, não se afigura claro que o meio utilizado
por A se reconduza à noção de “tecnologias de informação e de comunicação”, constante
do artigo 176.º-A, n.º 1 do CP. Efectivamente, impõe-se determinar se um bilhete no
caderno corresponde ao meio referido na norma. Estamos, por isso, perante uma questão
de interpretação da lei penal, associada ao princípio da legalidade – em concreto, à
exigência de lei estrita (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da CRP e artigo 1.º do CP). De acordo com
este corolário, só será considerada típica a conduta que se encontre descrita na norma,
numa clara articulação com os princípios da segurança jurídica e da culpa. Em
consequência, encontra-se vedado o recurso à analogia em direito penal (artigo 1.º/3 do
CP). Isto dito, haverá que discernir os limites da interpretação proibida e permitida,
aferindo se, no caso descrito, o conceito de “tecnologias de informação e de
comunicação” poderá ainda abarcar um bilhete no caderno.
Com esse propósito, poderemos recorrer a dois critérios sugeridos pela doutrina: o
sentido possível e previsível das palavras – correspondente à posição da Professora
Fernanda Palma; e o critério da intencionalidade normativa típica – proposto por
Castanheira Neves. O primeiro critério elencado alude ao sentido comunicacional
perceptível do texto, e não das palavras isoladamente. Ou seja, haverá que considerar o
texto no respectivo significado social, associando-o à essência do proibido, revelada pelo
sistema na concreta norma incriminadora. Assim, o texto jurídico surge ainda como
condição essencialmente pré-determinante da interpretação permitida em direito penal.
Ao invés, o critério da intencionalidade normativa típica propõe que se determine a
norma do caso concreto, com recurso a diferentes condições de validade (legal,
dogmática, sistemática e institucional). Segundo esta perspectiva, o sentido jurídico da
expressão não é limitado pelo sentido possível das palavras, mas obtido através da análise
das condições mencionadas. Relativamente à condição legal, trata-se da necessidade de o
concreto juízo incriminatório ter fundamento efectivo numa norma penal positiva; no que
respeita à condição dogmática, reconduz-se à apreensão do sentido normativo da
incriminação, com recurso aos modelos normativo-racionais compreendidos no tipo, à
60
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

luz da doutrina e jurisprudência sobre a matéria; a condição sistemática, por seu turno,
pretende garantir a inobservância de contradições entre a solução proposta para o caso
concreto e situações idênticas tratadas pelo sistema; a condição institucional propõe um
controlo pelo STJ, de forma a assegurar a unidade do Direito.
Aplicando os critérios mencionados à hipótese descrita, diremos que, recorrendo ao
sentido possível e previsível das palavras, dificilmente se considerará um bilhete num
caderno como uma tecnologia de informação e comunicação. De facto, o uso social desta
expressão refere-se tipicamente a meios de comunicação electrónica, associados à
internet. Paralelamente, o núcleo de protecção da norma (essência do proibido) parece
referir-se a uma situação de especial vulnerabilidade do bem jurídico protegido,
provocada pelo facto de o menor poder desconhecer o respectivo interlocutor. Assim,
apenas com recurso a uma interpretação proibida se reconduziria o bilhete no caderno à
noção de tecnologia de informação e comunicação.
Em sentido idêntico parece apontar o critério da intencionalidade normativa típica,
especialmente no que respeita ao preenchimento da condição dogmática. Com efeito, se
por um lado dispomos de uma norma penal positiva que poderia fundamentar um juízo
incriminatório (artigo 176.º-A, n.º 1 do CP), resulta inequívoco que o cenário relatado não
se reconduz ao sentido normativo da proibição. Nos termos já explicitados, o “núcleo
axiológico-normativo fundamentante” da incriminação corresponde à acrescida
necessidade de protecção do menor, causada pela falsa sensação de segurança criada pela
utilização de tecnologias de informação e comunicação.
A este propósito, releva recordar a função de tutela subsidiária de bens jurídicos
assumida pelo direito penal, em observância dos princípios da ofensividade,
proporcionalidade e necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP). Representando as
sanções penais a forma de limitação mais intensa de direitos, o recurso a elas apenas se
justificará para a protecção das condições essenciais de liberdade. Nesse sentido, poder-
se-ia questionar se o artigo 176.º-A do CP não constitui uma forma de tutela demasiado
antecipada de um bem jurídico que poderá nem chegar a ser lesado.

61
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

3. Admita que B aborda C num beco escuro da cidade de Lisboa, apontando-lhe


uma seringa que afirma estar contaminada, e ordenando que lhe entregue a carteira
e o telemóvel. Receoso, C entrega todos os seus pertences e foge.
Poderá estar em causa a prática de um crime de roubo agravado (artigos 210.º,
n.os 1 e 2, alínea b), em articulação com a alínea f) do n.º 2 do artigo 204.º do Código
Penal)?

 EXEMPLOS ADICIONAIS DE SITUAÇÕES EM QUE SE COLOCOU O PROBLEMA DOS

LIMITES DA INTERPRETAÇÃO EM DIREITO PENAL

→ Jurisprudência alemã(14):
➢ Pode o ácido clorídrico ser considerado uma arma para efeitos de roubo
agravado (§ 250 do Código Penal alemão)?
▪ Tribunal Federal alemão: interpretação extensiva teleológico-objectiva;
▪ ROXIN: conceito “arma química” utlizado na linguagem corrente; o
sentido literal não exigiria a restrição da noção de arma aos instrumentos
que operam mecanicamente;
▪ Fim de protecção da norma – emprego de métodos especialmente
perigosos revela um maior desvalor da acção, que impõe uma punição
mais severa.

→ Jurisprudência portuguesa:
➢ Pode uma seringa contaminada ser considerada uma arma para efeitos de
preenchimento do tipo de roubo agravado (p.e.p. pelos artigos 210.º/1 e
2b) do CP)?
▪ STJ (acórdão STJ 08/02/1996 - Costa Pereira):
▪ O STJ construiu a sua fundamentação esclarecendo que o receio e o temor
provocados pela utilização de uma arma constituem o motivo da agravação
da conduta. Equivale isto a afirmar que a intenção normativa subjacente ao
preceito em causa se prende, de certo modo, com a tutela da posição da

(14)
Exemplo referido em Arthur Kaufmann, Filosofia do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 128.

62
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

vítima, que se encontra perante um perigo potencialmente traumatizante.


Deste modo, a circunstância de o constrangimento ter sido efectivado, in
casu, através do “apontar da seringa”, terá desencadeado na ofendida esses
mesmos sentimentos de receio e temor.
▪ Para além disso, o tribunal invoca o conceito de arma constante do art.4º do
Decreto-Lei n.º 48/95 de 15 de Março que determina que “para efeito do
disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda
que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que
possa ser utilizado para tal fim”.
▪ Como se pode comprovar, a definição proposta socorre-se de um critério
pragmático e funcional, que aponta como elemento característico do
conceito “arma” o fim para que o objecto é utilizado. De certo modo
poderemos afirmar que o STJ se muniu dos elementos teleológico e
sistemático para fundamentar, nesta sede, a condenação a título de roubo
agravado;
➢ Pode a energia eléctrica ser considerada uma “coisa móvel alheia” para
efeitos de preenchimento do tipo de furto (artigo 203.º do CP)?
▪ STJ (Acórdão STJ 20/04/1955 - Horta e Vale): trata-se de um bem
incorpóreo, mas susceptível de materialização, direcção e apropriação e
condução; para além disso, não sendo uma coisa imóvel, terá de
classificar-se como móvel;
➢ Pode o gás natural ser considerado uma “coisa móvel alheia, de natureza
altamente perigosa” para efeitos de preenchimento do tipo de furto
qualificado (artigo 204.º/2 c do CP)?
▪ TRL (acórdão 09/10/2013 - Rui Gonçalves): no que respeita ao primeiro
ponto, o acórdão principia por referir que a incriminação do furto
pretende garantir a tutela do direito de propriedade.
▪ Seguidamente, a discussão centra-se na possibilidade de sobre o gás
natural incidir um direito de propriedade. Neste contexto, a
argumentação do TRL consiste em afirmar que surgindo o gás como uma
matéria existente no Universo, quantificável e controlável, dotado de

63
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

utilidades susceptíveis de apropriação individual, haveria que o


reconduzir ao conceito de coisa móvel.
▪ Em suma, “o que releva não é a apreensibilidade material da coisa mas
a possibilidade actual e imediata de dispor fisicamente dela”.
▪ Num segundo momento, o tribunal analisa o conceito de natureza
altamente perigosa constante do art.204º/2c) CP, aludindo ao bem
jurídico protegido e sublinhando os seus contornos multifacetados.
Assumindo que não se trata de um conceito inequívoco, o aresto explica
que o critério determinante deverá ser encontrado recorrendo a uma
concepção tendencialmente objectiva do cidadão comum relativamente à
natureza perigosa de certos produtos.
▪ Em seguida, explica que a alta perigosidade poderá resultar, em
abstracto, ou da própria natureza a coisa ou da manipulação do produto.
Finalmente, exclui-se a punibilidade a título de furto qualificado
considerando que uma coisa que se encontra ao dispor do cidadão comum
no seu dia-a-dia não pode ser considerada por natureza, altamente
perigosa.

CASOS PRÁTICOS PRINCÍPIO DA LEGALIDADE - GRUPO I

“E tudo o fumo levou”


1. Admita que no dia 2 de março entrou em vigor a Lei n.º X/2019, de 2 de fevereiro,
alterando a Lei n.º 37/2007, que aprovou normas para a proteção dos cidadãos da
exposição involuntária ao fumo do tabaco e medidas de redução da procura relacionadas
com a dependência e a cessação do seu consumo. Nomeadamente, o artigo 4.º e o artigo
25.º passaram a ter a seguinte disposição:

“Artigo 4.º
Proibição de fumar em determinados locais

64
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

2 - É ainda proibido fumar nos veículos afetos aos transportes públicos urbanos,
suburbanos e interurbanos de passageiros, bem como nos transportes rodoviários,
ferroviários, aéreos, marítimos e fluviais, nos serviços expressos, turísticos e de
aluguer, nos táxis, ambulâncias, veículos de transporte de doentes e teleféricos.”

“Artigo 25.º
Punibilidade
1 - As infrações ao disposto no artigo 4.º, n.º 2, são punidas com pena de prisão
até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.”

a) Imagine que ao artigo 4.º é aditado um n.º 3, o qual dispõe o seguinte: “A definição
de transporte turístico e de aluguer para efeitos da presente lei constará de portaria”.
Aprecie esta alteração.

