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Copyright © by Tayana Alvez

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes,

pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Título | Proibida de Amar

Ano de lançamento | 2021

Edição | 1ª

Revisão | Anna Laitano

Diagramação | April Kroes

Arte da capa | Bernaliel

Classificação indicativa: 18 anos!


Alerta de conteúdo: cenas de sexo explícito, linguagem
imprópria, consumo de drogas lícitas e menção a

relacionamento abusivo.
Sumário
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Epílogo
Agradecimentos
Nota da autora
Sobre a autora
A todas as princesas presas no abismo e precisando de um resgate:
Você já pensou que o seu príncipe encantado pode ser preto?
A vocês duas. Que iluminam minha vida e merecem ser
cuidadas como ninguém mais no mundo.

AeF
OLIVER

Meu filho está se casando.

Imaginei esse momento várias vezes desde que meu garoto


começou a namorar Isadora e me disse que se casaria com ela.

Mas, em todas as vezes, eu, Peter e a Catherine ainda éramos uma


família.

Em todos os quadros que pintei dessa história, Catherine era


o meu par para o evento, a minha esposa e o meu amor.

Agora, no entanto, isso fica nublado diante de mim.

Não apenas pelo divórcio que me foi imposto, há quase um


ano, nem pela distância a qual fui submetido do dia para a noite, e
sim por ela:

Eduarda Campbell.
Convidar Eduarda para vir comigo ao casamento do meu

filho, apenas para que eu não ficasse sozinho enquanto a mãe dele

já seguiu em frente, parecia mesquinho. Mas era a única saída.


E eu tinha duas opções: seguir os conselhos dos meus

amigos e contratar uma acompanhante ou propor à Duda — uma

das poucas amizades que fiz no Rio — que fosse minha namorada
de mentira pelo fim de semana.

Ela já representou esse papel uma vez, então não foi difícil

entrar no personagem novamente. Além do mais, prometi a Eduarda


que ela poderá contar comigo para colocar o pai do filho dela no

lugar quantas vezes for necessário. E eu tinha certeza de que era só


isso: uma troca de favores.

Agora, no entanto, estou parado com um copo de uísque na

mão, numa rodinha com os homens da família da minha ex,

ouvindo-os falar sobre coisas nas quais não estou interessado e

sorrindo e acenando vez ou outra, extremamente desconfortável.

Mas a verdade é que estou me perguntando quando Catherine


sumiu dos meus pensamentos e Eduarda se tornou o foco deles;

como eu passei a última noite de pau duro só de pensar no selinho


que ela me deu durante o jantar de ensaio e no quão impaciente
estou para que os noivos se despeçam e nós possamos voltar para

o quarto, porque quero ficar a sós com ela novamente.

E isso me assusta, porque observá-la com o grupo de amigas

da noiva, sorrindo e tomando champanhe como se fosse de fato a

mulher de um dos convidados, sabendo que, depois disso, é na

minha cama que ela vai encerrar o dia, faz algo dentro de mim dizer
que isso é o certo. Ela é a pessoa certa, e não Catherine.

O que minha mente está ignorando, no entanto, é que

Eduarda não só não olha pra mim desse jeito, como já deixou bem

claro sua posição a respeito de homens mais velhos: ela não tem

interesse.

E, mesmo que minha primeira lembrança do dia de hoje seja

ela dormindo no meu peitoral, isso não é algo que eu possa ignorar.
DUDA

Existem três coisas que ninguém te fala quando você

engravida aos 17 anos:


● A partir de agora, você tem um coração que bate fora do

seu peito;
● A única pessoa que não vai te abandonar é você mesma

e...
● O amor é uma ação.

Se eu tivesse sabido disso antes, obviamente não teria me

ferrado tanto por seis torturantes anos. Ou teria, adolescente só faz


merda. O fato é:
Eu não pensei nessas coisas e ninguém as disse para mim.

Por isso, “viver” agora tem outro significado: lidar com as


consequências dos erros da Eduarda do passado.

E eu queria, queria muito que ela soubesse que camisinha

era, sim, indispensável, que o Márcio era um sapo disfarçado de


príncipe encantado e que ela, a menina mais bonita da escola, a

popular, a princesinha do quarteto, seria a mais fodida das quatro.

— Não, você não virou modelo, nem atriz, nem trabalha em


cruzeiros viajando pelo mundo, Eduarda do passado. Porque você

fez péssimas escolhas — falo para a menina na foto da lembrança

do dia no Facebook, na qual eu, Fani, Lavínia e Amanda, minhas


melhores amigas, estamos sentadas com nossas mochilas de

cachorrinho no pátio do Colégio Pedro II, quando meu celular apita


avisando que está na hora de correr. — Você agora tem dois

empregos, porque um só não te sustentaria, e um deles é ser Uber

— digo para a foto, dando a partida no carro. Preciso pegar um

passageiro que está a cinco minutos daqui.

Queira Deus que essa pessoa não seja um cliente

insuportável e nem ache que me paga pela terapia. Nada pior do


que um cliente desses às 20h de uma segunda-feira.
Paro o carro próximo à saída da garagem de um prédio
comercial.

— Oliver? — digo abaixando o vidro.

— Isso. Eduarda? — o homem pergunta com um sorriso

gentil no rosto, e eu pisco duas vezes antes de responder

destravando a porta traseira.

— Sim, senhor.
— Ipanema, certo? — confirmo pelo retrovisor.

— Por favor. — Ele assente e eu dou partida.

Quando lhe pergunto se gostaria de uma música, ele

dispensa. Quando ofereço água, também. Contudo, assim que

passamos da metade da viagem, sua voz chega aos meus ouvidos

perguntando se ele pode pegar uma balinha, e eu respondo que

sim.
— Teria problema se eu pegasse duas? Essas balinhas são...

— a fala dele morre, e eu nego com a cabeça.

— Incríveis. Pode pegar duas, sim — respondo sorrindo e

foco na estrada à minha frente, estamos quase chegando e não

quero conversar agora.

Mas ainda o observo deliciar sua bala de framboesa pelo


retrovisor.
Lavínia, minha colega de quarto e melhor amiga, dificilmente

chega tão tarde às segundas-feiras, então pego meu celular apenas


para confirmar o que já sei.

Eu: Cê janta em casa?

Lavínia: Ah, eu vou ficar no Dani hoje, esqueci de avisar.

Ela manda com uma carinha sapeca no fim, e eu assinto

fechando a geladeira. Não vou cozinhar para comer sozinha.


Pego um pacote de biscoito de maizena no armário e encho a
xícara de água, colocando-a no micro-ondas.

Duda: Obrigada por avisar, tá? Eu poderia ter feito alguma coisa.

Lavínia: E ainda pode. Não são nem 22h.

Agora a carinha é debochada.


Duda: Haha. Vou aproveitar minha companhia que eu ganho mais.

Lavínia: Amanhã eu vou pra casa e vou reinstalar o seu tinder.

Duda: Depois daquele trauma? Deus me livre. Amanhã eu chego


tarde, vou correr até meia-noite.

Lavínia: Tá bem, te esperarei na sua cama. Te amo.

Duda: Te amo.

Jogo o celular no sofá e me sento na banqueta do balcão que


divide nossa cozinha americana. Repassando a programação na

minha agenda, vejo que só preciso entregar material para as duas


clientes de amanhã no fim da tarde, o que significa que, pelo menos
hoje, posso me dar ao luxo de dormir “cedo”.

Fecho o notebook, desço, ligo o micro-ondas por quarenta


segundos e, logo depois, jogo o saquinho de chá ali.
Pego meu celular e saio da sala, apagando as luzes das
áreas comuns do apê. Me jogo na minha cama antes das 22h e isso
é bom. Vou poder lanchar enquanto fico em uma chamada com o

Felipe.

OLIVER

O CEO transferido.

Mesmo que eu tenha passado os últimos dois meses me


dividindo entre o Rio e São Paulo, até minha mudança oficial na

última semana, ainda sou visto como alguém estranho para os


funcionários da MDM.
Empresa à qual eu tenho dedicado minha vida ao longo dos

últimos quinze anos; os primeiros sete na Inglaterra, e os outros


aqui no Brasil, onde fui promovido a CEO da divisão, há três anos.

Jogando o terno na mesa da minha varanda dos fundos, me


sento com um sorvete e observo meu quintal. É grande, espaçoso,

tem um jardim e uma pequena horta, tem irrigadores que ligam


pontualmente à meia-noite e tem o cachorro, que ainda não me
notou aqui. Começo a correr com o sorvete porque, se ele me pedir,
não vou conseguir negar.
A próxima coisa que invade minha mente é que, apesar de

todos os elogios feitos ao quintal, eu não gosto tanto daqui.


Na verdade, nunca gostei muito de grama. Amo minha horta,

até gosto do jardim que “cerca” os muros, mas o quintal ser 100%
gramado é fruto das escolhas de Catherine. Quando ficou decidido
que eu seria transferido de São Paulo para o Rio, a empresa estava

passando por uma reestruturação e tudo ficou um caos, assim, eu

não tinha tempo para administrar a mudança para cá, então foi a
Cath que escolheu a casa, quando ainda estávamos juntos e nem

passava pela minha cabeça que nós pudéssemos nos separar

algum dia.

Cath vem do interior da Inglaterra, ela ama quintais


gramados, então cedi para que ela se sentisse bem aqui, afinal,

estávamos nos mudando por minha causa.

Nosso outro impasse nesse processo foi “o tamanho da casa


x ter uma piscina”, que era a minha única exigência no início do

processo. Infelizmente, nenhuma casa com piscina era grande o

bastante para Catherine, então estou preso numa casa de quatro


quartos, o que é inútil agora que moro aqui sozinho.
Ou melhor, quase sozinho. Buddy, meu labrador, mora

comigo desde o divórcio. Ele foi um presente de casa nova que


Peter, meu filho, deu para mim. No entanto, acabou servindo mais

como um presente de consolação pós-divórcio.

O cachorro me encara abanando o rabo e sorrio para ele.


— Como foi o seu dia, Buddy? — pergunto e ele dá dois

latidos. — Mesmo? O meu dia também foi bom. Mas eu não tive a

Rosângela pra me mimar, não.

Rosângela, minha diarista, também comentou que essa casa


é grande demais para o cachorro e para mim, mas a empresa

fechou um contrato de dois anos com a imobiliária, não há nada que

eu possa fazer agora.


Buddy mantém os olhos fixos em mim enquanto finalizo o

sorvete, são olhos tão pidões que quase sinto dor no peito em me

fingir de desentendido, mas isso é para o bem dele, que late mais
uma vez e começa a me lamber quando estendo a mão para tocar

sua cabeça. Sei que o menino quer colo, mas ainda estou com a

calça social e odiaria sujá-la nas patas de quem correu no quintal o

dia inteiro. Então faço um cafuné em sua cabeça e entro para tomar
um banho.
Quando saio do banho, encontro Buddy ao pé da minha

cama, no tapete onde dorme todas as noites, então o carrego para o

quarto onde ficam as coisas dele e limpo suas patas para que
possamos passar um tempo juntos no sofá da sala vendo TV. Em

seguida, pego meu celular para pedir janta em um aplicativo, mas

logo vejo a notificação de um e-mail na tela.

Deixo o cachorro seguir para a sala e abro a notificação,


porque pode ser um e-mail importante do trabalho. Mesmo que eu

tenha deixado a empresa há menos de duas horas e o horário

comercial já tenha passado há um bom tempo, ainda posso receber


algo de Nova Iorque, onde, aparentemente, ninguém dorme mesmo.

Contudo, assim que olho a notificação, minha garganta fecha.

Falta pouco mais de um mês para o casamento do meu filho, e eu

não poderia estar mais desanimado com isso.


Atualizo meu aplicativo de e-mails uma vez mais, vendo que

está tudo em ordem na empresa, checo meu calendário e faço uma

anotação para perguntar à minha secretária em que pé estão as


coisas para a organização da reunião trimestral da empresa.
Esse quintal enorme e inútil vai me servir para alguma coisa,

afinal: dar bons jantares e festas e, com sorte, quando eu for o CEO
que abriu a casa para um terço dos funcionários da empresa, eles

vão olhar para mim mais como um chefe e menos como o

pseudoestrangeiro recém-chegado.
DUDA

Todos os dias da minha vida me arrependo amargamente de


quando decidi empreender. O que não significa que eu quero um

trabalho de carteira assinada, gosto de ser CEO de MEI, minha


própria chefe e mandar nos meus horários, mesmo que meus
horários mandem em mim às vezes.

Mas também têm dias como esse, que eu posso sair de casa

meio-dia, pegar meu filho na escola e passar o dia com ele.

— Eu disse para a irmã mais velha da minha amiga da escola

que você trabalha no Instagram — Felipe me conta enquanto

caminhamos de mãos dadas pelo Shopping Tijuca, e eu rio.


— Ah, é? E o que ela disse? — pergunto, pois meu filho de

quase sete anos não precisa entender esses pormenores, ele nem
sabe o que é um Instagram.

— Que você deve ser muito famosa. — Felipe vê minha cara

feia para ele e se corrige. — Que a senhora deve... Aí ela perguntou

se você era criadora de conteúdo e eu disse que sim, né? A senhora


vive criando um monte de conteúdo — ele diz dando de ombros três

vezes, e eu seguro o riso.

Eu não trabalho no Instagram. Eu trabalho com o Instagram

dos outros. Faço o gerenciamento de mídias sociais, ou seja: sou

paga para cuidar do calendário de postagens e criar posts para

pessoas que, geralmente, não tem tempo — ou talento — para isso.

— Ah, entendi. Mas e as aulas, hein? Como estão? —

pergunto quando ele pula para o degrau à nossa frente na escada


rolante.

— Eu sou um aluno nota oito, mamãe. Não tiro menos que

isso — ele garante com o indicador levantado.

— E nem mais, né, moleque? Eu tô de olho em você. —

Ajudo-o a sair da escada rolante enquanto ele gargalha.


Entramos em uma loja de departamentos para comprar
algumas blusas para ele. Felipe some em dois minutos, mas eu nem

me preocupo mais. Deixo o menino livre, ele sabe que não pode ir

longe, mas eu também sei que o bonito está se escondendo dentro

das araras e, se eu fizer um escândalo dizendo que meu filho sumiu,

vou passar uma vergonha enorme — como já passei duas vezes e

não quero passar de novo.

O garoto está crescendo e, aparentemente, ninguém está


vendo. Da última vez que fui buscá-lo na casa da minha ex-sogra —

onde meu filho passa os dias quando o pai tem algum trabalho

diurno — ele estava com uma blusa tão pequena que, se levantasse

os bracinhos, mostrava o umbigo. Assim, eu estou mais preocupada

com quantidade do que com beleza, então é bom que Felipe fique

brincando enquanto escolho, caso contrário, ele viria com blusas de

heróis, de sessenta reais cada, e eu não estou podendo.

Assim que termino, chamo o nome dele duas vezes, baixo.

Mas ele não responde.

— Ah, gente. Que coisa chata. — Forço um suspiro. —

Trouxe meu filho para ver um filme comigo e agora ele sumiu. Isso é

muito triste, porque agora vou precisar escolher uma criança lá de


fora para ganhar a blusa do Pantera Negra que eu comprei e ir ao

cinema comigo.

— Não precisa, mamãe, eu tô aqui! — minha criança diz

sapeca, abrindo espaço entre as calças da arara da frente, e eu


estendo a mão para ele.

No trajeto até o caixa, deixo a blusa do herói bem exposta,


ele amou vê-la e não precisa saber que é a única peça temática que

comprei.

Depois do cinema, penso em levá-lo para o meu apartamento

e preparar uma jantinha gostosa para nós dois e, se possível, para a


sem-teto — que diz que mora comigo, mas só vive pela casa do

namorado — que eu chamo de melhor amiga. Mas Felipinho tem


outros planos.

— Eu quero comer hambúrguer — diz de maneira veemente.

— Eu posso tirar a carne ou tem que ser vegetariano? —

pergunto distraída enquanto vejo as mensagens de Fani, que quer


saber se eu posso fazer compras com ela no domingo.
— Mamãe! — Felipe me chama e eu o encaro, odeio esse

olhar de repreensão, ele geralmente vem seguido de julgamento. —


Se você comprar o hambúrguer de carne, vai pagar pela carne. Não

adianta fazer isso. Não pode mesmo dar dinheiro pra quem mata
bichinhos, entendeu? — pergunta de cenho franzido, como se

aquela fosse uma orientação que me foi dada há muito tempo, mas
eu esqueci.

— Entendi, meu amor. Me desculpa — digo pegando o

celular para xingar Fani.

Duda: Vou mandar a fatura da lanchonete pra sua casa.

Fani: Felipinho?

Duda: Sim. Um hambúrguer SEM CARNE, trinta reais. Apenas O


HAMBÚRGUER.

Fani: Paciência, pelo menos seu filho não tá ingerindo bichinhos.


Bloqueio a tela do celular xingando Fani mais uma vez. Meu
filho tinha cinco anos quando parou de comer carne, por causa do
contato com ela e, agora, eu que pago esse pato, além, é claro, de

pagar essa despesa. Meu ex não consegue comprar as coisas


certas para o menino, então quem faz as compras do Felipe sou eu.

Encaro meu filho à minha frente pensando que essa podia


ser a minha realidade. Nós passaríamos a tarde aqui enquanto o pai

dele trabalha e, só depois do expediente, quando já tivéssemos


assistido a um filme, Márcio nos buscaria e nós faríamos outro
pequeno lanche para encerrar a noite com o papai.

Mas essa é só mais uma das memórias que eu criei na minha

cabeça.

Mais fértil que meu útero, que conseguiu engravidar na única

vez na minha vida que eu transei sem camisinha, só a minha


imaginação — que vira e mexe ainda tenta encontrar motivos ou
justificativas para Márcio ter sido um marido tão ruim e ainda ser um

pai ausente, mesmo morando com o Felipe.

Claro que, como os dois moram sozinhos agora, as coisas


melhoraram e, no início, Márcio cuidava do menino com primor, mas

os meses se passaram e isso foi mudando. O que me mostrou que


ele não estava fazendo aquilo de coração, só estava tentando me
fazer voltar. E isso doeu.

Doeu porque meu filho merece um bom pai.

Mas ele também merece uma boa mãe e, por mais que eu

ainda banque quase todas as contas do moleque e esteja com ele


sempre que possível, Márcio faz questão de me lembrar

regularmente que eu sou outra filha da puta, porque “larguei o Felipe

para trás e fui resolver a minha própria vida”.

Então talvez seja isso mesmo, talvez estejamos os dois


empatados em filha da putice.

— Eu amei meu hambúrguer, mamãe. Obrigado por entender

— meu menino diz e eu sei que ele está balançando as perninhas


embaixo da mesa, ele faz isso sempre que está feliz, como agora.

— De nada, meu amor. E aí... Vamos pra casa? — pergunto


como se estivesse realmente na hora de sair.

— Mas, mamãe, a gente ainda precisa comprar meu jogo


novo! — protesta com olhos arregalados, e eu dou língua para ele.

— Último jogo novo que você ganha enquanto for um aluno


nota 8, hein. Daqui para frente, só quando você subir essas notas.
Ele se levanta e caminha até mim, para na minha frente e me

estuda um tempo.

— Tá bem, temos um acordo. — Ele me estende a mão. —


Eu vou melhorar para o próximo bimestre.

— Então tá bom, temos um acordo. — Me surpreendo com a

postura dele, mas também me lembro que a desgraça da escola


cara que eu pago para ele tem que servir para alguma coisa.

Lavínia entra em casa às 18h30min, e eu ainda estou jogada

no sofá chorando. Isso é normal na nossa rotina, então minha

gostosa vai até a cozinha, faz um chá — de verdade, não como os


que eu faço esquentando água no micro-ondas — para nós e se

senta, colocando minha cabeça em seu colo.

— Foi um dia bom? — pergunta acariciando meus cabelos.

Eu assinto e, percebendo que não consigo falar ainda,


Lavínia começa a me dizer como foi o dia dela. Esse é nosso jeito

de fazer as coisas, ninguém pressiona ninguém e as duas se

ajudam.
Quando me sinto pronta, sento de frente para a minha amiga

e, enxugando as lágrimas que ainda teimam em cair, respiro fundo

antes de falar:

— Ele disse que quer passar as férias comigo e eu não

consegui negar, não tenho como negar, Lavínia. Vou acabar pedindo
férias às meninas do IG e contratando uma babá para passar algum

tempo com ele, para eu poder continuar a fazer as corridas, pelo

menos — digo e sou inundada por lágrimas novamente.

— Eduarda, você vai pedir férias no fim do ano porque

precisa pedir, é Natal, ano novo... Não é o momento de ficar

trabalhando igual uma doida como você faz — ela me repreende.

— Eu sei. E hoje eu senti tanta falta de casa, de estar com

ele e o Márcio. — Fungo limpando o nariz na manga do blusão. — A


gente foi comprar um jogo e ele disse: “O papai falou que ninguém é

melhor do que a senhora em jogo de corrida, vou treinar bastante

pra te vencer”, e eu sei que o Márcio sorriu dizendo isso. Eu sinto

falta dele, de estar com ele.

— Do que exatamente você sente falta? Me diz, sei lá, um

momento relevante ou uma memória específica... — minha amiga


pede para que eu faça isso porque sabe que não tenho uma

resposta. Mas, ainda assim, eu tento.

— Lavínia, não é porque o meu casamento não era bom que

ele era ruim o tempo inteiro. A gente gostava de passear com e sem
o Felipe, gostávamos de jogar com ou sem o nosso menino,

tínhamos um lugar favorito, uma bebida favorita...

— Isso é algo que você, literalmente, tem com todas as suas

amigas — ela me interrompe. — Os momentos bons do seu

casamento eram fundamentados em coleguismo, Duda. Qualquer

coisa que se pareça com uma amizade, mas não tem respeito, não
pode ser a base do amor, amiga.

— Você acha que eu não digo isso para mim mesma todos os
dias? Ou, pelo menos, sempre que vou buscar o Felipe e o Márcio

me trata bem? Só que é difícil, Lavínia... E não é nem pelo Márcio;

por mim, que faleça. Mas pelo meu filho. Meus pais se separaram
muito cedo e eu fiquei sozinha com a minha mãe, que não era

perfeita, mas pelo menos me criou bem até que eu a

decepcionasse. Só que, Lavínia, eu ainda cresci sem a presença do


meu pai, e isso dói.
— Eduarda, você é presente. Muito presente — ela me

lembra. — E outra, o Márcio também não é perfeito e está criando o

próprio filho pela primeira vez em seis anos, ele vai aprender na

prática.

— Sete. Quase sete. — Fungo mais uma vez.

— Exatamente. Você foi mãe solo por anos, morando com

ele, Eduarda. Márcio sempre foi pai de selfie mesmo debaixo do

mesmo teto que o menino.

— Eu sei, Lavínia, mas é que... — tento, mas ela ergue o

indicador direito me interrompendo.

— Eduarda, não adianta você se culpar por não estar com o

Felipe. Você não teria como ficar com ele agora e sempre diz que
não quer tirar o menino da casa do pai e dos avós para confiar a

uma babá dez horas por dia, certo? — O questionamento de Lavínia

é sincero e não é a primeira vez que ela me pergunta isso, então só

assinto. — Então se o que você está fazendo é o melhor pra ele,


precisa parar de se culpar.

Jogo a cabeça para trás, respirando fundo e tentando


entender quantas vezes mais minhas amigas vão precisar ter essa

conversa comigo para que eu compreenda que não sou uma mãe
ruim por não morar com meu filho e que eu não deveria me sujeitar

a um relacionamento ruim para fazer o Felipinho feliz, porque filho


nenhum fica feliz vendo a mãe sofrer.

— Vamos ligar pras meninas? — peço com um beicinho de


quem só quer terminar a noite com as amigas e ela gargalha.

— Vamos, minha gostosa. Vamos. — Lavínia me puxa pelo


braço até seu quarto, onde nos deitamos na cama dela e fazemos

uma chamada com Fani e Amanda no nosso grupo de amigas.

O quarteto já passou por muitas fases, boas e sombrias,

grudadas e distantes, mas, nos últimos meses, ele me salvou mais

vezes do que eu conseguiria contar.

OLIVER

T.G.I.F.[1], ou: Graças a Deus é sexta-feira.

Chego ao fim da minha segunda semana na nova matriz da

MDM com a pilha de trabalho acumulado reduzida pela metade.


Mas isso não quer dizer que hoje será um dia mais leve.
Preciso me sentar com meu diretor de RH, para definir o que

faremos no team building[2] que ele sugeriu para “me enturmar” com

os colaboradores e discutir algumas questões sobre esse assunto

na reunião com o Marketing, no fim do dia. O lado positivo é que a

discussão com Daniel, meu diretor de RH, será em um almoço.

Deixo minha sala avisando Joanna, minha secretária, que

volto em duas horas, então sigo para o térreo.

Segundo Daniel, o restaurante ao qual estamos indo é um

dos mais populares entre os cariocas e, sendo bem honesto, preciso

me enturmar nisso também. Deixei o Rio aos dezesseis anos e


voltei para o Brasil apenas quatorze anos depois, morando desde

então em São Paulo. Agora, tudo está muito diferente e começar a


conhecer os points da cidade pela gastronomia é algo que me

agrada.

— Nossa, é lindo aqui — comento enquanto caminhamos ao


restaurante que fica de frente para o Pão de Açúcar e a uma praia,

que, honestamente, não sei qual é. Então pergunto a Daniel.


— Praia Vermelha — ele pontua. — Gosto bastante daqui. É
o restaurante favorito da minha mulher, amamos por causa da vista
mesmo. — Indica a paisagem de cinema à nossa frente quando nos

sentamos.

— Vejo que ela tem bom gosto — digo e ele assente.

— Bom, o que você sugere?

— Para a entrada, pastéis. Temos muito o que ajustar para


esse team building, então vamos começar com calma — responde

chamando o garçom.

E percebo que ele vem mesmo sempre aqui, porque o


funcionário o chama pelo primeiro nome.

A sugestão de Daniel para a atividade com os funcionários de


gerência e diretoria é uma “prova de orientação”, algo que faça com

que eles entrem em seu espírito de equipe em prol de encontrar um


“tesouro” ou algo que dê sentido à busca.

— E eu vou ser esse tesouro? — indago tentando alcançar o

raciocínio dele.

— Você vai liberar as pistas em cada ponto marcado no

mapa — ele diz como se eu fosse um idiota. — A ideia é que todo


mundo, menos você, faça o trajeto a pé. Assim, você está sempre
um passo à frente. — Depois de um gole em sua limonada, ele me
encara novamente, recostando-se na cadeira. — Se você for o
tesouro perdido, vai passar a imagem de folgado. Ninguém quer

trabalhar em equipe pra lidar com as merdas do chefe — Daniel


explica e eu assinto rindo.

— Faz sentido. E nós já temos uma data?

— Depois da festa — diz com certeza. — Uns quinze dias.


Vamos encerrar um trimestre com a festa e começar o outro com o

team building.

— E vai ser bom para mim, porque eu consigo participar de

algo com todos, não vou estar em time nenhum, então não suscita
preferência, e vai ser bom para as equipes também. Penso que
podemos sortear as equipes em algum site, assim todo mundo

trabalha com pessoas que não está acostumado a trabalhar no dia a


dia. Pode ser?

— Isso não é com a gente. Contratamos uma empresa para

prestar o serviço. Eles organizam tudo, mas pode ficar tranquilo,


estão acostumados com isso e sabem como quebrar o gelo entre as
pessoas.
— É o trabalho deles, afinal, né? — Sorrio finalizando o
último pastel.

— Conseguimos resolver isso tão rápido que agora acho que


nem precisávamos ter vindo aqui. Poderíamos ter feito isso num

café ao lado do trabalho, na saída — Daniel diz e eu balanço a


cabeça negativamente.

— Não. Eu gostei daqui, amei os pasteizinhos e estou pronto

para pedir o almoço.

Aceitamos a sugestão do dia, camarão na moranga com


acompanhamentos. O tempero é divino, o sabor suave, e tanto
Daniel quanto eu mal falamos durante a refeição, porque estamos

muito mais concentrados em comer.

E eu estou de olho no meu celular, é claro. Preciso conversar

com Peter sobre esse casamento, só estou esperando que ele me


dê o aval para ligar. Se as coisas estão corridas para mim, imagina
para o garoto que está se casando aos vinte e dois.

— Oliver, como está... hum... sua adaptação? — Daniel

pergunta assim que seu prato está vazio, e não sei se ele está
realmente interessado ou se só está perguntando porque o RH

deveria “cuidar” para que tudo saia bem para mim, mas sou sincero.

— Em andamento. Acho que estou mais preocupado em me

estabelecer aqui de uma vez. Criar laços. Em São Paulo foi fácil,
porque eu era casado e, mesmo que meu filho não morasse com a
gente, estava lá todo fim de semana. Então ter mudado de emprego,

casa, estado, depois do divórcio, me deixou um pouco desnorteado.

— Bom, como já conversamos várias vezes, você pode


contar comigo sempre que precisar. Inclusive, vou fazer um

churrasco esse fim de semana, minha filha vem de São Paulo e


alguns amigos vão pra lá. O que você acha de aparecer?

— Ótimo. Ótimo mesmo, qual horário? — pergunto abrindo o


calendário da Fórmula 1 no celular para conferir se não tem corrida.

— Começa na hora do almoço, mas você pode ir quando se

sentir à vontade. Vamos passar o dia lá — ele responde e eu assinto


depois de confirmar que estou livre.

— Me passa o endereço e o horário certinho. Moro aqui há


alguns anos, mas a pontualidade ainda é britânica — brinco e Daniel
meneia a cabeça atendendo o celular.
— Oi, meu amor. Sim, estou. Estou também — ele diz e
então se vira.

Uma mulher negra, com um longo cabelo cacheado num


conjunto de terninho e saia, abre o sorriso em direção a nossa mesa
e percebo que essa é a famosa Lavínia. Mas ela não está sozinha.

Uma mulher ruiva, com a pele clara e sardas milimetricamente


dispersas abaixo dos olhos, que são verdes, está junto dela, e eu

poderia jurar que já vi a ruiva tomboy[3] em algum lugar.

As duas se aproximam da mesa e Daniel se levanta,

abraçando a namorada.

— Que surpresa boa.

— Tive que usar nosso lugar como chantagem para Eduarda

parar de trabalhar por pelo menos uma hora — diz a ele com uma
revolta fingida na voz e, logo em seguida, vira de frente para mim.

— Oliver, essa é a minha namorada, Lavínia — Daniel diz e


eu me levanto para cumprimentá-la, dando graças a Deus por ainda
lembrar que no Rio são dois beijos no rosto. — E essa é Eduarda,

uma amiga nossa — ele diz e a garota me encara confusa, como se


ela também estivesse me reconhecendo, mas não soubesse de

onde.
— Muito prazer — digo às duas.

— Vocês querem se sentar com a gente?

— De jeito nenhum — Eduarda é quem fala, e eu quase me


sinto ofendido. — Desculpa — ela se dirige a mim —, é que você
nunca viu esses dois juntos, eles esquecem que tem mais gente no

mundo.

— Eduarda, não pode dizer uma coisa dessas pro meu chefe

— Daniel a repreende em tom de brincadeira e ela encolhe os


ombros.

— Ah, eu faço questão que vocês fiquem. Daniel fala tanto da

Lavínia que parece que eu já a conheço.

