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São Paulo, 2011

BRASIL:1
Construindo
um Pais

Autora:
Ana Carolina Corrêa da Costa Leister
2

O Direito Mudou a Crise (Walter Ceneviva)

A maioria absoluta dos brasileiros não havia


nascido quando eclodiu a crise econômico-
financeira de 1929. Os temores que agora nos
preocupam têm a invocação diária dos perigos
pelos quais passa o planeta. A crise tem,
contudo, para o Brasil, caracterização diversa
daquela de 82 anos atrás. Diversidade
decorrente, para nosso país, das transformações
pelas quais passou o Direito brasileiro nesse
período e depois de 1945.

Uns poucos exemplos facilitam a compreensão.


Antes, a indústria automobilística, o
transporte urbano nas maiores cidades, a
produção de energia elétrica, a telefonia, o
fornecimento de combustíveis, entre outros,
eram controlados de fora do Brasil. Nosso
Direito era elemento secundário ante o
predomínio da administração externa.

(...)

Depois, o Direito se modificou. Privilegiou a


produção nacional. Diversificou a atividade
agrícola. Ampliou a quantidade e a qualidade
dos clientes.

(....)

Mesmo neste mundo globalizado, o esforço será


para que o Direito interno seja garantido pelas
regras de Constituição e das leis do Brasil. Ao
menos, parece indiscutível que o Direito pode
preservar o país, em face do capital
internacional, muito mais do que há 80 anos.
3

I. O INSTITUCIONALISMO: ESTADO, MERCADO E


DEMOCRACIA COMO PRODUTOS TECNOLÓGICOS
HUMANOS

O mundo ocidental, centro inquestionável de poder militar, econômico,


cultural, e político, não foi um produto natural do desenvolvimento
histórico, mas uma construção racional que combinou descoberta,
artefato e invenção. Este mundo começou a ser delineado no início século XVII
alicerçado na emergência da ciência moderna como uma nova forma de conhecimento,
de natureza analítica e criterial, caracterizada pelo domínio da causa eficiente dos
fenômenos da natureza, com Galileu, e por sua transformação em meio, como
tecnologia, para realização de fins. Essa nova forma de conhecimento foi consagrada
por Descartes como um procedimento metódico, um conjunto de regras capaz de
reproduzir e replicar a natureza proporcionando a sua conquista e domínio. O
procedimento analítico que reduziu a natureza a unidades indivisíveis dotadas de massa
foi aplicado, com Descartes e Hobbes, no estudo do universo social, começando por
reluzi-lo a indivíduos dotados de racionalidade e autointeresse (Chiappin e Leister,
2010). Esta abordagem que pretende construir tanto uma ciência quanto uma engenharia
social universal responde pelo nome de institucionalismo1.

É Descartes o responsável pela construção dos fundamentos ontológicos do


mundo ocidental com sua dicotomia essencial entre o indivíduo racional – como
entidade do mundo social, político e econômico –, e a matéria – dotada de massa e
velocidade –, como entidades básicas do mundo mecânico. São esses fundamentos que
constituem as premissas da conquista e domínio da natureza pela ciência moderna. Com
essa fundamentação Descartes separa dicotomicamente o espírito e a matéria, esta
última com suas características determinadas pela mecânica e pela matemática. Quanto
à primeira, o indivíduo é identificado a um ser racional dotado de intelecto e vontade. O
intelecto é finito e a vontade infinita. O equilíbrio entre essas duas faculdades para
evitar o erro é produzido pela aplicação do método. O indivíduo nessa fundamentação

1
Mais especificamente, esta é a linha institucionalista da escolha racional (Hall e Taylor, 1996).
4

metafísica se coloca, como agente racional e autointeressado, e, por aí, como centro e
fim da natureza.

Hobbes trabalha com e sobre esses fundamentos metafísicos e metodológicos de


Descartes buscando implementar a idéia que o procedimento racional não é apenas meio
de conquista e domínio da natureza, mas, principalmente, instrumento de conhecimento
da natureza humana, e, por aqui, da construção de um ambiente social para que nele o
indivíduo se realize como fim. Hobbes rompe com toda uma tradição aristotélica de que
os indivíduos são, por sua própria natureza, desiguais, e, de que o estado é o resultado
de um desenvolvimento da história natural, ao colocar como hipótese do Estado
Moderno um estado originário, denominado por ele de um estado de natureza, que é
aquele onde os indivíduos são agentes racionais, iguais, dotados de uma vontade
autônoma, e, livres, e ao interagir entre si, o fazem em termos de relações de poder.