De forma a apreciar a constitucionalidade desta alteração, impõe-se aludir à


problemática das normas penais em branco, relacionando-as com as exigências do
princípio da legalidade. Desde logo, importaria perceber se esta alteração legislativa
implicaria a criação de uma norma penal em branco. Numa perspectiva ampla, poderá
entender-se que a norma penal em branco remete parcialmente para outra instância
normativa parte dos seus pressupostos de aplicação. Ou seja, da norma penal em branco
extraímos a norma sancionatória, que define parcialmente o comportamento proibido,
mas esta remete para outra instância normativa parte da definição do comportamento.
Deste modo, a norma primária é incompleta, pois precisa de uma norma complementar
ou integradora para preencher o seu sentido normativo. Numa perspectiva restritiva,
segundo alguns autores, para que estejamos perante uma norma penal em branco a
instância normativa para a qual remete a norma penal em branco terá de ser inferior.
No presente caso, preenchem-se ambas as noções de norma penal em branco:
verifica-se uma incompletude do tipo incriminador, por referência a um instrumento
legislativo de valor hierárquico inferior. Em concreto, a noção de “transportes turísticos

65
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

e aluguer” consta de portaria, e não da Lei X/2019, que consagrou a relevância criminal
da conduta.
Em primeiro lugar, a norma penal em branco suscita problemas de
constitucionalidade formal, nos termos dos artigos 29.º e 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP,
que consagram o princípio da reserva de lei. Mas a norma penal em branco suscita
também problemas de constitucionalidade orgânica, nos termos do artigo 165.º, n.º 1,
alínea c) da CRP. Tal poderá suceder, por exemplo, quando a lei remete para decreto-lei
não autorizado. Por fim, a norma penal em branco convoca problemas de
constitucionalidade material. Segundo o princípio da legalidade, que encontra
consagração no artigo 29.º, n.º 1 da CRP e no artigo 1.º, n.º 1 do CP, a lei deve ser prévia,
certa, escrita e estrita. Assim sendo, a norma penal em branco poderá colidir com a
vertente de lei certa, mas também com os princípios da tipicidade e da culpa, e com a
função de orientação de comportamentos da norma penal.
Segundo o critério construído pelo Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 427/95),
a norma penal em branco será legítima se ela contiver um critério de ilicitude e permitir
identificar o bem jurídico protegido, bem como o desvalor resultado e a acção perigosa
que se proíbe. Será legítimo que a norma integradora se limite a concretizar tecnicamente
o critério de ilicitude, pois será a Assembleia da República a definir o proibido, através
de um critério suficientemente apreensível pelo destinatário.
No caso em questão, ainda que aceitemos que o critério da ilicitude já resulta
suficientemente claro da norma penal em branco, a verdade é que a definição dos termos
legais feita pela portaria, densificando o critério normativo, acaba por inovar em relação
ao mesmo, na medida em que se torna instrumento essencial para o intérprete-aplicador
conferir sentido à própria norma legal. Numa formulação alternativa, diremos que, apesar
de ser possível discernir, genericamente, o intuito do legislador, a delimitação da concreta
acção perigosa que se pretende proibir apenas resulta possível através da conjugação da
lei e da portaria. Deste modo, não se afigura suficiente apreender que o bem jurídico
protegido é a saúde, e que a conduta vedada é fumar. Impõe-se, por exigências de culpa
e segurança jurídica, que a lei esclareça a extensão da proibição nela consagrada,
delimitando, desde logo, os locais abrangidos por esta incriminação. Nestes termos, a
norma deve ser tida por inconstitucional.
66
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

Só assim não seria se às indicações feitas na portaria pudesse ser atribuído mero valor
de prova pericial – pois então o juiz não estaria vinculado às mesmas e a concretização
conteudística do critério legal continuará a ter por ponto de referência decisivo a norma
legal. No entanto, atendendo ao próprio teor a norma incriminadora de base, afigura-se-
nos este um cenário de difícil verificação(15).

b) Anacleto, entusiasmado com a visita a Lisboa do seu primo indiano, Ravi, decide
adquirir um tuk-tuk para mostrar a cidade ao seu primo. No dia em que Ravi chega
a Lisboa, Anacleto leva-o de tuk-tuk até Belém. Mas o que ele não sabia era que Ravi
era um fumador inveterado, pelo que este fumou durante toda a viagem.
Independentemente da resposta à questão anterior, considerando a conduta
descrita, Ravi praticou o crime previsto nos artigos 4.º e 25.º da Lei n.º X/2019?
A questão implica verificar se a norma poderia ser interpretada no sentido de punir a
conduta de Ravi, por este ter fumado dentro do tuk-tuk durante a viagem até Belém, ou
seja, se tal interpretação ainda se integra dentro dos limites da interpretação permitida em
Direito Penal, ou se tal interpretação deve entender-se como proibida. Para este efeito,
devemos indagar se o tuk-tuk que Anacleto adquiriu para mostrar a cidade de Lisboa ao
seu primo indiano cabe na previsão normativa “serviços turísticos e de aluguer”, e, por
isso, o tuk-tuk de Anacleto estaria abrangido pela proibição de fumar em determinados
locais, incluída no artigo 4.º, n.º 2. Ou, se pelo contrário, tal conclusão implicaria uma
violação da proibição de analogia in malam partem, que encontra consagração no artigo
1.º, n.º 3, do Código Penal (doravante CP).
Segundo uma perspetiva estritamente literal, Anacleto utilizou o tuk-tuk para fins
pessoais e não para fins turísticos, e adquiriu o tuk-tuk através de um contrato de compra
e venda e não através de um contrato de aluguer.
Contudo, segundo o entendimento da Professora Fernanda Palma, o sentido possível das
palavras deve ser obtido situando-as no conjunto do texto legal, integrando no sentido
possível do texto o sentido comunicacional percetível do mesmo e a sua adequação à

(15)
Solução proposta pelos critérios de correcção relativos à prova de Direito Penal I (TAN), da época de
recurso, ano lectivo 2016/2017, publicados em https://www.fd.ulisboa.pt/wp-
content/uploads/2017/02/Direito-Penal-I_TAN_Helena-Mourao_15.02.2017.pdf

67
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

essência do proibido de acordo com as valorações do sistema que a norma diretamente


exprime ou pretende exprimir. Nestes termos, a expressão “serviço turístico" parece
oferecer a possibilidade semântica de enquadrar situações como a presente, na qual
Anacleto utilizou o tuk-tuk para fins pessoais. Com efeito, o turismo não se resume a uma
atividade económica organizada, podendo ser identificado com a simples viagem ou
passeio com fins recreativos, culturais ou de entretenimento, bastando normalmente que
tal implique o contacto com um lugar ou contexto situacional diferente daquele a que o
“turista” está habituado. Assim, para quem entenda que o sentido possível deve ser
encontrado atendendo ao uso social quotidiano que é feito das expressões, parece que o
serviço que Anacleto presta a Ravi pode ser tido por “turístico”.
Resta saber se os restantes critérios da interpretação permitem confirmar a tipicidade da
conduta de Anacleto, impondo-se averiguar se a conduta em questão corresponde ainda
à essência da proibição legal. A norma visa proteger os utilizadores deste tipo de
transportes da exposição ao fumo ambiental, pelo que ao fumar durante toda a viagem de
tuk-tuk Ravi atingiu a essência do proibido. Note-se, ainda, que à luz de posições que
rejeitem um limite prévio à interpretação, conferido pelo sentido possível das palavras, e
defendam que a interpretação deve ser efetuada mediante o sentido jurídico do texto, a
definir no caso concreto, pode concluir-se que este caso coloca o problema que motivou
a criação deste critério normativo e, por isso, a solução punitiva seria igualmente
defensável(16).

c) Sem prejuízo da resposta à alínea anterior, suponha que a conduta ali descrita foi
praticada em janeiro de 2019. Poderia Ravi ser julgado pela prática do crime
previsto nos artigos 4.º e 25.º da Lei n.º X/2019?

TD – jan 19 mar 19 J

L1 ○ Lei X/19

(16)
Vide nota de rodapé n.º 15, supra.

68
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

De forma a determinar se Ravi poderia ser julgado pela prática do crime previsto nos
artigos 4.º e 25.º da Lei n.º X/2019, importa considerar a problemática relativa à aplicação
da lei no tempo. Esta questão acha-se associada ao princípio da legalidade penal, mais
especificamente ao corolário da lei prévia, nos termos no qual se exige que a lei
incriminadora seja anterior à prática do facto, pois o agente tem de se poder motivar pela
norma (artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP; artigo 1.º/1 do CP). Deste corolário decorre então a
seguinte regra:

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 3 da CRP; 2.º/1 e 3.º do CP):

1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus


delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Ora, conforme decorre do enunciado da hipótese, no MPF a conduta de
Ravi não era punida.
▪ Consequentemente, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Ravi
não merecia punição, pelo que nenhuma pena lhe seria aplicável.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que prevê a
criminalização da conduta em causa.

2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao


agente, da lei posterior à lei vigente no MPF:

69
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Na situação descrita, a L2 revela-se menos favorável ao agente, uma vez


que criminaliza uma conduta que, ao MPF, não assumia relevância penal;
➢ Assim, Ravi não se poderia ter motivado por uma norma inexistente, ou
conformado a sua vontade às consequências do ilícito empreendido;
➢ Por esse motivo, os princípios da segurança jurídica e da culpa impõem a
proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao agente
(artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
➢ Desse modo, a L2 não será aplicável, analisando-se a conduta de Ravi à
luz do regime jurídico vigente no MPF, que não punia o comportamento
descrito.
➢ Em suma, Ravi não poderia ser julgado pela prática do crime previsto nos
artigos 4.º e 25.º da Lei X/2019.

d) Admita que a conduta ocorreu em maio de 2019, tendo Ravi sido acusado pelo
Ministério Público pela prática do crime previsto nos artigos 4.º e 25.º da Lei n.º
X/2019. No entanto, enquanto está a ser julgado, entra em vigor uma norma que
despenaliza tal comportamento.

TD J L2

L1 – X/19 ○

De forma a determinar a relevância desta alteração para a situação de Ravi, importa


considerar a problemática relativa à aplicação da lei no tempo. Esta questão acha-se
associada ao princípio da legalidade penal, mais especificamente ao corolário da lei
prévia, nos termos no qual se exige que a lei incriminadora seja anterior à prática do facto,
pois o agente tem de se poder motivar pela norma (artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP; artigo 1.º/1
do CP). Deste corolário decorre então a seguinte regra:

70
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 3 da CRP; 2.º/1 e 3.º do CP):

1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus


delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Na hipótese em análise, a lei vigente no MPF era a L1, que punia a
conduta de fumar em determinados transportes;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Ravi seria
punível com uma pena até dois anos de prisão ou 120 dias de multa.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que prevê a
despenalização da conduta correspondente a fumar em certos transportes.

2.1. Determinação da natureza mais ou menos favorável ao agente da lei


posterior à lei vigente no MPF:
➢ A L2 despenaliza o comportamento empreendido, mostrando-se mais
favorável ao agente;

71
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Neste cenário, os princípios da igualdade e da necessidade da pena (artigo


18.º/2 da CRP) determinam a aplicação retroactiva da lei posterior mais
favorável ao agente (L2), uma vez que se observa uma manifestação
ulterior do legislador quanto à desnecessidade de punir a conduta descrita
(artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigo 2.º/2 do CP);
➢ Ou seja, afasta-se a aplicação da lei vigente no MPF e aplica-se
retroactivamente a L2;
➢ Em síntese, Ravi não será punido pela prática de um crime de “fumar em
transportes turísticos e de aluguer”, aplicando-se a L2.

e) Ravi foi condenado em um ano e dois meses de prisão, e já cumpriu um ano da


pena. Entra em vigor uma norma que, alterando o artigo 25.º da Lei n.º X/2019, fixa
a pena máxima para o crime em questão em um ano de prisão.