— Ah, fala, é? — A namorada de Daniel puxa a cadeira ao

lado da dele, sentando-se e, em seguida, Daniel faz o mesmo.

— Sim. O tempo todo.

— Já que sou voto vencido... — Eduarda diz se sentando.

Daniel explica às garotas que já almoçamos e conversamos


sobre a empresa, portanto, podemos falar sobre qualquer coisa pela
próxima hora. Mas não podemos ficar muito mais do que isso,

porque ele tem uma reunião às 15h.


Quando o garçom se aproxima, também chama Lavínia pelo
nome, precedido por um “dona”, e Eduarda tem a mesma reação

que eu tive quando Daniel foi cumprimentado daquela maneira.

— E o que está achando do Rio, Oliver? — Lavínia pergunta.

— O Rio de Janeiro continua lindo, mas eu ainda estou me


adaptando.

— Estava falando com o Oliver do nosso churrasco de


domingo, amor — Daniel comenta.

— Ah, vai ser muito legal — Lavínia diz abrindo um sorriso,

que morre no meio. — Apesar de que... A Eduarda não vai.

— Claro que vai, a Amanda vem ver vocês. — Daniel bate o

olhar em Eduarda incrédulo.

— A sua filha vai pra sua casa ver você — Eduarda o corrige.
— E todas elas vão dormir lá no apê no fim do dia, então eu não
preciso estar no churrasco para vê-la — a garota se defende.

— Se juntar você e Daniel, não dá meia Eduarda em quesito


de trabalho — Lavínia me diz, tomando um gole de sua limonada

que acabou de chegar. — Se eu não trago ela para almoçar hoje,


não ia comer.

— Exagerada.
— O Oliver é igualzinho, amor. Se eu mandar um e-mail para

ele às 21h, ele responde.

— Gente? — Lavínia olha feio pra Eduarda e para mim.

Não sei por que Eduarda trabalha tanto. Eu faço isso porque
não tenho outras opções, mas não quero explicar minha solidão,
então só encolho os ombros, assumindo minha culpa enquanto

Eduarda suspira incomodada.

— Mas o Oliver vai parar de trabalhar na sexta-feira da

semana que vem, pelo menos. Que é o dia daquela festa da


empresa que comentei — ele diz à namorada. — Acho que você
poderia fazer uma exceção também, Duda, e passar o dia lá em

casa esse domingo.

— Parar de trabalhar numa sexta-feira à noite é muito mais


simples que num domingo inteiro — ela rebate e eu entro na dança.

— Então você pode ir à minha festa — digo e nem sei o


porquê. — Assim você pode passar o domingo inteiro trabalhando, e

parar de trabalhar às 20h de uma sexta-feira, o que acha?

O queixo dela cai, mas o garçom chega para anotar os


pedidos das duas, e Daniel sorri.
— Você é rápido — ele diz com a sobrancelha erguida
enquanto as garotas estão distraídas.

— Como assim?

— Não. Nada. Tava só pensando alto — ele diz segurando o


riso e eu fico sem entender.

— Eu agradeço o convite, mas é uma coisa da sua empresa,


não tem motivos para eu estar lá — Eduarda diz depois que o

garçom vai embora.

— Ah, não. É algo pra mostrar que ele é gente boa, todo
mundo pode levar acompanhantes — Daniel intervém me
encarando.

— Ah, então é isso. Você vai com a gente! — Lavínia toma a


decisão por ela, que apenas assente.

— Tudo bem, uma sexta à noite sem trabalhar então...

Passo metade do almoço ouvindo Daniel e Lavínia falarem


sobre o dia no trabalho e a outra metade tentando entender de onde

conheço Eduarda, o que só acontece durante a despedida, no


estacionamento, quando Lavínia pergunta se elas podem passar no
mercado e Eduarda responde que por ela tudo bem, já que sua bala

de framboesa acabou.

— Você é a motorista 5 estrelas! — digo como se estivesse

na minha cara esse tempo todo. — A que não fala e tem bala de
framboesa.

O rosto de Eduarda se acende quando ela se lembra de mim.

— Sou a que não fala e tem bala de framboesa, sim, mas sou
uma motorista 4.8 estrelas. Justamente porque não falo muito, já

recebi esse feedback — ela ressalta. — E você é o passageiro 5


estrelas: o que não fala, não pede para eu fazer um outro caminho,
não pergunta se dá para eu ir mais rápido... — conta nos dedos e

todos rimos. — Você salvou minha noite de segunda-feira, juro —


ela diz com a mão no peito.

— Prazer, eu. Bom, até domingo, Lavínia. E até a próxima

sexta, Eduarda.

Nos despedimos, por fim, e ela entra em seu carro com


Lavínia, me deixando com uma sensação boa de ter participado de

algo a que eu realmente pertencia durante esse almoço.


OLIVER

Tem coisas na vida pelas quais a gente espera o tempo


necessário, não importa quão longo ele seja. Felizmente, para mim,

chegar ao cargo de CEO de uma grande empresa não demorou


tanto quanto normalmente demora. Cheguei a essa posição aos 35
anos, em uma empresa de tecnologia, que é com o que sempre

amei trabalhar.

Infelizmente, algumas vitórias são coroadas com derrotas.

Assim, o destino riu de mim depois de sorrir para mim quando,


pouco mais de dois anos depois de eu me tornar o CEO da

empresa, meu casamento ruiu.


Não foi minha culpa nem da minha ex-esposa. Nós só...

Queríamos coisas diferentes, e isso afetou diretamente nossa


relação. Ao receber a oferta de mudar minha cadeira na empresa,

de São Paulo para o Rio de Janeiro, nem pensei duas vezes.

Conversei com ela, e Catherine se mostrou muito disposta a fazê-lo,


afinal, já tinha um tempo que ela queria se mudar também e nós

dois acreditamos que essa mudança bastaria.

No entanto, os desejos de novos ares de Catherine sempre

foram: passar uma temporada na cidade natal dela e, logo depois, ir


para Londres, onde ela gostaria de trabalhar e morar novamente.

Eu estava ciente de que teríamos uma vida melhor na

Inglaterra, mas também sabia que, depois de quase dez anos de

Brasil, isso não tinha sentido, não agora.

Tínhamos uma boa vida. Catherine é artista — uma muito


boa, por sinal — e continuava expondo pelo mundo inteiro mesmo

morando aqui. Viajava muito mais do que ficava no país durante

suas temporadas de exposição e se mostrou muito feliz quando

recebi a proposta de mudar para o Rio, no ano passado. Ela sempre

apoiou muito o meu trabalho, como eu apoiava o dela, apesar de

não entender quase nada de artes. Mas, então, Londres começou a


invadir nossos lençóis e conversas à mesa, sorrateiramente. Eu
sempre tentei desconversar, mas quando Catherine começou a falar
demais sobre o assunto, eu percebi que era visível: ela estava

decidida. Mas Cath nunca me pediria para escolher o trabalho ou

ela, e eu também não faria isso.

No fim das contas, nós dois estamos morando onde

queríamos e pelo menos um de nós está muito feliz com isso, mas

posso garantir que essa pessoa não sou eu.

Por isso, ter minha festa acontecendo no jardim da casa que


ela escolheu, quando já estava pensando em me deixar, dói. E eu

não queria pensar sobre isso ou sobre ela essa noite, mas dar uma

festa para os funcionários e a família deles também foi ideia dela,

então minha mente está me matando agora.

É tentando apagar mais um pensamento sobre minha ex, que


dou outro giro entre meus funcionários para não focar no fato de que

ainda não estou confortável perto deles.

— A noite está tão ruim assim? — É Daniel quem se

aproxima, e o garçom nos serve.

— Bastante, o ponto alto foi a recepção, pude ver que

conheço todos os diretores e quase todos os gerentes pelo primeiro


nome — ironizo e Daniel ri.

— Relaxa, Oliver. Logo você conhece todo mundo. Além

disso, é normal as pessoas ficarem intimidadas pelo novo chefe —

Daniel garante antes de dar um gole em seu coquetel de frutas. — É


uma mudança grande pra você, mas pra eles também. Há um ano

éramos só a filial do Rio, agora somos a Matriz e tem um CEO


anglo-saxão andando pelos corredores.

— Bom, pelo menos eles estão aqui, não é verdade? —


Forço o sorriso e dou um tapinha no ombro de Daniel. — Vai lá ficar

com a sua garota, vou conversar com o Paulinho — digo


mencionando o diretor de Marketing.

— Eu vou sim. E qualquer coisa pode falar comigo. — Daniel


pisca e deixa seu copo na bandeja de um garçom que passa ao
nosso lado. Antes de sair, no entanto, eu me volto para ele.

— Daniel, eu sei que você muito provavelmente tem uma

noite incrível para dividir com a Lavínia quando sair daqui, mas você
se importaria de ficar até o fim da festa? — pergunto meio

humilhado.

Mas ele abre um sorriso antes de dizer:


— Tá brincando, Oliver. Eu não iria embora cedo de jeito

nenhum.

— Fico feliz. Porque essa festa começou há menos de uma

hora e eu já estou desesperado — confesso.

DUDA

Mesmo morando “sozinha” há mais de seis meses, essa é a


primeira vez que eu saio para me divertir.

Tá, não é “a primeira vez”. Tive dois ou três encontros de


tinder frustrados no caminho... No entanto, o que estou tentando

dizer é que hoje foi a primeira vez que saí do meu apartamentinho
de vestido, salto alto, cabelo com a tinta retocada e muito bem
chapado — afinal, o que é uma mulher de cabelo liso sem o drama

de alisá-lo um pouco mais porque atualmente nada é liso o


suficiente? —, certa de que teria uma noite incrível. Mesmo que eu

tenha levado quase duas horas para me arrumar, no fim do


processo estava me sentindo uma grande gostosa, como minhas
amigas gostam de dizer.

E, até agora, meu cabelo ao vento terminava de pintar muito

bem a mocinha de comédia romântica que eu sonhava ser quando


adolescente e essa deveria ser a noite perfeita.

E, de verdade? Estava sendo.

Quando o olhar de Lavínia passou pelo meu vestido preto,


que para um palmo acima do joelho, desceu até o salto também
preto de dez centímetros que escolhi para a ocasião, e subiu até a

maquiagem leve, mas banhada de um batom vermelho que dá


contraste intenso com meu ruivo, ela abriu um sorriso de aprovação

tão grande que eu me senti ainda mais segura do que já estava.


Quando Daniel parou o carro na porta da nossa casa e nós

entramos, ele disse um “vocês estão incríveis!” e eu ri, porque


Daniel é a pessoa mais gentil do mundo, mas ele não estava
falando só por gentileza. E, quando chegamos, Oliver nos

recepcionou.

Seus olhos observaram a beleza estonteante de Lavínia


pelos segundos durante os quais o cumprimento deles durou e, logo

em seguida, ele sorriu para mim e suas sobrancelhas arquearam.


Naquele momento, eu tive certeza de que não tinha perdido a
mão em me arrumar. Seu olhar era tão intenso que me senti cortada
ao meio, observada... Quase desejada. E, então, ele quebrou o

silêncio:

— Então a senhorita realmente conseguiu parar de trabalhar

pelo menos por algumas horas, certo? — O canto da boca dele se


ergueu em um meio sorriso e fui obrigada, pelas covinhas, a sorrir

de volta.

— Ao que parece, sim.

— Bem-vinda a minha casa, Eduarda... — Ele franziu o

cenho esperando meu sobrenome.

— Campbell — disse estendendo a mão para ele. — Eduarda


Campbell. — Dei esse sobrenome porque é o que todo mundo usa,

mesmo que não seja o real.

— Espero que você se divirta, Eduarda Campbell — Oliver

disse tomando minha mão na dele. Grande, forte, máscula. Seus

olhos continuavam pousados em mim e, por segundos, eu desejei


ter um decote. Com certeza era lá que olhos dele estariam.

Corrigi logo depois, quer dizer:

“Quem quer os olhos de alguém nos próprios peitos?”


— Oliver Magalhães Graham, é um prazer, de novo. — Ele

sorriu abertamente e eu só assenti.

Finalmente passando por ele, e me dirigindo até o grande e


belo jardim nos fundos da mansão, grata por estar tendo uma noite

diferente de tudo o que eu já vivi e feliz por perceber que, mesmo

depois de tudo o que passei, eu ainda era uma mulher atraente, no

fim das contas.

Agora, no entanto, minha noite acabou.

Eu e Lavínia conversávamos sobre como a noite está bonita,

o céu estrelado de setembro encantador e o quanto a bebida é boa.

Chegamos há pouco tempo, então Daniel foi cumprimentar alguns


colegas de trabalho, deixando-nos sozinhas. Entre nossas risadas e

piadas internas sobre sermos duas suburbanas em uma mansão na

Zona Sul, noto o DJ da festa descer do mini palco improvisado e

atravessar o gramado.

Ele está de jeans, blusa de gola polo e os headphones

imensos no pescoço, e eu não preciso nem olhar uma segunda vez


para a imagem que se aproxima para saber que é Márcio.

O maldito do meu ex.


— O que você tá fazendo aqui? — a pergunta sai de seus

lábios como se eu lhe devesse alguma explicação.

— Desculpa, acho que não ouvi direito, esse barulho

agoniante que você chama de “sua música” não permitiu — digo

notando Daniel caminhar em nossa direção e a última coisa que eu


quero é causar num evento da empresa dele.

Deus, se o momento da minha morte for agora, sua filha está

pronta.

— Entendi. Você está aproveitando a vida boa do coroa da

Lavínia, né? E ele aproveita as duas também?

— Márcio, eu vou te pedir muito educadamente para sair

daqui e voltar ao seu posto de trabalho. Diferente de nós duas, você


não é um convidado — Lavínia diz hostil, e ouço Daniel se

aproximar.

— Está tudo bem por aqui?

— Claro, chefe — Márcio responde como se não estivesse

me infernizando. — Mas é isso. Quando você cansar de brincar de


acompanhante da Lavínia, você pode voltar para casa, tá bem?

Esse teu teatrinho de mulher independente já deu — as palavras


saem dele de um jeito quase suave, qualquer pessoa nos olhando

agora diria que ele é um velho amigo e está me elogiando.

— Márcio, eu sou uma mulher independente. — Rio tentando

entender como ele, logo ele, quer questionar isso. — E eu estou


aqui com os meus amigos, sim. Mas também estou esperando meu

namorado.

Por qual motivo digo isso? Não sei. Mas meu coração

disparou tanto com a frase dele que eu diria qualquer coisa para

Márcio não sair por cima.

No entanto, ele segura o riso, me olhando incrédulo.

— Moleque, você já pode voltar lá para cima e fazer o seu


trabalho se não quiser levar um soco no meio dessa sua cara —

Daniel diz e, por Deus, eu me sinto ainda mais humilhada.

Sendo defendida pelo namorado da amiga, que ótimo.

Pelo menos surte o efeito esperado e Márcio ergue as mãos


em rendição e dá um passo para trás.

— Beleza, mas você com um namorado aqui, Eduarda? —


Minha visão fica turva, mas não são lágrimas, é ódio. Ele precisa

sempre fazer isso, agir como se eu precisasse dele, porque nunca


vou encontrar nada melhor. — Ninguém aqui olharia para você,

passarinha.

Abro a boca para responder, mas a voz que ouço não é

minha.

— Com licença, está tudo bem por aqui? — É Oliver quem


nos interrompe dessa vez, e eu fecho os olhos.

Que vergonha.

— Claro, chefe, eu já estava voltando lá para cima — o sonso

responde.

— Ótimo. Seu nome é? — Oliver pergunta como se estivesse

interessado, e meu olhar confuso encontra o de Lavínia.

— Márcio.

— E você está fora do seu posto de trabalho por quê,

Márcio?

O olhar de Daniel entra na dança e nós três nos

entreolhamos agora.

— Eu só vim cumprimentar minha ex-mulher e os amigos

dela, mas já estou voltando. — Ex-mulher sai dele como se isso

explicasse e justificasse algo.


— Ah, sim. Eu sou Oliver Magalhães Graham, o namorado

dela. — A mão desse homem maravilhoso pousa em minha cintura


e preciso me esforçar muito para fazer cara de paisagem e não

estragar o que ele está tentando fazer aqui. — E como CEO da

empresa que está proporcionando a festa, e dono da casa, gostaria

de pedir para você não se aproximar mais da gente essa noite —


Oliver diz me trazendo um pouco mais para perto pela cintura.

— Eu ficaria imensamente grata — digo com um sorriso

cínico no rosto, mas ainda imóvel.

Sei lá se eu deveria tocar o peitoral dele ou passar meu braço


por sua cintura também; não sei se esse homem tem alguém, ou se

vai ser estranho para os olhos curiosos que já nos atingiram se eu o

tocar de volta.

O que eu sei é que tem um homem de um metro e noventa,

negro, alto, de olhos verdes, com um sorriso sexy pra porra e um


físico de quem faz academia há anos e, pelo menos dois dias por

semana, bate ponto no crossfit, com o braço em volta da minha

cintura, e eu estou tentando sorrir com desdém para o meu ex.

O polegar de Oliver está subindo e descendo na lateral do

meu corpo e roça em meu braço de vez em quando, me fazendo


respirar com um pouco mais de dificuldade que o normal enquanto
Lavínia me encara com seu olhar de grande safada, e eu sei o que

ela está pensando sobre esse cara, porque eu também estou e, ah

meu Deus, isso é horrível.

— Você tem um namorado? — Márcio pergunta para mim,

mas está com os olhos em Oliver.

— Você não precisa dar satisfação da sua vida pro seu ex,

Babe — Oliver diz com a sobrancelha erguida e eu assinto, olhando


para Márcio sem dizer uma palavra.

Não necessariamente porque Oliver pediu, mas sim pelo


Babe usado. O sotaque desse homem fez meu coração pular duas

batidas.

— Tudo bem, boa noite para vocês — Márcio diz depois de


alguns segundos em choque.

— Nossa, Oliver, eu nem sei como agradecer e como me


desculpar. Daniel, eu não tinha ideia, mesmo... — começo a falar
nervosa e confusa.

— Fica fria, Duda. — É Daniel que responde com uma


piscadela.
— Está tudo bem. Eu te convidei, né? Então o inconveniente
foi causado por mim — brinca. — Só fica longe desse cara, ele te
deixa... pálida — Oliver diz com um aceno de cabeça. — Você quer

beber alguma coisa? Uma água?

— Não, eu tô bem... — Ergo meu champanhe. — Acho que

eu tô acostumada. — Rio para descontrair, e espero que Lavínia


faça alguma coisa, ela sempre faz.

— Oliver, sua casa é linda. Você que escolheu ou a


empresa? — minha amiga pergunta.

— Na verdade, minha ex-mulher — ele responde depois de


um tempo. — A gente ainda estava junto quando a empresa decidiu

me trazer para cá e eu não tinha tempo, vocês sabem... A


reestruturação e tudo o mais. Mas foi um dos melhores favores que

ela me fez, a casa é mesmo maravilhosa. — Lavínia assente e o


silêncio corta o espaço entre nós quatro junto com o ar frio. —
Agora, se me dão licença, eu preciso ser um bom chefe barra

anfitrião e continuar minha ronda. — Ele sorri e nos deixa, e antes


que ele dê o terceiro passo, Lavínia está rindo.

— O que foi, Leãozinho? — Daniel pergunta confuso.

— Ai, amor. É que isso é tão clichê de livro, sabe?


— Como assim? — Ele ri confuso.

— Ah, eles se viram duas vezes na vida e o Oliver já

defendeu a Duda do ex babaca! Eu teria dado aqueles pulinhos e


rido igual uma idiota pro Kindle se estivesse lendo essa história.

— Lavínia, por favor. Não... — digo com medo de suas

próximas palavras.

— E seria um daqueles seus livros de CEO? — Daniel

pergunta se divertindo.

— Isso! — Lavínia quase grita e eu me encolho. — O CEO e


a quase virgem, não: A quase virgem do CEO — ela diz me

ofendendo.

— Ei, eu pari uma criança, sabia? — digo enquanto Daniel ri

ainda mais alto.

— Ah, amiga. Tu ficou anos com o Márcio, né? Seis anos


sendo malcomida mais algumas fodas maldadas com carinhas do

tinder depois... Quase virgem, sim.

— Essa é a hora que eu vou buscar alguma coisa para beber.


Informação demais. Meu Deus. — Daniel passa no meio de nós

duas, vermelho de vergonha, e nós gargalhamos.

— Mas vai dizer que ele não é um gato?


— Imagina a bagagem desse gato, minha gostosa Ele é
divorciado e tem idade pra ser meu pai, sabe? Não sou você.

— Ah, pronto. Disse a mãe solo divorciada. E pelo amor de


Deus, o Oliver não tem idade pra ser seu pai, é mais novo que o

Dani. E, mesmo se ele tivesse idade, ele não é — Lavínia termina


seu prosecco e me encara. — De qualquer forma, boa sorte para
achar um cara legal da nossa idade que não fique desesperado com

a sua bagagem, viu?! — diz e eu apenas assinto porque, bem, ela


está certa.

Dos criadores de “no Brasil, não há homem para mim”, veio

aí: “No Brasil, não há homem jovem que compreenda a bagagem da


mulher que foi mãe na adolescência” para mim.
DUDA

Gostaria de dizer que a noite ficou muito melhor depois do


acontecido com Márcio, mas não ficou. Mesmo que Oliver tenha

chegado àquela hora e parado o surto que meu ex estava tendo,


vez ou outra ainda me pego sendo observada por ele, que com
certeza percebeu que “o meu namorado” não está passando a noite

comigo como Daniel está fazendo com Lavínia.

Eu amo os dois e mal consigo me lembrar da última vez em

que me senti tão mulher quanto na noite de hoje, e não só a dona


de casa, a esposa de alguém, a mãe ou a guerreira que tem dois

empregos... Mas estar aqui com eles só me lembra que talvez eu


seja exatamente só essas coisas e que eu nunca vou mesmo

encontrar alguém que seja bom para mim, que goste de mim e
queira estar comigo. É por isso que segurar essa vela hoje está me

deixando mais triste do que ficar em casa assistindo filme ruim

sozinha teria deixado.

— Eu preciso muito ir ao banheiro, amiga. Cê vem comigo?


— Toco o braço de Lavínia.

— Claro. Dani, eu já volto. Sinta saudade de mim — ela pede


genuinamente.

— Eu sempre sinto — e ele responde com sinceridade.

Esse é o cumprimento deles. Os filhos da puta são muito

fofos, sim, mas Lavínia merece, e eu estou feliz por ela.

— Está tudo bem?

— Não. Eu tô deslocada aqui — respondo enquanto


atravessamos o jardim.

— Eu sei. Eu também estou. Mas o bom é que a gente está

deslocada juntas. — Ela ri e eu a olho feio. Nós duas sabemos que

é diferente. — Está tudo bem, amiga. Se você quiser eu mando o

Daniel ficar longe.


— Para de ser besta, vou te dar um socão — sussurro para
ela.

— Ah, olha. O Oliver. — Ela me puxa e mudamos a rota.

— O que você está fazendo?

— Você sabe onde fica o banheiro, anja? Porque eu não sei

— responde simplesmente, chegando até o homem, que se vira

para nós com um sorriso no rosto que já abaixou mais calcinhas do

que eu vesti nos meus vinte e cinco anos de vida.

— Vocês precisam de ajuda?

— Você poderia, por favor, mostrar o banheiro à minha

gatinha aqui? Ela precisa retocar a maquiagem — Lavínia diz

soltando meu braço e meu coração dispara de vergonha.

— Claro que sim. Você vem? — ele pergunta a ela, que nega

e me dá um tchauzinho. — Então seremos só nós dois — Oliver diz

para mim e me forço a assentir enquanto caminho ao lado dele.

— E como está a sua noite? Seu ex parou de te perturbar? —


A pergunta vem rápido, então a resposta voa de mim antes que eu

possa controlá-la.

— Parar, parou, né? Mas ele não está convencido. Você foi lá

aquela hora e tal, mas não estamos juntos, juntos ao longo da noite,
né? Ele não é idiota — digo enquanto entramos na mansão e, juro

por Deus que as frases saíram de mim como um desabafo, mas no


fundo até eu escutei a cobrança.

— Ah. É verdade. Vira nesse corredor. — Ele indica para as


paredes brancas.

— E para você, como está a sua festa? — pergunto e Oliver


para, literalmente para, me obrigando a parar também.

— É aqui. Você usa o banheiro e, quando sair, vou estar no


início do corredor te esperando. — A mão de Oliver chega ao meu

rosto, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha e


o toque dele arrepia minha nuca.

“Que porra é essa, nuca?”

— Quando você sair, vou te falar sobre a minha noite e te


fazer uma proposta — a voz baixa e grave dele arranha meus
ouvidos e eu apenas assinto me jogando dentro do banheiro.

“Honestamente, Eduarda. O que deu em você? Isso não faz o

menor sentido!”, digo para a menina do espelho. A que estava vindo


até o banheiro para chorar sua infelicidade e agora quer sair daqui e

ouvir a proposta de Oliver.


Respiro fundo, lavando minhas mãos, então as seco. Preciso

comentar que o lavabo da casa dele é maior do que o banheiro da


minha casa? Acho que não, né?

Enfim. Vamos aquietar esse facho e sair desse banheiro.

Mas, antes, minha mão vai até a bolsa e eu me lembro que


vim “retocar a maquiagem”, então jogo uma camada de batom na
boca.

— Sua casa também é muito linda por dentro, Oliver. — Esse


é meu jeito de puxar assunto com ele quando chego ao início do

corredor.

— Ah, mas você nem viu nada. Vamos lá em cima. Vou te


apresentar ela.

— Nossa, não precisa. Você está com o jardim cheio de


convidados.

— Eu sei. E isso tem a ver com a minha proposta. — Ele me


olha com a sobrancelha erguida e caminhamos em direção ao

interior da casa, e não à saída. — Nós entramos pela porta dos


fundos, como você percebeu. Aqui é a cozinha e nesse corredor, de

onde você veio, fica o lavabo e o antigo quarto de empregada, que


agora é minha academia.
Eu rio.

— Você tem uma academia em casa?

— Bom, esses músculos não vão se manter sozinhos, não é?


— Ele pisca.

— Eu sei, é só que... — Encolho os ombros. — Enfim, qual é


a sua proposta?

— Quero que você finja ser minha namorada. — Ele nota

meu arregalar de olhos, porque logo adiciona: — Não, não se


preocupe. Não vou te apresentar pras pessoas, você não precisa
parar em rodinhas de funcionários comigo, é só que...

— Você está rodando feito uma barata tonta que não se


encaixa em lugar nenhum? — pergunto quando chegamos ao que

noto ser a sala.

— Como você sabe? — Oliver franze o cenho.

— Estou intercalando entre desviar do olhar do meu ex e não


atrapalhar tanto assim o casal com quem eu vim. Então talvez eu

tenha percebido...

— Bom, aqui, como você pode ver, é minha sala. — Observo


o lugar.
Um sofá — provavelmente mais confortável do que minha
cama — que está cantando para mim, fica de frente para uma
daquelas TVs imensas. Mas não tão de frente assim, já que a

distância é enorme. Eu chutaria uns cinco metros. Na parede lateral,


uma poltrona, que combina com o sofá, está disposta. Isso tudo sem

contar a iluminação.

E, ah, tirando as luzes são aquelas que dá pra regular entre

baixa, meia luz e clara, ainda tem um lustre na sala.

Um lustre prateado com uma chuva de bolinhas e luzes.

— A TV é modesta, né? — É o que comento.

— Você já assistiu a uma corrida de Fórmula 1 numa TV de

noventa polegadas? — a pergunta é sincera, e eu seguro o riso.

— Nem F1, nem joguei videogame. Mas deve ser incrível.

— Se você quiser brincar de ser minha namorada a longo

prazo, pode vir aqui domingo assistir à corrida — ele brinca e meu

coração perde o compasso.

“Juro que eu não sou assim sempre.”

— Claro, claro. Mas como a gente começou a namorar. Hein?

Se alguém perguntar — pergunto antes que ele perceba que estou

corada.
— Daniel. Minha proximidade com Daniel, e a sua com

Lavínia.

— Tudo bem. Você mudou para o Rio há quanto tempo?

— Vinte dias.

— E nós já estamos namorando? — Minha pergunta quase

sai num grito, e Oliver gargalha.

— O que foi? Eu sou um cara old school[4] — ele fala um

inglês tão perfeito, com um sotaque britânico tão lindo, que meu
coração de fã de Harry Potter falha uma batida.

— Tudo bem então... Vamos voltar? Acho que... Estão dando


falta de você — digo e ele passa a mão em minha cintura me

puxando para perto.

— Eu estava namorando — sussurra em meu ouvido. —

Quando virem minha namorada, vão entender o motivo do sumiço.

— Nossa, você é bom.

— Não é porque estou há quinze anos fora do mercado que

não seria. — Ergo a sobrancelha em dúvida. — Tudo bem, eu tenho


um enteado de vinte e poucos anos, vi ele fazendo essas coisas

muitas vezes — Oliver diz enquanto saímos da casa.


Assim que piso no gramado, de mãos dadas com ele, encaro

Márcio e seu olhar, de raiva e posse, cai sobre mim. Mas não

importa mais, não agora que estou fazendo ele provar um


pouquinho o gosto de ter sido trocado.

Mesmo que seja uma mentira, ainda é uma delícia.

OLIVER

Ter Eduarda ao meu lado essa noite a melhorou em duzentos

por cento. A garota é engraçada, despojada e me fez rir de coisas

que nenhum funcionário faria.

Como quando eu fui dizer que estava excited para a próxima

semana de trabalho e acabei dizendo excitado ao invés de animado


e todos na roda beberam ou comeram algo, mas ela só riu e disse:

— Você está animado, não é, meu amor?

E riu.

Ou quando ela me lembrou de quando eu propus nossa

farsa, dizendo:
— Não vou te apresentar para ninguém, você não precisa

parar em rodinhas de funcionários comigo.

Depois que eu a apresentei ao terceiro grupo de pessoas.

— Em minha defesa, eles estão se aproximando da gente,

não tenho como não te apresentar — respondi provocando um

revirar de olhos nela.

À parte disso, consegui passar a noite trocando figurinhas

com Eduarda sobre Harry Potter e videogames. Mas ela tem uma

vibe mais atual e eu sou chegado nos clássicos. Mario e Sonic, para

ser exato.

Agora a noite está acabando, e nós estávamos ranqueando


os funcionários mais legais quando a senti tremer ao meu lado.

Acompanhando o olhar de Eduarda, percebo o que a fez se

aproximar um pouco mais de mim.

O DJ está caminhando na nossa direção.

— Boa noite, chefe. Como foi o serviço?

— Enquanto você esteve trabalhando, ótimo.


— Que bom, que bom. Foi uma festa muito bonita — ele diz,

e eu apenas confirmo com a cabeça. — Duda, eu posso falar com

você um segundo?

— Claro. Pode falar, eu não tenho segredos com o Oliver. —

Meu braço em volta da cintura dela a puxa para mais perto e eu a

mantenho firme comigo enquanto encaro o rapaz.

— Meu Deus, Eduarda. Eu quero falar com você sobre o

Felipe — ele diz depois de um longo suspiro.

— Quando eu chegar em casa te ligo.

— É sério?

Ela apenas assente, deitando a cabeça no meu ombro em


seguida.

— Ótimo. Boa noite — o rapaz diz saindo.