A natureza desse estado natural onde os indivíduos por serem iguais e livres,
dotados de vontade autônoma, portanto, indivíduos com preferências e interesses que
podem ser opostos e conflitantes, é um estado de guerra. Hobbes estabelece a filosofia
política fundamental do mundo moderno, o realismo da política de poder. A solução
para o problema da paz desse estado de natureza entre unidades de poder que são os
indivíduos racionais e autointeressados, portanto, que se relacionam em termos de
poder, é tanto a construção, pela engenharia dos indivíduos racionais, que constroem um
instrumento de coordenação das vontades livres para transformá-las, de decisões
individuais, em decisões coletivas, aqui, por meio do contrato social, a partir do qual
desenvolve uma tecnologia institucional denominada Estado, ao qual transferem ou
delegam seu direito originário natural de autocomposição, i.e., o recurso à própria força
para a solução de conflitos (Leister, 2005).

Neste contrato social o teórico constrói a fonte da legitimidade da obrigação dos


indivíduos perante às decisões do Estado, e, os transforma em pessoas, portanto,
dotando-os de um conjunto de direitos e obrigações. A tecnologia institucional do
Estado tem o objetivo da realização do interesse público, agora, associado à idéia da
construção de um ambiente social apropriado para que o indivíduo se realize como fim e
não como meio. A ciência política de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, que continuou
fornecendo os recursos para o desenvolvimento de uma engenharia social que
transformou, desenvolveu e refinou o Estado de Hobbes é uma das duas mais
5

importantes tecnologias de organização social que o mundo ocidental inventou (Leister


e Chiappin, 2010a, 2010b). Seu desdobramento mais imediato, com a agregação do
princípio da separação de poderes, da legalidade, dos direitos à liberdade e à
propriedade, se deu pela construção do Estado de Direito e do indivíduo como pessoa,
portanto, como dotado de direitos e obrigações. Nasce assim o Estado Liberal.

A segunda importante tecnologia que o racionalismo emergente desenvolveu


para compor o conjunto de instituições de organização social do mundo ocidental, é,
com Smith no século XVIII, a economia de mercado, sistematicamente implantada
como forma de produção, distribuição e alocação dos recursos, proporcionando um
mecanismo econômico consistente com os valores do Estado de Direito que tem seu
fundamento no indivíduo como pessoa. A terceira importante tecnologia desenvolvida
para tornar o Estado Moderno estável e consistente com seus valores e pressupostos é a
forma democrática de governo. A tecnologia desta forma de governo veio compor o
conjunto fundamental das instituições voltadas para produzir uma organização social de
tal modo que o indivíduo se realize como fim. O conjunto dessas três tecnologias
geradas pela ciência e filosofia política compuseram o que hodiernamente conhecemos
como um Estado Social e Democrático de Direito, dotado este de uma economia de
mercado capitalista.

A natureza dessa tecnologia de organização social que é o Estado Moderno do


mundo ocidental favoreceu o desenvolvimento e a aplicação da ciência no
desenvolvimento de tecnologias de produção e distribuição no mercado de bens e
serviços, transformando a Europa, em particular a Inglaterra, por meio das duas
revoluções industriais, século XVII e XIX, no novo centro de poder mundial como uma
potencia industrial, econômica, política e militar. Essas mesmas tecnologias, Estado,
mercado, democracia, e, a idéia de que as relações entre indivíduos são sempre relações
de poder, assim como, o desenvolvimento de uma rede de universidade e empresas, com
os incentivos adequados, produzindo conhecimento, foram também e continuam sendo
os instrumentos e a dinâmica por trás da construção da nação americana. O resultado
mais contemporâneo dessas transformações, proveniente da aplicação bem sucedida de
alguma combinação e adaptação da três tecnologias de organização social ocidental, é o
que pode ser denominado de a classe C das nações. Brasil, China, Índia, México,
Turquia, Indonésia, Coréia do Sul e África do Sul estão emergindo como novas
6

potências mundiais e em breve substituirão as tradicionais como França, Inglaterra,


Canadá e Itália. O G10 será, muito em breve, bastante diverso daquele que se
consolidou após a II Guerra Mundial.

