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Escola Estadual Julio Strubing Muller

Disciplina: História
Professores: Thales Biguinatti Carias e Wellington Ernani Porfírio
Material apostilado para os meses de novembro e dezembro (1ºs anos)
Habilidade trabalhada: (EM13CHS104) Analisar objetos e vestígios da cultura
material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que
caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no
tempo e no espaço.

Nome do(a) Aluno(a):


Turma:

Em busca de um tempo perdido: perguntas e respostas sobre a


história do Egito Antigo

NOVEMBRO:

Na apostila do mês de outubro, tivemos a oportunidade de fazer uma discussão


um pouco mais conceitual. Nela, partindo dos apontamentos de Rousseau, pudemos
observar que existe uma relação muito próxima entre os conceitos de propriedade e de
civilização. Ora, a propriedade é fruto do trabalho humano assim como também o é a
civilização. De acordo com Rousseau, é só quando surge a propriedade que podemos falar
em início da história da civilização. É só quando o homem, por meio do trabalho, começa
a produzir e a acumular bens e utensílios que nós podemos falar na formação de
sociedades civis.
Essa relação estreita entre sociedade e civilização ainda nos levou para uma outra
questão: diferente do que afirmou Rousseau (ao condenar a civilização desde sua origem),
a propriedade não é um conceito único; fonte de toda a ganância do ser humano. Falar em
propriedade não significa a mesma coisa para nós e para uma pessoa que tenha vivido na
Europa feudal; ou mesmo para uma pessoa que tenha vivido no território que hoje é o
Brasil, mas antes de 1500, por exemplo. Se a propriedade não é a mesma coisa para os
diferentes momentos e lugares da história, as civilizações também não são iguais umas às
outras. Se as civilizações não são iguais, significa dizer que é possível, no presente,
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aprender com as diferentes civilizações para pensar nos caminhos de uma sociedade atual
que seja mais justa e fraterna.
Em outras palavras, observar a história das civilizações nos interessa na medida
em que podemos pensar melhor sobre o nosso presente e sobre nós mesmos. Sobre quem
somos, como nos formamos e como poderemos ser daqui para frente. Esse era o sentido
da nossa atividade na apostila passada. A carta escrita pelo Chefe Seattle, enviada ao
presidente dos Estados Unidos da América no ano de 1854, mostra o quão absurda era,
para sua tribo, a ideia de que pessoas podiam, simplesmente, comprar terra com dinheiro.
Para ele e seu povo, o fato da terra ser fonte da vida e berço da história de todos eles era
motivo mais do que suficiente para que ela (a terra) fosse tratada em igualdade com
relação ao próprio ser humano. A terra, para a sua tribo, não é uma coisa qualquer da qual
se usa e se abandona quando o interesse se perde. A terra é a ligação, material e espiritual,
entre o seu povo como um todo e o seu deus.
É claro que não podemos, na sociedade atual, abandonar a prática de compra e
venda da terra. Mas, definitivamente, nós chegamos num estágio em que, ou aprendemos
a cuidar melhor dela ou não teremos um lugar seguro para se viver nos próximos anos.
Dessa forma, entrar em contato com a carta do Chefe Seattle e refletir sobre como a
relação entre o homem e a natureza pode ser diferente da relação que temos hoje com ela
serve para pensar sobre a nossa própria sociedade e sobre como podemos ser melhores
do que isso.
Da mesma forma, outras experiências ao longo da história sempre podem ser
levantadas com o objetivo de refletir melhor sobre a nossa condição presente. A história