Como se não se lembrasse que estamos abraçados apenas

por causa dele, Eduarda não se afasta quando ele se vai. A garota
continua escorada a mim e parece estar confortável aqui. Enquanto

eu tento me convencer de que os pelos da minha nuca se erguem

todas as vezes que ela me toca porque está frio.

— Você quer que eu te leve em casa? — pergunto em seu

ouvido e sei que provoco a mesma sensação nela.


— Não precisa. — Ela ergue o pescoço buscando meus

olhos. — O Daniel e a Lavínia vão me deixar lá antes de irem para a


casa dele.

“Ela é linda.”

É a única coisa que eu penso. Demoro três piscadas de olho

e duas respirações fundas para me concentrar o suficiente para


responder.

— De jeito nenhum. Pedi ao Daniel para ficar até o fim da


festa e ele ainda vai precisar desviar do caminho? Eu faço isso. —

As palavras se atropelam, não convencendo nem a mim.

Eu estou nervoso. Sem motivo algum. E sei que estou,


porque meu sotaque se revela mais que o normal.

Mesmo morando no Brasil há anos, ter sido criado na


Inglaterra e falar inglês todos os dias com a Matriz dos Estados

Unidos não ajudam muito no português.

— Tudo bem, eu falo com eles então — ela diz

desencostando a cabeça do meu ombro e se afastando.

Subitamente, sinto falta dela aqui, mas jogo esse

pensamento para longe.

— Vamos os dois — digo.


Não deixo de notar o jeito que Lavínia olha para Eduarda

quando nos aproximamos, como se houvesse algum segredo


pairando entre elas. Um do qual Eduarda está morrendo de

vergonha, pois ela cora, e o rubor de sua face sobrepõe as

sardinhas lindas que seu rosto tem.

— Como prometido, os últimos a sair. — Daniel me cutuca

com o cotovelo. — E aí, como foi a festa?

— Melhor do que eu imaginava.

Caminhamos os quatro para o estacionamento; as garotas

vão na frente, e eu e Daniel conversamos atrás, mas eu daria

qualquer coisa para entender por que Eduarda está tão vermelha de
vergonha ouvindo Lavínia falar.

— Namoro de mentirinha, é? — Daniel diz num tom divertido.

— Algo assim. Ela é gente fina, né?

— Ela é legal, Oliver. Ninguém da idade delas diz “gente


fina”.

— Tudo bem. Tudo bem.


— Ela é legal, linda, solteira...

— Não estou interessado, Daniel. Fui casado por mais de


quatorze anos.

— Ela saiu de um relacionamento de quase dez, aposto que


também não está interessada. O jeito que vocês estavam rindo,
conversando e se abraçando, mostrava direitinho que vocês não

estão interessados.

Não entendo o tom de voz dele, mas assinto fingindo que

sim.

— Bom, te vejo na segunda?

— Vê sim, chefe. Aproveite a carona que vai dar para a


garota na qual você não está interessado — debocha e caminha até
seu carro enquanto Eduarda se despede de Lavínia e vem na minha

direção.

Entro no carro e abro a porta do passageiro. Quando


Eduarda se senta, dou meu telefone a ela.

— Coloca seu endereço no GPS, por favor — peço dando a


partida. — É Tijuca, certo?

— Sim, sim — ela responde e alguns segundos depois

prende o celular no suporte com o endereço ajustado.


— Apesar dos pesares, você gostou da noite?

— Esse é um balanço que eu ainda vou precisar fazer, mas

gostei da sua companhia. Eu teria passado a noite de vela para


Daniel e Lavínia. Então, mesmo se meu ex não estivesse ali, seria
ruim de algum jeito.

— E por que você topou vir?

— Nossa, não sinta pena de mim. — Garanto a ela que não

vou sentir. — Como conversamos, eu teria ficado trabalhando se


não tivesse vindo. Então foi melhor encerrar a sexta-feira estando
linda, nessa mansão incrível, comendo e bebendo bem.

— A comida e a bebida estavam bem medianas, mas linda


você está. — Eu a olho de soslaio e vejo-a corar. — Também gostei
muito da sua companhia, Eduarda.

— Eu adoro o jeitinho que você arrasta o R do meu nome.


Acho que por isso ainda não te pedi para me chamar de Duda,

ninguém me chama de Eduarda.

— Seu ex te chamou.

— Ele não é ninguém — ela encerra o assunto com um

levantar de sobrancelhas e mexe na própria bolsa.


Eduarda pega o celular e o encara por um tempo, o que é
bom, porque não tenho muito o que dizer a ela.

— E para você, como foi sua festa? — ela pergunta sem


desgrudar os olhos do telefone.

— Sabia que isso é rude?

— Perguntar da sua noite? — Ela me olha espantada.

— Conversar com o celular na mão.

— Ah. — Ela joga o telefone na bolsa e a coloca debaixo do


banco. — Desculpa. — diz quase ofendida.

— Minha noite, Eduarda, foi muito boa. — Ela ri novamente


quando arrasto o R com meu sotaque. — Pude estar com os novos
funcionários e me mostrar como pessoa para eles. Agora é esperar

o tempo passar — respondo esperançoso.

— Quando eu trabalhava em escritório, não via o CEO da

minha empresa nunca, e você dá festas e convida seus funcionários


e as amigas deles — adiciona com a sobrancelha direita erguida. —
Tenho certeza de que eles vão gostar de você.

— O que você faz? — Ela me encara confusa. — Com o que


trabalha?
— De dia, trabalho com marketing. À noite eu sou motorista

de aplicativo. E aos fins de semana também.

— Então se você não estivesse na festa, estaria dirigindo por

aí?

— Provavelmente, mas já que me dei folga hoje, preciso ver


como está meu dia amanhã para saber as horas que posso

trabalhar — diz pegando a bolsa. — Ah, Deus. Meu celular caiu —


ela diz apavorada, e eu me controlo muito para não julgar o apego
com o aparelho.

— A gente pega quando eu estacionar.

— Tranquilo — ela diz, mas não está nada tranquilo.

Terminamos a viagem em silêncio e, quando ela sai do carro,


puxo o banco para trás, mas o celular não está ali.

— Meu Deus, Oliver. Eu preciso muito desse telefone. — O

desespero abraça suas palavras.

— Calma, segura aqui o meu, liga para ele.

Ela liga, mas não escutamos nada.

— Óbvio que, justo hoje, eu deixei no silencioso — reclama

com a voz entrecortada e, se ela chorar por causa de um celular, eu


não sei se ainda vou levá-la a sério.

— Calma, Eduarda. Ele está no carro. Você mexeu nele

dentro do carro, a gente vai achar e se não achar...

— Não tem essa de não achar, você não entende. Eu preciso


dele agora — ela grita e fecha os olhos, respirando fundo. —
Desculpa, eu só...

Saio do carro e vou até ela. Seguro uma de suas mãos e


sinto o coração bater loucamente em seu pulso.

— Calma, a gente vai achar seu celular. Ele está dentro do


carro. Só deve ter caído e se arrastado pelos tapetes durante o
trajeto, tá bom? — garanto enquanto a vejo engolir em seco.

Abro a porta traseira para ela entrar. Me sento no banco do


passageiro e fecho a porta, apagando a luz interna em seguida e

ligo para o número dela novamente. Não leva nem cinco segundos
para ela gritar um animado “achei!”. Aliviado, saio do carro e a
espero do lado de fora.

— Estava caído ali atrás, com a tela para baixo. Nunca


veríamos se não tivesse desligado a luz. Obrigada mesmo, Oliver.
— Ela fica na ponta dos pés e beija minha bochecha.
Seguro sua cintura, mantendo-a ali por mais tempo e, quando
ela se afasta, o vento leva suas madeixas para trás, ao que eu me

inclino sobre seu corpo e deposito um beijo demorado na bochecha


dela.

— Bom, a senhorita está entregue — digo com um passo


para trás, e ela desvia o olhar.

— Desculpa por isso, eu só... Preciso fazer uma ligação e...


— Ela respira fundo, corando, e acho que a ficha do exagero está

caindo.

— Está tudo bem — garanto colocando as mãos nos bolsos

da calça.

— E obrigada por hoje, pelo convite. — A garota sorri e sua


expressão carrega um nível de exaustão que eu não acho normal

para alguém da idade dela.

— Você foi uma ótima namorada de mentirinha, agora vá

descansar. — Pisco para ela.

— Posso dizer o mesmo. Sua festa foi linda e as comidas e


bebidas caras estavam ótimas, sim, senhor — ela me corrige

descontraindo o ar. — Quando precisar de uma namorada de


mentira para um evento desses, você já sabe onde eu moro. —
Eduarda devolve a piscadela. Em seguida, entra em seu prédio, e
eu sorrio antes de voltar para o carro.

Até que o dia do pesadelo não foi tão assustador.


DUDA

Entro em casa deixando o salto atrás da porta e vou direto


para o banheiro. A idosa que habita em meu corpo precisa se deitar.

Não lembro qual foi a última vez que fui para uma balada na vida,
mas, com certeza, eu ainda achava que cinco da manhã era cedo.
Rio removendo minha maquiagem. A Eduarda do passado teria

vergonha dessa que está morrendo à uma da manhã, mas não há

muito o que eu possa fazer.

Preciso me deitar e descansar, amanhã é dia de labuta.

Mas não sem antes saber o que Márcio queria falar sobre

Felipinho. Então ligo para ele e, com o celular no viva-voz, sigo me


“desmontando”.

— Duda? — pergunta e a ligação está silenciosa, ele está em

casa ou chegando.

— Cê queria falar comigo sobre a nossa criança...

— Ah, é... Ele tem, você sabe, perguntado quando você volta

pra casa.

— Mesmo? — finjo surpresa. — Porque acho que ele nunca

me perguntou isso. Nunca mesmo.

— Ele deve ter vergonha. — Ouço-o forçar um sorriso. —

Mas eu também sinto sua falta, também quero você aqui de novo.

— Boa noite, Márcio. Até mais — canto as palavras antes de

desligar.

Não é possível que nem tirar a maquiagem em paz esse

homem me deixa.

Depois de limpar a pele, tomar um banho, entrar num pijama

e me jogar na cama, pego meu celular para mandar uma mensagem

para o meu pequeno, mas me deparo com um bombardeio de

mensagens no grupo do quarteto.


Lavínia: Vocês amaram esse casal? Porque eu amei!

A mensagem tem uma foto minha e de Oliver. Nós estamos

nos divertindo, ele me segura pela cintura e eu gargalho com o rosto

inclinado para cima.

Lembro desse momento, ele estava me contando que metade

da Inglaterra odeia o Lewis Hamilton porque é “estadunidense


demais” e a outra o ama apesar de ele ser preto. Eu gargalhei

porque achei que era brincadeira, mas depois Oliver me explicou

tudo em detalhes e deixou de ser engraçado.

Amanda: Isso é você e o OMG?

Eu: Quem?

Amanda: O chefe do meu pai, O.liver M.agalhães G.raham (eu

chamo, carinhosamente, de OMG)


Leio a mensagem gargalhando, não sei de onde Amanda tira

essas coisas, mas eu adoro.

Eu: Gente, plmdds. Eu tô morrendo de rir.

Fani: Juro! Quando foi que todo mundo nesse grupo passou a
gostar de homem mais velho?

Fani chega mandando a mensagem junto com uma selfie em

choque. Ela é casada com um cara quase dez anos mais velho;
Lavínia e Daniel têm dezessete anos de diferença e, caso eu e

Oliver tivéssemos algo, estaríamos ali no meio, com um “intervalo”


de treze anos. Mas nós não temos nada, e estou digitando isso

quando Amanda envia:

Amanda: Eu nem homem namoro no momento, quem dirá velho!


Além de vocês, meus anjo quem gosta de velho é asilo.

Lavínia: Eduarda, não se faça de sonsa, ficou agarrada com ele a


noite inteira!!!
Eu: Lavínia, vai transar! Eu não quero nada com ele, nem curto
homens mais velhos.

Fani: Juro: tu tá realmente olhando pra ESSE MACHO e


argumentando com IDADE? Você é maior de idade Eduarda.

Lavínia: QUE PRETO, MEU SENHOR!

Amanda: Preto, malhado e com olho verde! QUE SABOR!

Eu: Vocês vão para de gritar?

Digito encarando as letras garrafais que elas mandam.

Lavínia: Já que você não curte caras experientes, eu vou pegar o


meu aqui. Pode ir dormir e sonhar com o Oh My God, Duda. Amo

vocês.
Amanda: Lavínia, menos informações.

Lavínia: Desculpa, eu esqueço que você não sabe que eu e o seu

pai somos um casal com vida sexual ativa.

Amanda envia uma figurinha revirando os olhos e Fani

interrompe a graça das duas.

Fani: Será que quando vocês transarem, você vai gemer OMG?

Amanda: Se não gemer, vai estar perdendo uma ótima

oportunidade!

Eu: Faleçam, as três. Amo vocês.

Lavínia: hahaha, scrr.


Fani: Também amo vocês.

Amanda: Eu também.

Fecho a conversa com essas depravadas e vou até a do meu

filho, enviando um áudio de boa noite e dizendo que o amo, mesmo


sabendo que Felipe só vai ouvir no dia seguinte. Se o pai estivesse

com ele essa noite, eu poderia ligar e ele com certeza atenderia,

eles cansam de virar a madrugada juntos. Mas como Márcio está


trabalhando, o garoto está na casa dos avós e já foi para a cama.

Querendo ou não, meus sogros são rígidos.

Malditas melhores amigas, viu?

Acordei às nove da manhã e poderia estar trabalhando na


mais santa paz. Infelizmente, só consigo pensar nos sonhos nada

castos que tive com Oliver por causa daquela troca de mensagens

patética antes de eu pegar no sono.


E, para piorar minha situação, eu lembro que sonhei, mas

não exatamente o quê sonhei, então vira e mexe entra uma cena
aleatória de beijos e carinhos em lugares que eu não gosto nem de

pensar, porque me dá calor.

Abro a pasta de uma das minhas clientes mais legais. Ela

trabalha com maquiagem e, para o post que preciso fazer, ela fez

uma inspirada em cada clássico adolescente dos anos 2000.

Por ora, minha favorita é a de Meninas Malvadas.

Meu celular vibra e eu olho a tela, é o Felipinho.

Príncipe: Mamãe, bom dia. Acordei.

Eu: Posso te ligar?

Príncipe: Peraí.

Encaro o telefone esperando a confirmação da ligação. Meu

filho está, provavelmente, indo para o quarto dele, fechando a porta


e ligando alguma música. Não é segredo para ninguém que o pai

tem o péssimo costume de nos ouvir atrás da porta.

Príncipe: Pronto.

Leio a mensagem e clico em “ligar” logo em seguida.

— Oi, meu amor!

— Oi, mãe. Tudo bom? Como estão os seus trabalhos essa


semana?

A voz dele é tão animadinha que me faz suspirar.

— Os trabalhos estão bem, já a mamãe... Cansada.

— Ah, a mamãe tá ótima. — A risada dele é sapeca e eu não


compreendo. — Hoje no café meu pai me mostrou uma foto sua

com seu namorado.

“Filho de uma p...”

— Não, filho, não. Olha só. Deixa a mamãe te explicar. Ele


não é meu namorado de verdade, eu só queria que o seu pai

pensasse que ele é.

— Ah, então eu não posso mentir, mas a senhora pode?

— Feliiiipe.
— Mamãããe.

— Isso é coisa de adulto, você sabe. E você não pode contar

isso para o seu pai, hein? Ele precisa acreditar.

— Mamãe, quando eu for ficar com você na semana que

vem, você pode estar bonita igual a ontem?

Sorrio para o telefone. Se tem uma coisa que essa criança

gosta, é de festa.

— Posso. E tem mais, você pode escolher minha roupa e a

gente vai à casa de festa escolher um tema bem legal, pra gente

fazer uma só nossa. O que você acha?

— Acho ótimo, agora eu vou esquecer do seu namorado de

mentirinha e vou contar como foi na festa do Gabriel, mamãe... —


ele diz e desembesta a falar da festinha do colega de classe.

Deixo o celular no viva-voz enquanto vou preparar algo para

comer.

OLIVER
A última coisa que eu quero é ser inconveniente, então

mesmo tendo acordado às oito da manhã, ainda não liguei para

Eduarda. Tá aí uma coisa que não sei sobre ela: que horas a

workaholic[5] acorda.

Ontem, depois de ter levado Eduarda, voltei para casa e o

pessoal da pista de dança e da iluminação estava desmontando o

serviço. Quando os contratei, fui avisado de que isso seria feito no


dia seguinte à festa, mas pedi para abrirem uma exceção. Buddy

não ia me dar sossego se não pudesse correr e mijar pelo quintal

dele.

Obviamente, separei uma boa gorjeta para dar aos rapazes

que ficaram trabalhando até quase duas da manhã, mas, na hora


que eles estavam de saída, percebi que minha carteira não estava

no meu bolso e fui buscá-la no carro. No entanto, quando bati o

porta luvas, o banco do passageiro, que tínhamos tirado do lugar

pra procurar o celular de Eduarda, me incomodou, então fiz o


necessário para colocá-lo no lugar.

Assim que o banco foi para trás, encontrei a carteira de


motorista da Eduarda no chão do carro. E, como era bem tarde,

optei por esperar até o dia seguinte.


O dilema agora é: Entro em contato com ela logo e, caso ela

esteja dormindo, a acordo ou espero até mais tarde e deixo ela

correr o risco de sair sem o documento para dirigir? Essas duas


perguntas estão brigando dentro de mim há algum tempo, então

assim que o relógio bate 10h, resolvo ligar.

— Alô? — Ela atende no terceiro toque.

— Oi, Eduarda. Aqui é o Oliver, tudo bom?

— Ah. Oi, Oliver. — A voz dela traz surpresa. Claro que traria.

— Tudo bom por aqui, e por aí?

— Tudo certo. Você não deu falta de nada, não? — pergunto

querendo justificar minha ligação.

— Ah, não? Eu esqueci alguma coisa na sua casa ontem?

— Na verdade, no meu carro.

— Jura? O quê? Estou encarando meu celular e a minha

bolsinha nesse exato momento. — Ela ri duvidando.

— Acho que se você tentar sair para dirigir, vai saber do que

estou falando.

— Eu deixei minha CNH no seu carro? Como?


— Da mesma maneira que o seu celular caiu lá. Sua bolsinha
devia estar aberta.

— Nossa, muito obrigada por ter achado isso e me avisado...

— diz um tanto quanto desnorteada.

— Não foi nada, Eduarda. Agora, como faremos para você


pegar sua CNH de volta?

— Você e esse R arrastado... — Ela suspira. — Bom, se você


não se importar, eu posso dar um pulo aí para buscar, a menos que

você vá sair.

— Não — digo de imediato, porque não tem cabimento. —

Você não vai poder dirigir até aqui, então eu levo.

— Não precisa, Oliver. Que isso?

— Faço questão. Nada que um namorado de mentira não


faria pela namorada — digo e posso ouvi-la segurando o riso.

— Tudo bem, então. Me avisa quando chegar pra eu liberar


sua entrada — ela diz e desligamos.

Me jogo dentro do carro cinco minutos depois deixando


Buddy no quintal com água fresca e a porção de comida do dia.
Com sorte, eu ainda consigo turistar nessa cidade.

Chego à frente do prédio e ligo para Eduarda novamente,


mas ela não me atende. A mulher simplesmente desliga na minha

cara e me manda uma mensagem.

Contato não salvo: Pode subir. Quarto andar, apartamento 3.

Faço como ela me pede e, assim que toco a campainha, a


porta se abre.

— Oiê, tudo bom? Pode entrar — diz abrindo a porta para


que eu passe.

— Oi, tudo certo. — Eu me aproximo para cumprimentá-la

com um beijo no rosto e ela logo vira o rosto me lembrando


automaticamente do segundo beijo.

— Nossa, desculpa ter feito você atravessar a cidade. Cê


bebe alguma coisa?
— Uma água por favor — peço parado no meio do cômodo,
que é uma sala ampla que divide espaço com uma pequena
cozinha.

— Você não vai crescer mais, né? — Eduarda me observa


ficar de pé. — Tem o sofá ali para você sentar ou essa banqueta aí.

— Indica o banco alto que está na frente do balcão que divide os


cômodos e me sento.

— E então, como você achou a bonitinha? — pergunta e eu

me lembro que vim entregar a CNH dela.

Tiro da carteira e coloco na mesa enquanto respondo:

— Eu estava ajeitando o banco, na verdade. Achei ela caída.

— Você podia ter mandado mensagem, eu teria buscado

quando acordei. — Eduarda me entrega um copo de água e se


debruça no balcão.

Desvio o olhar para a janela e finjo estar atento à paisagem.

Eduarda veste um shortinho jeans e uma blusa de alças que a


deixam despojada, mas, ainda assim, atraente. Principalmente por
causa do cabelo preso num coque solto, que deixa algumas mechas

caírem sobre seu rosto. Cheguei há menos de cinco minutos e já me


contive duas vezes para não as colocar atrás da orelha.
E, agora, com ela debruçada nesse balcão, manter meus
olhos longe do decote seria difícil. E, bem, ninguém quer um

desconhecido olhando pros seus peitos, né? Então continuo


correndo os olhos de uma janela para a outra enquanto respondo:

— Ah, eu nem pensei nisso. Só... fiquei esperando o relógio


bater um horário confortável para ligar para alguém num sábado de
manhã.

— Entendi. Bom, me perdoa a bagunça, mas eu estou de pé


desde as 9h trabalhando tudo o que não trabalhei ontem — ela diz
se sentando na banqueta que está do lado da cozinha do balcão e

puxando o notebook para si. — E então, já recebeu muitas


solicitações de amizade dos funcionários no Facebook?

— Algumas. Eu diria bem consideráveis — digo finalizando


minha água enquanto ela tira o olhar da tela e o pousa em mim
depois da resposta.

— Você nem verificou, né? — Seus olhos semicerrados me


assustam e eu apenas balanço a cabeça negativamente. — Então
abre o aplicativo, gente.

Faço como ela manda e, bem...

— Treze é um bom número?


— Treze é um bom número — confirma excitada. Opa,

excitada não, animada. — Posta alguma coisa sobre a festa. Não no


Facebook, posta no Instagram. As pessoas usam mais ele hoje em
dia, num geral.

Eu a encaro de queixo caído e, quando abro o aplicativo, não


digo que ela está certa e que, de ontem para hoje, eu ganhei mais

de vinte seguidores e fui marcado em aparentemente mais fotos do


que o aplicativo consegue notificar de uma vez. Só vou até uma das
publicações na qual o fotógrafo oficial da festa me marcou e escolho

uma que estou com ela para repostar no Story.

— Pronto.

— Deixa eu ver — pede ansiosa, e eu percebo que ela cora


quando vê a foto. — Eu tava uma gata ontem — comenta ainda sem
jeito.

— E está hoje também, se você me permite dizer. — Ela


sustenta o olhar no meu por alguns segundos, mas volta para o
computador em seguida. — Bom, agora que sua carteira já está

entregue e eu já bebi um copo d’água, acho que está na hora de


deixar a viciada em trabalho trabalhar.

— Disse o viciado — ela debocha.


— Na verdade, eu não sou um viciado em trabalho, sou só
recém-chegado na cidade, então fico trabalhando enquanto não
faço amigos. Ajuda a passar o tempo.

Eduarda me encara e gargalha.

— Eu estou rindo com respeito, tudo bem? É que... Você é


muito bonito e tem uma ótima lábia. Me convenceu a parar de

trabalhar numa sexta-feira à noite para ir à sua casa e me


apresentou para metade da festa como sua namorada — pontua

listando. — Então como você não tem amigos?

— Aparentemente minha lábia só funciona com você —

rebato com a sobrancelha esquerda erguida e a vejo corar mais um


pouco. — Quais são os seus planos para hoje?

— Vou trabalhar — Eduarda responde com os olhos fixos na


tela.

— O dia todo? — pergunto e ela assente. — Isso é uma


pena, a única amiga que eu consegui fazer nessa cidade não pode

jantar comigo.

— Nossa, não mesmo. — Ela ri nervosa. — Não se eu quiser


tirar o dia de folga amanhã, pelo menos, o que eu quero. — Encolhe

os ombros.
— E aí você janta comigo ou minha lábia parou de funcionar
com você também? — provoco.

O jeito que ela engole em seco e se remexe na cadeira


incomodada me fazem retesar, acho que... Ela não curtiu ser a única

pessoa que caiu na minha lábia.

— Desculpa, era uma brincadeira.

— Tá tudo bem eu só... Não faço ideia da última vez que tive

um amigo próximo do gênero oposto. Não que a gente seja amigo


nem nada, só nos vimos dois dias. É que... — as palavras dela
morrem e giro o dedo em torno na boca do copo enquanto a espero

concluir.

Quando ela não termina, ergo seu queixo com a mão livre.

— É que...? — pergunto baixo e vejo quando ela engole em


seco e, gentilmente, desvia o queixo da minha mão.

— Tá tudo bem, eu só... Prefiro manter os homens longe. —

Ela vai direto ao ponto, gosto disso.

— Algum motivo específico?

— Se o comportamento do pai do meu filho na noite de

ontem não te explica, meu anjo... Não há muito o que eu possa


fazer.
— Ah, você é mãe? — Ela assente. — Não sabia.

— Porque eu não contei, né? Mal te conhecia. — Ela ri. — Eu


não me apresento com: “Olá, meu nome é Eduarda Campbell, tenho
25 anos, sou divorciada e tenho um filho”.

— Pensando por esse lado, você tem razão. — Coço a nuca.


— E vocês se separaram há muito tempo?

— Na verdade, não. Tem menos de um ano. Mas era uma


relação ruim, e eu só não quero nada assim pra minha vida de novo.
— O tom de Eduarda me mostra que ela não quer mais falar do

assunto, então opto por descontrair.

— Entendi. Bom, o lado positivo é que, apesar de a gente


“não ser amigo nem nada”, eu estou realmente querendo fazer

amigos. Então você não precisa se preocupar comigo, sou


praticamente um eunuco. — Ergo os braços simulando rendição e
inocência, e Eduarda revira os olhos e joga a cabeça para trás numa

risada deliciosa.

— Mas e lá no Daniel na semana passada, você não

enturmou com o pessoal?

— Sim, eles são ótimos. Curti demais. Mas o Daniel tem


alguém, os amigos dele também, até o Paulinho — cito o diretor de
marketing da empresa — tava lá, e eu gosto bastante dele, mas

também tava acompanhado. — Ela meneia a cabeça e pondera


antes de responder.

— Entendi... Bom, talvez eu consiga almoçar na casa do meu


quase amigo amanhã então...

Minha boca se curva num meio sorriso.

— Não. Vou procurar algum lugar legal pra te levar, não


aguento mais ficar naquela casa. — Algo na minha frase acende o

rosto dela, que sorri assentindo.

— Se eu tivesse uma casa daquele tamanho e morasse


sozinha nela, também ia surtar.

— Eu não moro sozinho, moro com o Buddy — corrijo-a.

— Gato? — Ela sobe o olhar da tela de novo.

— Cachorro — respondo, e ela leva a mão ao coração.

— Nossa, que delícia. Eu queria muito, mas aqui no prédio


não deixam.

— Bom, você pode visitar o Buddy sempre que quiser, mas


agora acho que preciso te deixar com seu trabalho, né?
— Precisar você não precisa, mas eu não tenho como te dar
minha tenção agora, então... Até amanhã? — ela pergunta com os
ombros encolhidos e eu sorrio me levantando.

— Até.

DUDA

Eu não tenho ideia do que acabou de acontecer aqui, o que

eu sei é que, de repente, eu tenho um almoço com o cara mais


gostoso que já vi na vida e não posso contar para as minhas
amigas, porque quase todas elas o conhecem.

Eu: Pelo amor de Deus, esteja aí.

Mando no privado da única que ainda é um campo neutro.

Fani: Eu estou, minha filha, se acalme.


Eu: Eu acabei de fechar a porta para o cara da foto de ontem.

Fani: Quê? Você dormiu com ele?

Eu: Às vezes eu acho que você se faz de sonsa. Se ele tivesse


dormido aqui, eu já teria avisado, Fani. Foco.

Fani: Eu não consigo focar numa notícia dessa por mensagem, me


liga.

Aperto o ícone de ligação no aplicativo de mensagens e me


jogo no sofá, prometendo a mim mesma de que é a última coisa que

eu vou fazer antes de terminar meus trabalhos.

Eu e Márcio já éramos amigos há anos quando começamos a


ficar e, naquele momento, nossa única dúvida era: por que não

fizemos isso antes?


Oito anos depois, eu sei o porquê. Porque não era para ter

sido, não devia ter acontecido.

Ter ficado com Márcio não acabou só com a nossa amizade,

acabou com a minha vida também e, por mais que eu ame meu filho
com todo o coração, a última coisa que eu precisava era ser uma
mãe solo de vinte e cinco anos. Uma mãe solo que nem mora com o

filho.

Eu sou uma piada para mim mesma.

Por isso, tenho dificuldades em lidar com pessoas do gênero

oposto. Nenhuma das minhas amigas sabe a verdade, mas nos dois
encontros originados do meu tinder, eu simplesmente fugi.

Fugi.

Saí correndo.

Disse que ia ao banheiro e fui com Deus, porque a

possibilidade de um cara legal se aproximar me faz pensar que uma


hora ele vai mudar e, quando ele mudar, eu vou sofrer. E eu não
preciso passar por isso de novo.

Sendo assim, quando Oliver propôs um jantar ontem, eu


mudei para almoço porque amigos almoçam juntos com muito mais

frequência do que jantam.


Quando ele me buscou em casa para o nosso almoço,

dizendo que eu deveria estar cansada de dirigir, já que trabalho com


isso — o que eu realmente estava —, eu agradeci, mas não

consegui sorrir como gostaria.

Ao chegarmos no restaurante árabe que ele me levou, eu

queria ter dito que nada agrada mais uma mulher do que o cara a
convidar para um encontro e, de fato, levá-la a algum lugar que ele
escolheu. Em vez de ficar perguntando: “Aonde você quer ir?”, como

se não soubesse o que fazer com uma mulher, mas não consegui.

E, ao longo do almoço, eu até queria fazer perguntas mais


pessoais ou mais sérias, mas me travava e levava todo os nossos
assuntos para coisas superficiais como: as viagens que Oliver já fez,

o tempo que morou fora do país, o sotaque gostoso dele, Fórmula 1


e videogames. O homem até tentou entrar em questões menos

neutras uma vez ou duas, mas eu desconversei, porque o Oliver


pode ser só mais um sapo em pele de príncipe e, mesmo que o que
ele tem a oferecer seja amizade, não quero me aproximar tanto.
Oliver é uma delícia. O homem é realmente um gostoso e
muito atencioso. E talvez seja por isso que eu tenho uma certa
dificuldade de dizer não para ele e, assim, acabei combinando de

assistir à corrida na casa dele semana que vem, mesmo sabendo


que eu passaria o fim de domingo todo com isso na cabeça. Decidi

fazer algumas corridas para descontrair e me manter calma.

“É uma pessoa legal, Eduarda, e é só amizade.”

Se me perguntassem qual é o ponto positivo de ser Uber, eu

diria: ganhar dinheiro em silêncio, fazendo uma das coisas que eu


mais gosto — dirigir.

Mas, se perguntassem o ponto negativo, sem a menor dúvida

seria a quantidade de gente inconveniente que se pode encontrar.