TD Condenação 1 ano L2

L1 – X/19 1 ano + 2 meses Pena máxima: 1 ano

De forma a determinar a relevância desta alteração para a situação de Ravi, importa


considerar a problemática relativa à aplicação da lei no tempo. Esta questão acha-se
associada ao princípio da legalidade penal, mais especificamente ao corolário da lei
prévia, nos termos no qual se exige que a lei incriminadora seja anterior à prática do facto,
pois o agente tem de se poder motivar pela norma (artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP; artigo 1.º/1
do CP). Deste corolário decorre então a seguinte regra:

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):

1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus


delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;

72
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de


se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Na hipótese em análise, a lei vigente no MPF era a L1, que punia a
conduta de fumar em determinados transportes;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Ravi seria
punível com uma pena até dois anos de prisão ou 120 dias de multa,
tendo, na sentença, sido fixada uma pena de um ano e dois meses de
prisão.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável


ao agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que fixa a pena
máxima do crime em causa em um ano de prisão.
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente da lei posterior à lei vigente no MPF:
➢ A L2 diminui a pena máxima aplicável ao tipo de ilícito em causa,
mostrando-se em princípio mais favorável ao agente;
➢ Neste cenário, os princípios da igualdade e da necessidade da pena (artigo
18.º/2 da CRP) determinam a aplicação retroactiva da lei posterior mais
favorável ao agente (L2), uma vez que se observa uma manifestação
ulterior do legislador quanto à desnecessidade de punir a conduta descrita
com uma pena que pode ir até três anos de prisão (artigos 29.º/4, 2.ª parte,
da CRP; artigo 2.º/4 do CP);
➢ Ou seja, afasta-se a aplicação da lei vigente no MPF e aplica-se
retroactivamente a L2;
3) Consequências da aplicação retroactiva da L2:

73
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Nesta situação, Ravi já tinha cumprido um ano da pena de prisão de um


ano e dois meses a que tinha sido condenado, pela prática de um crime de
fumar em certos transportes;
➢ Segundo o disposto na segunda parte do artigo 2.º/4 do CP, nestes casos,
quando tenha havido condenação – mesmo que transitada em julgado –,
cessam a execução e os respectivos efeitos penais logo que a parte da
pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena
prevista na lei posterior;
➢ Ora, Ravi já tinha cumprido um ano de prisão, que agora representa o
limite máximo da pena aplicável ao ilícito referido; pelo que cessa a
execução da pena e os respectivos efeitos penais.

f) Ravi foi condenado em um ano e dois meses de prisão, e já cumpriu seis meses da
pena. Entra em vigor uma norma que, alterando o artigo 25.º da Lei n.º X/2019, fixa
a pena máxima para o crime em questão em um ano de prisão.
TD Condenação 6 meses L2

L1 – X/19 1 ano + 2 meses Pena máxima: 1 ano

De forma a determinar a relevância desta alteração para a situação de Ravi, importa


considerar a problemática relativa à aplicação da lei no tempo. Esta questão acha-se
associada ao princípio da legalidade penal, mais especificamente ao corolário da lei
prévia, nos termos no qual se exige que a lei incriminadora seja anterior à prática do facto,
pois o agente tem de se poder motivar pela norma (artigo 29.º/ 1 e 3 da CRP; artigo 1.º/1
do CP). Deste corolário decorre então a seguinte regra:

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):

74
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o


agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Na hipótese em análise, a lei vigente no MPF era a L1, que punia a
conduta de fumar em determinados transportes;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Ravi seria
punível com uma pena até dois anos de prisão ou 120 dias de multa,
tendo, na sentença, sido fixada uma pena de um ano e dois meses de
prisão.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável


ao agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que fixa a pena
máxima do crime em causa em um ano de prisão.
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente da lei posterior à lei vigente no MPF:
➢ A L2 diminui a pena máxima aplicável ao tipo de ilícito em causa,
mostrando-se mais favorável ao agente;
➢ Neste cenário, os princípios da igualdade e da necessidade da pena (artigo
18.º/2 da CRP) determinam a aplicação retroactiva da lei posterior mais
favorável ao agente (L2), uma vez que se observa uma manifestação
ulterior do legislador quanto à desnecessidade de punir a conduta descrita
com uma pena que pode ir até três anos de prisão (artigos 29.º/4, 2.ª parte,
da CRP; artigo 2.º/4 do CP);

75
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Ou seja, afasta-se a aplicação da lei vigente no MPF e aplica-se


retroactivamente a L2;
3) Consequências da aplicação retroactiva da L2:
➢ Nesta situação, Ravi tinha cumprido seis meses da pena de prisão de um
ano e dois meses a que tinha sido condenado, pela prática de um crime
em causa;
➢ Conforme se viu, a segunda parte do artigo 2.º/4 do CP, determina a
aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao
agente e, quando tenha havido condenação – mesmo que transitada em
julgado –, cessam a execução e os respectivos efeitos penais logo que a
parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da
pena prevista na lei posterior;
➢ Desta feita, Ravi tinha apenas cumprido seis meses da pena de prisão que
lhe tinha sido aplicada pelo tribunal, o que significa que o limite máximo
da pena prevista na lei posterior (L2 – um ano) ainda não tinha sido
atingido;
➢ Assim sendo, não se poderá recorrer directamente à segunda parte do
número 4 do artigo 2.º do CP, visto que a cessação imediata da execução
pressupõe o cumprimento do limite máximo da pena prevista na lei
posterior, o que não se verifica;
➢ Aqui, deverá Abel servir-se do disposto no artigo 371.º-A do Código de
Processo Penal(17), e requerer a reabertura da audiência para aplicação do
novo regime.

g) Imagine que, em junho, a Lei n.º X/2019 é substituída pela Lei n.º Y/2019, que
veio alterar o referido artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º X/2019, passando agora a norma a
ter a seguinte redação “É ainda proibido fumar nos veículos afetos aos transportes

(17)
Artigo 371.º-A do Código de Processo Penal (abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei
penal mais favorável): Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução
da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência
para que lhe seja aplicado o novo regime.

76
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

públicos urbanos, suburbanos e interurbanos de passageiros, bem como nos


transportes rodoviários, ferroviários, aéreos, marítimos e fluviais, nos serviços
expressos, turísticos e de aluguer, nos táxis, ambulâncias, veículos de transporte de
doentes e teleféricos, criando desse modo perigo para a integridade física ou para a
saúde de terceiros”.

Considerando que a conduta de Ravi veio a provocar uma forte pneumonia em


Anacleto, que estava já um pouco debilitado devido a uma constipação inesperada,
ao abrigo de que lei deveria Ravi vir a ser punido em julho pelo facto que praticou
em maio?

Uma vez que o facto foi praticado em maio – de acordo com o critério do artigo 3.º do
CP –, seria, em princípio, aplicável a Lei que entrou em vigor em março, a Lei n.º X/2019,
de 2 de fevereiro, visto ser a Lei em vigor no momento da prática do facto, nos termos do
artigo 2.º, n.º 1, do CP.
Contudo, após o momento da prática do facto, entra em vigor um novo diploma, a Lei n.º
Y/2019, que alterando o artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º X/2019, passa a punir a conduta de
fumar nos transportes turísticos e de aluguer apenas caso essa conduta crie perigo para a
integridade física ou para a saúde de terceiros. Estamos, então, perante um problema de
alteração do tipo incriminador por adição de elementos especializadores em relação à lei
antiga. Aparentemente, a conduta de Ravi é crime à luz da lei antiga, mas também à luz
da lei nova, pois a sua conduta criou um perigo para a saúde de Anacleto, ao provocar-
lhe uma forte pneumonia.
Contudo, discute-se se estamos perante uma questão de sucessão de leis penais no tempo
– e aqui teremos de aferir qual será o regime concretamente mais favorável ao arguido –
ou se estamos perante uma descriminalização retroativa total, e não meramente parcial,
da conduta de Ravi.
Caso adotemos o pensamento de Taipa de Carvalho, consagrado na sua monografia
Sucessão de Leis Penais no Tempo, devemos optar pela solução da descriminalização.
Uma vez que a punibilidade se restringe agora aos casos em que o fumo em transportes
turísticos e de aluguer crie perigo para a saúde ou integridade física de terceiros, ao
punirmos Ravi estaríamos a valorar retroativamente como típica uma circunstância que

77
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

não o era no momento da prática do facto. Poderá acrescentar-se que a solução da punição
traduzir-se-ia numa violação do princípio da culpa, pois estaríamos a ficcionar um dolo
do agente em relação a um elemento típico que não existia no momento da prática do
facto. Por fim, poderá acrescentar-se que a solução da punição implicaria uma violação
do princípio da igualdade, pois a punição do agente dependeria de ser dado ou não como
provado o preenchimento do elemento típico no momento da prática dos factos, bem
como uma violação do princípio da função de orientação das normas penais, pois o agente
poderia ter orientado a sua conduta de forma diferente caso a circunstância em causa já
fosse tida por si como típica no momento em que atuou.
Deste modo, a solução passaria pela descriminalização, à luz do artigo 2.º, n.º 2 do CP,
pelo que em julho Ravi já não seria punido.
Contudo, na 3.ª edição da sua monografia, Taipa de Carvalho admite que alguns casos
podemos estar verdadeiramente perante uma sucessão de leis penais no tempo. Desta
forma, quando tal for possível, será aplicada a lei mais favorável ao agente, nos termos
do artigo 2.º, n.º 4 do CP, se também tiver havido alteração da pena. Não obstante, a
solução da descriminalização será mais defensável, mediante as razões supra
mencionadas(18).
Entendimento distinto parece propor a Professora Maria Fernanda Palma, que centra a
discussão desta questão na estrutura dos crimes de perigo. Assim, observando-se uma
modificação do tipo incriminador que consista na passagem de um crime de perigo
abstracto para um crime de perigo concreto, seria possível afirmar uma verdadeira
sucessão de leis penais. De acordo com a Professora, em ambos os casos o perigo releva
para a incriminação: com efeito, num crime de perigo abstracto, surge como fundamento
da tipificação, atendendo ao carácter especialmente perigoso da conduta; de forma
idêntica, num crime de perigo concreto considera-se necessária a prova do perigo.
Nas palavras da Professora “se na lei antiga se dispensava esta prova, abrangendo-se mais
factos, na lei nova há uma restrição que abrange ainda assim os factos causadores de

(18)
Vide nota de rodapé n.º 15, supra.

78
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

perigo”(19). Por essa razão, será viável afirmar uma sucessão de leis penais e determinar
o regime concretamente mais favorável ao arguido (artigo 2.º, n.º 4 do CP).

h) Imagine, em alternativa, que a redação original do artigo 4.º, n.º 2, nos termos da
Lei n.º X/2019, era a seguinte: “É ainda proibido fumar nos veículos afetos aos
transportes públicos urbanos, suburbanos e interurbanos de passageiros, bem como
nos transportes rodoviários, ferroviários, aéreos, marítimos e fluviais, nos serviços
expressos, turísticos e de aluguer, nos táxis, ambulâncias, veículos de transporte de
doentes e teleféricos, criando desse modo perigo para a integridade física ou para a
saúde de terceiros”.
Em junho, a Lei n.º X/2019 é substituída pela Lei n.º Z/2019, que veio alterar o
referido artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º X/2019, suprimindo o excerto “criando desse modo
perigo para a integridade física ou para a saúde de terceiros”, e diminuindo o limite
máximo aí referido para um ano de prisão (mantendo a pena de multa como
alternativa).
Considerando que a conduta de Ravi veio a provocar uma forte pneumonia em
Anacleto, que estava já um pouco debilitado devido a uma constipação inesperada,
ao abrigo de que lei deveria Ravi vir a ser punido em julho pelo facto que praticou
em maio?