serve para, ao estudar outros povos, outros tempos e outras culturas, nos questionarmos
sobre nós mesmos. Faremos isso na apostila desse mês a partir de algumas questões sobre
a história do Egito Antigo. Com uma história riquíssima, o Egito Antigo nos remonta a,
pelo menos, 7.000 anos antes da era cristã (a.c.)! Se compararmos com a Revolução
Agrícola, ocorrida a 10.000 anos antes da era cristã (a.c.), temos 3 mil anos que separam
a formação dos primeiros povos sedentários, na Revolução Agrícola do Oriente Próximo
(As regiões dos rios Tigres e Eufrates), e o início da sociedade egípcia. Por isso, sempre
que falamos em Egito Antigo, estamos falando de uma região na qual houve o
desenvolvimento de uma das primeiras grandes civilizações da história.
Apesar disso, ainda é importante fazermos uma pergunta: afinal de contas, por que
estudar a história do Egito Antigo? Quais questões podem ser levantadas a partir da
história desse povo e como podemos pensar melhor no nosso presente quando estamos
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com nossas atenções voltadas para uma sociedade que se formou a 7.000 anos antes da
era cristã? A resposta, com certeza, não é simples; mas é fundamental pensarmos nela.
Antes de avançarmos, vamos pensar um pouco no nosso conteúdo do mês de
agosto. Naquela ocasião, estávamos discutindo sobre as diferentes formas de explicar a
origem do ser humano. Como eu havia afirmado na vídeo aula, e continuo a afirmar, a
apostila enviada pela SEDUC cometia um erro ao equiparar as explicações religiosas e
científicas sobre o tema. Isso porque cada uma dessas explicações possuem parâmetros
próprios e só são colocadas em pé de igualdade quando se tem a intensão de levar o leitor
a “escolher” entre um e outro. Como eu havia afirmado na vídeo aula, essa escolha não
faz muito sentido, pois a ciência que cria hipóteses sobre a origem do ser humano é a
mesma ciência que produziu a sociedade do jeito que a conhecemos hoje, com recursos e
tecnologias das quais nós sequer conseguiríamos viver sem. Por isso, é melhor manter
cada uma dessas explicações separadas do que querer polemizar em cima delas, já que
dessa polêmica não se vai muito adiante.
Mas essa polêmica não nos interessa no momento. O que é importante lembrar é:
quais são as regras pelas quais a ciência trabalha? Foi para responder a essa pergunta que
nós pudemos analisar um pouco do pensamento do filósofo Karl Popper. De acordo com
Popper, a ciência busca pela verdade sempre em um coletivo; sempre em grupo. A grande
tarefa da ciência é responder perguntas sobre o mundo em que vivemos (e até mesmo o
universo). Mas essas respostas não são puro fruto da imaginação. Elas precisam ser
respostas verdadeiras; ou seja, que deem conta de explicar o funcionamento natural deste
mundo em que vivemos com base em análises racionais.
Acontece que seria uma tarefa impossível um único cientista, isolado em seu
gabinete, responder a todas as questões do mundo. Por isso mesmo, a ciência trabalha em
grupos. Ela formou, ao longo dos anos, aquilo que chamamos de “comunidade científica”.
Uma comunidade científica é um grupo de pessoas dedicadas aos estudos de uma ciência
específica (química, biologia, física, etc.). Para que um estudo seja considerado científico,
não basta que ele seja feito com base na experiência. Esse estudo tem que ser aprovado
por toda a comunidade científica dedicada ao mesmo tema debatido pelo pesquisador em
questão. É por isso que a ciência de hoje funciona com base em artigos e livros. Porque
esses artigos e livros têm o objetivo de apresentar o estudo de uma pessoa (ou um grupo
específico de pessoas) à toda comunidade científica.
Quando vemos, nos jornais, aquelas reportagens científicas em que a matéria cita,
