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A Construção da Identidade Nacional Brasileira

José Luiz Fiorin

Identidade nacional: autodescrição da cultura.


Cultura: exclusão e participação.
Culturas de mistura x Culturas de triagem.
Cultura brasileira: autodescrita como cultura de mistura.

As identidades nacionais são criações modernas, construídas entre os séculos XVIII


e XIX. Elas são uma herança simbólica e material da lembrança coletiva.
Nacionalidade é identidade. A formação dessa identidade é determinada pelo
patrimônio histórico de cada nação e no seu culto. No Brasil, houve um desafio para
denominar esse patrimônio, num território diverso de dimensões continentais. A
herança material da cultura nem sempre existe e, no caso do Brasil, ela teve de
passar por um processo de invenção que desse testemunho de seu passado e
representasse uma coesão nacional. Essa coesão depende de uma série de
representações simbólicas, materiais, que evoquem uma continuidade histórica, uma
ancestralidade heroica e virtuosa. Depende também de uma língua, de monumentos, de
um folclore, de paisagens típicas e locais importantes. Uma nação precisa ter
representações oficiais, ter um hino, uma bandeira, um escudo, ter costumes,
culinárias e de símbolos da sua fauna e flora. A nacionalidade é um discurso e esse
discurso é fruto de um diálogo. O Brasil é uma das primeiras experiências bem-
sucedidas de Estado-nação fora da Europa.

A nação é uma ficção histórica, pois é uma identidade baseada na ideia de um


destino comum de um povo, que suplanta suas contradições de classe, regionais e
raciais. E essa identidade precisa de uma ideia de unidade para se manter coesa e
uma ideia de alteridade para se distinguir das outras nacionalidades. No caso do
Brasil, o grande Outro a se distinguir é Portugal. O problema é que esse grande
Outro esteve por trás da nossa formação nacional, proclamou nossa independência e
construiu nossas instituições. Os contornos lusitanos da identidade nacional
brasileira já são dados pelo próprio fato de que o proclamador da nossa
independência teria sido um príncipe que renega sua nacionalidade portuguesa em
favor de uma identidade nacional brasileira.

Algumas identidades nacionais se veem como mistura, outras como unidade. A cada um
desses modelos corresponde, respectivamente, um princípio de participação e outro
de exclusão. E a cada um desses princípios, corresponde um regime cultural: no caso
da mistura, o cotejo entre o igual e o desigual, onde o igual são grandezas
intercambiáveis e o desigual grandezas superiores e inferiores. No caso da
exclusão, a triagem entre o exclusivo e o excluído, que confrontam o puro e o
impuro. No regime de exclusão, a circulação cultural é restrita, interditada. No
regime de mistura, a circulação cultural é contínua, permitida. A triagem é tônica,
opera sobre princípios de unidade, nulidade e universalidade. A mistura é átona,
opera sobre princípios de totalidade e diversidade. A triagem opera pelos valores
do absoluto, da intensidade, são culturas mais fechadas, onde se concentram os
valores dos desejáveis e se excluem os dos indesejáveis. A mistura opera sobre
valores do universal, de extensividade, são mais abertas, buscam expansão e
participação.

A literatura tem um papel fundamental na formação da identidade nacional. O


romantismo está na linha de frente da construção dessa identidade. No Brasil, o
romance O Guarani, de José de Alencar, é a obra mais significativa dessa
identidade, onde ele descreve a paisagem típica, a formação étnica e a
singularidade cultural brasileiras. Essa autodescrição romântica da literatura,
evidentemente, é parcial. Mas, como modelo autodescritivo da cultura, ela opera um
papel importante na formação social do Brasil. É nela que se assenta a noção de que
a cultura brasileira é uma cultura da mistura. O romance de Alencar inaugura o mito
fundador do Brasil, do indígena cristianizado e da portuguesa abrasileirada, ou
seja, o casamento luso-tupi entre natureza e cultura, entre a América e Europa, a
síntese entre o velho e o novo mundo, após a superação dos horrores da colonização
e da perversidade bárbara da natureza. Como numa terra seca após um dilúvio, a
identidade nacional emerge como a união indissolúvel de duas civilizações, a
lusitana e a guarani. E essa união tem uma língua original, um português
crioulizado pela natureza tupi-guarani, refletindo na sua própria estrutura
fonossintática as texturas da paisagem da América. Então, o romance que melhor
corporifica nosso mito fundacional, não poderia ser escrito em português culto, mas
representar na sua escrita o patoá brasileiro. Essa independência linguística é
parte constituinte da nossa independência política.