II. E O BRASIL NESTE CONTEXTO?

O nde nos colocamos e para onde nos leva as circunstancias e a trajetória do


desenvolvimento econômico e político do Brasil? Temos algum projeto para
transformar nossos recursos territoriais, populacionais, naturais e
institucionais em poder econômico e político? Nosso grande feito até 1891 pode ser
aquele de ter permanecido como uma nação sem incorrer num processo de
desintegração. Isso pode ser atribuído ao plano político com a opção pela forma de
estado do Império e como forma de governo a monarquia. Nesse mesmo tempo os
Estados Unidos inventava, inovando a ciência política da época, o sistema de estado
federativo, com a forma de governo de uma republica presidencialista, através da
construção de uma constituição e de um controle constitucional atribuído ao judiciário e
operado de maneira difusa para produzir e conduzir uma cooperação entre vários
estados com grande autonomia. A relação de trabalho escravocrata foi o componente
nuclear de nosso modelo econômico por quase quatrocentos anos. Esse modelo se
completava por ser latifundiário, exportador e de monocultura produtiva.

Com o colapso do Império, deixando como resultado uma organização social


caracterizada como aristocrática, rural e com um baixíssimo grau de industrialização,
começamos a explorar a aplicação da tecnologia de organização social inventada pela
Europa e pelos Estados Unidos que consiste no Estado Democrático e Liberal de Direito
com a economia de mercado. O Brasil se transformou no plano político em uma
republica federativa presidencialista seguindo o modelo dos Estados Unidos e no plano
econômico se propôs a construir uma economia de mercado o que significava se mover
de uma economia agrária para uma economia industrial. Aqui estava a oportunidade de
um primeiro projeto de poder pela construção de um país com uma base industrial
moderna. Nada obstante, tal idéia nem parece ter sido cogitada pela classe política que
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demonstrava agir, em termos de poder político, de modo extremamente seletivo


satisfazendo interesses apenas locais.

A história nos ensina que falhando a classe política, a tecnologia política adotada
para a construção de uma economia de mercado industrial foi aquela da ditadura que a
conduziu de forma top-down, i.e., com investimentos e direção do Estado. Essa
tecnologia política autoritária forçou a transferência de renda do setor agrário para o
desenvolvimento industrial, desenvolveu as primeiras instituições para dinamizar a
indústria que consistia na regulamentação das relações trabalhistas e promoveu o
desenvolvimento das primeiras empresas estatais (Tácito, 1997). O desenvolvimento
mais profundo e dinâmico da economia de mercado, agora com o setor de serviços,
além da agricultura e da indústria, carecia de um sistema financeiro capaz de fomentar o
investimento privado, em particular de uma autoridade monetária, ou seja, de um Banco
Central do qual já tínhamos como modelo o sistema financeiro americano desde 1913.
Novamente, a classe política foi incapaz visualizar a importância de implantar as
instituições do sistema financeiro para a construção de uma economia de mercado
moderna e o Brasil teve que conviver com três autoridades monetárias trazendo consigo
todos os problemas decorrentes da superposição de tarefas e de poder.

Toda a engenharia legal da construção do sistema financeiro nacional que pudesse


estimular o acumulo de poupança e de sua transformação em investimento já estava
pronta para ser implantada, mas não havia consenso político, e, certamente, o Estado era
capturado para servir os interesses de grupos políticos locais, na melhor ilustração
daquilo que hodiernamente conhecemos como comportamento de rent-seeking (Tullock,
1987, 1989). Assim, nossa classe política novamente não foi, uma vez mais, capaz, em
um período de democracia, de produzir um projeto de país como uma democracia
liberal dotado de uma economia de mercado dinâmica alavancada também por
investimentos privados. A construção desse sistema financeiro só foi possível, como a
história nos ensina, com uma ditadura, agora ditadura militar. Alguns dos primeiros atos
dessa ditadura foi exatamente a construção dos pilares desse sistema com a Lei Nº
4.595/64 que criava o sistema financeiro nacional com a construção da CMN e do
Banco Central do Brasil e a Lei Nº 4.728/65 que disciplina, e praticamente cria, o
mercado de capitais, completada pelas Lei Nº 6.835/76 que cria a CVM e a Lei Nº
6.404/76 das S.A.
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A ditadura militar também elaborou um projeto de poder, como é de sua natureza,