por exemplo, um artigo publicado na revista “Nature”, nós estamos vendo como a ciência
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funciona: pela apresentação de experiências, por meio de artigos, para uma comunidade
de cientistas que não só conseguem ler esses artigos; eles são capazes de decidir, por meio
dos critérios de cada disciplina, se aquela experiência é válida ou não; se ela pode ou não
“ser levada a sério”. Portanto, para que uma pesquisa consiga “ser levada a sério”, ela
precisa cumprir uma série de requisitos de análise que só quem é dedicado aos estudos
dessa disciplina tem condições técnicas de verificar e debater o mérito (ou não) da
pesquisa proposta.
Ok... Mas o que tudo isso tem a ver com o estudo do Egito Antigo? Simples: a
história como conhecemos hoje também é feita a partir das regras da ciência. Porém, ela
possui uma diferença básica com relação às outras ciências de que falávamos até então.
A diferença está naquilo que a história analisa em comparação com o que as outras
ciências analisam. Uma coisa é a física que analisa a natureza e o universo. A “lei da
gravidade”, por exemplo, é a mesma desde antes dos tempos de Newton até os nossos
dias, pois, ao que se sabe, antes dele formular a lei da gravidade, não há registro de seres
humanos flutuantes. A gravidade existe por si só... é uma coisa e está aí para que nós
possamos estudá-la. Do contrário, o estudo da história está baseado no próprio ser
humano.
Acredito que, se você acompanhou o raciocínio até aqui, já percebeu a grande
diferença entre um caso e outro. Uma coisa é você estudar uma rocha de milhões de anos
que permanecerá a mesma por, provavelmente, outros milhões e milhões de anos. Outra
coisa é você estudar o ser humano e suas ações; tentando dar conta de toda a complexidade
de sociedades passadas.
Quando um historiador vai falar sobre o passado, ele não pode falar com base
naquilo que ele imagina ser o passado. Ele precisa falar com base nas informações
verdadeiras que ele tem sobre esse passado. Essas informações são conseguidas pela
pesquisa que tem como base a busca de fontes. Fontes são “fragmentos” do passado. Nós
conhecemos a sociedade do Egito Antigo porque pequenas coisas que eram usadas na
época (desde jarros de cerâmica até as grandes pirâmides) sobreviveram por todo esse
tempo e conseguiram nos dar o testemunho de que uma sociedade como a egípcia existiu
há, pelo menos, 7.000 anos antes da era cristã.
Acontece que estamos falando de uma sociedade que deixou de existir há mais de
dois mil anos (século III a.c., quando o Egito é conquistado por Alexandre, o Grande).
Isso significa que, aquilo que “sobreviveu” desse longo passado não é capaz de nos dar
todas as informações necessárias para que os historiadores consigam fazer um bom
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“retrato” da sociedade do Egito Antigo. Toda informação que temos ainda é pouca. Aí é
que entra a capacidade do cientista de formular hipóteses. Com as poucas informações
que ele tem a seu dispor, o bom historiador é aquele que consegue “imaginar”; que
consegue “supor”, respostas mais apropriadas e completas para a sociedade que ele
analisa.
Vamos pegar um exemplo do próprio Egito Antigo. Existe um objeto arqueológico
que se chama “Pedra de Palermo”. É uma rocha talhada que contém hieróglifos que
contam sobre todos os faraós do Egito desde 2500 a. c. Acontece que essa rocha não
chegou completa até os dias de hoje. Ela se quebrou e muitos pedaços foram perdidos.
Dessa forma, nós temos informações parciais dos faraós que foram inseridos nessa pedra,
porque ela inteira não conseguiu chegar aos nossos dias.