Só hoje, num domingo, no qual rodei por quatro horas,

consegui pegar:

Dois passageiros que, pelo amor de Deus, não calavam a


boca. E, para piorar, foram as viagens mais longas. Um da Tijuca

para a Barra da Tijuca — eu sei que os nomes enganam, mas não,


não é perto. Inclusive, cada uma fica num extremo do Rio de Janeiro
— e outra da Barra para Ricardo de Albuquerque, e aí você põe
chão mesmo.

Ganhei muito? Sim.

Valeu a pena? Ainda não tenho certeza.

Em contrapartida, tive uma corrida do centro para o Catete, o

que não deu nem quinze reais, e o homem me pagou com uma nota
de cem.

Isso para não mencionar a bonita que ficava dizendo “vai

mais rápido, moça. Eu tenho hora”.

O que eu queria dizer: se eu for multada, posso levar na sua

casa para você pagar?

O que eu disse: senhora, infelizmente temos um limite de


velocidade baixo nessa pista, eu também queria ir mais rápido.

Depois dessa, voltei para casa, tomei um banho e me joguei


na sala com os controles do meu Nintendo Switch e do PlayStation

na mão. Rio lembrando do quão desprezível Far Cry 4[6] pareceu


para Oliver e deixo os controles do PlayStation de lado. Ligando

meu Nintendo e colocando SuperMario Bros. 2 que, não contei para


ele, mas também amo jogar.
OLIVER

Ao longo da semana seguinte à minha conversa com


Eduarda, eu não consigo deixar de repassá-la em minha cabeça

pelo menos duas vezes por dia, por mais evasiva que ela tenha
sido, algumas coisas não podem ser negadas. Se por um lado é um
tanto quanto assustador saber que ela já viveu tanta coisa mesmo

sendo tão nova, por outro eu volto a questionar minha própria sorte.

Toda a conversa me deixou ainda mais saudoso da minha

relação com Catherine. Enquanto o casamento de Eduarda era uma


prisão e era horrível, o meu era um lugar bom e seguro para se
estar, de onde os dois podiam voar sempre que necessário, tendo

um lugar para voltar.

E eu gostaria muito, muito de conversar com Catherine sobre


isso, mas não posso, então faço algo que já deveria ter feito a um

tempo. Telefono para o meu filho.

— Mas olha quem lembrou que tem um filho... — Peter diz

ironicamente.

— Mas olha quem não lembra que tem pai. — Me deito no

sofá e encaro Buddy, sentado no tapete à minha frente.

— Eu sou um homem que se casa em duas semanas, não há

muito o que ser feito. Estou vivendo em função desse casamento.

— E me diz aí, homem, como você está? Tirando a

ansiedade.

— Tirando a ansiedade? Ah, tô ótimo. — Ele ri. — A Isadora


está mais calma que eu. Não sei, parece que eu sou a noiva.

— Você é um homem com sentimentos, Peter. Isso é bom —

tento acalmá-lo. — Deixa a Isa, ela vai ter o tempo e o jeito dela de

sentir as coisas.

— Você acha que eu estou maluco? — A pergunta vem num

sussurro, e sei que ele não está falando do nervosismo.


— Acho. — É minha resposta. — Mas se é ela que você ama
e se acredita que a melhor opção para vocês é casar um ano depois

de formados, eu não vou me meter.

— Pai, já falei... A gente tá junto há cinco anos e temos

certeza de que queremos permanecer assim. Começar a construir a

carreira individualmente e depois casar daria problema. — Peter

respira fundo, como se já tivesse me explicado aquilo vezes demais,

e ele já fez isso, de fato, então dou um desconto.

— Tá, vocês querem crescer juntos, estar presentes em

todas as etapas do outro... E vocês estão certos. Se eu achasse que

estão errados, não estaria compactuando com isso não, moleque.

— Cê vem só na quinta mesmo?

— Você se casa no sábado. Como assim, só na quinta?

— Ah, pai. É que a gente vem pra cá terça, né? Queria ter

mais tempo com o senhor.

— Quando vocês voltarem da lua de mel — replico sem

pensar duas vezes. — Não quero mais tempo com um noivo

neurótico — brinco. — E terça sua mãe vai estar aí, acompanhada

— a palavra resga minha garganta. — Então prefiro não dividir esse

tempo com ela.


— O senhor podia ficar feliz por ela, sabia? — me repreende.

— Eu estou feliz por ela, não estou feliz por mim — digo e

Peter gargalha.

— Seu Oliver, seu Oliver. Todo mundo aqui só fala da ruiva

nas suas fotos, o senhor para de fingir sofrência pela mamãe — ele
me repreende.

— Ah, não... Ela não é... Nós não...

— Ela não é sua namorada? — diz surpreso. — Então se o

senhor não quiser se sentar sozinho em uma mesa com a mamãe e


o Henry, sugiro trazer alguém. Uma acompanhante ou algo do tipo.

Paulinho já tinha me dado essa sugestão, disse que tem


vários jeitos de contratar acompanhantes e, quando o assunto me

deixou alarmado, ressaltou que essas contratações não envolvem


sexo. Mas estar com alguém com quem não vou ter assunto,
durante quatro dias, ou passar o casamento sozinho, parecem

opções igualmente deprimentes.

— Vou ver o que posso fazer... — respondo depois de exalar


o ar com mais peso do que o necessário.

— Se eu fosse você, tentava com a ruiva — ele insiste. —


Mas e a empresa, como está? — pergunta mudando o rumo da
conversa.

Começo a falar do assunto sem reservas e com propriedade,


porque é o que eu sei fazer de melhor. No entanto, ao mesmo

tempo que disserto sobre o assunto, minha cabeça vai até Eduarda.

O sorriso, o jeito que ela cora, a forma como arregala os


olhos quando se surpreende ou assusta com algo, a gargalhada que
ela dá independentemente do local e os seus olhos.

Os grandes, verdes e intensos olhos de Eduarda.

“As coisas vão ficar melhores”, eles disseram. E estavam

certos.

Percebi que, apesar de tudo... As coisas estão se


encaixando. Como CEO da empresa, eu não tomo cafezinho na

copa e nem almoço com meus funcionários o tempo todo, mas ao


longo da semana pude notar o medo e a insegurança dos meus
colaboradores diminuindo quando passo perto deles.

A forma como eles fecham todas as abas de internet quando


chego perto e o sustinho acompanhado do olhar de “eu não tava
fazendo nada errado”, no entanto, não têm preço. Já sentia isso
quando era gerente e diretor, agora que sou o chefe “de todos eles”
é ainda mais prazeroso.

— Boa tarde, Joanna — digo ao telefone.

— Boa tarde, seu Oliver — minha secretária responde com o


tom de voz de quem quer que o relógio bata 18h na sexta-feira.

— Mais alguma coisa na minha agenda para hoje?

— Não, senhor. Segunda teremos uma reunião na torre do


Rio Sul às 08h, mas por hoje já encerramos.

— Perfeito, Joanna. Você está dispensada agora. Tenha um

bom fim de semana.

— O senhor também. — A felicidade reveste o cansaço na


voz dela e, em menos de cinco minutos, vejo-a saindo da mesa ao

lado da minha sala.

Martelo os dedos das mãos na mesa enquanto penso no fim


de semana do casamento. Não vai só ser difícil, vai ser intragável,

mas agora preciso sair e passar no mercado. Domingo Eduarda


verá a corrida comigo, então preciso abastecer meus armários.

Nem só de delivery vive o homem.


DUDA

— Alô, quem fala? — O telefone não poderia tocar numa hora


pior.

Acabei de colocar Felipe no banho e o porquinho foge de

água como o diabo foge da cruz. Mas, nessa vida de motorista, o

nosso telefone também roda por aí, então eu sempre atendo.

— Oliver.

— Você me dá um segundo? — Coloco o microfone do

celular no mudo e ligo o chuveiro para o meu filho enquanto faço

sinal de silêncio para ele, caso contrário o moleque toca o terror.

— Eu vou ficar quieto, mamãe. Pode atender lá fora. — Ele

me enxota do banheiro com a mãozinha balançando no ar.

— Acho bom mesmo, vou trazer uma esponja para você se

esfregar. — Saio e bato a porta, tirando o microfone do mudo.

— Pronto.
Caminho até o meu quarto em busca de uma esponja — as

orelhas daquele menino vão cair de sujeira a qualquer momento.

— Boa noite, Eduarda Campbell — ele arrasta o sotaque,


fazendo sua voz ganhar um rosto.

E minha mente faz um ótimo trabalho em pintá-lo: a pele é

negra, os olhos verdes, os lábios carnudos e a bochecha sequinha


contorna a face até o queixo quadrado.

— Boa noite, Oliver, tudo bom? — digo apenas o primeiro


nome dele, porque só a ideia de um O.M.G. saindo da minha boca

me dá vontade de rir.

— Tem alguma coisa que você não coma? — ele pergunta de

um ambiente não muito silencioso.

— Jiló? — Me sento em minha cama indagando.

— Estou no mercado comprando snacks pra gente comer

durante a corrida e me bateu essa dúvida.

— Não. Só não como coisas amargas nem bebo café sem

açúcar — digo com certeza.

— Ótimo, cê tá fazendo o que agora?

— Esperando minha criança sair do banho.


— Ah, então ele finalmente achou o caminho da sua casa?

— Isso. Achou. Fica comigo até o almoço de domingo, então


pode ser que eu me atrase um pouco, mas eu chego aí a tempo de

ver o Hamilton ganhar — asseguro e ele gargalha.

— Tudo bem então, a gente se vê domingo.

— Até lá. — Desligo o celular encarando o teto.

Por que eu estou fazendo isso? Eu nem sei quem é esse

cara de verdade, não tenho nada em comum com ele.

Tá, na verdade, a gente acabou de combinar um programa

que nunca consegui fazer com meu ex-marido, porque ele odiava

corridas. Oliver e eu também amamos videogames e estamos


passando pela mesma merda, então talvez seja isso.

“Talvez nós sejamos parceiros de merda.”

— Acabei! — O grito que me desperta vem do meu banheiro,

e eu sei que ele não acabou nada.

Pego a esponja na gaveta da minha cômoda e corro até lá.

— Tu acabou, Felipe? — Encaro-o com os olhos

semicerrados.

— Acabei. — Ele ri como se tivesse sido pego no pulo.


— Ah, tá. E esse cabelo seco?

— Que foi? É pra passar shampoo? — Ele arregala os

olhinhos e eu dou a esponja na mão dele, ligando o chuveiro.

— Vai se esfregando com isso enquanto a mamãe lava esse

cabelo. — Meu jorra mais sabão líquido que o necessário na

esponja, e pego o shampoo infantil.

Mesmo quando termino de ajudar meu filho com o banho,

continuo pensando no surto que é esse surgimento de Oliver na


minha vida.

— Mamãe, eu quero jogar... — Felipe tenta negociar algum

jogo que não é para a idade dele, parado na saída do banheiro,


enrolado na toalha, mas é impedido.

— Você quer ler... — Lavínia diz entrando em casa e jogando

a bolsa no sofá.

— Boa noite, meu amor. Você não deveria estar com o seu
namorado? — Pergunto confusa.

— Seu namorado é de verdade, tia? — Felipe pergunta e eu


seguro o riso.

— Vai já pro quarto colocar uma roupa, menino — digo


enquanto eu e ele rimos de uma piada que Lavínia não entende.
— A da festa? — ele pergunta ansioso e só agora lembro que

prometi uma festa temática para ele.

“Puta que pariu!”

— Não, a festa é amanhã, sábado! Coloca um pijama.

— Tá bom. — Meu filho caminha triste enquanto Lavínia vem

me abraçar.

— Esqueceu a festa que prometeu, é? — Ela pergunta e eu

dou um beijo em sua bochecha antes que ela se afaste e vá até a

geladeira, tirando uma garrafa de refrigerante e servindo três copos.

— Completamente, mas enfim... Amanhã é sábado. Dou meu

jeito. E você, fazendo o que em casa numa sexta-feira à noite? —


Passo por ela e pego duas pipocas de micro-ondas sabor manteiga.

Em instantes, Lavínia vai se sentar com Felipe e eu e fingir


que está vendo alguma coisa até levantar, dizendo que precisa ir

quando a tela do telefone acender, o que significa que Daniel estará

lá embaixo a esperando.

Isso acontece toda sexta-feira que ela vem para casa, o que

é raro, porque na maioria das vezes ela vai direto para a casa dele.

— Mala — diz e dá um gole em sua bebida. — A gente vai

pra Petrópolis amanhã de manhã e preciso de roupas que estão


aqui.

— Eu almocei com o Oliver semana passada e vou à casa

dele ver a corrida no domingo, mas como amigos, não tem nada

rolando — digo encarando o relógio do micro-ondas, mas consigo


sentir quando o olhar dela sobe pelas minhas costas.

— E você me escondeu isso por quê, se não tem nada


rolando?

— Porque eu não quero que você ou as meninas, num geral,


criem uma expectativa boba em cima de algo que não é nada.

— Entendo, mas acho que nós somos adultas, certo? É só

você dizer que não tá rolando que eu vou acreditar, não precisa me
esconder coisas.

— É, amiga, mas eu...

— Mamãe, eu posso? — Felipe pergunta com o controle do

Nintendo Switch na mão e eu assinto.

— Dez minutos, lá na cama da mamãe. Vamos ver um filme

com a tia Lavínia hoje.

— Por que a gente não vê uma série? — Ele bate os cílios

longos que herdou de mim. — Aí ela pode sair quando acabar o

episódio.
Balanço a cabeça positivamente e ele se vai.

— Ele é legal, sabia? Muito legal. E a gente se viu poucas


vezes, eu sei, mas me sinto bem perto dele. Então ter piadinhas e

conversinhas em cima disso me faria retrair, acabar uma amizade

antes mesmo de começar.

— Eu entendo, mesmo. E eu sou mais fechada que você, né?

É só... que você surta. E eu não quero que você chegue a ponto de

surtar sozinha. Pode desabafar se precisar, tá bom? — ela diz


segurando minha mão, e eu assinto.

— Pode deixar, qualquer coisa eu grito no grupo do quarteto.


— Sorrio afagando a mão dela.

— Vou fazer minha mala e volto correndo, tá? Antes de você

armar o sofá-cama pra gente deitar. — Ela força o sorriso e passa


por mim beijando meu ombro em seguida.

Lavínia saiu do apartamento em menos de uma hora, o que


não é raro. Mas fizemos como Felipe sugeriu e vimos um episódio
de Caçadores de Trolls, assim, ela deu atenção ao sobrinho, ficou
agarradinha comigo vendo a série e disse que da próxima vez ficaria
mais tempo.

Minha amiga sempre diz isso, mas nem o Felipe acredita

mais.

Depois que Lavínia vai embora, eu e minha cria pedimos


pizzas, uma salgada e uma doce. Como ele não come carnes, a

salgada foi metade calabresa para mim e metade muçarela para


ele... A criança tem seis anos e está mais determinada a ser
vegetariana do que eu era nas minhas dietas malucas.

O que é bom, tanto para ele quanto para mim.

Agora Felipe está dormindo em meu abraço. Encaro seu

rostinho e fecho os olhos logo depois respirando fundo:

“Por favor, não cresça muito rápido.”

Esse é meu único pedido a Deus desde que me separei.

Deixar minha casa e meu marido não foi fácil, por pior que

meu casamento fosse. Ninguém se casa pensando em separar.


Deixar meu filho para trás, no entanto, foi mil vezes pior.

Ninguém consegue explicar o que é ver o seu coração que


bate fora do corpo dizer “tchau, mamãe” e sumir da sua vida por

uma semana ou duas. Mas me apego ao fato de que isso é uma


situação temporária. Eu vou pegar a guarda dele assim que
conseguir organizar minha vida e minhas contas sem trabalhar
setenta horas semanais.

Dando graças que amanhã é sábado, tiro o despertador do


celular e ativo o modo avião. Quero estar incomunicável até minha

criança decidir que devemos acordar e, com sorte, Felipe vai se


contentar com um hambúrguer vegetariano e um bolo de chocolate

com alguns balões de gás. Não dou conta de montar uma festa
inteira e ainda entregar posts de três clientes antes das 18h.
OLIVER

Não lembro a última vez que fiquei tão nervoso para receber
um amigo. Acordei às 8h, tomei café da manhã, corri na orla de

Ipanema, passei na lavanderia e peguei minhas roupas, tomei um


banho, brinquei com o Buddy, li, tomei um segundo banho — porque
que calor infernal faz nessa cidade — e, agora, estou terminando de

almoçar enquanto espero Eduarda chegar.

A corrida começa em vinte minutos.

Acho, apenas acho, que comprei coisas demais. E também

comprei uma mesinha de madeira, de armar, para colocar os snacks

na sala. Duda não precisa comer se não quiser, e acho que nem vai
querer, quer dizer... Ela almoçou com o filho há uma hora, e eu

acabei de comer. Não sei por que pensei que tanta coisa fosse
necessária.

Levanto e vou escovar os dentes, dividido entre jogar tudo

para a cozinha e pegar se ela quiser ou deixar lá, fingindo que eu só

esqueci que acabamos de almoçar mesmo.

Depois de um tempo, a primeira opção ganha e estou

fechando a mesinha quando o interfone toca.

— Eduarda? — pergunto.

— Sim, eu mesma — ela responde e eu aperto o comando

para abrir o portão.

A sala está em ordem, a TV ligada, as persianas fechadas...

Tudo certo. Corro até a porta para recebê-la e a vejo saindo do

sedan que dirige.

Eduarda calça um Oxford claro e veste um macacão que

termina um palmo acima do joelho. Ele é leve, mas aperta em sua

cintura e tem um pequeno decote que desenha o V dos seios dela.

Os cabelos ruivos voam, e ela umedece os lábios correndo a língua

rapidamente por eles. Quando me vê, Duda sobe os óculos de sol

que está usando e sorri enquanto caminha.


E eu engulo em seco, porque é a porra da visão mais bonita
da minha semana.

— Oi — ela diz subindo as escadas da entrada.

— Oi, Eduarda. — Arrasto o R porque sei que ela gosta.

Então trocamos os dois beijinhos. — Como foi o trajeto até aqui? —

pergunto saindo da frente da porta, e ela passa por mim.

— Tranquilo, fim de semana a gente consegue dirigir sem

muitos transtornos nessa cidade — comenta enquanto eu fecho a

porta.

— Você quer uma água, um suco, um refri? — pergunto

caminhando ao lado dela.

— Agora não, estou bem. Cheguei muito atrasada? —

pergunta apreensiva, e passo a mão por sua cintura para guiá-la do

hall da casa para a sala.

— Não, não. Acho que a gente ainda consegue pegar a


largada.

— Ótimo. — Ela sorri para mim, como faz quando fica sem

palavras.

— Bom, bem-vinda de volta — digo quando chegamos ao

cômodo.
— Nossa, é bonito aqui, né? — comenta olhando em volta,

mas não faz menção de se afastar de mim, e eu gosto disso, da


sensação de tê-la tão perto. — Tinha esquecido.

— É, é bem bonito — respondo porque é a verdade, e ela


não precisa saber que eu não gosto tanto assim dessa casa. —

Vamos nos sentar? A volta de apresentação já está acabando.

Eduarda assente e seguimos até o sofá, então ela sai do meu

abraço, se sentando no canto oposto e me deixando incomodado


com a distância.

A corrida começa, e a garota é intensa. Quando o Verstappen


quase tirou a primeira posição do Hamilton, na segunda volta, ela se

levantou do sofá. A cada ultrapassagem ou carro saindo da pista,


um gritinho saía dela, e quando Daniel Ricciardo e Fernando Alonso
entraram numa disputa pelo quinto lugar, na vigésima volta, ela me

disse: “Não sei por quem torcer, eu amo os dois”. E eu sorri com a
expressão sofrida dela. Mas, agora, quase tapei os ouvidos com o

grito que a garota deu, com a batida que aconteceu durante a


trigésima nona volta.

E, honestamente, eu nem sei o que fazer, então busco um


copo d’água para ela na esperança de que isso a calme.
— Tá tudo certo com eles? — pergunto entregando a água a

Eduarda, que assente.

— Desculpa eu só... Vejo mais documentários de corridas

antigas do que deveria, então é sempre um medo.

— Mas é como você disse — começo, me sentando perto


dela — são as antigas. Ninguém morre desde 2015, e antes disso
também tinha tido um hiato bem grande.

— Hum... Eu sei, mas... Ah. Sei lá, vai que alguém fica sem
perna? — ela sussurra, como se as palavras dela pudessem fazer

isso acontecer, e eu não contenho o riso. — Tá rindo de quê?

— Você é maravilhosa, Eduarda — digo ainda rindo e ela


cora intensamente.

— Porque eu estou com medo de alguém parar no hospital?


— pergunta indignada.

— Não, porque você é, só isso. — As palavras saem de mim


como se eu estivesse dizendo algo leve, normal e costumeiro. Então

nossos olhares se seguram um no outro, até que ela desista.

— Obrigada. Bom, faltam... dez voltas para acabar a corrida

agora — comenta se recostando no sofá e, consequentemente, se


afastando de mim.
Tento manter meus olhos fixos na tela, mas com o primeiro
colocado a quase quinze segundos de distância do segundo, a
corrida está praticamente definida, então observo Eduarda, que está

mais contida agora, ainda que solte uns palavrões vez ou outra.

“Todo mundo aqui só fala da ruiva nas suas fotos...”, a voz de

Peter ecoa em minha mente e eu me pergunto como seria ter uma


companhia para aquele casamento, como seria se eu realmente
tivesse coragem de chamar Eduarda para ir comigo.

— Eu comprei snacks para umas dez pessoas, então acho


que a gente já pode começar a comer, certo? Ou você ainda está

cheia do almoço? — pergunto enquanto aguardamos a cerimônia do


pódio começar.

— Não, não. Por mim, podemos comer, sim.

— E você bebe suco ou refrigerante?

— Depende do que a gente vai comer?

— Coxinha, pipoca, cheetos? — pergunto e ela gargalha.

— Meu Deus, Oliver. — Ela se levanta. — Você não estava


brincando, hein? — diz, e quando noto que ela está me esperando

caminhar, eu o faço.
Chegamos à cozinha e ela observa a mesa com tudo o que
comprei para hoje.

— Oliver, eu vim assistir uma corrida com você, não vim


passar a semana na sua casa, não — diz pegando uma coxinha.

— Me deixa esquentar isso pra gente. — Pego o tabuleiro


com as coxinhas e bolinhas de queijo.

— E onde você comprou esses salgados?

— Numa padaria aqui perto. Como lá, às vezes, e achei que

seria melhor ter uns salgados assim também — digo ligando o forno
com o tabuleiro dentro. — Mas me diz uma coisa, como você

aprendeu a gostar de corridas?

— Meu pai — ela diz com um riso, mas ele é triste. — Todo

mundo gostava muito de futebol, mas meu pai era só das corridas,

então passei muitos domingos da infância na frente da TV assistindo


com ele.

— Entendi. E vocês ainda tem uma boa relação? — pergunto


e ela apenas nega com a cabeça. — E o Felipe? É Felipe, certo? O

nome do seu filho? — Ela assente. — Também assiste?

— Ele não tem a paciência necessária para três horas de

corrida parado. — Eduarda ri puxando a cadeira para se sentar.


— Nossa, minha educação morreu. Me perdoa, mas fica à

vontade — digo me sentando logo em seguida. — E me diz uma


coisa, Eduarda, quando você vai parar de ser evasiva com as

minhas perguntas pessoais?

— Nossa, você é direto, né? — A garota pergunta como um

confronto, e eu dou de ombros.

— Talvez...

— O que você acha de você começar a falar sobre sua vida


pessoal, aí eu compartilho o que achar pertinente? — desafia com

um levantar de sobrancelha.

— Temos um acordo. — Pisco para ela. — Mas, antes... Você

tem algum compromisso daqui a, hm... Dois fins de semana?

Eduarda franze o cenho e pensa por algum tempo.

— Não necessariamente, por quê?

— Quero te pedir uma ajuda e eu juro que você pode contar

comigo quando precisar — começo na defensiva, e a sobrancelha

dela volta a se erguer, mas, dessa vez, percebo que é sua indicação
para que eu continue. — Meu filho vai se casar, na fazenda da

família da mãe dele, em São Paulo. E eu queria saber se você

toparia ser minha acompanhante.


— Oliver, pelo amor de Deus, por que você me levaria pro

casamento do seu filho? E quantos anos ele tem? Você não tinha

38? — ela pergunta tudo muito confusa.

— O Peter é meu enteado, lembra? A gente se chama assim,

porque eu o criei como um filho — explico o mais fácil primeiro. — E


sobre eu querer você comigo, é que, bem... Minha ex vai estar lá, e

ela já seguiu em frente, então eu preciso de uma...

— Namorada de mentirinha — ela deduz e fica num choque


tão grande que tenho a sensação de que o queixo dela vai rolar pela

cozinha.

— Já seria meio humilhante ser o cara que levou o pé na

bunda, mas é ainda pior porque ela já tem outra pessoa, então... —

apelo.

— Por que vocês se separaram? — ela me pergunta séria.

— Como assim?

— Por quê? — repete cruzando os braços.

— Ah, a resposta curta é que ela queria voltar para a

Inglaterra e eu não queria. Então separamos. — Encolho os ombros.

— E a longa?
— A longa é que... — Esfrego as duas mãos nas pernas. —

Não tem uma longa. É só que, de algum jeito, parou de funcionar. —


Suspiro.

— Típico. E você gosta dela?

— Preciso levar você no casamento para não pedir, pelo

amor de Deus, para ela voltar pra mim e tentar fazer nossa relação
funcionar a distância — falo rápido e as palavras tropeçam em meu

sotaque. — Eu te busco em casa, te deixo em casa, a gente sai

qualquer dia e compra a roupa que você quiser, eu só... — minha

voz morre porque eu acho que, em trinta e oito anos de vida, nunca
soei tão patético.

DUDA

Ainda estou encarando Oliver e tentando entender tudo o que


ele acabou de jogar em cima de mim.

— Tá, digamos que eu aceite, Oliver — digo, e os olhos dele


brilham. — Mês que vem é aniversário do meu filho. Meu ex e meus
sogros vão dar uma festa para ele, e eu quero você lá, como meu

namorado.

— Fechado — ele diz.

— Você nem sabe que dia é — rebato.

— Que dia é, woman[7]? — Ele ergue a sobrancelha para

mim.

— Segunda semana de novembro.

— Ótimo. Se eu tiver algum compromisso, eu cancelo —


garante.

— Tá, e como vai ser esse casamento aí, a gente vai

quando?

— A gente precisaria ir quinta e voltar no domingo de manhã,

você pode levar o Felipe, se precisar, tenho certeza de que ele vai
gostar, é espaçoso, bonito, tem um rio...

— Não. Não vou enfiar meu filho num lugar que ele não
conhece ninguém. — Eu me sinto quase ofendida pela proposta. —

Eu ajusto o fim de semana dele com os avós ou minha mãe, já tem

um tempo que ele devia ir ficar com ela, mas nunca dá.
— Tem quase um mês que eu te conheço, e ontem foi o

primeiro sábado que você viu o seu filho. Agora está me dizendo
que nem sua mãe o vê quando deveria. Você não acha isso

estranho?

— Como assim?

— Não sei, só achei estranho. Quando a gente morava na


Inglaterra, a Catherine precisava convidar o ex-marido para o que

quer que quisesse fazer nos dias em que o Peter devesse estar com

ele. Se tivesse algo que o Peter precisava participar, o David

precisava estar também, afinal, era o dia dele.

— Ah, não — coloco o uma mecha irritante de cabelo atrás

da orelha encolhendo os ombros e o encaro novamente. — Eu


posso ver o Felipe sempre que quiser, não temos uma regra tão

imposta assim, é que ele anda com os fins de semana agitados, só

isso.

Oliver assente quando o forno apita e vai em busca dos

salgadinhos, trazendo também os refrigerantes e me chamando

para nos sentarmos do lado de fora, onde tem uma pequena mesa e
podemos ficar com a vista desse quintal maravilhoso.
— Não dê, em hipótese alguma, salgadinho pro cachorro —
ele diz quando o cão corre em nossa direção.

— Quem dá comida de gente pra cachorro neste século,

Oliver? — pergunto em choque, e ele desvia o olhar. — Meu Deus,

quer matar seu cachorro? — Rio de nervoso.

— Ele tem olhos tão pidões quanto um gato, okay? Não me

julgue — diz pra mim arredio e estala os dedos para o cachorro. —

Senta aí, Buddy.

— Por que você chama ele assim? — Me levanto indo até o

labrador mais bonito que já vi na vida, não que tenha visto muitos.

— Porque é o nome dele — responde como se fosse óbvio.

— Você é lindo, garotão — digo fazendo carinho na cabeça

dele enquanto ele lambe minhas mãos e late gentilmente para mim.
— Você é tão fofinho, Buddy.

Tão dócil que nem parece que vai ficar do meu tamanho se
decidir se colocar sobre duas patas.

— Ele gostou de você. — Oliver se diverte me vendo fazer


voz de tapada para o cachorro.

— Isso só significa que ele tem bom gosto — pontuo.


— Com isso eu vou precisar concordar. — O tom de Oliver é
incisivo e eu não o encaro dessa vez. — Hey, Buddy. — O sotaque
desse homem ainda me mata. — Deixa a Eduarda, deixa. Vai

brincar. — Ele despacha o cachorro, que obedece, e eu o encaro


boquiaberta.

— Bem treinado ele, né? — brinco.

— Olha o tamanho dele, se não fosse adestrado, a casa já


teria caído — ele rebate. — Mas, agora, Eduarda, é sua vez de me
contar a sua história. — Ele me lembra e eu respiro fundo, porque,

bem, é verdade.

— Bom, meu casamento só não era pra ter acontecido. Acho

que quando a gente engravida na adolescência, o “casar” é a forma


que as pessoas têm de remediar, sabe? E foi isso o que aconteceu.

Mas não funcionou pra gente. — Encolho os ombros. — E, como já


sei que você vai perguntar, não teve nenhuma história mirabolante
de camisinha estourando pra eu engravidar. O Márcio pediu pra

fazermos sem, e eu cedi porque “o amava muito” — digo


ironicamente.

— E como é a relação de vocês agora? — ele pergunta com

cautela.
— Você quer saber se eu gosto dele? Não. Penso em reatar?
Todo dia, três vezes por dia. Quero voltar a morar com meu filho,
afinal. Mas, gostar... Não gosto — digo com incômodo.

— E vocês têm uma relação boa?

— Não — respondo simplesmente, mas decido falar mais. —

Ele tenta reatar, sabe? Não sempre, mas Márcio age como se eu
estivesse de férias e, uma hora, fosse voltar para casa. E eu não
vou, então é isso, é tão... — Procuro uma palavra que traduza o

desgaste que ele me causa.

— Exhausting? — Oliver sugere.

— Exaustivo? — Rio do inglês dele, que bufa sem jeito.

— Exaustivo, sim, eu não aguento com essas palavras

parecidas, nossa.

— Dramas de um homem bilíngue. — Seu rosto se contorce


numa expressão divertida.

— Sim. Mas então a pior parte do seu divórcio, para você, é


estar longe do seu filho?

Ele pergunta me encarando, e eu jogo uma bolinha de queijo

na boca desviando o olhar. Então Oliver toca meu queixo, levando


meu rosto de frente para ele e eu suspiro.
— Eduarda, está tudo bem?