TD
Maio 19 Junho 19

L1-X/19 L2-Z/19

- Fumar em certos “veículos” ; - Fumar em certos “veículos”


+
- Criar perigo para a integridade ou Sanção: pena de prisão até 1 ano
ou pena de multa
para a saúde de terceiros .

Sanção: pena de prisão até 2 anos


ou 120 dias de multa

(19)
PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos.
Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, Lisboa: AAFDL,
4.ª edição (reimpressão actualizada), 2021, p. 177 e ss..

79
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):

1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus


delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ No caso em análise, a lei vigente era a L1, que previa um crime de perigo
concreto, punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa;

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2 – que suprimiu o
elemento típico relativo à necessidade de criação de um perigo para certos
bens jurídicos, diminuindo o limite máximo da pena de prisão
abstractamente aplicável para um ano, e mantendo a possibilidade de
aplicação de pena de multa;
➢ O crime passou de perigo concreto, para perigo abstracto.
2.1. Classificação da relação verificada entre as duas leis penais
➢ Nos casos em que se observa uma (qualquer) alteração de um elemento
típico do crime, importa aferir da relação estabelecida entre as leis
potencialmente aplicáveis;
➢ Impõe-se comprovar se está em causa uma verdadeira sucessão de leis
penais, que reclama a tutela conferida pelas regras relativas à aplicação

80
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

da lei no tempo, com recurso ao critério da continuidade normativo-


típica, proposto por TAIPA DE CARVALHO;
➢ Na situação sub judice, a alteração operada consistiu na eliminação de um
elemento típico: a criação do perigo;
➢ A L2 alargou a punibilidade, ao excluir um dos elementos anteriormente
exigidos para o preenchimento do tipo: ou seja, à luz da L2 não é
necessário que a conduta de fumar cause perigo, bastando simplesmente
que o agente o faça para que o crime se considere consumado;
➢ Consequentemente, as condutas puníveis ao abrigo da L1 permanecem
puníveis ao abrigo da L2;
➢ Há uma verdadeira sucessão de leis penais, que impõe o cumprimento dos
princípios vertidos nos artigos 29.º da CRP e 2.º do CP, ou seja, a
determinação da lei concretamente mais favorável ao agente;
2.2. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente, das leis posteriores à lei vigente no MPF:
➢ Sucessão de leis penais
▪ O agente fumou nos veículos descritos e criou perigo para saúde de
Anacleto, o que significa que a sua conduta continuaria a ser punível ao
abrigo da L2;
▪ L2 diminui o limite máximo da pena (de dois, para um ano), revelando-
se mais favorável ao arguido;
▪ Por essa razão, a L2 será aplicada retroactivamente (artigo 29.º/1, 2.ª
parte da CRP e 2.º/4 do CP), correspondendo a sanção aplicável a Ravi a
pena de prisão até um ano ou pena de multa.

CASOS PRÁTICOS PRINCÍPIO DA LEGALIDADE


GRUPO II

81
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

1. Enquanto passeia por uma rua de Lisboa, A repara em B e começa a conversar


com ela, referindo que a acha muito bonita. Conta-lhe que é advogado penalista
e entrega-lhe um cartão-de-visita, sugerindo que lhe telefone se alguma vez se
meter em sarilhos. Diz-lhe ainda provocantemente que se, em alternativa, se
quiser meter em sarilhos, ele está hospedado no hotel em frente durante o fim-
de-semana. B fica extremamente indignada.
A praticou o crime de importunação sexual (artigo 170.º do Código Penal)?

De forma a aferir se B praticou a incriminação referida, impõe-se comprovar a


correspondência entre o comportamento adoptado e o tipo de crime previsto no artigo
170.º do Código Penal.
Desde logo, afigura-se claro e inequívoco que estamos diante de um problema de
interpretação da lei penal, associado ao princípio da legalidade – especificamente, à
exigência de lei estrita (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da CRP e artigo 1.º do CP). De acordo
com este corolário, só poderá ser considerada típica a conduta que se encontre descrita
na norma, numa clara articulação com os princípios da segurança jurídica e da culpa.
Em consequência, encontra-se vedado o recurso à analogia em direito penal (artigo
1.º/3 do CP). Nestes termos, haverá que discernir os limites da interpretação proibida
e permitida, indagando do significado do novo segmento típico correspondente à
formulação de propostas de teor sexual, atendendo à conotação sexual da expressão
utilizada no caso concreto.
Neste contexto, a doutrina fornece-nos diferentes critérios, de entre os quais se destaca
o do sentido possível e previsível das palavras (Fernanda Palma); e o critério da
intencionalidade normativa típica – (Castanheira Neves). O primeiro critério elencado
alude ao sentido comunicacional perceptível do texto, e não das palavras
isoladamente. Ou seja, haverá que considerar o texto no respectivo significado social,
associando-o à essência do proibido revelada pelo sistema na concreta norma
incriminadora. Assim, o texto jurídico surge ainda como condição essencialmente
pré-determinante da interpretação permitida em direito penal.
Ao invés, o critério da intencionalidade normativa típica propõe que se determine a
norma do caso concreto, com recurso a diferentes condições de validade (legal,
82
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

dogmática, sistemática e institucional). Segundo esta perspectiva, o sentido jurídico


da expressão não é limitado pelo sentido possível das palavras, mas obtido através da
análise das condições mencionadas. Relativamente à condição legal, trata-se da
necessidade de o concreto juízo incriminatório ter fundamento efectivo numa norma
penal positiva; no que respeita à condição dogmática, corresponde à necessidade de
os tipos legais serem construídos pelo legislador de tal modo que seja possível
apreender o “núcleo axiológico-normativo fundamentante”, com apreciável relevo
para o bem jurídico tutelado; a condição sistemática, por seu turno, pretende garantir
a inobservância de contradições entre a solução proposta para o caso concreto e
situações idênticas tratadas pelo sistema, demandando que aquela interpretação seja
generalizável para casos semelhantes; a condição institucional propõe um controlo
pelo STJ, de forma a assegurar a unidade do Direito.
Aplicando os critérios mencionados à hipótese descrita, diremos que, recorrendo ao
sentido possível e previsível das palavras, parece claro que a sugestão de B a A
configura uma proposta de teor sexual. De facto, expressão utilizada é tipicamente
associada a um convite de teor íntimo, destinado à prática de actos sexuais com o
interlocutor. Dir-se-á, de certa forma, que a experiência de vida normalmente
adquirida permite apreender o sentido da proposta em causa, pelo que seria
inequívoco o intuito de B face a A.
No entanto, o núcleo de protecção da norma (essência do proibido) não parece estar
preenchido na hipótese descrita. De facto, a formulação dessa concreta proposta não
força a vítima a um contexto de natureza sexual indesejado, seja porque não há
contacto sexual, seja porque a vítima não é importunada com uma proposta de teor
sexual explícito, no sentido de ordinária/pornográfica.
Em sentido idêntico parece apontar o critério da intencionalidade normativa típica,
especialmente no que respeita ao preenchimento da condição dogmática. Com efeito,
se por um lado dispomos de uma norma penal positiva que poderia fundamentar um
juízo incriminatório (artigo 170.º do CP), resulta inequívoco que o cenário relatado
não se reconduz ao sentido normativo da proibição. Nos termos já explicitados, o
“núcleo axiológico-normativo fundamentante” da incriminação corresponde A frase
em análise é simplesmente uma sugestão com (óbvia) conotação sexual, mas ainda
83
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

assim sem trazer consigo a expressão de ofensividade para a liberdade sexual – bem
jurídico protegido – pressuposta pela incriminação, que se reconduz a
comportamentos que importem constrangimento da vítima a contacto sexual sério e
objectivo.
Finalmente, releva recordar a função de tutela subsidiária de bens jurídicos assumida
pelo direito penal, em observância dos princípios da ofensividade, proporcionalidade
e necessidade da pena (artigo 18.º/2 da CRP). Representando as sanções penais a
forma de limitação mais intensa de direitos, o recurso a elas apenas se justificará para
a protecção das condições essenciais de liberdade. Nesse sentido, sempre poderá
questionar-se a constitucionalidade desta concreta forma de realização da conduta
típica, por referência aos ditames do conceito material de crime.

2. A faz B abortar, com o seu consentimento (artigo 140.º, n.º 2, do Código Penal).
A não é médico. Imagine que (analise as várias hipóteses separadamente):
a) A provocou o aborto através de uma substância de efeito demorado. Quando
ministrou tal substância a B, o aborto consentido não era punido. Uma semana
depois, entra em vigor a norma constante do artigo 140.º/ 2 do CP. Duas semanas
depois, B abortou.
TD L2 R

L1 ○ 140.º/2 CP Aborto

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):

1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus


delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;

84
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Assim, na situação descrita, afigura-se irrelevante o momento em que se


produziu o resultado típico, i.e., o dia em que Berta abortou, importando
apenas determinar a lei vigente na altura em que a substância foi
ministrada;
▪ Ora, conforme decorre do enunciado da hipótese, no MPF o aborto
consentido não era punido.
▪ Consequentemente, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Abel
não seria punível.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que prevê a
criminalização do aborto consentido;

2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao


agente, da lei posterior à lei vigente no MPF:
➢ Na situação descrita, a L2 revela-se menos favorável ao agente, uma vez
que criminaliza uma conduta que, ao MPF, não assumia relevância penal;
➢ Assim, Abel não se poderia ter motivado por uma norma inexistente, ou
conformado a sua vontade às consequências do ilícito empreendido;
➢ Por esse motivo, os princípios da segurança jurídica e da culpa impõem a
proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao agente
(artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
➢ Desse modo, a L2 não será aplicável, analisando-se a conduta de Abel à
luz do regime jurídico vigente no MPF, que não punia o comportamento
descrito.
➢ Em suma, Abel não será punido pela prática de um crime de aborto
consentido.

85
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

b) Abel praticou o facto em Janeiro de 2006. Em Fevereiro, entra em vigor uma


norma que, alterando o artigo 140.º/2, do CP, fixa a pena máxima para o
aborto consentido em dois anos de prisão. Em Março, esta norma é revogada
e substituída por uma outra que repõe em vigor o regime anterior. Abel é
julgado em Abril.
TD Julg.