Mais tarde, outro elemento da construção identitária do Brasil se constitui sobre a


ideia da mestiçagem, a assimilação como jeito de ser típico do Brasil. Assim, o
valor cultural do Brasil não poderia ser outro senão o da antropofagia, como
descrita por Oswald de Andrada. Esse mito fundacional opera de forma funcional na
obra de ensaístas como Freyre, que descrevem a colonização portuguesa como branda e
tolerante, em contraste com a cultura violenta e fechada da colonização inglesa e
francesa. O Brasil é celebrado como o país da mistura cultural da herança de
brancos, negros e indígenas, sem fronteiras, uma mistura que é completa e rica, em
contraste com a pureza que é incompleta e pobre. A mistura é o culto à mulata, à
tolerância do sincretismo religioso, da harmonia entre culturas outrora
antagônicas. A identidade brasileira também se constitui por um mito fundacional de
seus políticos, uma figura do político brasileiro como tipicamente conciliador.
Essa concepção de mistura também está presente nas representações da música popular
e nos esportes. Até os mais pessimistas dos pensadores da nossa formação nacional
reproduziam esses clichês sobre a natureza do Brasil e do povo brasileiro.

Mas, é claro, como mito fundacional, a democracia racial brasileira é uma


falsificação. Na constituição da "raça brasileira", por exemplo, os negros foram
excluídos do processo de "miscigenação", primeiro por serem escravizados, depois
por serem considerados rudes, incultos, incivilizados, ao contrário dos imigrantes
europeus, trazidos para branquear a raça brasileira. Mesmo nas narrativas que
buscavam dignificar os negros e criticar a escravidão, como na obra de Aluísio
Azevedo, há um ranço de embranquecimento na figura do mulato, como o negro quase
branco, que se dignifica por se afastar de suas raízes negras. A questão para ele
não é dignificar as características dos negros, mas criticar o preconceito que
barra o caminho do seu branqueamento. A visão de exclusão do negro retratada no
romance de Aluísio de Azevedo é a típica lógica do universo da pureza. O branco é o
exclusivo, o negro é o excluído. O puro é superior, o impuro é inferior. Azevedo
exalta a mistura, num discurso pretensamente antirracista, mas que, por trás,
oculta uma ideia de melhoramento da raça que, na prática, também é um discurso
racista, excludente do negro através da sua "purificação" pela mestiçagem.

Além disso, o que caracterizaria nossa cultura como um processo de mistura tem um
aspecto pendular, ora se manifesta como um processo excludente, ora como inclusivo,
ora de mistura, ora de triagem. Mas, via de regra, o princípio da exclusão
prevalece. E isso se deu mesmo contra alguns imigrantes europeus, como aconteceu
com os italianos, como retratado no romance de Alcântara Machado. O mesmo se deu
com os poloneses. Lima Barreto narra em seus romances o preconceito racial e social
contra os pobres mestiços em Clara dos Anjos, Recordações do Escrivão Isaías
Caminha e em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Há também a exclusão das mulheres
como narrado em Inocência, de Taunay. A homofobia também se deixa perceber em obras
como O Bom Crioulo de Adolfo Caminha, que medicaliza e condena a homossexualidade.

O mito da mistura na formação social brasileira impediu que, ao longo da história,


fossem confrontadas as sua contradições internas. A ideia de que nossa sociedade é
a sociedade da participação e da miscigenação oculta os preconceitos,
discriminações, violências brutais e opressões da nossa história. O homem cordial
brasileiro, assim, é um ser folclórico, mitológico, que fetichiza, que oculta as
relações reais de exclusão, de triagem da nossas relações sociais.

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