Nego com a cabeça.

— Você não precisa falar se não quiser — ele diz e sua mão
se abre, acariciando meu rosto.

Me afasto do toque dele, mas percebo que Oliver não é


alguém que me deixa ansiosa. Ele não tem cobranças para me

fazer. Nem das escolhas que eu fiz, como a minha mãe gosta
sempre de jogar na minha cara, nem das coisas que suportei, como
minhas amigas amam me lembrar. Então, começo a falar:

— No dia da festa, o Márcio disse que precisava falar comigo


sobre o moleque, mas eu sabia que não era nada. Ele não teria
saído pra trabalhar sem me ligar, se fosse algo sério, então quando

eu surtei no seu carro foi porque sempre ligo pro Felipinho antes de
dormir. — Faço uma pausa enrolando o cabelo num coque. — Era
um fim de semana, e o pai dele estava trabalhando, então eu sabia

que ele ia estar dormindo, mas queria mandar uma mensagem de


boa noite, eu faço isso quando não consigo ligar. — Engulo em seco
e bebo um gole do meu refri antes de continuar: — Quando não

achei o celular, foi desesperador, porque essa é uma das poucas


coisas que posso fazer por ele, por nós, pela nossa relação. Então,
é assim que é não estar com o meu filho. Eu acho que eu sou a pior

mãe do universo e não mereço uma criança tão carinhosa e


amorosa quanto ele na minha vida — desabafo e, se eu tivesse um
pingo a mais de intimidade com esse homem, eu choraria.

— Existe um motivo para você não poder ficar com ele? O pai
dele tem a guarda ou algo do gênero? — ele diz me entregando o

copo de refrigerante dele, porque o meu já acabou.

— Eu só não posso. Não consigo ter meus dois empregos e


cuidar dele... Entende? — Dou um gole e devolvo à mesa.

— Eu entendo. Mas você entende? Porque todos os dias


casamentos acabam e homens saem de casa, e isso não é o fim do

mundo. Eles ainda amam os filhos. Mas você está se culpando por
não conseguir estar com o Felipe. Acho que você tá pegando muito
pesado consigo.

— Isso foi o que me fez sair de casa, sabia? “Homens fazem


isso todos os dias”. Em contrapartida, quando você se surpreendeu
com o fato de eu ter um filho, eu só conseguia pensar que, se eu

tivesse falado na festa, teriam me perguntado “onde ele está?”. E


quando você me perguntou se eu quero levá-lo para o casamento e
eu respondi que não, porque não quero deixá-lo no meio de
pessoas desconhecidas, o que eu queria dizer, na verdade, é que
não tenho o direito de deixá-lo desconfortável, porque eu o deixei
para trás — digo por fim, com um longo suspiro.

— Então, além do terror psicológico de que você é uma


fracassada, é isso o que o seu ex-marido faz para te convencer de

que você não deveria ter se separado dele? — A pergunta de Oliver


vem tão descontraída que não entendo aonde ele quer chegar.

— Como assim?

— Na minha festa, eu disse que era seu namorado porque vi


um babaca sendo completamente escroto com você. Ele estava

literalmente dizendo que você não conseguiria uma pessoa boa pra
você, e eu não entendi o porquê. — Oliver toca minha mão, que
está entre nós dois. — Agora, te conhecendo um pouco mais, eu

entendo menos ainda.

— É, ele é assim.

— E antes de ir embora, ele veio até você dizendo que

precisava falar sobre o Felipe, e agora que sei que é o filho de


vocês, me pergunto se toda essa culpa que você carrega vem de

você, da pressão social ou de como ele te trata.


— Provavelmente dos três — respondo depois de um tempo
encarando o jardim colado ao muro da casa. — Mas...

— Mas?

— Acho que chega de falar dessas coisas, né? Tô aqui te


enchendo com algo que nem tem a ver com você.

— Como não tem? Da última vez que chequei, eu ainda era


seu namorado. — O tom brincalhão de Oliver me faz rir. — O que cê

acha de a gente entrar e assistir algo na TV enquanto mata esses


salgados? — propõe.

Fiquei falando tanto que os pobres estão frios novamente.

Mas assinto e pego os copos enquanto ele leva o tabuleiro.

— A gente devia assistir à cerimônia do pódio na internet,

isso sim. Esquecemos completamente!

— É isso o que a minha lábia faz com você — ele brinca


enquanto entramos, mas eu não acho que seja tão brincadeira

assim, porque ele tem razão.


OLIVER

Por conta da viagem da próxima semana, minha agenda está


lotada e me deixando insano. Já tinha um bom tempo que a vida de

CEO[8] estava calma em São Paulo, mas mudar para o Rio mexeu

com muitas estruturas da empresa, fornecedores, parceiros... Enfim,

eu conseguiria resumir minha semana da seguinte maneira:

Na segunda-feira, passei o dia fora do escritório, em reuniões

no centro do Rio, e, ao fim da tarde, corri para o Aeroporto Santos


Dumont para voar até o Paraná.

Ontem passei o dia no Centro de Operações e Inovação da

empresa e, no fim do dia, mais especificamente às 23h, já estava


em um avião de volta.

Precisei voltar “correndo”, porque hoje eu teria várias

reuniões com a matriz estadunidense. E, depois de três dias


infernais, o primeiro momento de paz da minha semana foi quando

me sentei para jantar. Uma vez que eu, Daniel e Paulinho ainda

estávamos na empresa às 20h, decidimos comer em uma


churrascaria.

Feliz ou infelizmente, passamos as últimas duas horas


discutindo trabalho.

Uma das diretrizes da divisão estadunidense foi a

necessidade de reforçar a visão, a missão e a direção-geral da

empresa. Uma vez que muitas mudanças aconteceram no último

ano, isso ficou um pouco perdido.

Foi excelente poder estar com o CHR[9] e o CMO[10] nesse


momento porque, além dessas questões serem concernentes ao

RH, um dos pontos mais fortes da MDM é o Marketing interno.

Pessoas que trabalham na MDM devem amar trabalhar na empresa,

e isso se perdeu dentro da última reestruturação.

Bem... foi um jantar de trabalho, no fim das contas, o que não

é o ideal, mas pelo menos muita coisa foi discutida e colocada em


pauta para as próximas semanas e meses. Agora, chegando em
casa sozinho e sendo recepcionado por um alegre Buddy, respiro

fundo antes de subir com ele e tomar um banho para me jogar na

cama.

Amanhã vai ser um dia mais calmo, eu tenho fé.

Quando Buddy desce as escadas comigo quinta de manhã,

me dou conta que é dia de faxina, então eu preciso colocá-lo para

fora e tomar café na padaria.

Chegando em casa, deixo as chaves em cima do aparador e,


pisando leve para Rosângela não gritar comigo se eu sujar algo que

ela já limpou, subo as escadas em direção ao meu quarto.

Há um terno cinza escuro, quase preto, e uma gravata branca

em cima da minha cama, Rosângela deve ter deixado aqui depois

que arrumou o quarto, essa mulher não mima apenas Buddy, como
podemos ver.
Respiro fundo e esfrego minhas mãos no rosto, a exaustão

dos últimos dias aparece com força, mesmo que eu saiba que hoje é
um dia normal, comum e provavelmente o ponto de paz no meio do

caos — visto os dias que eu já tive essa semana e o que terei


amanhã, por que sextas-feiras são sempre complicadas. Sendo
assim, hoje devia ser o dia mais tranquilo e não entendo por que

meu corpo está tão tenso. No entanto, sei do que ele precisa para
relaxar.

Pegando uma cueca e um par de meias sigo para o banheiro


do quarto, tiro minha blusa e jogo no cesto de roupas sujas.

Memórias de Catherine martelam minha mente e vagueiam pelo


meu corpo, mas em vez de me trazerem paz, como sempre
acontece, só sinto um vazio misturado com angústia.

Retiro o resto da minha roupa sem pensar muito e ligo a

água, deixando que ela leve embora pelo menos um pouco do meu
cansaço. Pego o sabonete líquido, o cheiro dele me lembra terra em

dias chuvosos. Um perfume que me remete à Inglaterra, é bom e


agradável.

Espalho o conteúdo por todo o corpo, fazendo meus braços e


bíceps ficarem brancos. Viro o regulador de água, deixando ainda
mais quente. Minha mão escorrega até o meu pau e fecho os olhos.
Seguro-o levemente e fico duro em questão de segundos. Aperto

com força, fazendo movimentos de vai e vem.

Deixo minha mente fluir para onde sempre vai nesses

momentos.

No entanto, vejo curvas mais suaves do que as de costume à


minha frente, lábios finos em volta do meu pau, sorrindo para mim,
mas não consigo ver seu rosto. Sinto sua língua passando pela

minha extensão, me torturando. Intensifico o movimento, minha


respiração acelera com o toque firme, mas de repente, o rosto toma

forma por baixo das minhas pálpebras e seus olhos verdes me


encaram com intensidade.

Eduarda.

“Holy shit! Puta merda.”

Eduarda me olhando com malícia e diversão.

“No que estou pensando?”

Tiro a mão do meu pau tão rápido que quase bato no box.

Abro os olhos e sinto a água queimar como o inferno, viro todo o


registro e sinto o frio por meu corpo, me acalmando e tentando me

trazer de volta à realidade.


DUDA

Hoje eu não trabalhei durante o dia, passei a manhã


arrumando meu armário e o da Lavínia e faxinando a casa. É a

semana dela, mas nem sempre minha amiga está com humor para
limpezas, então Lavínia marcou com uma faxineira para vir limpar.

Quinze minutos depois eu desmarquei, óbvio, e deixei o dinheiro da


faxineira no potinho da casa. Prefiro limpar nosso cantinho do que
gastar dinheiro com isso. É um apartamento pequeno, não me

custaria nada, e a gente ainda ficou com cento e cinquenta no pote


para qualquer emergência.

No início da tarde, fui buscar Felipinho na escola e, depois


que meu porquinho tomou um banho, fizemos o dever de casa.

Quando terminamos, ele me ajudou a preparar uma salada de grão


de bico para nós dois almoçarmos. Sei o quanto esse menino ama

me ver comendo sem bichinhos e não é nenhum esforço fazer isso


vez ou outra, porque, da mesma maneira que respeito a escolha

dele de não comer carne, ele também respeita a minha de comer.


Depois do almoço colocamos a louça na pia e corremos para a sala,
abrindo o sofá-cama, e passamos a tarde toda jogando videogame,
comendo pipoca e brigadeiro.

Foi um dia bom e calmo e eu precisava de um desses: só eu


comigo mesma e minha casa, eu com meu filho.

No início da noite, no entanto, deixei meu pequeno em casa e


aproveitei a hora do rush para fazer algumas corridas na Zona Sul, o

que salvou a produtividade — e a renda — do meu dia.

Parando o carro numa área autorizada, bato a porta e me

dirijo à pizzaria mais próxima. Vou morrer num dinheiro aqui, mas
faço uma última corrida quando estiver indo para casa e fica tudo

certo.

Entro na fila para fazer o pedido e encaro o celular.

47 mensagens no grupo do quarteto, isso porque há três

horas tinham 128 e eu respondi, entre uma corrida e outra. Elas


estão impossíveis.

— Boa noite, senhora. Posso anotar seu pedido? — o


atendente diz sorrindo.

— Uma média de calabresa e um refil de bebida, por favor —


peço e ele me entrega o número para colocar na mesa.
Entrando no salão, me sento no canto esquerdo e pego o

celular para ver as mensagens enquanto beberico meu refrigerante.

Lavínia: Minha gostosa, tá tudo bem? Cheguei em casa e nem

sombra de você.

Eu: Tudo sim, gostosa. Tô em Ipanema, comendo para ir embora.

Lavínia: Tá bem. Te vejo segunda, te amo.

Eu: Te amo, até segunda.

Em seguida, vou até o grupo e só confiro os acontecimentos.


De relevante temos apenas a vinda de Amanda, no fim de semana

do aniversário do meu filho, ela vai ficar na minha casa e,

aparentemente, tem muito trabalho, porque chega sábado de manhã


e vai embora domingo à noite.

Minha pizza chega e eu dou graças a Deus, menos de quinze


minutos de espera. Tudo o que eu precisava.
Assim que o garçom se afasta, um homem negro, alto, com

um caminhar inconfundível passa do outro lado do salão — é Oliver,

e ele está sozinho.

Eu: Oiê, tudo bom?

Mando a mensagem alguns minutos depois, só para garantir

que ele está mesmo sozinho.

Oliver: Oi, tudo bom, e com você?

Responde de imediato.

Eu: Ah, tudo bem também, você está esperando alguém ou veio
comer pizza de terno e gravata sozinho mesmo?

Mando a frase com uma carinha piscando e noto-o olhar em

volta e, quando me encontra, ele abre um sorriso. Não o que eu

esperava, o de um amigo encontrando uma amiga, mas um risinho


sem graça. Ainda assim, Oliver pega o número de identificação de

sua mesa e caminha até a minha.

— Não estou esperando ninguém, posso te fazer companhia

ou você está esperando alguém? — ele pergunta próximo à mesa,


com a mão nos bolsos da calça e a sobrancelha erguida.

Gente, ele nem sabe o quanto é gostoso, juro.

— Pode sentar. — Indico a cadeira à minha frente para ele.

— O que você, um grande CEO que habita uma mansão, faz numa
reles pizzaria às 23h de sexta-feira? — pergunto com um gole em

minha bebida.

— O mesmo que a garota mil e uma utilidades — responde


com uma piscadela. — Mas e então, Eduarda Campbell, como você

está?

— Eu acho tudo você dizendo meu nome, mas cê sabe que

Campbell não é meu sobrenome, né? — pergunto rindo.

— Não, ué... Como não? — O cenho se franze e eu seguro o

riso.

— Cê teve Orkut?

— Sim, sim. Você com certeza não — ele brinca.


Reviro os olhos enquanto o garçom chega com a pizza dele.

— No primeiro ano do ensino médio, minha professora de


biologia começou a me chamar assim porque ela disse que eu era

tão bonita que parecia um perfil fake de Orkut — explico.

— Isso é sério?

— Sim! E ela ainda disse que eu tinha duas opções — pontuo


erguendo a mão. — Me chamar Fernanda Campbell ou Fernanda

Bittencourt. Que eram os nomes mais bombados para fakes.

Ele curva a cabeça para trás numa risada tímida, e eu dou


mais um gole em meu refri.

— E aí o “nome” pegou?

— Todo mundo começou a me chamar assim, até que eu

adotei. — Dou de ombros. — Acho que o Instagram é a primeira


rede social que eu uso o Fernandes. No Facebook ainda sou

Campbell. Mas sei lá, acho que não dá pra você me apresentar

assim no casamento sem eu precisar criar uma história de

descendência europeia, né?

Ele pondera por alguns instantes e come um pedaço da

pizza.
— Bom, acho que seria uma história tão interessante quanto

a minha — diz antes de levar um segundo pedaço à boca.

— Não faça suspense, me conta — peço comendo logo em

seguida, porque desde que ele sentou aqui eu esqueci que deveria
estar comendo.

Oliver toma um gole do refri dele e ergue o indicador.

— E se eu te disser que sou mestiço de: mãe brasileira,

branca dos olhos claros, e pai britânico negro retinto? — O tom


divertido da pergunta me faz semicerrar os olhos.

— Você tá falando sério?

— Sim. — O canto direito da boca dele se ergue numa

pequena curva.

— Todo mundo acha que a pessoa preta na sua árvore

genealógica é a brasileira, né?

— Todo mundo — confirma rindo junto comigo. — Até lá na

Inglaterra, eu sempre preciso explicar isso... É engraçado, as

pessoas percebem o quão preconceituosas são e ficam sem jeito,


sabe?

— Eu imagino — digo, porque não sei como é isso.


— E eu achei bem legal você usar a palavra preto, as
pessoas têm problema com essa palavra no Brasil, né?

— Nossa, muito. Mas eu tenho a Fani e a Lavínia, né? — cito

duas das minhas melhores amigas. — Cresci com elas e isso me

ajudou a me desconstruir bastante.

— Entendi. Isso é bom. Você se desconstruir, digo. — Ele

coça a têmpora — A maioria das pessoas brancas acha que a gente

precisa explicar, orientar, corrigir... Estamos no século 21, não tem


muita coisa que um Google não resolva. Odeio ficar funcionando de

wikipreta para as pessoas ao meu redor.

Deixo uma risada escapar.

— A Lavínia usava muito essa expressão antigamente.

— Eu aprendi no Brasil e adotei. É rápido e fácil. Melhor do


que passar horas explicando algo para depois a pessoa branca

dizer: “Entendi, mas eu não vejo assim”. Nada contra brancos, tá?
Você é minha amiga e é — ele ironiza.

— Oliver, para de ser bobo.

— Tudo bem, então me diz, como foi essa semana?

— Corrida. Tentei adiantar bastante coisa das minhas clientes

e me dei folga na manhã de hoje, então os outros dias foram


insanos. E pra você, o senhor CEO, não deve ter sido tão ruim,
certo?

Ele gargalha pela primeira vez e chama a atenção de duas

mesas ao nosso lado.

— Eu sou um funcionário como qualquer outro, Eduarda. Sou


contratado, preciso cumprir atividades, só não tenho carga horária; o

que me leva a trabalhar mais de quarenta horas semanais, inclusive.


Como hoje, que cheguei às dez da manhã e saí depois das dez da
noite.

— Nossa, então não é tão glamourosa a sua vida...

— É, e não é. Eu sou a cara da empresa, estou no site,

notícias... Mas quando você não é dono da empresa, ser o CEO é


ser só um funcionário. Substituível como qualquer outro — ele
conclui.

— Entendi, então vou seguir sendo CEO de MEI e tá tudo


certo.

— CEO de quê?

— MEI. É um registro para empreendedores, você se assume

como seu próprio chefe, o dono da sua empresa, então: CEO de


MEI. — Encolho os ombros.
— Você abriu mão de trabalhar no escritório para ser sua
própria chefe?

— Não. Eu abri mão de trabalhar num escritório de segunda


a sexta, das 8h às 17h, para trabalhar todo dia, 24h por dia —
corrijo-o e ele gargalha novamente e, querendo ou não, eu gosto

disso.

Gosto muito.

Trocamos o assunto pela comida, pelo menos por algum

tempo, e conseguimos terminar as pizzas antes de elas esfriarem.


Depois disso, Oliver fala da viagem que teve de fazer em um dia
para voltar no outro, porque tinha reunião com o pessoal da gringa,

e eu conto a ele algumas experiências engraçadas com as clientes


do gerenciamento de conteúdo, e quando o relógio bate meia noite

e quinze, decidimos ir embora.

— Mas, olha, entre os clientes surtados do Uber e os do

Instagram, os do Instagram me estressariam mais — ele diz me


acompanhando até o meu carro.
— Jura? Eu gosto tanto de criar conteúdo, ver algo sendo
feito a partir de uma ideia é tudo pra mim.

— Sim, mas você não precisa ver os clientes do Uber nunca


mais se não quiser, né?

— É — digo e penso que ele é um cliente que eu adorei


rever. — Mas eu gosto das minhas clientes, gosto de trabalhar com
mulheres, sabe?

— Ah, aí você está falando o que realmente te motiva — ele


diz quando eu paro ao lado do carro. — Você gosta porque faz algo

que acredita, e isso é lindo. — Sorri cruzando os braços.

— É, é por aí mesmo — digo encostando no carro. — E


você... gosta de TI, certo?

— Muito, muito mesmo, é um mercado no qual eu sempre


quis trabalhar — Oliver diz, e acho que ele nem percebe quando se

aproxima de mim e coloca uma mecha do meu cabelo atrás da


minha orelha.

Oliver não percebe, mas noto que outras pessoas sim,


porque dois homens brancos se aproximam de nós.

— Tá tudo bem, moça? — o cara mais alto pergunta.


Olhando para mim, encostada no carro, enquanto Oliver está quase
dentro do meu espaço pessoal.

— Comigo? Sim, sim. Por quê?

— A gente viu esse cara se aproximando de você e aqui

anda perigoso, então pensamos em ajudar — o mais baixo


responde encarando Oliver, que olha para mim e respira fundo.

— Ele não se aproximou de mim, ele está comigo — digo

num tom firme.

— Mas se você precisar de ajuda, pode falar, tá? — um deles


replica, e eu nem sei quem foi o idiota.

— Vocês ouviram a garota, ela não está se sentindo


ameaçada só porque tem um cara preto perto dela, agora deem o

fora daqui. — O tom de Oliver é firme e mandão e me assusta.


Porque ele é sempre um doce, mas não julgo. No lugar dele, teria
partido pra agressão.

Mas lembro que ele, como um homem preto na nossa


sociedade, seria tido como o criminoso, e não como a vítima, se
resolvesse se defender.

— Cara, que isso? A gente só tava preocupado com a garota


mesmo, não é porque você é moreno não. — O homem alto ergue

os braços e dá dois passos para trás.


— Vocês escutaram quando o meu namorado pediu pra
vocês saírem daqui? — pergunto puta. — O único problema aqui
são vocês dois sendo uns racistas de merda.

— Babe, não vale a pena. — Oliver me puxa para perto.

— Desculpa aí, cara. Desculpa mesmo — alguém fala, mas


Oliver me mantém presa a ele, acho que sabe que eu quero fazer

um escândalo.

— Você pode só calar a boca e sair daqui?! — Oliver diz com

o tom cansado.

Não do trabalho, não da semana, mas da situação a qual


acabou de ser submetido.

— Nossa, que ódio — digo em seu abraço.

— Babe, eles já foram, esquece isso — ele pede.

— Você lidar com essa situação com paciência só me irrita


ainda mais — digo, e Oliver entende o que estou querendo dizer.

— Sim, eu estou acostumado. Era assim aqui, quando eu era

criança. Depois foi assim na Inglaterra, e é assim aqui de novo. —


Ele suspira em meu pescoço. — Eu sinto que eu sou um estrangeiro

nos meus dois países, é tão... Gut-wrenching.


— É o quê? — Me afasto o suficiente para encará-lo.

— Não sei, essa porra não existe em português — diz ainda

nervoso. — Acho que seria algo como angustiante... Só que mais.

— Oliver, eu cresci vendo minhas amigas se sentindo


menores por serem pretas, sabe? Parece que eu tenho quinze anos

de novo e a gente tá na porra de um ensino médio racista pra


caralho.

— Você fez o que podia fazer do seu lugar de fala: os


brancos perceberem que estavam errados — Oliver garante, com
uma mão de cada lado do meu rosto, e eu consigo sentir a

respiração dele de tão próximos que estamos agora.

— Então, bem — digo com um passo para trás. — É... Tinha


sido uma ótima noite, agora eu sinto muito por ter te segurado aqui.

— Eduarda, se eu for ficar chateado com todo racista que


aparece, eu literalmente não saio de casa, não pego um Uber, não

tenho cargo alto na empresa... — Oliver suspira exausto. — Enfim...

— Eu sei, é que eu nunca vou saber como é pra você, como


você realmente se sente por trás de tudo... E é foda. Enfim, te vejo

quinta?
— Claro, 16h eu estarei na porta da sua casa — ele responde
encarando o celular.

— Bom, um amigo meu me disse, baby, que é falta de


educação ficar no celular. — Eu me curvo e digo perto do ouvido

dele.

— É, Babe. — Oliver se vira de frente para mim e seus olhos


fazem meu coração pular uma batida. — Mas eu não estou

conversando. Estou pedido um Uber, preciso ir embora — diz e a


sobrancelha direita dele se ergue num desafio tão gostoso, que eu
não consigo não retribuir.

— Você namora uma Uber e tá pedindo outro? Acho que


posso pontuar isso como traição — me finjo de ofendida.

— Ah, é? Bom, se minha garota quer me levar pra casa, eu


não vou negar. — Algo no tom de Oliver me diz que minha calcinha
acabou de dar perda total.

Engulo em seco e destravo a porta do carro.

— Entra, Oliver — digo simplesmente, porque não sei mais o

que dizer e, quando ele bate a porta do passageiro depois de se


jogar ao meu lado, dou partida no carro.
Chego em casa, depois de deixar Oliver na porta do
condomínio, e dou de cara com uma mensagem dele.

Oliver: Minha semana está realmente estressante, obrigado por


hoje, foi um alívio.

Eu: Por nada. Obrigada pela companhia.

Respondo jogando o celular no sofá.

Deixo os tênis no canto da sala e vou para o banho.

Penso em Oliver.

Saio do banho.

Penso em Oliver.

Coloco um pijama:

Sinto as mãos de Oliver me tocando quando o tecido chega à


minha pele.
Me jogo na cama e a única coisa que está na minha mente é
Lavínia dizendo que eu não preciso esconder as coisas que sinto,
porque quando guardo tudo para mim, eu surto.

E parece que um desses momentos chegou, porque hoje foi


um dia bom, um dia incrível; na minha casa, sozinha, com o meu

filho... Trabalhando pouco e tudo estava bem. Agora estou deitada,


com minhas mãos deslizando pelo meu corpo com o objetivo de
chegar à minha calcinha para entrar nela e se enterrar em mim. Só

que dessa vez, não preciso criar um homem perfeito fictício para me
dar prazer, porque hoje eu tenho total consciência de quem eu
quero aqui comigo:

Oliver.
OLIVER

Terça pela manhã, acordo com uma mensagem de Eduarda


no celular:

EduaRda: Você ainda não me passou nada sobre o vestido, hein.

Sou uma mulher ocupada, facilita a minha vida.

Ela está me pedindo isso desde a nossa pizza de sexta-

feira. Perguntei ao Peter, e ele não soube responder; para um noivo

neurótico, meu garoto está deixando a desejar.


Eu: É verdade. Eu vou resolver isso em dez minutos.

Envio a mensagem a ela e, dessa vez, ligo para Catherine.

Eu poderia mandar uma mensagem? Poderia. Mas sinto falta de

ouvir sua voz.

— Oliver, que surpresa boa. Quanto tempo! — ela atende


alegre, e eu sinto meu coração doer de saudade.

— Oi, Cath. Tudo bom?

— Sim, sim. Estou correndo com algumas coisas aqui,

cheguei ao Brasil ontem à noite, acredita? Não estava com


saudades desse calor — diz enquanto se movimenta. Aposto que

está na fazenda resolvendo algo. — Posso te ajudar em alguma

coisa?

— Eu queria saber como está a questão das roupas para as


mulheres, você tinha dito que as cores eram padronizadas.

— Ah, não. As cores padronizadas são das damas e

madrinhas. — Sorri. — Sua namorada pode usar qualquer cor,

menos tons de vermelho. — A palavra namorada vem num tom

sugestivo e eu percebo que Catherine está feliz por eu ter seguido

em frente.
Respiro fundo e deixo um riso fraco escapar, pensando no
quanto gostaria mesmo de ter seguido. Mas não segui. Por mais

que Eduarda tenha habitado minha mente por mais tempo do que

eu acho saudável nos últimos dias, ou semanas, ela é minha amiga

e está indo nesse casamento para me ajudar a manter distância de

Catherine, a mulher que eu amo.

— Bom, era só isso. Vou parar de te atrapalhar, até quinta,

minha... querida.

“My love” quase voa dos meus lábios, mas consigo trocar a

última palavra antes de me deixar ainda mais sem graça.

— Até, Oliver. Estou ansiosa para conhecer a ruiva das fotos.

Ela é linda.

— Obrigado.

“Obrigado? Eu comi algum tipo de merda?”

Seguro o celular com mais força do que é recomendado e


respondo Eduarda.

Eu: Você pode comprar qualquer coisa que não seja verde.
Mando a mensagem, finalmente me levantando e indo tomar

um banho. Em seguida, passo um protetor solar para conter esse


sol do Rio, um hidratante nos cotovelos e mãos, e saio do banheiro

de cueca boxer em busca do conjunto de terno do dia.

EduaRda: Verde? As madrinhas da noiva vão usar VERDE, num


casamento NUMA FAZENDA? GENTE???

Leio a mensagem assim que estou pronto e gargalho,


consigo ouvir o tom incrédulo dela falando isso e sinto ainda mais o

som de sua gargalhada antes de ela dizer o “gente”.

Eu: Não, desculpa. Você não pode usar tons de vermelho! Não sei
de onde tirei o verde...

Envio a mensagem, coloco o celular no bolso e estou


descendo as escadas em direção à cozinha, mentindo para ela e

para mim mesmo. Eu sei exatamente de onde saiu o verde que


invadiu meus pensamentos sem permissão — é a cor dos olhos de
Eduarda. Sei disso porque tem acontecido com uma frequência

absurda.

Quarta-feira de manhã Eduarda ainda não me mandou nada

sobre o vestido, então, entre uma reunião e outra, resolvo ligar para
ela, só para checar se está tudo bem ou se ela não vai dar para

trás.

— Oi, Oliver — ela atende concentrada em algo.

— Atrapalho?

— Um pouco. Estou terminando um carrossel, mas pode

falar, te deixo no viva-voz.

— Você não trabalhava com marketing?

— Sim.

— E como monta carrosséis?

Minha pergunta deve ser a piada mais engraçada do século


pela gargalhada que ela dá, e eu apenas espero.

— Meu Deus, desculpa. É que — ela ri mais um pouco —


carrossel é só uma ferramenta para rede social, eu posso te
explicar depois. Mas é algo que leva tempo e atenção, então
preciso que você seja rápido.

— Só estou ligando sobre o seu vestido, você não mandou o

valor, uma foto, nem nada.

— Ah, é para ser surpresa — ela diz.

— Você não é a noiva — contra-argumento.

— Tá bem. Eu só não comprei ainda. Acabei passando a

tarde com meu filho e não tive tempo ontem, mas vou hoje, com
certeza...

— Vai sozinha? — pergunto curioso.

Eduarda disse que tem um cartão com limite alto e que eu

poderia pagar o valor depois, então à princípio, não tínhamos visto


necessidade de eu ir com ela.

— Sim, Lavínia vai ficar no Daniel.

— Ah, eu posso ir com você. — Só percebo as palavras


saindo quando já completei a frase. — Se você quiser, é claro.

— Tem certeza?

— Absoluta. Que horas você acha que fica livre? — pergunto

deixando-a à vontade.
— Não tenho ideia, que horas você sai? — Ela bufa antes de
responder.

— Quando você quiser — devolvo sem pressionar.

— Enfim os refrescos de namorar um CEO... — Ouço o

risinho cínico em sua voz e uma risada sai de mim antes que eu
acabe com os sonhos dela.

— Às vezes. Eu não tenho uma agenda cheia hoje, então

consigo trabalhar de casa ou de qualquer outro lugar. Quinta, por

exemplo, eu não vou nem almoçar para conseguir deixar tudo em


ordem antes de viajar. Talvez eu vou trabalhe do casamento

também.

— Nossa, não é mais tão legal.

— Nem sempre é. Mas e aí, quando eu posso te pegar?

— Que tal às 16h? É bom que faço uma pausa entre um

trabalho e outro.

Encaro minha agenda e vejo que minha próxima reunião

começa às 14h30min, mas não deve demorar mais que uma hora,

então está ótimo.

— Perfeito. 16h na sua porta.


— Até mais tarde, Oliver — responde e percebo que ela já

está distraída, ou melhor, ocupada.

— Até mais tarde, Eduarda.

Desligo o celular e giro em minha cadeira. Estou me sentindo

patético com esse negócio de acompanhante falsa? Sim.