Jan.06 Fev.06 Mar.06 Abr.06


L1 – 140.º/2 CP L2 – 140.º/2 CP L3 – revoga L2
Pena máx: 2 anos Repõe L1

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ No caso sub judice, a lei vigente no MPF era a L1, que punia o aborto
consentido com uma pena até três anos de prisão;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Abel seria
punível com uma pena até três anos de prisão.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável


ao agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


▪ Existem duas leis posteriores à lei vigente no MPF (L2 e L3):

86
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ A L2 fixa a pena máxima do crime de aborto consentido em dois anos de


prisão;
➢ A L3 revoga a L2, repondo em vigor a L1.
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente da lei posterior à lei vigente no MPF:
➢ A L2 diminui a pena máxima aplicável ao tipo de ilícito em causa,
mostrando-se mais favorável ao agente;
➢ A L3, por seu turno, repõe em vigor a L1, pelo que não se mostra nem
mais nem menos favorável ao agente do que a lei vigente no MPF;
➢ No entanto, a L2 já não se encontra em vigor no momento da apreciação
da questão, tratando-se, por isso, de uma lei intermédia (início de vigência
posterior ao MPF e cessação de vigência anterior ao julgamento);
➢ Nestas situações, é sobretudo o princípio da igualdade que impõe a
aplicação retroactiva da lei mais favorável ao agente (L2), visto que não
seria admissível que, em função da concreta data do julgamento, dois
agentes que tivessem praticado o mesmo ilícito típico ao abrigo da L2
fossem tratados de forma diferente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP;
artigo 2.º/4 do CP);
➢ Para FIGUEIREDO DIAS, os casos de leis intermédias mais favoráveis
encontram-se resolvidos directamente pelos artigos 29.º/4, 2.ª parte, da
CRP e 2.º/4, 1.ª parte do CP – quando se refere a “leis posteriores” –
justificando-se a aplicação da lei intermédia porque «com a vigência da
lei mais favorável (intermédia) o agente ganhou uma posição jurídica que
deve ficar a coberto da proibição de retroactividade da lei mais grave
posterior»; ademais, observa-se uma necessidade de auto-vinculação do
Estado ao seu Direito;
➢ Em qualquer dos casos, conclui-se pelo afastamento da aplicação da lei
vigente no MPF (L1) e aplica-se a L2 retroactivamente (porque se trata
de uma lei posterior à lei vigente no MPF) e ultra-activamente (porque
corresponde a uma lei que já não se encontra em vigor).

87
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

c) Abel está a ser julgado, quando entra em vigor uma norma que, alterando o
artigo 140.º/2, do CP, fixa em quatro anos de prisão a pena máxima aplicável
a este crime e estabelece uma atenuação especial de pena nos casos em que
o aborto seja provocado em pessoa que esteja na dependência económica do
agente. Esta circunstância atenuante verifica-se.

TD Julg.
L1 – 140.º/2 CP L2 – 140.º/2 CP
Pena máx: 4 anos + atenuação
especial

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Na nossa hipótese, a lei vigente no MPF era a L1, que punia o aborto
consentido com uma pena até três anos de prisão;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Abel seria
punível com uma pena até três anos de prisão.

→ Regra n.º 2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável


ao agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:

88
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2), que fixa a pena
máxima do crime de aborto consentido em quatro anos de prisão,
prevendo ainda uma circunstância atenuante – que, no caso, se verifica.
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente da lei posterior à lei vigente no MPF:
➢ De forma a verificar se a L2 se mostra mais favorável ao agente, importa
proceder a uma análise em concreto, tal como determina o artigo 2.º/4 do
CP:
▪ De acordo com a L1, a pena máxima aplicável a Abel seria de três anos;
▪ Nos termos da L2, a pena máxima aplicável seria de quatro anos,
reduzida de um 1/3, por se observar uma circunstância atenuante (artigo
73.º/1a) do CP); ou seja, a pena máxima situar-se-ia ligeiramente abaixo
dos três anos;
▪ Consequentemente, a L2 revela-se mais favorável a este concreto agente,
pelo que, nos termos do disposto nos artigos 29.º/4, 2.ª parte da CRP e
2.º/4 do CP, seria de aplicar a L2 (igualdade e necessidade da pena);
▪ A propósito destes casos, a doutrina tem discutido a possibilidade de
proceder a uma ponderação diferenciada – por oposição a uma
ponderação unitária – na determinação da lei concretamente mais
favorável ao agente;
▪ Segundo esta posição, o juiz teria a faculdade de compor o regime
definitivo aplicável com partes da regulamentação constante da lei antiga
e outras constantes da lei nova;
▪ Na hipótese em estudo, admitir-se-ia que o juiz utilizasse o limite
máximo de três anos previsto na L1, articulando-o com a circunstância
atenuante consagrada pela L2, o que redundaria numa pena máxima
aplicável de dois anos (3 x 1/3 = 1; 3-1=2);
▪ No entanto, tem-se argumentado contra esta perspectiva invocando a
reserva de lei e exigências de coerência interna do sistema, pugnando-se
pela aplicação de um dos regimes em bloco (ponderação unitária).

89
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Assim, adoptando uma ponderação unitária, a L2 revela-se, em concreto,


mais favorável ao agente, pelo que será aplicável retroactivamente.

d) Preocupada com o grande número de mortes ocorridas na sequência de


abortos clandestinos, a Assembleia da República aprova uma lei que agrava
em 1/3 as penas de todos os crimes de abortos clandestinos verificados dentro
do ano subsequente. Abel pratica o facto na vigência desta norma, mas só é
julgado dois anos depois, quando a mesma já não estava em vigor (estando
em vigor, novamente, a redacção actual do artigo 140.°/ 2, do CP).
TD Julg.

L1 – 140.º/2 CP L2 – 140.º/2 CP L1 – 140.º/2 CP


Agrava as penas
em 1/3
1 ano

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ Na nossa hipótese, a lei vigente no MPF era a L2, que punia o aborto
consentido com uma pena até três anos de prisão, agravada em 1/3, o que
significa que a pena máxima aplicável seria de quatro anos de prisão;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Abel seria
punível com uma pena até quatro anos de prisão.

90
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Não existe propriamente uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2);
➢ Todavia, a L2 já não se encontra em vigor no momento do julgamento,
visto que a sua vigência era limitada ao período de um ano;
➢ Assim, à data do julgamento encontrava-se em vigor a L1;
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável das
leis potencialmente aplicáveis:
➢ A L1 prevê uma pena máxima aplicável ao tipo de ilícito em causa inferior
à consagrada na L2, mostrando-se mais favorável ao agente;
➢ Todavia, a L1 é uma lei temporária:
▪ Critério material: refere-se a uma situação de emergência ou de
anormalidade social – neste caso, o número crescente de mortes ocorridas
na sequência de abortos clandestinos;
▪ Critério formal: pré-determina a data de cessação da respectiva vigência
– na situação descrita, um ano;
▪ A publicação de leis temporárias justifica-se pela alteração de uma
situação fáctica, que impõe a adopção de medidas extraordinárias;
▪ Nesse sentido, não traduz uma alteração da valoração político-
criminal associada à conduta típica;
▪ Por esse motivo, entende-se que as leis temporárias poderão ser aplicadas
ultra-activamente (i.e.., depois da cessação da respectiva vigência), sob
pena de se revelarem inúteis;
▪ Deste modo, e segundo o disposto no artigo 2.º/3 do CP, Abel seria
julgado ao abrigo da L2, que prevê uma pena máxima de três anos de
prisão, agravada de um 1/3.
91
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

e) Em Janeiro de 2006, uma lei revoga os artigos 140.° a 142.° do CP


despenalizando o aborto. Abel faz Berta abortar em Fevereiro. Em Março,
aquela lei é declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo
Tribunal Constitucional. Abel é julgado em Abril.
TD TC – inc. Julg.
L1 – 140.º/2 CP Jan.06 Fev.06 Mar.06 Abr.06
L2 – ○

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ De acordo com o enunciado, a lei vigente no MPF era a L2, que tinha
despenalizado o aborto;
▪ Desta maneira, ao abrigo da lei vigente no MPF a conduta de Abel não
seria punível.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Não existe propriamente uma lei posterior à lei vigente no MPF (L2);

92
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ No entanto, a L2 não se encontra em vigor à data do julgamento, por ter


sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral;
➢ Assim, nos termos do disposto no artigo 282.º/1 da CRP, a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral determina a
repristinação das normas que tenham eventualmente sido revogadas pelo
preceito cuja inconstitucionalidade foi declarada;
➢ No cenário que nos ocupa, a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral da L2 determina a repristinação da L1 (que previa
uma moldura penal até três anos para o crime de aborto consentido);
➢ Consequentemente, à data do julgamento encontrava-se em vigor a L1.
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável das
leis potencialmente aplicáveis:
➢ A L1 punia o crime de aborto consentido com uma pena até três anos de
prisão;
➢ A L2 despenalizava a conduta correspondente ao aborto consentido;
➢ Nesta hipótese, a L2 revelava-se claramente mais favorável, e
correspondia à lei vigente no MPF;
➢ Com recurso à regra da proibição de aplicação retroactiva de lei menos
favorável (artigos 29.º/4, 1.ª parte da CRP e 2.º/1 a contrario do CP),
diríamos, sem grandes dúvidas, que seria aplicável a L2;
➢ Porém, a L2 foi declarada inconstitucional;
▪ Trata-se, portanto, de um caso em que a lei inconstitucional é a lei
vigente no MPF, assumindo-se como mais favorável ao arguido, não
tendo havido ainda julgamento;
▪ A este propósito, tem a doutrina divergido sobre os termos em que se
deve proceder à análise destas situações, merecendo destaque duas
posições específicas: (i) por um lado, sublinha-se que o artigo 29.º da
CRP se insere no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias,
pelo que mesmo as leis inconstitucionais deverão ser aplicadas, quando
assim resultar das regras gerais sobre lei no tempo; (ii) por outro lado,
refere Rui Pereira que, atendendo ao disposto no artigo 204.º da CRP –
93
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

que precede metodologicamente o artigo 29.º da CRP – os tribunais se


encontram impedidos de aplicar leis inconstitucionais; nesse sentido, dir-
se-á que o artigo 29.º da CRP pressupõe a constitucionalidade das leis em
causa; de acordo com esta posição, haverá que recorrer ao regime do erro
sobre a ilicitude (artigos 16.º e 17.º do CP) para salvaguardar os
princípios da segurança e da culpa.

f) Quando Abel praticou o facto, o artigo 140.º/2 do CP remetia para lei


posterior, a aprovar após referendo, a cominação da pena aplicável aos
crimes de aborto. Esta lei entrou em vigor após Abel ter provocado o aborto
em Berta.
TD

L1 – 140.º/2 CP L2 – determina a pena


Remete para lei posterior aplicável
a cominação da pena
aplicável

➢ No cenário descrito, impõe-se começar por analisar a possibilidade de a


L1 remeter para lei posterior (L2) a cominação da pena aplicável aos
crimes de aborto;
➢ A L1 surge como uma norma penal em branco, na medida em que prevê
uma cisão entre a norma de comportamento e a norma que contém a
ameaça penal;
➢ Apesar de este tipo de normas poder colocar problemas de legalidade –
sobretudo nas vertentes de lei escrita e certa – nem sempre as normas
penais em branco enfermam de inconstitucionalidade;
➢ Com efeito, desde que seja possível discernir (i) o bem jurídico protegido;
(ii) o desvalor da acção; e (iii) o desvalor do resultado associado à conduta
típica, entendem-se satisfeitos os requisitos do princípio da legalidade;
➢ Nessa medida, importa discutir se a L1 permite identificar de forma clara
estes três elementos;

94
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Uma resposta afirmativa só será viável perante a conclusão de que a


cominação da pena é meramente concretizadora da norma, e assim,
perfeitamente compaginável com os ditames do princípio da legalidade -
que se afigura complicado;
➢ Ainda assim, admitindo tal cenário, importaria determinar a lei aplicável
ao facto cometido por Abel.