levando em conta as características territoriais, populacionais e de recursos naturais do
país, usurpando, pela inércia, o que deveria ser natural de uma classe política escolhida
como representante da soberania popular. Nada obstante, esses dois períodos de
ditadura emergiram pela ineficiência do sistema político institucional de encontrar as
instituições adequadas para que os partidos se estabilizassem e adequadamente
representassem as diversas correntes de opiniões no país. Uma dessas instituições que
pode ter sido reprovada como inadequada é aquela de apenas um único mandato para
presidente, governadores e prefeitos. Com a construção da instituição de dois mandatos
presidenciais, portanto, eleição com uma reeleição presidencial, talvez tenhamos
encontrado um modelo de democracia política mais estável capaz de permitir
implementar políticas mais duradores, portanto não de curto, mas de longo alcance
como foi o exemplo do Plano Real com suas duas etapas, cumpridas, exatamente em
dois mandatos presidenciais, onde no primeiro mandato, se procurou reduzir e controlar
a inflação com um certo enxugamento do Estado, e, no segundo mandato, elaborar os
elementos da política econômica que implementassem a busca da estabilidade
econômica e política, com o tripé da política econômica dos programas de meta de
inflação, de metas de política fiscal e de regime monetário de cambio livre.

Neste mesmo contexto histórico da construção do Brasil como formado das


tecnologias das organizações sociais da ciência política moderna que foram aquelas do
Estado Social e Democrático de Direito e a economia de mercado, esse Estado Nação
que é o Brasil foi aos poucos, depois de ter garantido ao longo de quatrocentos anos sua
integridade física, montando a partir de proclamação da Republica no final do século
XIX o mesmo conjunto de organizações sociais que tornaram a Inglaterra, e, por aí a
Europa e os Estados Unidos, o centro do poder mundial, ou seja, o Brasil começou a
construir suas instituições do Estado Social e Democrático de Direito, consolidado com
a Constituição Federal de 1988 e de uma economia de mercado acionada por um
sistema financeiro ainda que recente razoavelmente eficiente para amortizar poderosos
choques externos como foi a crise de 2008. Com a crescente estabilidade econômica e
política o Brasil começa a contemplar a emergência de uma imensa, em torno de 50%
da população brasileira, classe média com poder político e econômico, formando um
patrimônio de poder econômico e político que é seu mercado interno.
9

Recentemente, esse mercado interno se mostrou capaz de produzir uma riqueza


nacional superior àquela da Itália tornando-se a sétima potência econômica mundial. Os
dados demonstram ainda que na continuação dessa política de estabilidade e
crescimento sustentável o pais pode ultrapassar nos próximos dois ou três anos tanto a
Inglaterra como a França, encostando na Alemanha e definindo nossa competição para
tornar-se a quinta potência econômica do planeta. Neste contexto, ela terá que interagir
e competir com as duas superpotências da atualidade, Estados Unidos e China, cada
qual com seus modelos políticos antagônicos. Os Estados Unidos com um Estado
Democrático de Direito enquanto a China com um modelo autocrático de governo
assentado em partido único, ambos, contudo, compartilhando a aposta em uma
economia de mercado. Nossa sobrevivência bem sucedida nesta competição deverá
requerer novas habilidades do país, mas, em termos básicos, deveremos aprender a
calibrar estrategicamente a combinação de Estado e Mercado. Tamanho territorial,
população, clima tropical, água abundante, recursos minerais e mercado interno
demandam da classe política brasileira uma política de estado como aquelas
desenvolvidas pelos atuais potências como os Estados Unidos, Rússia, China, União
Européia e Índia.

Mais do que isso, é imprescindível evitar um “tratado de Mithuem” com qualquer


país, mas, particularmente, com a China e optar por um desenvolvimento industrial,
cientifico e tecnológico, por uma educação de período integral e por uma rede de
universidades e empresas em interação. A integração física, política e econômica da
America do Sul e da Amazônia Azul deverão ser feitas simultaneamente, e em conjunto
com a superação das desigualdades sociais e regionais, e isso tanto interna quanto
externamente. Se, segundo nossa premissa um dos grandes feitos do Brasil nos
primeiros quatrocentos anos de sua história foi o de ter permanecido unificado e
integrado fisicamente, agora, o desafio é tanto manter-se unificado como exercitar sua
soberania plena sobre o que se denomina de Amazônia Azul que corresponde quase à
metade de sua extensão territorial ou massa terrestre2. A descoberta do pré-sal com sua
riqueza em termos de gás e petróleo ainda dependendo de uma avaliação mais segura de
seu potencial, se deu exatamente no coração dessa Amazônia Azul, o que coloca de

2
A Amazônia Azul é constituída da soma da Zona Econômica Exclusiva e da Plataforma Continental.
10

maneira irreversível a necessidade de conquista e controle dessa área como elemento


estratégico do desenvolvimento econômico, político e social do país.