Às vezes fica nublada a linha da brincadeira com esse

namoro falso? Sim.

Mas não tem muito o que eu possa fazer.

DUDA

Essa tem tudo para ser uma boa semana. Quer dizer, passei
o primeiro fim de semana inteiro com meu filho em mais de um mês

e consegui manter Oliver fora da minha cabeça e da minha calcinha

até ontem, terça-feira. Mas, desde ontem, estou pensando e

repensando essa história de namoro falso.

Quer dizer, por que mesmo eu estou fazendo isso? Por que

mesmo vou atravessar o estado com um cara legal, gostoso para


cacete e que é uma ótima companhia, só para fingir ser a namorada

dele?

E então a voz do julgamento levanta do fundo da minha

mente: dizer que eu estou fazendo isso só pelo Oliver seria mentir.

Estou fazendo por mim, para sair um pouco dessa loucura

que tem sido a minha vida desde o divórcio e para fazer algo que

me proporcione bons momentos. É óbvio que só aceitei com a

condição de ele também me ajudar quando eu precisar. Mas, além


disso, tenho outras coisas em mente:

Quero fotos com ele para esfregar na cara do Márcio e sei


que é bobeira, é infantilidade e é baixo. Mas passei anos ouvindo

dele que ninguém iria me querer.

Hoje “tenho” um namorado montado na grana e CEO de

empresa.

Quem está rindo agora?

E daí que não é verdade? Ele jamais saberá disso.

No segundo que contei para Fani o que está acontecendo e

como eu venho reagindo ao Oliver, ela me disse que parece até que
eu estou num filme de comédia romântica e que, em algum

momento, vou sentar na cara dele, e não vai ser de mentirinha.

O que me fez rir, porque não sentei na cara de ninguém até

hoje, não é agora que vou começar. Ainda mais quando falamos do
homem mais fora do meu alcance de todos os tempos.

— E então, como você gostaria de começar? — a atendente

da loja pergunta depois que eu termino minha taça de champanhe, e


estar em uma loja que serve champanhe já é demais para mim. Mas

finjo costume e vou em frente.

Nadine, a atendente, me trouxe para uma sala reservada e


me pediu para experimentar alguns modelos sugeridos por ela.

Assim que entendemos o que eu queria, ela buscou coisas

semelhantes, de cores diversas.

Eu: Dois mil e seiscentos reais um top com uma saia. JURO.

Amanda: Me dê fotos, sua vaca.


Amanda pede e eu envio no grupo do quarteto uma foto do
conjunto de cropped que estou vestindo.

Fani: Amiga do céu, eu quero te ver nessas roupas de gente rica.

Manda foto de tudo que experimentar.

Rio da exigência de Fani encarando o celular e, enquanto

Nadine não volta, envio de todos que eu tinha experimentado

enquanto tentava encontrar o que eu preferia.

— Eu acho que, para uma festa no campo, tons de verde,

amarelo, dourado, vermelho e azul seriam o ideal. — Ela pendura

algumas opções de vestidos e conjuntos.

— Eu não vou de verde para uma festa no campo, de jeito

nenhum — digo descartando duas. — Não vai rolar esse azul bebê,
não tô grávida. Esse musseline de seda é lindo, mas ficaria mais

bonito de outra cor. — O rosa que ela me trouxe é tão claro que fico

me perguntando se ela está vendo quão branca eu sou. — Esse

marfim com contas douradas é perfeito. Vou experimentar esses


aqui, Nadine. Obrigada. — Pego os três que sobraram depois do

meu descarte e entro no provador.

Visto primeiro um conjunto azul formado por um cropped bem

curtinho com uma saia longa. Ficou lindo, mas não bate, não me
encantou, então tiro as peças e vou em direção ao outro.

Quando coloco o segundo conjunto, no entanto, é amor à


primeira vista. O cropped termina rente à saia, que é midi e o tom

sobressai à minha brancura e ressalta meus olhos. Ficaria melhor

se eu estivesse loira, mas acho que dá pra fazer um penteado fofo

com meu ruivo natural. Me atentando aos detalhes, percebo que o


tecido do cropped tem uma textura gostosa e a saia tem bolsos. Não

são visíveis, mas tem. E ele seria perfeito, se não fosse vermelho,

esqueci totalmente de falar sobre isso com Nadine, mas agora,


dentro dessa peça perfeita, agradeço por isso.

Nunca estive tão linda e bem-vestida em toda a minha vida,


uma pena que eu não possa usá-la.

— Senhora Eduarda? — Nadine me chama e eu tiro uma foto

do look correndo.

— Sim?

— A senhora está vestida?


— Estou, Nadine. Estou saindo. — Abro a cortina e dou de
cara com Oliver.

— Nossa, você está... Wow.

Não, uau, em português. Mas wow. E minha perna quase

treme, mas eu me seguro firme.

— E você está no provador — repreendo-o.

— Sim, está. Por isso perguntei se a senhora estava vestida

— Nadine pontua sem graça.

— Eu vim avisar que ia fazer uma ligação, mas acho que a

ligação pode esperar. — Oliver engole em seco. — Existe algum

motivo para você não usar esse conjunto no casamento? — indaga


caminhando em minha direção.

— Fui proibida de usar vermelho, lembra? — pergunto


sorrindo, e ele se aproxima o suficiente para colocar a mecha

teimosa atrás da minha orelha direita.

— Você está deslumbrante — ele sussurra.

Deslumbrante é melhor do que wow, percebo pelo jeito que

Oliver dá um passo para trás, me olhando de cima abaixo.


— Acho que mesmo se as pessoas pudessem usar vermelho
no casamento, você não poderia. — As palavras saem tão baixo
que aposto que Nadine não as ouve.

— Por quê?

— Dá uma volta, só para a gente ver como ficou — Nadine


pede e eu o faço. E quando paro de frente para ele novamente,

Oliver encolhe os ombros.

— Você ofuscaria até a noiva.

Meu olhar bate no chão e ele ergue meu queixo.

— Isso foi um elogio.

— Eu sei, só não... — Só não estou acostumada, mas não

digo a ele.

Não que precise, porque pelo jeito que a mandíbula de Oliver

trava e o verde dos olhos dele escurece, ele entendeu o que eu quis
dizer.

— Se você colocar um sapato marfim ou creme e joias

douradas vai ficar perfeita — a atendente quebra o silêncio na sala.

— Mais? — É a voz de Oliver que pergunta e eu o encaro.


— Estou uma bela namorada de mentira, então? — implico e
ele assente de pronto.

— Por mim, estaria aprovada.

— Ah, ótimo. Agora, você vai fazer sua ligação e eu vou ver
como fico no vestido que escolhi para o casamento — digo, porque

o douradinho lá dentro é a última opção e tem de servir.

— Minha ligação pode esperar, eu já disse.

— Você não vai ver o vestido que eu vou usar antes do


casamento, Oliver. Mete o pé daqui. — Assumo a postura turrona
que sei que, secretamente, ele adora.

— Se a senhorita quer assim... — Ele ergue a sobrancelha


caminhando para trás e eu praticamente me jogo dentro do

provador.

Não estava esperando que o homem aparecesse aqui


quando experimentei o conjunto, e muito menos que me olhasse

daquele jeito. Se eu já tinha amado a roupa antes, agora amo ainda


mais.

Malditas regras de cerimônia. Bufo, tirando o cropped e me

preparando para entrar no vestido marfim.


A peça cai como uma cascata em meu corpo, a manga longa,
de estilo bufante, deixa meus braços um pouco mais largos. O

tintilar dos fios brilhosos que pendem na parte de trás, onde as


costas são abertas em um V quase perfeito, dá um ar moderno, mas
ao mesmo tempo sofisticado. Ele é lindo e a mistura do marfim com

o dourado é marcante. Nunca fui a mais curvilínea das amigas, mas


a peça é acinturada e consegue me dar as curvas que eu

normalmente não tenho. E, ao mesmo tempo que cobre todas as


partes importantes, o tecido contorna a curva dos meus seios
perfeitamente.

Jogo o cabelo todo para trás e puxo uma mecha abaixo da


orelha de cada lado, fazendo um nó improvisado atrás, rezando

para esse cabelo segurar o nó, pelo menos por alguns segundos,
para eu ver como meu colo fica nesse vestido, sem o cabelo por
cima do decote.

Abro a cortina bem devagar, mas não adianta, meu cabelo


não segura o penteado improvisado, então jogo para trás as mechas
que caíram e encaro Nadine, que está com um sorriso de aprovação

no rosto.

— Acho que temos o escolhido — digo.


— Você está parecendo uma princesa. — Ela sorri enquanto

faz um movimento com o indicador para eu dar uma voltinha.

— Então é esse. — Encolho os ombros com a animação da

mulher e volto ao provador sem graça.

Mando um vídeo para as meninas mostrando todos os


ângulos possíveis e logo em seguida o tiro.

Saio vestida com minha roupa normal, um jeans e uma blusa


regata preta, nos pés um converse, que é ótimo para dirigir, e vejo

Oliver do lado de fora da loja, um homem alto, imponente, num


conjunto de calça e blusa social, e quase rio. A gente não tinha
como estar mais diferente.

Aguardo na recepção da loja por uns quinze minutos, Oliver

efetua o pagamento enquanto o espero no sofá e, quando Nadine


volta, me entrega a caixa.

— Passamos à seco, tudo bem? — ela diz e eu penso no


meu vestidinho e sorrio comigo mesma, fiquei tão apaixonada por

ele quanto pelo conjunto vermelho, então, no fim das contas, não
preciso sofrer pelo que não posso ter.
Caminhamos até o estacionamento e encontramos o carro de
Oliver com tranquilidade. Nem todo mundo no Rio de Janeiro tem a
personalidade necessária para ter um carro amarelo.

Oliver coloca minha caixa no banco de trás e eu me sento no


do passageiro.

— E agora, segundo round no trabalho? — pergunta ao meu

lado, puxando a porta do carro.

— Ah, eu deveria. Mas isso de ser namorada de CEO me

desvirtuou.

— Como assim? — Ele franze o cenho de uma maneira


divertida.

— Eu bebi champanhe lá na loja, então não tenho como


dirigir.

— Ah, já que... Isso foi culpa do seu namorado CEO, acho


que nada mais justo do que você jantar comigo — ele diz num tom
que não consigo identificar se é debochado ou brincalhão.

— Com você? Onde você está pensando em me levar? —


indago me fazendo de difícil.

— Pra minha casa?! — ele mais pergunta do que responde.


— Você cozinha?

— Não. Mas, eu conheço os melhores deliveries da cidade —

ele diz e, nossa...

— Você precisa parar de falar inglês, seu sotaque é tão...

— Tão? — A sobrancelha dele se ergue, e acho que Oliver


está se divertindo.

— Gostoso de ouvir — confesso.

— Gostoso? — ele sussurra a palavra e eu reviro os olhos


dando língua para ele.

— É. O que vamos jantar?

Tento sair do assunto do gostoso e saio pela pior porta


possível, agora eu estou indo para a casa do gostoso. Digo, do

Oliver.

Nossa, Eduarda, sua falta de tato com homens é absurda.


OLIVER

Durante o trajeto do shopping até a minha casa, decidimos


que precisamos de mais do que um simples “ela é minha namorada”

para apresentar no casamento, então colocamos como meta para


hoje que ela já saia daqui com tudo definido sobre nosso namoro.

Contudo, chegamos, pedimos o jantar, comemos

conversando sobre as semanas de trabalho e Eduarda ainda se


sentou no chão para brincar com Buddy enquanto me contava

algumas fofocas com as quais ela foi edificada nas corridas de Uber.

É impressionante o quanto as pessoas falam das suas vidas

pessoais para qualquer desconhecido.


— Agora é sério, a gente precisa falar sobre nosso namoro

de mentirinha. Vou ao banheiro e já volto, tá bem? — ela diz e eu


assinto, então a garota se vira, caminhando pela casa como se

fosse comum para ela fazer isso.

E eu fico aqui pensando que talvez seja. Que talvez a única

pessoa legal que eu encontrei no Rio tenha sido a flatmate da


namorada de um dos meus funcionários. E eu gosto dela. Quer

dizer, de estar com ela.

Quando a imagem do sorriso de Eduarda começa a invadir

demais minha mente, pego meu celular para checar as mensagens.

Das conversas pendentes, duas chamam minha atenção: a primeira

delas é a do meu filho, a segunda, do meu diretor de RH, e abro

essa primeiro; amanhã é meu último dia da semana na empresa e


não quero deixar nada pendente.

Daniel RH: Eu entendi errado ou você está levando a melhor amiga

da minha namorada para passear esse fim de semana?

Eu: Haha. Entendeu errado. Eu precisava de uma namorada de

mentirinha e ela estava disponível. Só isso.


Daniel RH: De novo?

Eu: Sim. De novo.

Daniel RH: Cuida bem dela, hein? Ou Lavínia vai atrás de você.

Eu: A Lavínia nem vai saber onde a gente está.

Daniel: Eu acho ingênuo da sua parte que você realmente acredite


nisso. Elas são mulheres. Não fazem nada sem comunicar à melhor

amiga.

Rio encarando o celular e envio uma figurinha de “entendido”

antes de mudar para a conversa do meu filho.

Peter: Que horas você chega amanhã?


Eu: À noite.

Peter: Pai, por favor.

Eu: Eu trabalho, moleque!!!

Peter: E o senhor conseguiu uma acompanhante?

Eu: A Duda vai comigo.

Peter: A ruiva com quem o senhor não tinha nada há uma semana?

Eu: Sim, essa mesmo.

Peter: Vamos aguardar vocês então!

Vejo Eduarda voltando à sala pela minha visão periférica e

respondo com um “nos vemos amanhã” antes de guardar o celular


no bolso.

— Olha você fazendo isso de novo... — ela ironiza.

— Guardei assim que você chegou — eu me defendo.

— E aí, qual é a nossa linda história de amor? — ela

pergunta se sentando ao meu lado e eu começo a discorrer sobre


as ideias que tive.

DUDA

— Então a gente se conheceu através do Daniel e da Lavínia,

em uma das suas viagens ao Rio antes de você se mudar, nos


demos bem, porque gostamos de videogame e Fórmula 1, e nosso
primeiro beijo foi tão inesquecível que, assim que você fixou

residência no Rio, começamos a namorar, é isso? — repasso tudo


contando nos dedos enquanto me sento no sofá.

— Basicamente. E você, por que se interessou por mim? —


ele pergunta com a sobrancelha direita erguida.

Parece um desafio e eu estou gostando dessa brincadeira.


— Acho que podemos fazer aqueles dramas da mulher
sofrida, sabe? Eu saí de um casamento horrível, e você me
entendeu. Foi carinhoso e cuidadoso. Podemos dizer que a gente

trocava mensagens desde que se conheceu, e isso fez a nossa


ligação ficar forte.

— Catherine nunca acreditaria, ela sabe que eu odeio troca


de mensagens.

Se Oliver é a pessoa paciente da relação e trabalha com


toques no queixo para chamar a atenção, eu sou a desequilibrada.

Seguro seu queixo e puxo-o para perto de mim.

— A Catherine sabe que você não gostava. Não com ela, não
com outras pessoas. Mas comigo você gosta. Baby — digo soltando

o rosto dele, que me encara com os olhos arregalados.

— Entendido. Mas... Pra gente falar sobre essa questão do

seu casamento ruim, eu preciso saber sobre ele, você não acha?

Não. Eu não acho, mas é bom poder falar sobre isso

honestamente para alguém, então conto ao Oliver, de maneira


superficial, toda a minha história triste.

— Sempre foi ruim? — É o que ele pergunta quando eu


termino.
— Nem sempre foi ruim. — Coloco as cartas mais dolorosas
na mesa. — Fomos morar juntos quando o Felipinho fez dois anos.
As coisas como um namoro já não eram tão incríveis, sabe? Eu não

sei, achei que o casamento melhoraria as coisas, fui uma burra! —


digo a verdade.

— Você foi uma garota de dezenove anos — ele rebate


acariciando minha mão na tentativa de me confortar.

— Pode ser... Enfim. O casamento foi ruim, mas tinha


momentos bons. A gente fica num relacionamento ruim por causa

dos momentos bons, né. A esperança é que eles se tornem

constantes até serem o padrão, mas isso não aconteceu. — Dou de


ombros encerrando o assunto.

— E quando você decidiu ir embora de casa? — Oliver


pergunta com uma curiosidade honesta.

— Quando eu quis. — Suspiro e meus olhos travam nos dele,


que está esperando que eu desenvolva, então eu tento. — Não tem

mesmo uma explicação maior, acho que essa é a coisa mais sincera

que já disse em toda a minha vida. Ele me traiu por anos, ele foi

ruim por anos, ele foi um péssimo pai por anos... Um dia eu só
cansei e disse: “É a vez dele de cuidar da casa e do Felipe” e fui

embora. — Encolho os ombros enquanto o vejo assentir.

— You’re strong, woman[11] — Oliver diz se aproximando de

mim no sofá.

Acho que ele nem percebe que se aproximou, mas eu me

volto para a mesa e pego meu copo.

— Você e o seu sotaque... — Rio terminando meu segundo

gin e devolvo o copo à mesa, esperando a resposta dele.

— Eu e meu inglês... Me desculpa, eu quis dizer...

— Eu sei o que você quis dizer, arranho no inglês. — Me


recosto e o encaro.

Oliver suspira, balançando a cabeça como se concordasse


comigo, mas sei que ele só está assimilando as coisas que eu disse.

— Quantos anos você tem? — Ele está invadindo meu


espaço pessoal agora.

— Vinte e cinco — respondo sem me mover porque...

Sei lá o porquê.

— Você já viveu pra caralho. — As palavras dele não trazem

pena, mas talvez tragam pesar.


É incômodo do mesmo jeito.

— Parece que sim.

Então ele se aproxima um pouco mais, a mão dele chega ao

meu rosto e o fato de estarmos à meia luz, nesse sofá mais


confortável que minha cama, liga um alerta em minha cabeça.

— Se você pudesse usar o conjunto vermelho que


experimentou lá na loja, onde você usaria? — ele me pergunta

roçando o polegar no lábio inferior, e eu começo a ver onde isso vai

dar.

— Ah, mas você nem vem com essa de me dar roupa cara

por pena. — Me levanto revoltada. — De achar que isso aqui —

balanço o indicador entre nós dois — vai ser um Uma Linda Mulher
ou qualquer coisa assim.

— Eduarda, calma. Eu só te fiz uma pergunta — Oliver diz


ficando de pé.

— Eu estou calma, só não quero que você ache que, sei lá,

eu vou me apaixonar por você e por como você me trata bem


enquanto estamos fazendo algo que te beneficia. — Dou um passo

para trás.
— Eduarda. Calma. — Ele apoia as duas mãos nos meus

ombros.

— Juro que se você me pedir para ficar calma mais uma vez,

eu vou dar com meu joelho nas suas bolas. — Vejo-o segurar o riso.

— Eduarda Campbell. A senhorita é uma mulher muito

nervosa, sabia? — ele atesta se divertindo.

— E o senhor é um homem pretencioso — respondo me

sacudindo para que as mãos dele saiam de mim e acabo


tropeçando.

Vou pra cima dele com tudo e, em segundos, estamos os

dois no sofá.

Oliver gargalha tanto, mas tanto que aposto que ainda não se
deu conta de que suas mãos estão em volta da minha cintura me

mantendo presa a ele.

— Do que você está rindo?

— Eu te perguntei onde você usaria uma roupa, e você

montou um pedido de casamento na sua cabeça? Eu só queria, sei


lá, te levar para jantar em agradecimento algum dia.

— Não vai rolar, eu não curto caras mais velhos — digo de


uma vez.
No entanto, continuo deitada em cima dele e presa entre

seus braços grandes e fortes. E Oliver me oferece um sorriso de

canto, tão matador que eu engulo em seco.

— É mesmo? — Ele se levanta sem me soltar.

— Uhum. — É tudo o que sai de mim enquanto assinto


levemente.

— Então você não se sentiria afetada se meus braços

saíssem da sua cintura e caminhassem até os seus cabelos? —

pergunta colocando meus cabelos, que estão em meu colo, para

trás.

— Não — respondo respirando fundo.

— E também não sentiria nada se eu arrastasse meus dedos

pela sua pele? — Faz movimentos de vai e vem com os indicadores

em meus braços, e meus pelos me traem, todos eles arrepiam na


mesma hora. — E se eu tentasse te beijar... Você me impediria —

sussurra a centímetros da minha boca, e eu assinto, mas não me

afasto e não faço ideia do que tô fazendo. — Você daria uma

joelhada nas minhas bolas?

— Isso. Daria — respondo sentindo o gosto do hálito dele na

minha língua e, então, Oliver se afasta.


— Que bom que eu não tentaria beijar uma mulher que não

quer ser beijada então, não é? — Ele ergue o braço direito e coça a
nuca. — Bom, acho que podemos encerrar nossa noite. Eu te levo

em casa.

Desperto do transe em que a proximidade dele me colocou.

— De jeito nenhum. Eu pego um Uber. Obrigada pelo... hm?

— Encontro — ele adiciona com um sorrisinho lascivo, e eu

quero que ele faleça. — É tarde, Babe. Eu vou te levar em casa, não
foi uma pergunta.

Depois de algum tempo de batalha interna, bufo e assinto.

— Tudo bem. Tudo bem.

Se eu vou passar um fim de semana inteiro fingindo ser a


namorada dele, preciso aprender a lidar com sua proximidade sem

querer entrar em combustão.

Sentando no carro, pego o celular e vejo uma mensagem de

Lavínia.

“Quando eu venho para casa, a senhora não está. Só pode

ser brincadeira.”
Envio uma resposta avisando que estou chegando e bloqueio
a tela.

— Felipe? — Oliver pergunta ao ver meu riso fácil.

— Lavínia — digo ainda sorrindo. — Posso colocar uma

música? — pergunto e ele liga o rádio.

— Fica à vontade.

O clima no carro está ameno. Aparentemente, aquilo na sala

foi um surto, e uma parte de mim se sente melhor assim.

Viro a chave na porta de casa, mas a maçaneta se move


sozinha e ela abre.

— Meu Deus, que saudade — Lavínia diz me puxando para

um abraço e me erguendo do chão, enquanto eu tento equilibrar a


caixa da loja nas mãos.

— Sabia que é bem incômodo ficar te vendo desfilar de

calcinha e blusa pela... — perco a voz.

A casa está arrumada, cheirosa e tem comida na mesa.

Obviamente — e graças a Deus —, é comida de aplicativo, porque


Lavínia cozinhando é desesperador. Mas acho fofo que minha
amiga tenha feito isso tudo. Não era a semana dela de limpar.

— Você arrumou a casa toda?

— Já que a senhorita me enrolou com o lance da faxineira e


limpou na minha semana, pra eu viajar em paz, eu retribuí —
desdenha caminhando até o balcão da nossa cozinha americana e

me estendendo um copo de coca com limão.

— Então você chegou do trabalho e organizou minhas coisas

— digo analisando a ordem do meu notebook, post-its, cadernos e


afins... — E ainda limpou toda a casa? — pergunto verificando a
poeira dos móveis, que estão limpíssimos.

— Eduarda! Senta, vamos jantar. Acabei de requentar os


hambúrgueres — ela briga comigo, mas não de verdade. — Deixa
eu cuidar de você um pouco — pede.

— Tudo bem, o que temos aqui? — pergunto mesmo tendo


jantado há pouco mais de uma hora e meia, porque não vou

desapontar minha gatinha.

— Tudo o que seu filho desaprovaria! — Ela gargalha.

— Bom, Felipe não está, então vou comer sem culpa — digo
animada ao me sentar.
— Aonde você foi depois da loja de roupas, hein? — Lavínia
está virando as batatas fritas dos nossos combos num prato, e seu
tom não esconde que ela já tem suas desconfianças.

— Na casa do Oliver — digo bebendo meu refrigerante e


checando as unhas em seguida. — Preciso ir à manicure antes

desse casamento, inclusive.

— Juro, eu vou precisar de uma fanfic de vocês na minha


mesa — diz batendo na mesa enquanto abrimos nossos

hambúrgueres.

— Anjona, o homem está, literalmente, me levando para

mostrar para a ex que já a superou. Mas como nosso namoro é de


mentira, sabemos que ele não superou nada. — Dou de ombros e
mordo meu hambúrguer.

Lavínia assente e come por alguns segundos, mas logo


depois me olha de soslaio.

— Se tivesse rolado um clima, você me falaria, certo?

Assinto e minha boca começa a se abrir.

— Eu acho que ele é um grande gostoso e a gente dividiu

uns momentos estranhos, mas não acredito que tenha rolado um


clima, clima.
— Estranhos tipo? — A sobrancelha inquisidora se ergue.

— Não sei. Ele pegou minha mão, tocou meu rosto, é um


bom ouvinte... — Volto a morder meu hambúrguer, que está tão bom
que nem parece requentado. — Ah, meu Deus. — Começo a rir. —

E teve também a hora que eu levantei e sem querer caí em cima


dele — encurto a história.

— E você ficou lá? — Assinto. — Em cima dele? — A voz

dela fica mais alta, e eu assinto novamente. — Tipo, olhares


cruzados, os braços dele em volta do seu corpo e nenhum dos dois
se movendo? — Meneio a cabeça mais uma vez e ela solta um

gritinho. — Eu juro, se você não der pra esse macho nesse


casamento, eu não me chamo Lavínia Loviz.

Engasgo com o bacon e ergo os braços enquanto me forço a


tossir. Lavínia me obriga a beber refrigerante e, depois de alguns
segundos, estou bem novamente.

— Você precisa cuidar desse vocabulário, juro.

— E você precisa de uma depilação top, uma maquiagem

que valorize seus pontos fortes e unhas muito bem afiadas para o
próximo fim de semana — Lavínia conclui e eu gargalho.
Ela continua me enchendo de perguntas, e eu vou

respondendo ou fugindo de responder conforme elas chegam.

Após o jantar, Lavínia insiste que a gente durma agarradinha

para matar as saudades. Vou até meu quarto com a caixa e a coloco
em cima da cama, não consigo me impedir de me olhar de novo e
de novo no espelho me imaginando no meu vestido.

Pego meu celular para mandar uma mensagem no grupo do


quarteto, mas sou surpreendida com mensagens de Oliver.

Oliver: Eu gostei muito de te ver hoje. Sinceramente? Gostei muito


de ter te conhecido e fico feliz que a pessoa que está embarcando
comigo nessa loucura de namoro de mentira seja tão maravilhosa.

Oliver: Anyhow[12]... Tenha uma boa noite, namorada.

Encaro as mensagens e acho fofo. Solitário e triste, mas fofo.

Então respondo:

Eu: Hahaha. Também gostei da conversa, sempre é... simples e

fácil falar sobre... tudo com você. Espero que a gente ainda tenha
assunto para conversar durante o fim de semana.

Eu: Boa noite, Oliver.

Oliver: Espero que nossa conversa durante o fim de semana seja


menos pesada.

Oliver: E, ah... Também espero que possamos fazer algo onde


aquele conjunto vermelho possa ser usado.

Eu: Acho que você gostou mais do vestido do que eu. Devia voltar
na loja e comprar.

Envio com uma carinha revirando os olhos.

Oliver: Eu não tenho como fazer isso, era um modelo único e você
está com ele na sua caixa.
Leio a mensagem três vezes antes de abrir a caixa e ver que
o conjunto vermelho está embaixo do dourado.

Não tem muito o que eu possa fazer a não ser responder.


Então digito:

Eu: Então é isso. Precisaremos arrumar alguma ocasião digna de


um “deslumbrante” para usá-lo.

Oliver me responde com uma carinha sorrindo e um “até

amanhã.”

Bloqueio a tela do celular e espero só abrir a conversa com


Oliver novamente na hora em que ele vier me buscar para o

casamento. Já arrumei todas as sarnas que eu podia para me coçar


por hoje.
OLIVER

A viagem do Rio até São Paulo acontece sem imprevistos.


Busco Eduarda em casa, nosso voo sai na hora e ela segura minha

mão com muita força durante a decolagem, mesmo que eu sorria


para ela e diga que isso só durará 45 minutos.

Quando chegamos à São Paulo, pego o carro que aluguei no

aeroporto mesmo e nos dirigimos para a fazenda da família de


Catherine.
Há pouco mais de um mês, eu não fazia ideia de quem era

Eduarda Campbell. A conheci por acaso, em um almoço


despretensioso, e a convidei, também despretensiosamente, para

uma festa — só porque eu sou o cara que não tem muitos amigos

para me tirarem de casa e senti que talvez com ela fosse o mesmo.

Há duas semanas, convidei a Duda para vir comigo ao


casamento do meu filho — apenas para não parecer tão estúpido

perto da Catherine — porque ela era legal e eu gostava da

companhia dela.

Mas, de algum jeito, há uma semana, esse “gostar da

companhia dela” evoluiu para pensar em Eduarda algumas vezes

por dia, principalmente em momentos nos quais não deveria. Agora,

estou ao lado da garota no meu carro, focando na pista à minha


frente, e a sensação é de que eu estou fazendo algo errado, de que

fiz uma escolha errada em algum momento.

Não por ela. Mas por mim.

Eu estou carente, é claro que estou. E seria mentira dizer

que, diante de tudo o que aconteceu nos últimos tempos, não estou

vulnerável. Então, talvez, o jeito que eu me sinto perdido entre o não

puxar assunto com Eduarda agora e dizer pela terceira vez quão
linda ela está, numa combinação não muito convencional de
macacão social preto e tênis, seja só isso: carência.

Ao mesmo tempo, no entanto, ter alguém tão gente boa

quanto a Eduarda por perto, fez com que eu quisesse viver mais

momentos bons com ela; estar próximo a uma mulher tão forte e

atraente quanto a Duda me fez sentir... coisas que eu não sentia há

um bom tempo e, depois de quase um ano de exclusão do mundo

dos romances, fico perdido nessa brincadeirinha de namoro que


paira entre nós sempre que é conveniente.

— Tá tudo bem? — Eduarda me desperta.

— Tudo. — Dou um meio sorriso a ela, desviando os olhos da

pista uma vez.

— Algum bicho te mordeu, sei lá, o do silêncio?

— Não eu só... — Engulo em seco. — Você está confortável

com isso? Com o que estamos fazendo?

— Você não está mais? — ela devolve a pergunta, e eu nego

com a cabeça.

— Não é isso. Só tô achando que talvez você não se sinta

bem lá, quer dizer, você não conhece ninguém — digo batucando no

volante.
— Mas não foi você quem disse que é um evento pra

quarenta pessoas e que não conhece muita gente porque são quase
todos amigos do casal? — Vejo-a descruzar as pernas e cruzar para

o outro lado.

Depois de quatorze anos de casado, a gente compreende

que isso é um sinal claro de que a mulher está puta.

— Sim, sim... Ah, Eduarda. Eu só fiquei confused — digo

respirando rápido demais.

Ela gargalha jogando a cabeça para trás antes que eu

perceba meu erro.

— Sabia que é triste você ficar rindo dos meus erros?

— Eu acho sensacional, você faz isso sempre?

— Eu só falei português até os quinze, então o inglês me


dominou até os trinta e, agora, parece que é tudo uma língua só —

confesso. — Eu consigo controlar na maior parte do tempo, mas às


vezes as palavras só não vêm.