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Exigências de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ De acordo com o enunciado, a lei vigente no MPF era a L1, que punia o
aborto consentido com uma pena até três anos de prisão.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Não existe propriamente uma lei posterior à lei vigente no MPF, uma vez
que, nos termos referidos, a L2 representa uma mera concretização da L1,
limitando-se a prever a sanção aplicável ao comportamento descrito na
norma anterior.
➢ Assim, a conduta de Abel será punida ao abrigo da L1, com a cominação
penal prevista na L2.

95
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

CASOS PRÁTICOS PRINCÍPIO DA LEGALIDADE


GRUPO III

1. Polideuces decide raptar Hileira, trancando-a em casa entre os dias 15 e 19 de


Setembro de 2013, data em que a liberta. Ainda muito assustada, Hileira desabafa com
os seus colegas e estes transmitem a notícia do crime ao Ministério Público. Polideuces
é julgado em Dezembro de 2018.

1.1. Em Outubro de 2013 entra em vigor uma lei que altera o artigo 158.º, n.º 2
do CP:

a) Acrescentando uma al. h) onde se lê: “For praticada em casa da vítima”.


Na resposta a esta hipótese, imagine que o sequestro não durou mais de dois
dias (ocorreu apenas entre 15.09.13 e 17.09.13).

TD
15.09.13 17.09.13 Out 13 Dez18

L1-158.º/1 CP: Sequestro L2-158º/2h) CP: J


+
- Sequestro simples. Casa da vítima - Sequestro agravado, se
praticado em casa da vítima
(=nova circunstância agravante).
Sanção: pena de prisão até 3 anos
ou pena de multa
Sanção: pena de prisão de 2 a 10
anos.

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;

96
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de


se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ A hipótese em análise refere-se à prática de um crime duradouro ou
permanente, o sequestro (p.e.p. no artigo 158.º do CP); estes crimes
caracterizam-se pelo facto de a respectiva consumação se prolongar no
tempo, ao contrário do que se verifica nos crimes instantâneos;
▪ Por essa razão, desde que Polideuces tranca Hileira em casa até ao
momento em que a liberta, consuma a prática do crime de sequestro;
assim, o MPF estende-se desde 15.09.13 a 17.09.13;
▪ Nesse momento, a lei vigente era a L1, que previa o crime de sequestro
simples, punindo-o com uma pena de prisão até três anos ou com pena
de multa (artigo 158.º/1 do CP);
▪ Em paralelo, a L1 não incluía a circunstância de o crime ter sido praticado
em casa da vítima no respectivo número 2, como elemento típico do
crime de sequestro agravado.
▪ Em suma, nos termos da lei vigente no MPF, Polideuces seria punido por
crime de sequestro simples, com uma pena de prisão até três anos, ou
com pena de multa.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2 – que acrescentou a
alínea h) ao número 2 do artigo 158.º do CP, correspondente ao elemento
típico – “ser praticado em casa da vítima” – que funciona como
circunstância agravante do crime de sequestro.
2.1. Classificação da relação verificada entre as duas leis penais

97
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Nos casos em que se observa uma (qualquer) alteração de um elemento


típico do crime, importa aferir da relação estabelecida entre as leis
potencialmente aplicáveis;
➢ Impõe-se comprovar se está em causa uma verdadeira sucessão de leis
penais, que reclama a tutela conferida pelas regras relativas à aplicação
da lei no tempo, i.e., a aplicação retroactiva da lei mais favorável;
➢ Na situação sub judice, a alteração operada consistiu na introdução de um
elemento típico agravante, o facto de o sequestro ter sido perpetrado em
casa da vítima;
➢ A L2 alargou a punibilidade do sequestro agravado, incluindo uma
circunstância que não estava prevista na L1 como merecedora de uma
punição mais gravosa;
➢ Isto é, no MPF, o facto de o sequestro ter sido perpetrado em casa da
vítima não legitimava a recondução deste crime a um crime qualificado,
mas apenas ao crime simples;
➢ Assim, a valoração da conduta de Polideuces ao abrigo da L2 encontra-se
vedada pela proibição de aplicação retroactiva de uma lei menos favorável
ao agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do
CP);
➢ De facto, defender a punibilidade do comportamento a título de sequestro
agravado obrigaria à valoração retroactiva de uma circunstância agravante
que, no MPF, o não era.
➢ Por esse motivo, não se observa uma verdadeira sucessão de leis penais
entre a L1 e a L2, pelo que não haverá que determinar, em concreto, qual
dos regimes se revela mais favorável ao agente, nos termos dos artigos
29.º/1 da CRP e 2.º/4 do CP;
▪ Em síntese, Polideuces será julgado ao abrigo da L1, pelo crime de
sequestro simples, incorrendo numa pena de prisão até três anos ou numa
pena de multa.

98
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

b) Substituindo, por um lado, a actual redacção da al. a) por esta: “For praticada
em casa da vítima”.

Diminuindo em um terço, por outro lado, o limite máximo da moldura


abstracta da pena.

TD Out 13 Dez18
15.09.13 19.09.13

L1-158.º/2a) CP: Sequestro L2-158º/2a) CP: J


+ 2 dias
- Sequestro agravado, se duração Casa da vítima - Sequestro agravado, se
superior a 2 dias; praticado em casa da vítima
(=substitui circunstância
agravante).
Sanção: pena de prisão entre 2 e
10 anos
Sanção: diminui limite máximo
em 1/3

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ A hipótese em análise refere-se à prática de um crime duradouro ou
permanente, o sequestro (p.e.p. no artigo 158.º do CP); estes crimes
caracterizam-se pelo facto de a respectiva consumação se prolongar no
tempo, ao contrário do que se verifica nos crimes instantâneos;
▪ Por essa razão, desde que Polideuces tranca Hileira em casa até ao
momento em que a liberta, consuma a prática do crime de sequestro;
assim, o MPF estende-se desde 15.09.13 a 19.09.13;

99
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Nesse momento, a lei vigente era a L1, que previa a punibilidade a título
agravado do crime de sequestro de duração superior a dois dias; punindo-
o com uma pena de prisão entre dois e dez anos de prisão (artigo 158.º/2a)
do CP);
▪ Em consequência, de acordo com a lei vigente no MPF, Polideuces seria
punido pela prática de um crime de sequestro agravado, com uma pena
de prisão entre dois e dez anos.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2 – que substituiu a
alínea a) ao número 2 do artigo 158.º do CP, estabelecendo como
circunstância agravante o facto de o sequestro ter sido praticado em casa
da vítima;
2.1. Classificação da relação verificada entre as duas leis penais
➢ Nos casos em que se observa uma (qualquer) alteração de um elemento
típico do crime, importa aferir da relação estabelecida entre as leis
potencialmente aplicáveis;
➢ Impõe-se comprovar se está em causa uma verdadeira sucessão de leis
penais, que reclama a tutela conferida pelas regras relativas à aplicação
da lei no tempo, i.e., a aplicação retroactiva da lei mais favorável;
➢ Na situação sub judice, a alteração operada consistiu na substituição de
um elemento típico agravante, prevendo-se agora o facto de o sequestro
ter sido perpetrado em casa da vítima (ao invés da duração da privação da
liberdade);

100
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Neste sentido, os elementos trocados são entre si heterogéneos,


inexistindo qualquer relação entre a L1 e a L2(20);
➢ Desta forma, não se observa uma verdadeira sucessão de leis penais entre
estas disposições, pelo que não haverá que determinar o regime
concretamente mais favorável;
➢ Ora, aplicar a L1 seria aplicar uma moldura penal determinada (agravada)
em função de uma circunstância (“duração superior a dois dias”) a que a
L2 retirou o valor modificativo agravante da pena legal do sequestro;
➢ Paralelamente, aplicar a L2 seria valorar, retroactivamente, como típica,
uma circunstância (“casa da vítima”) que, no MPF, não era elemento do
tipo legal de sequestro qualificado.
➢ Deste modo, a conclusão não pode deixar de ser a de classificar o facto
como crime fundamental de sequestro e puni-lo como tal(21);
▪ Em síntese, Polideuces será julgado pelo crime de sequestro simples,
incorrendo numa pena de prisão até três anos ou numa pena de multa.

c) Substituindo a expressão “dois dias”, constante da al. a), pela expressão “três
dias”.
Aumentando ainda, por um lado, o limite máximo da moldura abstracta da
pena em um terço. Acrescentando ao artigo, por outro lado, o seguinte n.º 4:
“O procedimento criminal depende de queixa”.

(20)
Em sentido idêntico, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 217 e 218.
(21)
Apresentando um exemplo materialmente semelhante, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais,
3.ª edição, 2008, págs. 202 e 218.

101
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

L1-158.º/2a) CP: Sequestro L2-158º/2a) CP: J


+ 2 dias
- Sequestro agravado, se duração Casa da vítima - Sequestro agravado, se duração
superior a 2 dias; superior a 3 dias (=substitui
circunstância agravante).
Sanção: pena de prisão entre 2 e
10 anos
Sanção: aumenta limite máximo
em 1/3;
Crime público
Transforma o crime em semi-
público (dependente de queixa)

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ A hipótese em análise refere-se à prática de um crime duradouro ou
permanente, o sequestro (p.e.p. no artigo 158.º do CP); estes crimes
caracterizam-se pelo facto de a respectiva consumação se prolongar no
tempo, ao contrário do que se verifica nos crimes instantâneos;
▪ Por essa razão, desde que Polideuces tranca Hileira em casa até ao
momento em que a liberta, consuma a prática do crime de sequestro;
assim, o MPF estende-se desde 15.09.13 a 19.09.13;
▪ Nesse momento, a lei vigente era a L1, que previa a punibilidade a título
agravado do crime de sequestro de duração superior a dois dias; punindo-
o com uma pena de prisão entre dois e dez anos de prisão (artigo 158.º/2a)
do CP);

102
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Em consequência, de acordo com a lei vigente no MPF, Polideuces seria


punido pela prática de um crime de sequestro agravado, com uma pena
de prisão entre dois e dez anos.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2 – que substituiu a
alínea a) ao número 2 do artigo 158.º do CP, estabelecendo como
circunstância agravante o facto de o sequestro ter uma duração superior a
três dias;
2.1. Classificação da relação verificada entre as duas leis penais
➢ Nos casos em que se observa uma (qualquer) alteração de um elemento
típico do crime, importa aferir da relação estabelecida entre as leis
potencialmente aplicáveis;
➢ Impõe-se comprovar se está em causa uma verdadeira sucessão de leis
penais, que reclama a tutela conferida pelas regras relativas à aplicação
da lei no tempo, i.e., a aplicação retroactiva da lei mais favorável;
➢ Na situação sub judice, a alteração operada consistiu na substituição de
um elemento típico agravante, reservando-se agora a punibilidade a título
agravado para os sequestros que se prolonguem por mais de três dias;
➢ Em consequência, a alteração observada traduz-se numa redução da
punibilidade, na medida em que os sequestros de duração igual a três
dias deixaram de ser puníveis com uma pena agravada(22);
➢ Recorrendo ao critério da continuidade normativo-típica, haverá que
verificar se o elemento introduzido – duração superior a três dias –

(22)
Efectivamente, ao abrigo da L1 eram considerados agravados os sequestros que durassem 3, 4, 5 ou
mais dias; ao abrigo da L2, apenas são agravados os sequestros que tenham a duração de 4, 5, 6 ou mais
dias.