Juntas, a Floresta Amazônica e a Amazônia Azul formam os dois maiores biomas


brasileiros e que compostos com o Cerrado, o Pantanal, o semiárido nordestino e a Mata
Atlântica, temos formado a maior biodiversidade do planeta. Desta forma, o Brasil, 500
anos após sua descoberta ainda está definindo suas fronteiras, pois, foi submetida uma
proposta à ONU, a partir de um Levantamento da Plataforma Continental Brasileira, de
estender a jurisdição brasileira sobre essa plataforma até o limite máximo permitido pela
ONU. Teremos assim acrescentado à massa territorial brasileira uma outra metade
correspondente à Amazônia Azul. E, como é cediço, território é um dos principais
componentes daquilo que se entende por poder de uma nação, e, se esse território vem
acompanhado de recursos naturais, não se trata apenas de poder em termos de
dimensões territoriais, antes, de poder econômico, e, por aí, poder político.

III. ALBERTO TORRES E O PROJETO DE UMA NAÇÃO

ossa perspectiva neste trabalho é apresentar o projeto político para o

N
Brasil esboçado por Alberto Torres em sua obra A Organização
Nacional. Seu projeto, segundo nossa análise, antecipou muito daquilo
que se foi implementando desde o advento da República, e ainda que
seus alicerces possam ter sido deitados já no Império, no Brasil, conforme apresentamos
em capítulo prévio. Desta forma, se pode identificar em Torres um dos pioneiros na
construção de um projeto de país, o Brasil, que vem sendo construído até
hodiernamente, qual seja, um país cujo desenvolvimento vem sendo capitaneado e
construído sob a direção do Estado, um Estado centralizado leia-se, antes que um
federalista descentralizado. Este projeto, justamente aquele que vingou no Brasil, opõe-
se ao projeto liberal defendido por Ruy Barbosa, a quem Torres buscou se opor. Para
além de identificar em Torres o projeto que vingou no país, procura-se indicar que o
Brasil tinha e tem seu projeto de país, um projeto que combina Estado, economia de
mercado e democracia, como os demais países do mundo Ocidental, mas, igualmente,
um projeto de caráter eminentemente nacional, e nesse sentido, não uma mera cópia das
idéias e das instituições estrangeiras. Por aí se quer dizer que o que somos hoje não
11

pode ser creditado a uma elite sem visão e ao resultado da casuística, antes, que
tínhamos e temos um projeto de país, que, a despeito dos percalços sofridos, não se
deixou de implementar por meio da condução forte do Estado, ainda que nem sempre
democrático, como comentamos anteriormente3.

Republicano como Ruy Barbosa, mas partidário de uma visão mais centralizadora
de poder e de um papel mais proeminente e intervencionista do Estado, Torres
antecipou o projeto que vingou no país, às expensas daquele fomentado por Barbosa.
Nessa perspectiva, Torres pretendia construir um projeto que representasse um meio
termo entre, de um lado, a centralização política extremada que vigeu no Brasil -
Império, e, de outro, a importação do modelo de descentralização federalista
estadunidense que era trazida na bagagem de Ruy Barbosa e que se pretendeu
implementar com nossa primeira constituição republicana. Na construção deste projeto,
Torres precisava realizar uma escolha entre o institucionalismo e o culturalismo. Não
escolhe nenhuma dessas abordagens. Escolher o institucionalismo significaria a
importação de instituições alienígenas, em particular o federalismo descentralizado
americano; escolher o segundo, abrir mão da república em favor de uma combinação
conservadora de centralismo político com coronelismo local. Embora sua leitura nos
permita classificá-lo como institucionalista, Torres não deixa de flertar em seu texto
com alguns aspectos do culturalismo. Essa combinação pouco ortodoxa teoricamente
permitiu na prática a construção de um projeto de país republicano, mas com veios
estritamente nacionalistas. Essa perspectiva Torres a expressa em seus questionamentos,
in verbis:

‘Não há espírito, livre das dependências da política militante no círculo das


opiniões e convenções em que se agitam as lutas oficiais e partidárias, que se
não tenha apresentado e formulado, no atual momento da nossa vida pública,
esta interrogação: o estado de coisas em que se encontra o nosso país permite a
permanência do atual regime político, movendo-se dentro de suas normas
estabelecidas e sujeito ao funcionamento irregular da Constituição e dos
processos artificiais que a deturpam, ou impõe o estudo direto dos problemas
do Brasil e da República, empreendendo-se o trabalho complexo de os solver,
com o sistema de medidas orgânicas, institucionais e de legislação prática que
demandam? Por outros termos: o caminho que o Brasil vai seguindo obedece à
determinação de seus elementos positivos – sua terra e sua sociedade – e o
conduz à satisfação de suas necessidades e à realização de seus interesses? É

3
Em certo sentido, países que se industrializaram apenas tardiamente, caso do Brasil, em regra passaram
por períodos de ditadura, ditadura esta que permitiu a rápida industrialização por meio de medidas
autoritárias.
12

possível pôr em prática o conjunto de medidas que se impõem à vida nacional,


com o aparelho de suas instituições vigentes?’ (2002, Seção Segunda – O
Governo e a Política, s/p.).

Segundo essas palavras de Torres, podemos vislumbrar sua decepção com a política
vigente, notadamente por não ver nela uma política de cunho nacional. Daí indicar
como seu método o uso da razão como forma de apreender o desenvolvimento natural
de uma sociedade, e neste ponto já podemos vislumbrar seus pontos de contato com o
culturalismo, e como desdobramento desse desenvolvimento, da adequabilidade de suas
instituições políticas a essa sociedade. Para além da inadequabilidade denunciada por
ele, uma outra nos é apresentada: o modelo de economia voltado à exportação. Torres
antecede o que é hodiernamente uma visão, e uma realidade no país com a emergência
da classe C, que nosso mercado interno é nossa maior riqueza, e como pudemos
perceber da última crise econômica global, que este mercado interno funciona como
anteparo e mecanismo estabilizador de nossa economia diante das convulsões
econômicas internacionais. A construção desse mercado interno, que vai desde as
reformas de Getúlio Vargas até o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso e as
políticas redistributivas de Luis Inácio Lula da Silva, opõe-se frontalmente ao modelo
de economia para exportação pugnado hodiernamente por muitos de nossos
economistas que defendiam a aplicação, ao Brasil, do modelo econômico dos Tigres
Asiáticos, e por aí, o controle, por parte do Estado, da taxa de câmbio. Esse modelo não
apenas não vingou, como aquele que se tornou hegemônico, como queria Torres, é o
que tem levado o Brasil a se tornar a sétima economia mundial, devendo, ainda neste
ano, ao ultrapassar o Reino Unido, assumir a sexta posição4.

Impende ressaltar que o modelo advogado por Torres, e isso graças ao seu viés
culturalista, deve ser construído na forma botton-up, in verbis:

‘Formado de alto para baixo, o governo é um mecanismo artificial, que


corresponde, sem dúvida, a uma ordem, e mantém esta ordem, sendo lícito,
contudo, inquirir-se se em troca da conciliação material que garante entre as
pessoas e as relações sociais, não é, de fato, um jugo para a sociedade e uma
opressão, para o indivíduo’ (idem).

Esse viés, nada obstante, não compromete sua clara opção pelo institucionalismo:

4
http://economia.ig.com.br/brasil-deve-fechar-2011-como-a-sexta-maior-economia-do-
mundo/n1597344915924.html. Consultado em 03 de novembro de 2011.
13

‘O espírito liberal enganou-se, reduzindo a ação dos governos: a autoridade,


isto é, o império, a majestade, o arbítrio, devem ser combatidos, mas o governo,
forte em seu papel de apoiar e desenvolver o indivíduo e de coordenar a
sociedade, num regime de inteira e ilimitada publicidade e de ampla e
inequívoca discussão, deve ser revigorado com outras atribuições’ (idem).