— Entendi. Olha, Oliver, sobre vir pra cá com você... —


Eduarda apoia a cabeça no encosto da poltrona e me olha de canto

com um sorriso cansado. — Eu encarei como um descanso.


Trabalho pra cacete, penso demais nas coisas do meu filho, ele
estando comigo ou não, fico em casa o dia todo sozinha, mas é

sempre a mesma casa, né? — Suspira colocando uma mecha do


cabelo atrás da orelha. — Enfim... Eu pensei: “se posso passar um

fim de semana incrível longe de tudo, sem gastar um centavo,


postando fotos com um gostoso e fazendo apenas um ou dois

trabalhos pontuais... Por que negar?”

— Um gostoso? — Ergo a sobrancelha esquerda para ela,


que gargalha.

— Gente, cê acha que eu ia fingir ser namorada de homem

feio? — Eduarda me encara em choque.

— Tudo bem, se saiu bem dessa.

O GPS diz que estamos a quinze minutos da fazenda e eu

mudo de faixa, continuando:

— Bom, acho que me sinto mais aliviado agora. Como se eu


estivesse cuidando de você, e não te usando para favores escusos.

— Semicerro os olhos brincando com ela.

— Cuidando de mim? — Duda ergue a sobrancelha direita.

— Você era uma mulher casada que cuidava do marido, do

filho, da casa, certo? — Ela confirma. — Agora tem dois empregos


que consomem suas energias, cuida da sua melhor amiga, da casa
de vocês, paga todas as despesas relevantes do seu filho e cuida
do seu garoto, mesmo cansada depois de dois turnos de trabalho,
né? — Ela pondera e assente. — Então eu vou cuidar de você esse

fim de semana. Você vai ver. — Pisco para ela e posso vê-la corar.

— Ah, que promessa boba — ela desdenha. — Você vai ficar

babando e chorando pela Catherine — acusa com um leve deboche


na voz.

— Eduarda, eu estou tentando não pensar nela, sabia? —


Semicerro os olhos, e ela deixa uma risada encher o carro.

Eu não tenho ideia do que está acontecendo na minha


cabeça, mas a única coisa que penso agora é que até a risada dela

é fucking perfect.

DUDA

Entramos em uma estrada de barro e Oliver avisa que


chegaremos em cinco minutos, mas me informa que tudo o que está
ao meu lado já faz parte do terreno. É bem verde, silencioso, e eu
estou achando que vou ter pelo menos um tempo de paz aqui.

— É grande, né? — digo olhando em volta quando bato a


porta do carro.

— Enorme. — Oliver me oferece um sorriso, dando a volta e


parando ao meu lado. — Quer conhecer?

— Quero — respondo enquanto ele passa a mão pelas

minhas costas e me leva para junto dele.

Caminhamos pela propriedade e ele me mostra uma casa


imensa, a principal, um celeiro nos fundos do quintal atrás dela.

Noto que a fazenda é maior do que eu pensava quando ele nos

enfia num carrinho de golfe.


Em alguns lugares, é possível perceber que já houve criação

de gado e equinos, mas atualmente eles estão “desativados”, o

espaço conta agora com uma quadra de futsal, um campo de futebol


e o campo de golfe, o que justifica os carrinhos. Além de um lago,

onde Oliver já me informou que é possível tomar banho. Pela

distância da casa principal, eles raramente usavam, mas a galera

que se hospedava nas casas menores daqui, aproveitava bastante.


— O que são essas casas menores? — pergunto por fim.
— Ah, esqueci de mencionar isso. — Oliver meneia a cabeça.

— Temos... — Ele respira fundo e coça a nuca. — Existem sete


“suítes” aqui. Catherine gosta de coisas rurais, então mantinha a

fazenda como uma pousada, com a ajuda de um intermediário.

Cada suíte — ele aponta para as casinhas — aqui no lago comporta


um casal, e lá perto do celeiro pode ser um casal e filhos. A ideia

era que cada família pudesse ter o seu espaço, e não só um quarto

num prédio, e conseguisse aproveitar ao máximo seus dias aqui.

— E vocês vinham muito pra cá?


— Ela e o Peter, sim; eu, quase nunca. Minha vida era bem

agitada na cidade.

— Será que Catherine sabe que a gente já chegou? —


pergunto, porque estacionamos o carro e saímos para ver o lugar,

então é possível que sim.

— Não sei, vamos voltar?

Nosso trajeto até a casa principal é silencioso. Trazer

Catherine à tona deixa esse homem tenso.

— Você vai na frente — ele diz nervoso logo atrás de mim,


com a mão grudada na minha enquanto entramos na casa.
O barulho é intenso, mas não tem ninguém na cozinha, que é

por onde entramos. Oliver explica que tem outra entrada, mas que,

como os cafés eram servidos aqui na época da pousada, o costume


é entrar por essa porta.

— Seu Oliver, quanto tempo — uma senhora baixa, de pele

escura e sorriso largo o cumprimenta no meio do corredor.

— Muito, Dorinha. — Ele beija o topo da testa dela. —


Dorinha, Eduarda. Eduarda, a melhor zeladora que você vai

conhecer.

— Ah, seu Oliver, o senhor sempre brincalhão. O zelador é


meu marido, minha filha — ela me diz sorrindo com gentileza. —

Seu Oliver, o senhor não perdeu tempo, hein? Linda demais a moça.

— Eu sei, Dorinha — Oliver diz e apoia o braço no meu

ombro. — Onde estão todos?


— O Peter e os padrinhos, lá em cima. A dona Catherine e os

cerimonialistas, na sala de TV. Isadora está com as madrinhas em

algum lugar também.


— Tudo bem, Dó. A gente acha eles — Oliver diz e

continuamos caminhando pelo corredor.

Chegamos a uma sala ampla, que está vazia, e Oliver me

conduz até o canto direito, onde fica uma escada branca com
corrimão prateado, e nós subimos. Assim que eu piso no andar de

cima, dou de cara com um rapaz branco, alto e forte. O típico pós-
graduando da Zona Sul, que bate ponto em barzinho de Botafogo

toda sexta.

Um gato.
— Oi, desculpa — ele diz, em inglês, sem graça e saindo do

caminho. — Boa noite. — Passa por nós dois descendo as escadas.

— Boa noite — jogo o inglês que tenho na roda quando o

rapaz está quase no pé da escada, porque Oliver, que está atrás de


mim, ainda não respondeu. — Creio que esse pedaço de mal

caminho não seja o seu filho, né? — A cara de Oliver se fecha. —

Ou cês brigaram e você não comentou?


— Ele não é o meu filho, Eduarda. É o namorado da

Catherine — responde quando estou me virando para ficar de frente

para ele.

— Nossa, sério? Sem graça — ironizo. — Como alguém


pode trocar você por aquele branquelo sem sal? — digo de maneira

afetada tentando distrair o homem e dá certo, Oliver segura o riso.

— Eduarda, você é impossível — diz rindo e apoia a cabeça


em meu ombro. — Meu Deus, eu estou tão nervoso — diz contra
minha pele, e eu odeio que meu corpo inteiro se arrepie quando ele

diz que tá nervoso pra reencontrar a ex.

— Você é um homem crescido, vamos. — Viro e ele vem

atrás de mim, enlaçando nossas mãos.


— Vamos.

Batemos na terceira porta à direita e, em segundos, uma

mulher abre.
Olho-a de cima abaixo duas vezes, rapidamente, tentando

captar tudo o que ela é.

A mulher tem uma postura perfeita, cabelos hidratados, lábios

que nunca passaram um inverno rachados e um sorriso de


comercial de pasta de dente, juro.

— Oliver. Quanto tempo, que bom te ver — o sotaque dela é

bem mais pesado do que o dele, e percebo que Catherine só está


falando em português para não me excluir da conversa. — E você é

a Eduarda, certo? — diz já me estendendo a mão. — Ela é uma

princesa, Oliver. Por Deus.

— Obrigada. O Oliver falou maravilhas de você, é um prazer


te conhecer — digo sorrindo com a cabeça inclinada para esquerda.

— Oi, Catherine. Já faz um bom tempo mesmo — ele diz

encarando a mulher como se eu não estivesse aqui, como se eu


não existisse.

Seguro a mão dele e aperto os dedos levemente, então o


homem se vira para mim e pousa seus olhos nos meus por tempo

demais.

— Catherine, a gente queria saber onde está o Peter — digo,

e Oliver finalmente desperta.


— Isso, querida — ele diz a ela. — Onde está o nosso

menino?

— Peter tá no antigo quarto dele, os padrinhos já chegaram.


Seremos nós, os padrinhos e as madrinhas hoje. Amanhã, no jantar

de ensaio, teremos mais alguns convidados.

— David não vem mesmo? — Oliver praticamente sussurra, e


Catherine bufa.

— Mandou um cartão e pagou a lua de mel do casal. Peter

vai ficar um fim de semana na casa dele antes de voltar para o

Brasil, então... — Ela revira os olhos.


— Então eu vou lá ver meu filho, Cath. Até depois — Oliver

diz tomando minha mão, e Catherine se despede de nós, voltando

para dentro da sala.


— A gente queria mesmo falar com o Peter? Porque você

simplesmente travou lá — pergunto a ele enquanto caminhamos.


— Queríamos. E eu não travei — ele se defende com o
cenho franzido.

— Ah tá, porque você perdeu a voz. Eu, Catherine e as duas

mulheres que estavam dentro da sala ficamos sem reação.


Oliver desiste de virar no corredor à direita e continua em

frente comigo, até chegarmos à uma janela. Então ele cruza os

braços e encara a vista.


— Sabe quando você pensa tanto, mas tanto numa coisa,

que tem certeza sobre ela e, de repente, tudo só... não é o que você

esperava?

A pergunta é quase retórica, então só assinto.


— Eu tinha certeza que ver Catherine seria intenso, forte,

doloroso...

— Gut-wrenching[13]?

— Isso. Exatamente. Mas foi só... Ver a Catherine. — Ele dá


de ombros, e eu vejo uma frustração ali. — E ela é linda e está feliz,

e eu... sinto um vazio muito grande porque, no fundo, queria ela


comigo, mas não sei mais se a gente cabe um na vida do outro,
entende? — o homem fala e fala, e eu não sei o que ele está

querendo dizer.
— Oliver, que papo profundo é esse? Vamos achar seu filho?
Quero tomar um banho — digo andando em direção ao corredor.
— Não. Peraí, você não precisa fazer isso agora. — Ele me

puxa pela mão levemente. — Vou deixar você descansando e


converso com ele — Oliver diz me carregando à sala onde está
Catherine, que abre a porta depois da segunda batida.

— Cath, a gente vai ficar aqui na casa? — Oliver pergunta


ainda atônito.
— Nada disso, casal. Você vai levar a Eduarda para a

acomodação três. A chave tá na porta. — Ela sorri, ergue o pulso e,


depois de encarar o relógio, se volta para nós. — Vejo vocês em
duas horas. — Fecha a porta, e nós dois sabemos que ela está

ocupada e não devemos voltar aqui.


— Está tudo bem, Oliver?
— Você está cansada, precisa de um banho e de se deitar

um pouco. Então vou te levar pro quarto, apresento você ao Peter


quando formos jantar.

Balanço a cabeça positivamente e o sigo pelo corredor e


pelas escadas.
— O pai dele não vem mesmo? — pergunto quando estamos

de volta à área externa, não queria falar sobre isso com risco do
rapaz me ouvir.
Oliver para de caminhar e me olha.
— O pai do Peter sou eu — diz pausadamente. — Mas, não.

O David não vem — Oliver diz com tanta convicção que eu quase
me desculpo por ter ofendido vossa senhoria, de tão sério que ele

ficou quando me ouviu chamar o David de pai do Peter.


OLIVER

Dou duas batidas na porta do quarto de Peter com o nó dos


dedos e, assim que ele abre a porta e me abraça, percebo que os

padrinhos já o deixaram.

— Meu filho, você está tão... crescido — digo ajustando os


suspensórios dele, que abaixa minhas mãos e ajusta as

abotoaduras da camisa.

— Nada de lágrimas hoje, seu Oliver. Estava com saudades


de você — ele confessa puxando uma cadeira para se sentar de

frente para a cama, e eu me sento nela.


— Também estava com saudades, Peter. Já tem quase dois

meses.

— Sim, eu sei. — Ele passa a mão pelos fios loiros. — Mas...


Como foi a viagem, tranquila?

— Tudo em cima. Nenhum problema.

— E como tá o Buddy? — Os olhos dele brilham, meu filho


ama cachorros, duvido muito que já não esteja providenciando os da

casa dele.

— Enorme e bonito. — Noto que ele vai perguntar quem está


cuidando do cão e me antecipo: — E em um hotel para cachorros.

Peter assente três vezes e me olha de soslaio antes de falar:

— Mas e aí, já viu a mamãe? — pergunta arredio.

— Já, sim, a Duda tava comigo.

— E como foi, pro senhor? Sei lá, tem um tempo, né?

— Estranho — verbalizo e isso me acalma. — Sei que já faz


quase um ano, mas eu imergi tanto no trabalho depois que ela foi

embora, que mal notei o tempo passando. Então me mudei pro Rio,

para a casa que ela escolheu e decorou... E agora eu moro lá

sozinho.
— E...? — pergunta depois que fico em silêncio por tempo
demais.

— A questão é que eu tinha certeza de que eu sentiria o

coração disparar, a perna tremer, que eu choraria depois de vê-la...

— a última parte sai num sussurro. — Mas não aconteceu. Ela está

linda, maravilhosa, iluminada... Eu ainda amo sua mãe, mas...

— Mas?

— Mas eu não sei. Foi diferente, e isso me desestruturou.

— E a Duda sabe disso? — ele me acusa.

— A Duda? Ela não é minha namorada, Peter. — Encaro-o

como se ele tivesse perdido uma piada. — Pensei que tivesse ficado

claro.

— Ah, não? Ela é o quê?

— Uma amiga. Uma muito boa, por sinal. A primeira que fiz

no Rio.

— Entendi... — Ele suspira. — Bom, eu vou atrás da minha

noiva e da mamãe para saber se está tudo nos conformes. O jantar

vai ser no celeiro, o senhor me encontra lá?


— O celeiro que estava vazio e abandonado da última vez

que viemos aqui?

— Minha noiva é uma garota do interior que se mudou para a

cidade grande. — Meu filho encolhe os ombros. — Ela quer as


coisas bem... Ela vai dançar uma música da Hannah Montana com

as madrinhas — Peter diz e eu gargalho.

— Ela não está um pouco grandinha?

— Aparentemente é um sonho de infância — meu filho


responde e eu saio do quarto.

Tentando encaixar meus pensamentos e sentimentos de uma

maneira que faça sentido.

— Oliver — Catherine me chama assim que piso na cozinha.

— Oi, Cath. — Sorrio para ela, que vem até mim com o
namorado a tiracolo. — Deixa eu te apresentar o Henry.

— A gente se viu quando cheguei, prazer. — Estendo a mão


por obrigação.

— Prazer. A Cath fala de você com muito carinho. E o Peter,


cara... É louco por você — o rapaz diz como se isso o assustasse
em algum nível e puxa Catherine para perto dele, não marcando

território, mas num movimento natural e involuntário. Desvio o olhar.

— Amanhã à tarde, depois do almoço, vamos ter um tempo

livre, a gente consegue tomar um chá? — ela me pergunta, e Henry


pega o celular no bolso se afastando.

— Claro, claro.

— Ótimo, vou pedir a Dorinha pra deixar uma sala pequena


preparada. Obrigada, Oliver. Por conseguir estar aqui hoje. Era
importante pro nosso garoto — Cath pisca para mim, e eu meneio a

cabeça saindo da cozinha e indo em direção à minha suíte.

O que será que Catherine quer comigo?

DUDA

Desde que Oliver voltou da conversa com o filho, ele está

estranho. Na verdade, desde que encontramos Catherine. E eu sei


que o homem devia ficar mesmo, esperava que isso acontecesse.
Mas achei que Oliver ficaria, sei lá... Triste. Não calado e sério a
noite toda.

O único momento no qual ele esteve minimamente normal, foi

quando me apresentou ao Peter e a Isadora, depois disso, voltou a


ficar sisudo.

Eu me odeio por pensar que ele é sexy quando fica tão sério.

O que me impressiona, no entanto, é como o dinheiro faz as


coisas ficarem mais legais... O jantar é servido em um galpão, que
Oliver me contou ser um antigo celeiro. Somos quatorze pessoas,

supostamente sete casais, todos estão alegres, sorridentes e o


clima do casamento torna tudo muito romântico. O que me leva a

pensar que a Eduarda do passado sempre quis se casar. E isso


ainda arde no meu coração. Eu já quis me casar na praia, no

campo, num salão chique, num rústico, no Cristo Redentor e, agora,


até num celeiro eu me casaria, porque isso é lindo.

Estamos todos numa enorme mesa de madeira lavada, mas


com estilo rústico. Têm garçons, para ninguém precisar ficar

levantando toda hora dos barris onde estamos sentados, e que são
acolchoados, então é bem confortável; e o teto é iluminado por

metros de lâmpadas, presas a um fio envolto em algo que simula


trigo. A decoração é finalizada por um painel de madeira com uma
polaroid enorme na frente, onde alguns tiraram fotos — até pensei
em chamar Oliver, mas o homem está mais para lá do que para cá

na cara amarrada dele, então deixei quieto.

Durante o jantar, trocamos algumas palavras, outros sorrisos

e eu percebo os demais casais à mesa. Os padrinhos e madrinhas


e, é claro, a mãe do noivo e seu namorado. Catherine e Henry são

tão fofos que dá vontade de bater, juro. Carinhos, toques na mão,

“você precisa de alguma coisa, querida?”, para cá e para lá. O


homem está arrastando dois bondes por ela, que está feliz.

Pobre Oliver.

Peter e Isa — como ela me pediu para chamá-la — também

deixam meu coração quentinho. Eles são aqueles casais que


conversam com o olhar e os sorrisos, então é gostoso estar perto

deles.

Na real, todo mundo parece muito feliz aqui — com exceção

do Oliver. Casamentos são, geralmente, momentos felizes, e eu já

quis muito viver um desses. Mas percebi, ao longo dos anos, que

não é para mim.


Não era quando me casei com Márcio e não é mais também.

Então, pensar nisso, me entristece.

— Está tudo bem? — O ar que acompanha as palavras de


Oliver faz os pelos da minha nuca eriçarem, e eu percebo que

minha cara de “casamento não é pra mim” deve estar parecendo a

de um velório.

Coloco um sorriso no rosto e o encaro.

— Está sim, e com o senhor, hein? Você ficou de cara


fechada o jantar inteiro — digo com um leve toque na ponta do nariz

largo dele.

— Estou cansado. — Oliver me puxa para perto de si pela

cintura, fazendo eu arrastar um pouco o barril e, descansando o

rosto em meu pescoço, inala meu cheiro e, gente, na cabeça de

uma mulher que não dá há meses, isso é quase pornográfico.

— Você quer ir para o quarto? — Não pensei que isso podia

soar como duplo sentido, mas soou, pelo menos para mim, que sei
qual foi meu último pensamento.

— Não posso. Preciso esperar, e sair só no final. Sou o pai


do noivo — ele sussurra, e eu me seguro para não encolher o

ombro com o arrepio que sobe pelo meu pescoço.


— Você está cansado, homem. Veio de outro estado hoje,

aposto que o Peter não vai se incomodar se você sair daqui — digo

para ele.

— Não vou mesmo. Vim, inclusive, dispensar o casal — Peter

diz, e Oliver e eu nos levantamos em seguida. — Amanhã o dia é


cheio, hein?

— Peter, dá pra aguentar mais um pouco, é sério — Oliver

diz com a mão no ombro do filho.

— Pai, os carrinhos de golfe estão ao lado esquerdo do

celeiro, tá? Tenham uma boa noite — Peter diz e nós assentimos.

— Boa noite, gente — Oliver diz e eu sorrio, mas Isa se

levanta.

— Mas, amor... — Isa começa a caminhar até nós. — Eles

não tiraram uma foto — ela diz, e os dois se viram na mesma


direção.

A da moldura da polaroid.

— Ah, é verdade. Vamos lá? Vou pedir ao fotógrafo para tirar

uma foto de vocês, prometo que vai ser rápido — Peter diz sorrindo
um tanto quanto nervoso para Oliver, que pisca para ele num sinal

de “está tudo bem”.


— Pois eu não prometo. — Isa se aproxima sorrindo. — Quis

fazer esse cantinho do amor hoje porque só terão casais aqui.


Vamos lá, Fábio vai arrasar! — Isa me puxa pelo braço, e eu

carrego Oliver pela mão. — Duda, você está tão linda — ela diz

olhando meu macacão social de costas nuas — não acredito que ia


sair daqui sem uma foto! — protesta e eu forço o sorriso.

— É o cansaço — justifico.

Isa para alguns passos atrás do fotógrafo e pede para ele

caprichar enquanto Peter a abraça por trás para conter sua

excitação. Oliver e eu não sabemos muito bem o que fazer e o tal


Fábio nos orienta. Depois da oitava foto, Oliver descansa a cabeça

no meu ombro e diz “eu só queria dormir, meu Deus”, e eu rio.

— Ótimo, casal, mantém — o fotógrafo diz. E, depois de mais

alguns cliques, volta a orientar. — Agora abraça ela por trás, e você

ergue o pescoço para olhar para o seu amado. — Fazemos como


ele pede. — Isso. Agora, um beijinho pra finalizar — Fábio diz, e eu

gelo, sentindo os braços de Oliver me prenderem um pouco mais

forte.

— Um selinho? — ele pergunta e eu assinto. — Juro, não vou

nem encostar direito — Oliver promete.


Ergo o queixo um pouco mais e os lábios dele me alcançam.

Quentes, firmes e deliciosos.

E eu não consigo acreditar que isso está acontecendo, mas

estou prestes a abrir minha boca, então me afasto.

— Ma-ra-vi-lho-so! — Fábio diz, assim, com as sílabas


separadas, e logo em seguida eu saio de trás da moldura puxando

Oliver.

Isa e Peter nos abraçam, agradecendo pela presença e nós

nos despedimos de todos com alguns tchauzinhos e um aceno de

cabeça. Oliver segura minha mão enquanto caminhamos até o


carrinho, e eu não sei se consigo olhar para ele sem pensar que eu

gostei do que aconteceu aqui.


OLIVER

Parece inocência dizer isso agora, mas depois de um selinho


que demorou mais do que um “Juro, não vou nem encostar direito”

propunha e um trajeto de dez minutos, quase todo em silêncio ou


falando sobre os noivos e a comida, entramos na suíte e nos damos
conta de que temos uma pequena sala com um sofá de dois

lugares, um banheiro enorme e confortável com direito a

hidromassagem e um quarto...

Com apenas uma cama.

Obviamente tínhamos vindo aqui durante o dia e tínhamos

visto que só tinha uma cama, mas acho que nenhum de nós dois
pensou muito no que isso significava.

— Você pode ficar com a cama, eu me ajeito no sofá — digo

quando a vejo encarando o móvel.

— Quê? Você está louco, Oliver? Trabalhamos hoje, viajamos

juntos, você dirigiu de São Paulo até aqui, isso não faz sentido.

— Mas você veio me ajudar, você não vai dormir no sofá —


digo, e ela gargalha.

— Claro que não vou. Nós vamos dividir. Isso é uma cama

king size, dá pra gente rolar aí — ela diz como se eu não estivesse
enxergando a cama. — Vou tomar outro banho antes de deitar, você

vai também?

— Não — respondo de imediato. Não porque eu não quero

tomar o banho, mas porque minha cabeça quase me fez responder

que sim, porque achou que eu tomaria o banho com ela. — Quer

dizer, você pode ir primeiro.

— Tudo bem. — Eduarda corre para o canto do quarto, onde

pega sua mochila e em seguida vai para o banheiro.

Me sento na cama, pensando em tudo o que tenho vivido e

sentido. Jogo minhas costas no colchão e em minha cabeça

dançam imagens de Catherine e de Eduarda. O quanto é estranho


não sofrer por Catherine, mas estar bem ao lado de Eduarda, me
atinge. O vazio que eu senti quando vi Catherine, não conseguir

amá-la da mesma forma, querê-la... Eu simplesmente olhei para ela

e nada aconteceu. Então fui puxado magneticamente até a Duda e

pensei: que bom que ela está aqui comigo. E a base desse

pensamento não foi meu medo de me humilhar pra Catherine, mas

o quanto gosto de... Da companhia de Eduarda.

E isso me corrói, porque eu não posso estragar a amizade


que a gente está construindo aqui; porque ela tem uma puta

bagagem e eu não quero fazer parte de mais uma muda das dores

dela. Também machuca meu ego um pouco, porque, apesar de “eu

ser um gostoso”, aparentemente não faço o tipo dela.

Mal Eduarda sai do banho e eu entro, sei que ela percebeu

que estou estranho, provavelmente acha que é por causa de

Catherine ou do selinho. E eu não tenho tempo para lidar com tudo

isso, pelo menos não agora. Então demoro mais do que o de


costume no banho, na esperança de que ela durma antes que eu

saia.
Mas assim que chego no quarto vejo o quanto minhas

esperanças foram vãs. Eduarda está sentada com as pernas


cruzadas em cima da cama, vestindo um blusão do Sonic e uma

calça de cetim.

— Esse lado aqui é meu, e você não invade, ok? — explica

com a sobrancelha erguida e uma mão segurando um travesseiro


que divide a cama.

Seguro o riso.

— Tudo bem, senhorita — digo dando a volta na cama e me

deitando no lado esquerdo. — E então, foi muito ruim hoje? —


pergunto colocando uma mão atrás da cabeça e encarando-a.

— Oliver — ela me chama como se eu tivesse feito algo


errado, o que me assusta.

— Que foi, woman? — digo me sentando.

— Você tá me vendo sem roupa? — pergunta com a mão na


cintura, e eu a encaro confuso. — Então coloque uma blusa. Eu,

hein.

Gargalho.

— Eduarda, por que eu demorei tanto tempo pra te achar? —


pergunto retoricamente e vou até minha mala, pegando uma camisa
branca lisa.

— Na verdade, quem te achou fui eu — ela responde


deitando e me dando as costas. — O dia foi tranquilo, mas eu estou

cansada. Boa noite, Oliver.

— Boa noite, Duda — digo.

Mas, o que realmente corre na minha cabeça, é: boa noite,

Babe.

Dormir não foi tão fácil, zapeei os e-mails da empresa pelo


telefone, troquei mensagens com Paulinho e falei sobre Eduarda,

sobre como ela me faz... bem. E, depois de algum tempo de


conversa, percebi que isso é normal. Quer dizer, ela é uma pessoa

ótima e uma boa amiga. E eu tinha certeza de que era só isso, mas
minha certeza foi embora no segundo em que acordei.

Estou há mais ou menos quinze minutos observando


Eduarda em cima de mim, com a perna esquerda sobre as minhas,

a cabeça em meu peito e os fios ruivos emaranhados em cima de


mim. Confesso que já fiz um ou dois cafunés enquanto ela está
aqui, mas agora estou parado esperando que ela acorde. Porque
quando essa mulher acordar e perceber que está grudada em mim
como um bicho preguiça, ela não vai reagir nada bem.

Agora, outra coisa que eu vou precisar resolver, é minha


ereção, porque não vai ser uma coisa fácil de disfarçar.

DUDA

Abro os olhos depois do que parecem doze horas de sono.

Não me lembro a última vez que dormi tão bem e de maneira tão
confortável. Estico a mão na intenção de pegar meu celular na

mesinha de cabeceira, mas não tem nada aqui. Então tento me virar
e percebo que não consigo, porque Oliver invadiu meu espaço na
cama.

Respiro fundo para controlar o ódio e, em segundos, estou


me levantando, mas quando o faço percebo que, na verdade, eu

que invadi o espaço pessoal de Oliver — e estava deitada em cima


dele, que não diz nada, mas me encara com diversão dançando nos
olhos.

— Bom dia, Eduarda — ele diz com um risinho de canto.

— Bom dia, Oliver — respondo me levantando.

— Acho que você jogou a almofada no chão durante a noite,


né? — ele debocha.

— Oliver, me erra — digo pegando minha mochila, meu

celular e indo ao banheiro.

Tiro a nécessaire da bolsa, amarro o cabelo num coque e

escovo os dentes vendo as mensagens no celular.

Abro primeiro o grupo do quarteto, mas não tem nada de

novo por aqui. Aparentemente elas só não calam a boca quando eu

estou ocupada demais para responder.

Eu: Bom dia pra quem está num casamento aleatório, fingindo ser a

namorada de alguém e, de repente, só tem uma cama no rolê e

você precisa dividir.

Fani: Gente, como assim?


Lavínia: Se você disser que acordou abraçadinha com ele, eu já

vou atualizar o capítulo da minha fanfic mental da Quase Virgem do


CEO e dar gritinhos do lado do Dani na cama.

Eu: Lavínia, não tem graça.

Amanda: Aparentemente, ela está a poucos capítulos de gritar Oh

My God.

Amanda responde a mensagem de Lavínia, e eu rio, porque é


uma situação fodida, mas ainda assim, engraçada.

Termino de me arrumar ouvindo um áudio de Felipe sobre o


dia na escola, em resposta ao que mandei quando voltamos na

noite anterior. Para o dia, optei por um vestido azul-marinho, leve e

solto, um palmo abaixo do joelho e uma alpargata preta. Prendo o


cabelo num rabo de cavalo, para trazer mais impacto quando ele

estiver solto e ondulado à noite.

Saio do banheiro e Oliver está na cama, aparentemente me


esperando. Ele segura dois programas do casamento. Algo que os

padrinhos e os pais receberam ontem.


— Bom, nós temos o café agora, o horário é livre, então

posso pegar algo pra gente comer aqui. Depois disso, você tem uma

reunião na suíte da noiva, lá na casa principal, e eu teria um vôlei


com os rapazes, mas vou tomar o chá com a Cath.

— Ótimo e essa reunião aí que eu preciso ir, é o quê? —


pergunto de pé, encarando Oliver novamente sem camisa.

Ele não está sendo justo comigo. Primeiro acorda de pau

duro, agora me aparece com esse tanquinho perfeito.

As meninas do quarteto nunca vão saber desse pensamento,

mas, Oh My God, que homem lindo. Teve gente ficando no prejuízo


de beleza porque o desgraçado roubou a de umas três pessoas.

Na verdade, ele é bonito, gostoso, inteligente e sensível —


definitivamente teve gente ficando sem muita coisa na hora da

partilha.

Acho que ele nota meu desconforto porque, rapidamente,

entra na camisa polo que estava em cima da cama.

— Um chá de lingerie — responde por fim. — Bom, vamos


tomar café, cada um faz suas atividades e então nos vemos no

almoço, tudo bem? — pergunta se levantando.


— Ótimo! Fechado — digo e ficamos os dois parados por

tempo demais, até que um dá um passo e o outro dá também, então


nós saímos do quarto.
OLIVER

A única coisa mais traumatizante do que a noite de ontem, foi


o almoço de hoje. Estamos em torno de trinta pessoas agora,

poucos são as que conheço e preciso fingir para todas elas que as
coisas estão bem entre Eduarda e eu, mas não faço ideia de se isso
é real. Quando eu a apresentava como minha namorada, o sorriso

estava lá; quando a deixei na rodinha de amigas de Isadora, ela me

pareceu ótima; mas se ficássemos os dois sozinhos, parecia que


tinha um oceano entre a gente, e eu não sei se isso tem a ver com o

selinho, ela ter me agarrado durante a noite ou eu ter brincado com

isso quando acordamos.