103
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

funciona como especializador ou especificador de uma circunstância


agravante que já se encontrava prevista na L1;
➢ Nas palavras de TAIPA DE CARVALHO, no primeiro caso “o elemento ex
novo inserido no tipo legal traduz um conceito que não estava implícito
no conceito (geral) da L.A., isto é, acrescenta algo de novo ao tipo legal
da L.A.; no segundo caso, o elemento ex novo inserido no tipo legal
traduz um conceito que já estava necessária e lógica, embora só
implicitamente, contido no conceito (geral) da L.A:, isto é, não acrescenta
um «aliquid» novo ao tipo legal da L.A., mas apenas especifica o âmbito
de intervenção do conceito (elemento) da L.A., não se podendo
rigorosamente, dizer que a L.N. é uma lei especial face à L.A.”(23)
➢ Na situação em análise, revela-se claro e inequívoco que o elemento
introduzido já se encontrava previsto na L1, como circunstância
agravante; de facto, um sequestro que dure mais do que três dias
prolongou-se, necessariamente, por mais do que dois dias;
➢ O mesmo é dizer: todas as condutas que são consideradas agravadas ao
abrigo L2 já eram consideradas agravadas ao abrigo da L1; (todavia, nem
todas as condutas que eram agravadas ao abrigo da L1 são agravadas nos
termos da L2: pense-se nos sequestros que tiveram a duração exacta de
três dias);
➢ Desta forma, conclui-se que o elemento introduzido pela L2 se assume
como meramente concretizador ou especificador, o que implica que se
observe uma verdadeira sucessão de leis penais;
➢ Consequentemente, haverá que determinar o regime concretamente mais
favorável, nos termos do disposto nos artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP;
artigos 2.º/4 do CP(24).
2.2. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente, das leis posteriores à lei vigente no MPF:

(23)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 229.
(24)
Apresentando exemplos materialmente semelhantes, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª
edição, 2008, págs. 221 e ss..

104
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Sucessão de leis penais


▪ O agente praticou um crime de sequestro agravado, tanto no âmbito da
L1 como no âmbito da L2;
▪ L2 aumentou em 1/3 o limite máximo da pena, mas alterou a natureza do
crime, transformando-o em semi-público;
▪ Neste ponto, importa recordar que a doutrina tem discutido a
possibilidade de proceder a uma ponderação diferenciada – por
oposição a uma ponderação unitária – na determinação da lei
concretamente mais favorável ao agente;
▪ Segundo esta posição, o juiz teria a faculdade de compor o regime
definitivo aplicável, recorrendo a partes da regulamentação constante da
lei antiga e outras constantes da lei nova;
▪ Na hipótese em estudo, admitir-se-ia que o juiz utilizasse o limite
máximo previsto na L1, articulando-o com a exigência de apresentação
de queixa prevista na L2(25);
▪ No entanto, tem-se afastado esta perspectiva invocando a reserva de lei,
e exigências de coerência interna do sistema, pugnando-se pela aplicação
de um dos regimes em bloco (ponderação unitária);
▪ Desse modo, haveria que determinar, em concreto, o regime mais
favorável ao agente, e aplicá-lo em bloco;
▪ Conforme vimos, a L1 prevê um crime público, com uma moldura penal
situada entre dois e dez anos de prisão;
▪ A L2, por seu turno, aumenta em 1/3 a moldura penal aplicável, prevendo
todavia a exigência de queixa, i.e., transformando o crime de público em
semi-público;
▪ Consequentemente, importa averiguar os efeitos desta alteração da
natureza do crime, já que, considerando apenas a moldura penal, a L1
seria obviamente mais favorável;

(25)
Sobre esta questão, com exemplos, TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008,
págs. 246 e ss..

105
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ A este propósito, cumpre aludir à relevante distinção estabelecida entre


normas exclusivamente processuais e normas processuais materiais,
implícita na previsão do artigo 5.º do Código de Processo Penal (“CPP”);
▪ Sumariamente, diremos que se consideram normas processuais materiais
aquelas que condicionam a responsabilidade penal ou contendem com os
direitos fundamentais do arguido ou do recluso;
▪ Nesses casos, justifica-se o afastamento do princípio de aplicação
imediata da lei processual, contido no artigo 5.º/1 do CPP, e o
cumprimento das garantias constantes do CP quanto à sucessão de leis
penais.
▪ Os preceitos relativos à natureza dos crimes (público, semi-público ou
particular) traduzem um exemplo típico de normas processuais materiais,
visto que surgem como condições de efectivação da responsabilidade
penal do arguido;
▪ Por essa razão, entende-se que estas normas se encontram sujeitas às
regras sobre aplicação de lei penal no tempo;
▪ No MPF, o crime de sequestro agravado (p.e.p. no artigo 158.º/2 do CP)
assumia a natureza de crime público, o que significa que o MP poderia
promover o processo oficiosamente, sem necessidade de intervenção da
vítima ou outros interessados (princípio da oficialidade – artigos 48.º e
262.º/2 do CPP);
▪ A L2 – lei posterior ao MPF – transformou o crime em semi-público, i.e.,
tornou a promoção do processo pelo MP dependente de queixa (artigo
49.º do CPP);
▪ Em abstracto, a L2 revela-se mais favorável ao arguido – porque
acrescenta um pressuposto adicional à efectivação da respectiva
responsabilidade penal – o que implicaria que se aplicasse
retroactivamente (artigos 29.º/4, 2.ª parte da CRP e 2.º/4 CP);
▪ Apesar de a doutrina concordar largamente com esta asserção, as
consequências dela são retiradas não se revelam unânimes;

106
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Para TAIPA DE CARVALHO, a apresentação de queixa representa uma


condição de procebilidade e não de prosseguibilidade da acção penal,
o que implica que os seus efeitos se achem limitados ao início do
processo; ao invés, a desistência da queixa funciona como uma causa de
extinção do processo penal(26);
▪ Em suma, o autor defende que quando entra em vigor a L2, se “o
procedimento criminal já foi iniciado, não é necessária a queixa, mas
pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do prosseguimento da
acção penal”(27);
▪ Para MARIA FERNANDA PALMA, os princípios da igualdade e da
necessidade da pena, bem como as exigências de objectividade,
previsibilidade e segurança jurídica inerentes a um Estado de Direito,
impõem que se conceda a oportunidade processual ao titular do direito
de queixa de o exercer após a entrada em vigor da L2(28);
▪ Com estes dados, haverá que proceder a uma ponderação em concreto,
verificando, com recurso aos dados da hipótese, qual das leis se revela
mais benéfica para o arguido;
▪ Assim, urge que notar que, na situação descrita: (i) não foi apresentada
queixa (a transmissão da notícia do crime ao MP, pelos amigos,
reconduz-se à figura da denúncia e não da queixa – artigo 244.º e ss. do
CPP); e (ii) o MP já promoveu o processo;
▪ Nestes termos, a posição defendida por TAIPA DE CARVALHO levaria a
concluir que, com a entrada em vigor da L2, se deveria conceder a Hileira
a possibilidade de desistir do procedimento criminal, tal como previsto
no artigo 116.º/2 do CP; caso o não fizesse, o procedimento seguiria os
respectivos trâmites;

(26)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, págs. 390 e 392.
(27)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 391.
(28)
MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos;
Princípio da legalidade: interpretação da lei penal e aplicação da lei penal no tempo, 2019, pág. 179.

107
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

▪ Diferentemente, a solução proposta por MARIA FERNANDA PALMA


implica que Hileira venha aos autos exercer o respectivo direito de
queixa, ao abrigo do disposto no artigo 113.º e ss. do CP; no que se refere
a esta posição, não se afigura clara a consequência a retirar do não
exercício deste direito pelo titular, mas parece coerente que, nesse caso,
o processo se extinga por falta de legitimidade do MP para o promover;
▪ Assim sendo, uma vez que o exercício (positivo) do direito de queixa se
revela mais oneroso para a vítima do que a desistência da queixa – e,
consequentemente, mais favorável para o arguido – classificaremos
como mais favorável o regime previsto pela L2, ainda que com uma
moldura penal abstracta mais elevada.

d) Acrescentando o seguinte trecho (depois da redacção das alíneas): “e desde


que a privação da liberdade seja realizada em casa da vítima”.

TD Out 13 Dez18
15.09.13 19.09.13

L1-158.º/2a) CP: Sequestro L2-158º/2a) CP: J


+ 2 dias
- Sequestro agravado, se duração Casa da vítima - Sequestro agravado, se duração
superior a 2 dias; superior a 2 dias

E
Sanção: pena de prisão entre 2 e
10 anos.
- Desde que perpetrado em casa da
vítima.

Sanção: pena de prisão entre 2 e 10


anos.

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):

108
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o


agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;
➢ Imposições de segurança e culpa: o agente tem que ter a possibilidade de
se motivar pela norma e de se conformar com as consequências da sua
conduta;
▪ A hipótese em análise refere-se à prática de um crime duradouro ou
permanente, o sequestro (p.e.p. no artigo 158.º do CP); estes crimes
caracterizam-se pelo facto de a respectiva consumação se prolongar no
tempo, ao contrário do que se verifica nos crimes instantâneos;
▪ Por essa razão, desde que Polideuces tranca Hileira em casa até ao
momento em que a liberta, consuma a prática do crime de sequestro;
assim, o MPF estende-se desde 15.09.13 a 19.09.13;
▪ Nesse momento, a lei vigente era a L1, que previa a punibilidade a título
agravado do crime de sequestro de duração superior a dois dias;
sancionando-o com uma pena de prisão entre dois e dez anos de prisão
(artigo 158.º/2a) do CP);
▪ Em consequência, de acordo com a lei vigente no MPF, Polideuces seria
punido pela prática de um crime de sequestro agravado, com uma pena
de prisão entre dois e dez anos.