Em sua perspectiva, o Estado tem um claro papel de agente planejador e não pode
deixar de exercê-lo sob o pejo do liberalismo importado. Sua tese central, aquela que
responde pelo seu nacionalismo, cumpre salientar, é a necessidade que vê nas
instituições políticas de serem amoldadas às características físicas e culturais de seu país
(povo, território, recursos naturais, etc). Em seu projeto cumpre ao Estado capitanear o
desenvolvimento do país. Mas cumpre fazê-lo por meio, primeiramente, de sua
identificação à sua população, e para tal, dando condições para que essa população
venha a se constituir, florescer e progredir. Daí sua severa crítica às várias tentativas
governamentais de povoar o território nacional por meio de incentivos e medidas
cambiantes e de curto prazo. Para Torres, sem dar à população condições para se
enraizar, sem dar efetivos meios para promover sua fixação à terra e seu
desenvolvimento econômico, tudo o que poderão fomentar é a implantação de povos
estranhos ao país, povos estes que não se fixam à terra, antes, que vagueiam como
loucos atrás de melhores condições e oportunidades. Para tanto, faz-se necessário a
elaboração de uma política que tome em conta as reais necessidades de sua população
local, que em vez de construir uma economia voltada para a exportação, incapaz esta de
atender às demandas nacionais, pautar sua produção nessas necessidades. E, verdade
seja dita, enquanto se fizeram ouvidos moucos a esses reclamos de Torres, nossa
economia não se desenvolveu de maneira sustentada. A vinculação entre produção e
consumo, lição das mais chãs da teoria econômica, e aqui adiantada por Torres, não foi
aqui seguida senão a partir das duas grandes guerras mundiais do século XX. Uma das
medidas necessárias para proceder a esse modelo econômico segundo Torres – a
reforma agrária – não se deu senão nas duas últimas décadas. Verdade seja dita que o
modelo de produção econômica de Torres era quase fisiocrata, i.e., reconhecia na
agricultura a fonte primeira da riqueza nacional5. Considerando o período em que ele

5
Para Torres o comércio não era atividade geradora de riqueza. Ainda que equivocada, sua crítica não é
sem propósito, particularmente se pensarmos na contratualização e descolamento da economia financeira
da economia real que engendrou a crise financeira de 2008 (Leister, 2011).
14

escreveu, quando nossa industrialização era apenas um sonho e uma vaga, sua
fisiocracia não nos parece fora de contexto6.

As medidas pugnadas por Torres devem ser implementadas, ut supra dixit, sob a
direção do Estado, ainda que não na forma top-down. Para tanto, sem buscar a
centralização do Império, Torres parece apontar que o federalismo republicano
estadunidense importado por Ruy Barbosa é inapropriado para o nosso país. Daí sua
defesa de uma reforma política que restrinja a autonomia dos Estados e municípios,
fomentadora que era da corrupção e do coronelismo, em favor de um governo central
mais forte capaz de coordenar e fazer convergir os interesses nacionais, notadamente
quanto aos regimes fiscais, buscando sua homogeneização, haja visto que sua
heterogeneidade é, ainda hoje, uma das fontes primárias das desigualdades regionais.
Sua proposta permite adiantar o modelo de federalismo cooperativo eleito e desenhado
em nossa Constituição Federal de 1988. Não vinga no país, todavia, sua adesão ao
parlamentarismo. De todo modo, como se pode depreender de sua leitura, o
institucionalismo de Torres o leva a confiar nas instituições como forma de
implementação de um projeto de país, nunca em personalidades, haja visto sua
consideração de que o país carece de estadistas. Suas projeções se concretizaram.

IV. NOTAS FINAIS

O objetivo deste ensaio foi apresentar a atualidade do projeto de Torres para a


construção de um país esboçado em sua obra A Organização Nacional, indicando ser
este projeto, antes que o de Ruy Barbosa, aquele que prevaleceu, implementou-se e se
tornou hegemônico hodiernamente em nosso país. Procurou-se indicar, ainda, que o
desenvolvimento do país, a despeito de seus percalços, estes em grande medida devidos
a interesses regionais que fomentaram as desigualdades regionais, não se fez

6
E a ver o peso do agronegócio na produção da riqueza nacional ainda hodiernamente (ainda que agora
altamente tecnologizado), sequer podemos caracterizar sua fisiocracia de ultrapassada. E, em certo
sentido, a visão de Torres pode ainda ser tomada como atual, e isso ao menos por duas razões: (i)
primeiro, porque os países que se desindustrializaram e optaram pelo desenvolvimento econômico pela
via dos serviços, caso da Europa excluindo a Alemanha, sofre hoje de sérios problemas; (ii) segundo
porque os recursos naturais, e em particular os energéticos, são hoje a principal fonte de riqueza de um
país (Leister, 2007).
15

casuisticamente, antes, foi racionalmente planejado e construído pelo Estado, graças aos
veios centralizador e intervencionista que Torres pugnava para ele.
16

V. BIBLIOGRAFIA

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