Não tive nem a chance de perguntar, porque, logo depois do

almoço, ela voltou para o quarto, pois precisava trabalhar, e eu tinha


de fazer uma ligação para o escritório antes do meu chá com a

minha ex-mulher.

Assim que me sentei aqui, percebi por que eu não quis vir

sozinho a esse casamento: Catherine é encantadora. O sorriso, o


jeito de falar, o toque suave durante a conversa... E me sinto seguro

por saber que, com Eduarda aqui, eu nunca tentaria nada com a

Cath.

— Mas chega de me ouvir falar do trabalho e do Buddy —

digo com um tapa em minhas pernas. — Me fala da sua vida —

peço depois de resumir os últimos onze meses da minha para ela,

que ouviu a todas as etapas da minha mudança e da minha


readaptação ao Rio sem piscar, me interrompendo sempre que

queria saber mais de alguma coisa e fazendo comentários

espirituosos acerca de tudo.

— Ah, eu tô ótima, Oliver. Voltar para a Inglaterra me abriu

muitas portas, literalmente, já que ando expondo as peças em várias

galerias por lá. Além disso, teve o voltar para casa, né? — Ela me

dá um sorriso, dos que não mostra os dentes. — Sua casa é aqui,


você está feliz no Brasil, mas eu não estaria e, quando percebi isso,
entendi que não era uma escolha entre nós dois e minhas vontades.
— Catherine suspira. — Era uma escolha entre fazer você feliz e me

dar a oportunidade de viver algo que eu queria, Oliver. E eu

realmente precisei me priorizar.

— Não precisa usar esse tom de desculpa, Cath. Na verdade,

eu é que te peço desculpas. Não fui o mais compreensivo dos

homens na época. Eu amava você demais, mas só pensei em mim.

— Engulo em seco depois de confessar.

— Eu também amava você. — Ela toca minha mão e mantém

seus olhos nos meus, com ternura e verdade. — Eu amo você,

Oliver — diz querendo que eu acredite. — Olha para tudo o que a

gente viveu, você tem quase duas décadas das minhas memórias.

Só não é mais o mesmo tipo de amor.

— Mas é foda não estar mais com você. — Respiro fundo e

solto o ar vagarosamente. — Acho que eu tinha tanta certeza de


que ficaríamos juntos, que eu só... Não percebi quando parou de

fazer sentido para você.

— Parou de fazer sentido para nós dois Oliver — Catherine

me corrige. — Você sempre me dizia que cedia porque me amava,

quando chegávamos a um impasse, e eu achava aquilo o máximo e


comecei a ter prazer em fazer o mesmo, ceder. Só que, com o

tempo, nós dois paramos. Acho que isso marca quando o amor de
casal acaba, não é? Quando sua prioridade é o “eu”, e não mais o

“nós”...

— Sendo muito sincero, não sei quando o amor de casal

acaba, querida. — Sorrio sem mostrar os dentes e não falo que,


para mim, antes de chegar aqui ontem e vê-la, o que eu sentia por
ela ainda era um amor de casal, porque ela não precisa saber disso

agora.

— Reconstruir a vida depois de um divórcio não é nada fácil,


estou orgulhosa de que você tenha conseguido fazer isso, mesmo

em meio a todas as mudanças que vieram junto com o nosso — ela


muda o rumo da conversa.

— Posso te fazer uma pergunta? É bem pessoal mesmo. —

É o que sai da minha boca enquanto meu coração machuca meu


peito.

— Pode sim.

— Como foi para você? Seguir em frente com outra pessoa?

— Difícil. — A palavra chega aos meus ouvidos como se


tivesse doído verbalizá-la. — O Henry... Lutou bastante. Mas hoje é
fácil estar com ele.

— Como foi difícil, se vocês estavam juntos seis meses


depois do nosso término? — quase a acuso, mas consigo mudar o

tom no final.

— Na minha cabeça, a gente já tinha parado de funcionar há


tanto tempo Oliver... — o tom cansado e o suspiro que ela dá em
seguida são tão familiares que quase posso ver as discussões dos

últimos meses da nossa união.

Elas se tornaram tão frequentes no último ano que nem

parecíamos nós dois de sempre. Os olhares tortos que dávamos um


para o outro, o tom rude que saía antes de um “meu amor” amenizar

as dores.

— E ele é bom pra você? Sua família gosta dele? — volto ao


tom amigável.

— O Henry é um príncipe. Ele é um amor, e eu amo como a

gente se conectou, sabe? — O olhar de Catherine brilha, e eu sei


que deveria ficar triste por isso, mas não fico. Eu só... Me inclino

para a frente e ouço o que ela tem a dizer. — Encontrei o Henry na


estreia de uma das minhas primeiras exposições depois da volta, e

ele disse que aquela era a sexta vez que ele ia a uma exposição
minha. — O riso apaixonado dela me fere, mas não é no coração, é
no ego. — Ele também é artista — adiciona.

— Também esculpe?

— Sim, mas por hobby. O trabalho dele é ser ilustrador de

histórias em quadrinhos — diz orgulhosa. — As esculturas o


acalmam, mas desenhar algo que depois dará vida a diálogos é a

paixão dele.

— Confesso que achei curioso, mas é um trabalho muito


legal.

— Muito! — Cath verifica a hora no celular. — Mas, quanto a

minha família... Ninguém se acostumou realmente, né? — diz com


ironia.

— O que aconteceu? — pergunto confuso.

— O que aconteceu... Essa é uma boa pergunta. — Vejo


olhar de Catherine percorrer toda a sala antes de pousar em mim.
— Eu tava mal. Quando a gente se separou e eu fui embora... Eu

não fiz aquilo sorrindo, por mais que você duvide. Então, conheci o
Henry, foi algo instantâneo, eu me apaixonei por ele em uma hora

de conversa no café da galeria — Cath encolhe os ombros. — Só


que eu não queria me envolver com ninguém, porque nosso divórcio
era recente; não queria que ficasse parecendo que eu tava
desesperada por arrumar outro homem. Eu estava bem sozinha. Só
que... Henry era bom demais e, quando aconteceu, você foi a

primeira pessoa para quem eu contei...

— Eu lembro — interrompo-a, porque estou vendo que ela

precisa de um ar para respirar. — Você estava feliz.

— Depois de conversar com você e com o Peter, eu resolvi

abrir para todo mundo, afinal, como você disse, eu estava feliz. —
Cath me lança um sorriso triste. — E ninguém achou normal...

— Você ter outra pessoa?

— Eu ser uma mulher de 45 anos e ter um namorado de 29

— ela diz por fim.

— Ah, por Deus, Catherine — digo balançando a cabeça

negativamente. — Seus irmãos estavam me dando tapinha nas


costas e me parabenizando pela Eduarda hoje.

— Ah, é que você é homem — ela ironiza. — Aparentemente,


a Eduarda pode estar com você porque te ama, mas o Henry “só

está interessado no meu dinheiro”. — Ela usa aspas para demarcar

o que os parentes dizem.


— Cath, isso é tão patético, machista e... — Coço a ponte do

nariz irritado com essa palhaçada.

— Não tem problema. — Cath ri. Eu deveria saber que, por


mais que os outros se importem com a vida dela, essa mulher não

liga para isso. Catherine é a mulher que entrou em casa anunciando

que se casaria com um cara negro, sete anos mais jovem do que

ela, afinal. — Você sabe, eu sou uma mulher independente, meus


pais não precisam aceitar ou não os meus relacionamentos, e meus

irmãos não têm nada a ver com a minha vida. — Exala o ar com

peso por fim. — Mas, já que estamos falando de amor... Me conta


da Eduarda. Vamos parar de falar desse assunto chato.

— O que você quer saber exatamente? — pergunto um tanto

desnorteado com o absurdo de suas últimas afirmações.

— Ah, como você se sente em relação a ela...

— Como assim?

— Ah, você mudou pro Rio há pouco tempo, e vocês são


tão...

— Tão? — pergunto com meu coração acelerando.

— Fofos. Vocês ficam bem juntos.


— Ah, sim. Eu e a Duda... — Coço a nuca pensando em

Eduarda. — A gente se conheceu através de dois amigos. Na

verdade, ela é a melhor amiga da namorada de um diretor da


empresa.

— E...? — Catherine pergunta interessada, com um risinho


de canto.

— Ah, a Eduarda é ótima. A gente se esbarrou num almoço

com esses amigos, então trocamos telefones, saímos como amigos


uma vez e percebemos que queríamos continuar fazendo aquilo. —

Sorrio pensando em como esses fatos estão distorcidos, mas ainda

tem um fundo de verdade. Desde o almoço, a minha festa e o dia


que devolvi para ela a carteira de motorista, não pensei mais na

minha vida sem ela, mesmo sem saber quem ela era. — Arrumamos

algumas desculpas para isso: assistimos Fórmula 1 juntos, saímos

para comer, fingíamos que ela estava sendo a minha “primeira


amiga” no Rio. E com o tempo só foi...

— Natural. — Cath assente compreendendo.

— Exato. — Sei que deveria parar por aqui, mas não consigo.

— Ela é maravilhosa, uma ótima ouvinte, uma pessoa sincera. Além


de ter um estilo todo próprio — pontuo. — Às vezes usa vestidos de
festa, outras coloca um jeans e uma camiseta, e fica perfeita dos

dois jeitos. — Deixo um risinho escapar. — Ela dorme com blusa de


jogos de videogame e calça, é sexy sem nem tentar... A Duda já

passou por tanta coisa que eu sinto, sinto que preciso estar lá por

ela, sabe? Porque ninguém mais vai estar... — digo e o peso dessas
palavras me assusta, porque não sei o que é real ou não.

— Você gosta mesmo dela, né?

“Gosto?”

— Gosto — afirmo, porque é o que Catherine quer ouvir.

— E como foi... Quando você percebeu? Digo, eu percebi

que o Henry era a pessoa com quem eu deveria tentar de novo em


minutos de conversa...

— Eu percebi na ausência. Não a ver sempre, não poder ligar

para ela sem motivo, não mandar mensagem para ela toda noite... A

falta que eu sinto de estar com ela é o que me fez perceber que eu

gostaria de tentar de novo — digo e não faço ideia de onde essas


palavras estão vindo.

— Eu acho que nós dois conseguimos, Oliver. Encontramos o


que sempre faltou no nosso casamento — Cath diz acariciando a

minha mão.
— O quê? — pergunto realmente sem saber.

— Identificação. A gente era muito diferente. Às vezes tudo o


que eu quero é assistir horas de vídeos sobre escultura e você,

bem, você agora tem uma companhia para assistir 20 homens

correndo em círculo.

— Eu não assisto Nascar, vejo F1 — provoco-a.

— Foi modo de falar. — Ela ri. — Estou feliz por nós dois. Eu

tive medo, sabe, de a gente ser um daqueles casais que divide

metade da vida e nunca mais se fala.

— Ah, eu... Não acho que isso seria possível pra gente. —

Tento focar meus pensamentos aqui, mas as coisas que eu disse

sobre Eduarda voltam para mim em flashes, memórias,


lembranças...

O quanto é bom estar com ela, sorrir com ela, ficar com ela...
O quanto eu gosto de estar perto da Eduarda.

— É, a gente tem o Peter, né?

— E temos nossa história. Foi uma história bonita — digo me

dando conta de que é exatamente isso o que eu e Catherine temos,

uma história bonita, à qual eu não conseguia não me apegar.

— Está tudo bem, Oliver?


— Claro. Eu só... Acho que eu preciso falar com a Duda. Se a

gente já acabou aqui... — Me levanto e vou até Catherine,


depositando um beijo em seu rosto.

— Sim, sim. Obrigada por ter vindo, eu queria mesmo ter


essa conversa com você. — Ela retribui meu beijo e saio do

cômodo.

Preciso conversar com a Eduarda.

DUDA

Eu não via a hora daquele chá de lingerie acabar.

Não pela Isadora ou pelas amigas dela, nem pelas outras

convidadas que chegaram hoje, é só que... O assunto principal foi

sexo. Isadora — como toda virgem — é curiosa, então as amigas


ficaram falando do que gostavam, de como gostavam e me

perguntando da minha vida sexual com Oliver. Passei uns dez

minutos sem jeito, mas, pensando em todas as coisas que eu tinha


imaginado com Oliver nas últimas semanas, fiquei estranhamente
mais segura para falar.

Além das coisas que pensei, também pontuei as que eu

imagino serem maravilhosas, mas nunca vivi. Porque Márcio tinha

muitos limites e restrições, e eu não arrumei ninguém depois dele.

Mas, agora, sentada na cama não consigo para de imaginar

as coisas que falei para elas e isso tá me deixando muito mais

carente do que eu consigo suportar. Então acho melhor esquecer


que essa conversa existiu e ir trabalhar.

No segundo que levanto, meu celular toca. Eu estava certa, é


hora de trabalhar.

É uma cliente, e ela precisa que eu ajuste as últimas três

artes que mandei para ela. Encaro o celular, quase 16h, o jantar vai
ser servido às 18h e Oliver provavelmente vai me matar, porque eu
não vou estar pronta.

Confirmo com a cliente que consigo devolver as artes para


ela em duas horas e vou tomar um banho.
Saindo do banheiro, encontro Oliver sentado na cama,
tremendo tanto as pernas que mal o reconheço.

— Duda, a gente pode conversar?

— De verdade? Não se você me quiser nesse jantar. Recebi


a ligação de uma cliente e eu tenho até às 18h para refazer as
postagens dela e me arrumar. Então não consigo conversar com

você agora.

— Mas, Duda, é importante. — Oliver veio com essa para

cima de mim depois do chá com a Catherine?

Não tenho tempo para essa merda agora.

— Eu sei, mas o meu trabalho também é, e eu avisei que


talvez precisasse trabalhar na sexta-feira.

— Tudo bem — ele diz derrotado. — Vou dar uma volta então

e te encontro mais tarde.

— Muito obrigada por entender, namorado. — Sorrio para ele.

Oliver me olha por mais dez ou quinze segundos e se

levanta.

— De nada, Babe. — Ele diz saindo pela porta, e eu tenho

vontade de morrer toda vez que ele me chama assim.


Morrer no meio de um orgasmo, para ser mais exata.
OLIVER

O jantar de ensaio acabou e eu ainda não consegui falar com


Eduarda. Tentei depois do chá — que nenhum dos dois bebeu —

com Catherine, tentei antes de virmos, tentei durante a festa, e não


consegui ficar com ela por tempo o suficiente para isso. Mas acho
que estava tentando conversar com Eduarda para entender o que

está acontecendo comigo, o que está acontecendo dentro de mim, e

agora tudo começa a fazer sentido.

Eu estou bem e feliz pelo meu menino, mas ainda assim

nervoso e ansioso, e talvez seja pelo motivo óbvio: meu filho está se
casando.
Imaginei esse momento várias vezes desde que meu garoto

começou a namorar Isadora e me disse que se casaria com ela.


Mas, em todas as vezes, eu, Peter e a Catherine ainda éramos uma

família.

Em todos os quadros que pintei dessa história, Catherine era


o meu par para o evento, a minha esposa e o meu amor.

Agora, no entanto, isso fica nublado diante de mim.

Não apenas pelo divórcio que me foi imposto, há quase um


ano, nem pela distância a qual fui submetido do dia para a noite, e

sim por ela:

Eduarda Campbell.
Convidar Eduarda para vir comigo ao casamento do meu

filho, apenas para que eu não ficasse sozinho enquanto a mãe dele
já seguiu em frente, parecia mesquinho. Mas era a única saída.

Agora, no entanto, estou parado com um copo de uísque na

mão, numa rodinha com os homens da família da minha ex,

ouvindo-os falar sobre coisas nas quais não estou interessado e

sorrindo e acenando vez ou outra, extremamente desconfortável.

Mas a verdade é que estou me perguntando quando


Catherine sumiu dos meus pensamentos e Eduarda se tornou o foco

deles; como eu passei a última noite de pau duro só de pensar no


selinho que ela me deu depois do jantar e no quão impaciente estou
para que os noivos se despeçam e nós possamos voltar para o

quarto, porque quero ficar a sós com ela novamente.

E isso me assusta, porque observá-la com o grupo de amigas

da noiva, sorrindo e tomando champanhe como se fosse de fato a

mulher de um dos convidados, sabendo que, depois disso, é na

minha cama que ela vai encerrar o dia, faz algo dentro de mim dizer
que isso é o certo. Ela é a pessoa certa, e não Catherine.

O que minha mente está ignorando, no entanto, é que

Eduarda não só não olha pra mim desse jeito, como já deixou bem

claro sua posição a respeito de homens mais velhos: ela não tem

interesse.

E, mesmo que minha primeira lembrança do dia de hoje seja

ela dormindo no meu peitoral, isso não é algo que eu possa ignorar.

DUDA

Parece que estou tendo um déjà vu, e não é um dos bons.


Apesar de o início do dia ter sido estranho, com Oliver e toda

aquela coisa de eu deitada em cima dele e ele ter ficado, bem...


animado demais com isso. Consegui contornar essa situação

ficando o mais longe do homem o possível durante o dia e,


consequentemente, me aproximando das outras garotas presentes.
Foi assim no almoço, durante o chá de lingerie e depois consegui

escapar dele porque precisei trabalhar.


A Isa e as madrinhas dela são maravilhosas, e eu não me

senti tão deslocada quanto achei que me sentiria aqui. Quer dizer,
todo mundo fez perguntinhas sobre “como é namorar o pai do noivo”

e “como é ter quase a idade do filho dele”, mas eu consegui me sair


bem. Oliver não é tão velho assim e, no mais, o charme dele me
faria relevar mesmo que ele fosse.

Elas amaram a... fanfic da garota que “nunca se envolveu


com um cara mais velho, mas a vida acabou a empurrando para

isso”, então, servi o melhor dos conteúdos a elas. Já sabia que era
boa em fazer coisas simples parecerem incríveis nos posts de

Instagram que crio para minhas clientes e, agora, descobri que sou
ótima em fazer o mesmo na vida real.
Infelizmente, como aconteceu na última vez que eu estive tão

bem, Márcio apareceu das profundezas do inferno.


Coiso: Duda, a gente precisa muito conversar.

Eu: Márcio, não consigo falar com você hoje.

Coiso: Eduarda é importante.

Eu: Fala, Márcio, o que você quer?

Envio pedindo licença ao grupo de meninas que está comigo,


e que bom que o faço, porque em segundos meu celular toca.

— Pronto — atendo grossa.


— Duda, eu não tô aguentando mais esse seu

comportamento. — Ele respira fundo antes de continuar. — Você


quis um tempo para ficar com a sua mãe, eu te dei. Decidiu que ia
morar com a Lavínia, sem me consultar, e eu aceitei numa boa,

porque queria mostrar que ainda sou o cara legal por quem você se
apaixonou, você...

— Márcio, aonde você quer chegar?


— Quero saber quando você volta pra casa, Eduarda.
Quando volta pro seu filho — ele grita, e, puta que me pariu, eu vou
matar esse desgraçado.
— Márcio, te retorno em dez minutos — desligo na cara dele
e continuo caminhando.

Eu me enfio no primeiro carrinho de golfe que acho e


amaldiçoo a acomodação que estamos, por ser tão longe da casa

principal, pela primeira vez desde que chegamos.


É inacreditável o poder que algumas pessoas têm de acabar
com a nossa felicidade, com nosso amor-próprio e com a nossa

vontade de viver. Mas é fora do comum saber que alguém que eu


amei tanto, e por quem fiz tanta coisa, é essa pessoa para mim.

Esse... gatilho, que me transforma num bichinho acuado que nunca


vai conseguir coisas boas na vida.

Desde que eu e Márcio paramos de dar certo, sinto que um

enorme dementador[14] está atrás de mim, buscando tragar tudo de


bom que eu tenho, o tempo todo.
Contudo, percebo que aqui, nesse lugar de descanso, com

pessoas que nem me conhecem direito, mas me tratam tão bem, e


com Oliver — que querendo ou não é o primeiro cara com quem me

sinto confortável em muito tempo, e por quem eu tenho nutrido


pensamentos e desejos que não se parecem em nada com a
amizade a qual nos propusemos — as palavras e atitudes de Márcio
não podem me machucar.
Então desço do carrinho e entro na suíte rediscando o

número dele.
— Pontual como sempre, meu amor — ele diz com um

sorriso na voz.
Entro no banheiro e abro a torneira para evitar que Oliver —
ou qualquer outra pessoa que porventura venha aqui — ouça o que

estou dizendo.

— Márcio, eu vou te avisar uma vez, e só uma vez: para de


me perguntar quando vou voltar para casa, eu tenho uma casa, ela

está no meu nome e já estou morando nela — digo respirando

fundo. — E não me trata como se eu fosse uma mulher

descompensada, que deixou o lar para tentar viver algumas


aventuras antes de voltar para o conforto do casamento, você sabe

que não foi isso o que aconteceu — as palavras saem

pausadamente, porque preciso que ele entenda.


Esta não é a primeira vez que Márcio é tão direto sobre quão

patética acha que eu sou, então tento deixar explícito para ele que

não, não é assim que a banda toca.


— Duda, meu amor...
— Para de me chamar de meu amor! — grito e fecho a

torneira, porque, bem, mesmo que alguém entre aqui, a água


corrente não vai impedir ninguém de me ouvir.

— Duda, por favor. A gente era feliz, e eu sei que a gente

pode voltar a ser — a voz de pirraça machuca meus ouvidos.


— Refresca aqui minha memória, a gente era feliz antes ou

depois de você começar a me trair? Antes ou depois de eu começar

a ser a sua galinha dos ovos de ouro e você poder trabalhar menos

ou só quando estivesse “a fim”? Enquanto eu me fodia dia e noite


trabalhando de demonstradora de mercado e Uber, promotora de

lojas infantis e Uber, social media e Uber...

— Você sabe que não era assim! — grita, e eu consigo vê-lo


vermelho à minha frente. — Que o que eu ganho em uma noite

como DJ é basicamente o que você ganhava em uma semana

nesses empreguinhos.
— Márcio, cala a boca. Foi assim que eu criei nosso filho, foi

assim que paguei todas as contas que o meu suposto companheiro

nunca fez questão de pagar, então você não fala dos meus

empregos quando os seus só serviam para você encher a cara, me


trair e comprar joguinho de videogame. — Engulo as lágrimas

enquanto ando de um lado para o outro.


— Eduarda, o problema é dinheiro? Tá bom, eu trabalho

mais. Eu arrumo um emprego de segunda a sexta e continuo com

os shows aos fins de semana — o desespero que reveste sua voz é


de dar pena. — Só volta pra casa, Eduarda. Seu filho precisa tanto

de você...

— Não fala do meu filho. Não fala dele porque, até agora,

você só pensou em si mesmo, então não vem me dizer que quer


que eu volte pelo Felipe, porque não é!

— Mas ele sente falta de nós dois juntos.

— Posso te garantir que ele nunca disse isso pra mim. Se


você ouviu algo do gênero, não foi dele, foi das vozes da sua

cabeça. — Respiro fundo, sentando na tampa da privada e tirando

os sapatos.

— Eduarda, caralho. — Ele quebra algo e eu me assusto.


Mesmo longe, ainda lembro de como Márcio ficava transtornado.

Não que tenha me agredido alguma vez, ele nunca fez isso. — Para

de ser estúpida, você acha que esse cara vê o que em você? Quer
o que contigo? Acorda, ele só quer te comer — Márcio grita e eu

engulo em seco.

“Não que ele tenha me agredido fisicamente”, corrijo.


Fico em silêncio por um tempo, pensando em como deixei a

festa para vir aqui dizer algo que me fizesse parecer menos patética
diante dele.

No quanto eu queria sair por cima, pelo menos uma vez.

Então respiro fundo e me levanto.


— Olha, Márcio, eu acho que... Acho que você está certo —

digo baixo e calmamente, encarando o espelho.

— Que bom que você está caindo em si — comenta com

desdém.
— Existe uma possibilidade, uma grande possibilidade, de o

Oliver só estar comigo por sexo — digo por fim, encarando a mulher

bonita e desejável que eu sei que sou. — E, Márcio, por mim, está
tudo bem.

— Que porra é essa, Eduarda?

— Está tudo bem, porque o Oliver me dá algo que você

nunca foi capaz de me dar — digo em tom de suspense.


— O quê? Dinheiro? — ele pergunta rindo.

— Orgasmos — rebato e espero por alguns instantes que ele

se defenda de alguma forma, mas ele não o faz. — Diferente de


você, o Oliver sabe exatamente como usar os dedos, a língua e o

pinto — finalizo com um risinho cínico.


— Que conversinha de vagabunda, hein, Eduarda.

— É isso, Márcio, talvez eu seja uma grande vagabunda

agora. Mas antes a vagabunda de um homem, do que a corna de

outro — digo com desdém. — O importante disso tudo é que, pelo


menos agora, eu sou uma mulher plenamente satisfeita — sussurro

as últimas palavras, e o silêncio ensurdecedor do outro lado da linha

me mostra que, se eu ainda não venci, estou muito perto de vencer.


— Pensando bem, acho que não é só sexo o que o Oliver quer de

mim, porque tem outra coisa que ele faz por mim que você nunca

fez. E não. — Faço uma pausa dramática. — Eu não estou falando

de sexo oral — debocho. — O Oliver cuida de mim.


— Ah, por favor. Você não era uma mulher independente até

outro dia?

Meu Deus, como eu fiquei com esse energúmeno tanto


tempo? Receber carinho agora é coisa de mulher dependente?

— Bom, foi você quem perguntou o que o Oliver quer comigo,

então estou dizendo a você: ele quer uma mulher pra chamar de

dele. Oliver se importa com o que eu quero, o que eu penso, nunca


reclama das minhas roupas de dormir, do fato de eu não usar salto

alto 24/7, me leva pra jantar em restaurantes caros num dia, numa

pizzaria barata no outro... — Rio enquanto enumero essas


lembranças porque, ao menos, elas são verdade. — Ah, Oliver

também ama Fórmula 1 e adora conversar, nunca age como se


estivesse entediado ou fosse ter um derrame depois de vinte

minutos de diálogo.

— Eu também achava você uma pessoa incrível depois de

dois meses de namoro, vamos esperar quanto tempo ainda vai


demorar para ele ficar de saco cheio de você — Márcio diz e desliga

o telefone.

Mas eu venci. Desta vez, sei que venci.


Jogo o celular na bancada à minha frente, apoio meus braços

no mármore e começo a chorar. Porque eu não sou essa pessoa, eu

não ajo assim, não tento humilhar alguém para me sentir melhor.
Mas eu não aguentava mais deixar que Márcio controlasse

minha mente, não conseguia mais vê-lo me tratar como se eu fosse

uma idiota.

Em meio às minhas lágrimas, ouço duas batidas na porta.


— Quem é?

— Sou eu, Eduarda. — A voz de Oliver me atinge. — Está

tudo bem?
— Não. — Sou sincera, porque não tenho condições de voltar

para a festa.
— Posso entrar? — ele pede num tom tão preocupado, que
eu apenas digo sim.

Não tranquei a porta quando entrei, então Oliver só aparece.

Posso ver seu rosto acima de mim pelo espelho.


— Duda, aconteceu alguma coisa? — As duas mãos de

Oliver chegam aos meus ombros, e eu balanço a cabeça

negativamente. Não quero falar nada para não deixar uma onda
maior de lágrimas me invadir. — Está tudo bem, pode falar comigo

— ele diz me encarando pelo espelho, e torço meu rosto em mais

uma negativa. — Prometi que cuidaria de você, mas só consigo

fazer isso se você deixar — expõe, dando um passo para mais perto
de mim.

— Eu acho ótima essa expressão que você usa — digo para

o reflexo dele. — Cuidar. Eu tinha quatorze anos quando meu pai foi
embora. Ele mora no Equador, eu já te disse isso?

— Não, você não fala muito do seu pai — Oliver diz enquanto
acaricia meus ombros.
— Ele construiu uma nova e perfeita família lá — explico. —

Eu tinha dezessete quando engravidei e, desde então, me tornei


uma filha ruim. Precisei cuidar de mim mesma e da minha criança
por muito tempo. Me mudei para a casa dos pais de Márcio aos
dezenove e nada deu certo, eu sabia que era por causa dele, mas
ele insistia que seria diferente num lugar só nosso. — Quase dou de
ombros, mas me sinto confortável com as mãos de Oliver aqui,

então apenas reviro os olhos. — Nos mudamos, mas nada mudou.


Passei a criar meu filho e o marmanjo do meu marido.
— Duda, vamos pro quarto? — ele pede segurando minha

mão direita, e eu apenas o sigo.


Me sento na cama e o vejo abrir o frigobar. Oliver me entrega
uma garrafinha d’água, pegando outra para ele em seguida.

— Como você está? — A pergunta desencadeia uma


enxurrada de sentimentos dentro do meu peito.
Não choro, mas sofro.

Dói pensar em “como eu estou” agora. Bebo quase meia


garrafa d’água antes de responder.
— Mal. Muito mal. Na merda, real, sabe? — pergunto com o

cenho franzido. — Eu tô exausta da minha não-relação com o


Márcio, cansada de não ter uma relação amigável com a minha

mãe, de achar que vou ser insuficiente para o meu filho pra sempre,
de trabalhar tanto para dar conta das minhas contas e as da minha
criança... Mas, acima de tudo — suspiro profundamente, com
cansaço, e exalo o ar —, eu tô cansada de a minha vida ser só isso,
sabe?
— Como assim? — Oliver pergunta e, em seguida, é sua vez

de virar a garrafa.
— Eu nunca sou... vista. Nunca sou só a Duda. Acho que

escolhi morar com Lavínia, e não com a minha mãe, porque com a
minha amiga eu posso ser só eu, mas tirando uma pessoa no
mundo, só sou vista quando meu quarteto se reúne e nosso “dia das

garotas” acontece, uma vez por mês. — Deixo um riso triste


escapar. — Não dá para ser vista só uma vez a cada 30 dias, né? —
Jogo minha cabeça para trás e fecho os olhos. — A Eduarda do

passado era uma menina linda, cheia de sonhos e vontades, e, no


entanto, ela se tornou isso aqui.
— Eu vejo você, Eduarda. — O tom de Oliver chama a minha

atenção e eu o encaro.
— Às vezes eu acho que vê mesmo — rebato. — Estou aqui
com você hoje justamente por isso. — Sorrio para ele. — Você me

conheceu, algo em mim te fez me achar legal o suficiente para me


convidar para a sua festa e, lá, você me ajudou. Não sabia

exatamente quem eu era, não tinha a menor obrigação de fazer


aquilo, mas você me viu e fez coisas boas por mim, e eu vou ser
eternamente grata por isso.

— Não precisa ser eternamente grata pelo mínimo, Duda —


diz com os olhos semicerrados. — Mas me conta uma coisa: por
que você se refere a Eduarda do passado como se ela fosse outra

pessoa? — indaga tirando a gravata e subindo os dois pés para a


cama, então eu começo a tirar as bijuterias e colocar na mesinha de

cabeceira.
— Porque ela era. — Rio lembrando da menina bonita que
acreditava nas pessoas e tinha sonhos maiores do que a própria

imaginação. — Uma menina boba e estúpida, que acreditava nos


outros, no amor, em sonhos e planos... — Paro de falar porque
estou sendo injusta. O problema nunca foi meu coração aberto,

sempre foram as pessoas