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2, que acrescenta ao
número 2 do artigo 158.º do CP um circunstância agravante geral, que se
refere à necessidade de a privação da liberdade ter sido realizada em casa
da vítima;
2.1. Classificação da relação verificada entre as duas leis penais

109
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Nos casos em que se observa uma (qualquer) alteração de um elemento


típico do crime, importa aferir da relação estabelecida entre as leis
potencialmente aplicáveis;
➢ Impõe-se comprovar se está em causa uma verdadeira sucessão de leis
penais, que reclama a tutela conferida pelas regras relativas à aplicação
da lei no tempo, i.e., a aplicação retroactiva da lei mais favorável;
➢ Na situação sub judice, a alteração operada consistiu na introdução de um
elemento típico agravante geral, reservando-se agora a punibilidade a
título agravado para os sequestros que, para além de preencherem as
alíneas a) a g), tenham sido realizados em casa da vítima;
➢ Em consequência, a alteração observada traduz-se numa redução da
punibilidade do sequestro agravado, na medida em que os sequestros que
não tenham ocorrido em casa da vítima deixaram de ser puníveis com uma
pena mais grave;
➢ Por outras palavras, à luz da L2 não basta que o sequestro tenha, por
exemplo, durado mais do que dois dias (alínea a)), exigindo-se ainda que
a privação da liberdade se tenha observado em casa da vítima;
➢ Recorrendo ao critério da continuidade normativo-típica, haverá que
verificar se o elemento introduzido – “privação da liberdade em casa da
vítima” – funciona como especializador ou especificador de uma
circunstância agravante já prevista na L1;
➢ Nas palavras de TAIPA DE CARVALHO, no primeiro caso “o elemento ex
novo inserido no tipo legal traduz um conceito que não estava implícito
no conceito (geral) da L.A., isto é, acrescenta algo de novo ao tipo legal
da L.A.; no segundo caso, o elemento ex novo inserido no tipo legal
traduz um conceito que já estava necessária e lógica, embora só
implicitamente, contido no conceito (geral) da L.A:, isto é, não acrescenta
um «aliquid» novo ao tipo legal da L.A., mas apenas especifica o âmbito

110
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

de intervenção do conceito (elemento) da L.A., não se podendo


rigorosamente, dizer que a L.N. é uma lei especial face à L.A.”(29)
➢ Na situação em estudo, revela-se claro e inequívoco que o elemento
introduzido não se encontrava de forma alguma consagrado na L1, como
circunstância agravante;
➢ Com efeito, os motivos que, ao abrigo da L1, pareciam revelar uma
necessidade superior de tutela em nada se aproximam da ideia de
protecção da segurança do lar, ínsita à opção vertida na L2;
➢ Desta forma, conclui-se que o elemento introduzido pela L2 se assume
como verdadeiramente especializador, o que implica que se não se
verifique uma verdadeira sucessão de leis penais;
➢ Por essa razão, não haverá que determinar o regime concretamente mais
favorável;
➢ Ora, aplicar a L1 seria aplicar uma moldura penal determinada (agravada)
em função de uma circunstância (“duração superior a dois dias”) que a L2
considera insuficiente para justificar uma sanção mais grave (igualdade;
necessidade da pena);
➢ Paralelamente, aplicar a L2 seria valorar, retroactivamente, como típica,
uma circunstância (“casa da vítima”) que, no MPF, não era elemento do
tipo legal de sequestro agravado.
▪ Deste modo, a conclusão não pode deixar de ser a de classificar o facto
como crime fundamental de sequestro e puni-lo como tal;
▪ Em síntese, Polideuces será julgado pelo crime de sequestro simples,

incorrendo numa pena de prisão até três anos ou numa pena de multa.

1.2. Em Novembro entra em vigor uma lei que aumenta para o dobro os prazos
previstos no artigo 122.º/1 do CP.

(29)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 229.

111
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

TD Nov 13 Dez18
15.09.13 19.09.13

L1-122.º/1 CP L2-122.º/1 CP: duplica os J


prazos de prescrição da pena.

➢ Perante esta hipótese, cumpre recuperar a destrinça estabelecida entre


normas exclusivamente processuais e normas processuais materiais,
implícita na previsão do artigo 5.º do CPP;
➢ Conforme referido, constituem normas processuais materiais aquelas que
condicionam a responsabilidade penal ou contendem com os direitos
fundamentais do arguido ou do recluso;
➢ Nesses casos, justifica-se o afastamento do princípio de aplicação
imediata da lei processual, contido no artigo 5.º/1 do CPP, e o
cumprimento das garantias constantes do CP quanto à sucessão de leis
penais.
➢ As disposições relativas aos prazos de prescrição – quer do procedimento
criminal, quer da pena (artigos 118.º e ss. do CPP) – afirmam-se como
normas processuais materiais, visto que surgem como causas de extinção
da responsabilidade criminal;
➢ Por essa razão, entende-se que estas normas se encontram sujeitas às
regras sobre aplicação de lei penal no tempo.

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”)(30):
➢ Artigo 3.º do CP: critério unilateral da conduta = momento em que o
agente actuou – ou deveria ter actuado – independentemente do resultado;

(30)
Note-se que, apesar de a contagem do prazo de prescrição da pena só se iniciar no dia em que transitar
em julgado a decisão que tiver aplicado a pena (artigo 122.º/2 do CP), a determinação da lei aplicável faz-
se com recurso ao critério do tempus delicti (artigo 3.º do CP). Sublinhando este aspecto, TAIPA DE
CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 377.

112
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ No MPF, os prazos de prescrição da pena variavam entre quatro e 20 anos,


em função da pena concretamente aplicada;
➢ O que significa que a pena potencialmente aplicada a Polideuces
prescreveria, no máximo, em 15 anos (o crime de sequestro agravado
apresenta uma moldura penal abstracta entre dois e dez anos).

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ Existe uma lei posterior à lei vigente no MPF: a L2 – que duplica os prazos
de prescrição da pena previstos no artigo 122.º/1 do CP;
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente, das leis posteriores à lei vigente no MPF
▪ Na situação descrita, a L2 revela-se menos favorável ao agente, uma vez
que duplica os prazos de prescrição da pena aplicáveis;
▪ Assim, ao abrigo da L2 o prazo de prescrição a que Polideuces se
encontraria sujeito passaria de 15 para 30 anos;
▪ Conforme explicitado, os princípios da segurança jurídica e da culpa
impõem a proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
▪ Desse modo, a L2 não será aplicável, relevando os prazos de prescrição
da pena previstos na L1.
1.3. Em Abril de 2014 entra em vigor uma lei que acrescenta ao artigo 158.º do
CP o seguinte número 4: “O procedimento criminal depende de queixa”.

TD Abr14 Dez18
15.09.13 19.09.13

L1-158.º/2 CP L2-158.º/2 CP J
Crime público Crime semi-público

113
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

➢ Uma vez mais urge aludir à diferença entre normas exclusivamente


processuais e normas processuais materiais, implícita na previsão do
artigo 5.º do Código de Processo Penal (“CPP”);
➢ Sinteticamente, diremos que se consideram normas processuais materiais
aquelas que condicionam a responsabilidade penal ou contendem com os
direitos fundamentais do arguido ou do recluso;
➢ Nesses cenários, impõe-se o afastamento do princípio de aplicação
imediata da lei processual, contido no artigo 5.º/1 do CPP, e o
cumprimento das garantias constantes do CP quanto à sucessão de leis
penais.
➢ Os normativos referentes à natureza dos crimes (público, semi-público ou
particular) traduzem um exemplo típico de normas processuais materiais,
visto que surgem como condições de efectivação da responsabilidade
penal do arguido;
➢ Por essa razão, entende-se que estas normas se encontram sujeitas às
regras sobre aplicação de lei penal no tempo.

→ Regra n.º1: aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto


(artigos 29.º/1 da CRP e 2.º/1 do CP):
1) Determinação da lei vigente no momento da prática do facto ou tempus
delicti (“MPF” ou “TD”):
➢ No MPF, o crime de sequestro agravado (p.e.p. no artigo 158.º/2 do CP)
assumia a natureza de crime público, o que significa que o MP poderia
promover o processo oficiosamente, sem necessidade de intervenção da
vítima ou outros interessados (princípio da oficialidade – artigos 48.º e
262.º/2 do CPP);

114
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

→ Regra n.º2: proibição de aplicação retroactiva de lei menos favorável ao


agente (artigos 29.º/4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º/1 a contrario do CP);
→ Regra n.º3: imposição de aplicação retroactiva de lei mais favorável ao
agente (artigos 29.º/4, 2.ª parte, da CRP; artigos 2.º/2 e 4 do CP).

2) Averiguação da existência de leis posteriores à lei vigente no MPF:


➢ A L2 – lei posterior ao MPF – transformou o crime em semi-público, i.e.,
tornou a promoção do processo pelo MP dependente de queixa (artigo 49.º
do CPP);
2.1. Determinação da natureza concretamente mais ou menos favorável ao
agente, das leis posteriores à lei vigente no MPF
➢ Em abstracto, a L2 revela-se mais favorável ao arguido – porque
acrescenta um pressuposto adicional à efectivação da respectiva
responsabilidade penal – o que implicaria que se aplicasse
retroactivamente (artigos 29.º/4, 2.ª parte da CRP e 2.º/4 CP);
➢ Apesar de a doutrina concordar largamente com esta asserção, as
consequências dela são retiradas não se revelam unânimes;
➢ Para TAIPA DE CARVALHO, a apresentação de queixa representa uma
condição de procebilidade e não de prosseguibilidade da acção penal,
o que implica que os seus efeitos se achem limitados ao início do
processo; ao invés, a desistência da queixa funciona como uma causa de
extinção do processo penal(31);
➢ Em suma, o autor defende que quando entra em vigor a L2, se “o
procedimento criminal já foi iniciado, não é necessária a queixa, mas
pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do prosseguimento da
acção penal”(32);
➢ Para MARIA FERNANDA PALMA, os princípios da igualdade e da
necessidade da pena, bem como as exigências de objectividade,
previsibilidade e segurança jurídica inerentes a um Estado de Direito,

(31)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, págs. 390 e 392.
(32)
TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3.ª edição, 2008, pág. 391.

115
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

impõem que se conceda a oportunidade processual ao titular do direito de


queixa de o exercer após a entrada em vigor da L2(33);
▪ Com estes elementos, haverá que proceder a uma ponderação em
concreto, verificando, com recurso aos dados da hipótese, qual das leis
se revela mais benéfica para o arguido;
▪ Assim, importa sublinhar que, na situação descrita: (i) não foi
apresentada queixa (a transmissão da notícia do crime ao MP, pelos
amigos, reconduz-se à figura da denúncia e não da queixa – artigo 244.º
e ss. do CPP); (ii) o prazo de seis meses previsto no artigo 115.º/1 do CP
já decorreu; e (iii) o MP já promoveu o processo;
▪ Consequentemente, a posição defendida por TAIPA DE CARVALHO levaria
a concluir que, com a entrada em vigor da L2, se deveria conceder a
Hileira a possibilidade de desistir do procedimento criminal, tal como
previsto no artigo 116.º/2 do CP; caso o não fizesse, o procedimento
seguiria os respectivos trâmites;
▪ De acordo com esta perspectiva, revelar-se-ia indiferente que o prazo
previsto no artigo 115.º/1 do CP já tivesse decorrido;
▪ Diferentemente, a solução proposta por MARIA FERNANDA PALMA
implica que Hileira venha aos autos exercer o respectivo direito de
queixa, ao abrigo do disposto no artigo 113.º e ss. do CP;
▪ Neste modelo, parece-nos adequado defender que o prazo previsto no
artigo 115.º/1 do CP se contará a partir da entrada em vigor da L2;
▪ Donde resulta que Hileira teria até Outubro de 2014 para apresentar a
competente queixa, sob pena de extinção do procedimento;
▪ Atentando aos danos da hipótese, parece legítimo concluir que a postura
assumida por MARIA FERNANDA PALMA se revela mais favorável ao
arguido: por um lado, obriga a uma intervenção activa da vítima; por

MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos;
(33)

Princípio da legalidade: interpretação da lei penal e aplicação da lei penal no tempo, 2016, pág. 179.

116
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2021/2022
DIREITO PENAL I
SUBTURMAS 1, 3 E 12

outro, impõe um limite temporal mais restrito do que o previsto para a


desistência da queixa(34).

(34)
Efectivamente, segundo o entendimento proposto por MARIA FERNANDA PALMA, o procedimento
criminal extinguir-se-ia logo em Outubro de 2014, caso Hileira não apresentasse queixa; ao invés,
adoptando a visão de TAIPA DE CARVALHO, o arguido poderia ter que aguardar até à publicação da sentença
em primeira instância para ter a certeza do destino do procedimento (artigo 116.º/2 do CP).

117

Você também pode gostar