Além deste problema, nós temos um outro. É sobre o


modo como a história dos faraós está contada na pedra. Para os egípcios, o tempo dos
faraós não era exatamente o mesmo que o tempo da natureza. Ou seja, de acordo com a
sociedade egípcia, a vida de um único faraó representa toda uma era. Quando esse faraó
morria, tinha início outra era totalmente nova, começando do zero. Para vocês entenderem
melhor, na prática funcionou assim: A pedra relata o ano 1 do faraó X que chega ao poder.
Ela relata os seus feitos e como ele governou o Egito no ano 1, ano 2, ano 3, ano 4 e assim
sucessivamente. Quando esse faraó morre, acaba a sua era. Quando vem outro faraó, Y,
começa uma nova era a partir do ano 1, repetindo um novo ciclo (ano 1, 2, 3, 4) até a
morte deste outro faraó. Dessa forma, fica difícil você colocar os governos em ordem
cronológica, porque as informações oferecidas pela pedra não estão na sequência dos anos
e, mais ainda, porque você não tem a pedra inteira a seu dispor. Se você tivesse todos os
faraós e todos os anos relatados, seria possível alinhar os anos conforme a vida e morte
de um faraó depois do outro.
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Mas e quando a pedra acaba e você sabe que existe outro faraó, mas não sabe por
quanto tempo ele viveu e, consequentemente, durou o seu reinado? E quando a pedra
começa a falar de um faraó sendo que o faraó que o antecedeu estava num pedaço de
pedra que se perdeu ao longo do tempo e que não conhecemos hoje? Como completar
essa parte importante da história política do Egito Antigo sem termos acesso às
informações necessárias para isso?
Em momentos como esse é que o historiador precisa aguçar a sua formulação de
hipóteses. A pedra não nos fornece a informação precisa, mas existem relatos de feitos
faraônicos em outros documentos: Heródoto, (o homem que ficou conhecido como o “Pai
da história”, por ter sido a primeira pessoa a escrever um livro dedicado a contar os
grandes feitos dos povos que ele chegou a conhecer) nos fornece algumas informações
importantes sobre os egípcios. Além de Heródoto, chegaram até nós relatos literários
vindos diretamente do Egito faraônico. Por mais que sejam contos literários, a partir da
comparação de informações e das hipóteses levantadas, os historiadores conseguem ter
uma noção mais geral da sociedade egípcia, mesmo sem as informações precisas que eles
teriam, caso a Pedra de Palermo estivesse completa.
O Egito Antigo também teve seu próprio historiador. Conhecido como “Manetão”,
ele nos forneceu o plano geral da história dos faraós, mas suas informações também
chegaram ao presente de forma incompleta. Também vale mencionar que a Bíblia
funciona como fonte de informação, uma vez que, nas histórias que conta, o povo do
Egito possui forte participação. O trabalho consiste em cruzar e analisar todas essas fontes
de informação para supor qual seria o melhor relato sobre a vida política dos faraós no
Egito. Funciona quase como um trabalho de detetive.
Assim, portanto, vai avançado o conhecimento que dispomos das sociedades
antigas, em especial do Egito Antigo. Muitas informações ainda estão faltando, mas os
historiadores partem de tudo aquilo que eles conseguem coletar para conseguirem fazer
hipóteses que são mais ou menos verdadeiras, a depender da capacidade técnica que ele
tem de análise das coisas e de como ele consegue “convencer” a comunidade científica
de historiadores de que a sua hipótese é a mais adequada para responder ao problema.
É, finalmente, este o ponto mais importante que temos para justificar não só os
estudos sobre a sociedade do Egito Antigo, mas também justificar o porquê de estudarmos
o Egito Antigo em sala de aula. O que vocês, alunos de primeiro ano do ensino médio,
têm a ver com essa história toda? Onde importa, para vocês, ter conhecimento sobre a
história do Egito Antigo? Como nós já havíamos mencionado, as hipóteses levantadas
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sobre uma determinada pesquisa precisam ser “aceitas”; precisam ser “levadas a sério”
pela comunidade científica. Acontece que essas comunidade é feita por pessoas. Apesar
de serem técnicos e dominarem um conhecimento específico, eles, definitivamente, não
são infalíveis.
Quando nós falamos de história, as hipóteses levantadas dependem não só do
conhecimento técnico que o historiador tem, mas também do modo de pensar da
sociedade em que ele vive. Se pensarmos melhor sobre isso, conseguiremos entender um
problema social que ainda diz respeito ao nosso tempo e que repercutiu nos estudos sobre
o Egito Antigo. Até hoje se discute muito sobre a origem étnica dos egípcios. Eles eram
negros ou brancos? Essa pergunta pode parecer desimportante, mas ela é fundamental
para compreendermos os efeitos da escravidão e do racismo no pensamento das pessoas,
inclusive dos cientistas.
Sobre esse assunto é que se dedica o primeiro capítulo do segundo volume da
coleção de livros denominada “História Geral da África”. Neste primeiro capítulo do
livro, o professor Cheikh Anta Diop elabora um verdadeiro trabalho de cientista e recolhe
uma série de evidências que os levam a defender a origem negra do povo egípcio. Antes
de verificarmos quais são seus argumentos, vejamos como os cientistas defendiam a
origem branca do povo egípcio, mesmo se tratando de um território localizado no
continente africano.

Como vocês podem observar, por


meio deste mapa, o Egito fica às margens do Mar Mediterrâneo. Esse mar também banha
uma parte da Europa e uma parte da Ásia. É como se fosse uma grande bacia de água
capaz de ligar os três continentes. Os cientistas que defendem a origem branca do Egito
dizem que o Mar Mediterrâneo serviu como uma forma de ligar essa parte da África com
a Europa e com a Ásia. Por outro lado, eles afirmam que era praticamente impossível os
outros povos africanos (os povos negros) chegarem até o Egito porque, para conseguir,
eles precisavam atravessar o deserto do Saara. Eles acreditam que a travessia deste deserto
impedia essa chegada. Seguindo esse raciocínio, nós temos, então, a ideia de que os povo
negros da África não conseguiam chegar ao Egito ao mesmo tempo em que os povos
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Europeus tinham acesso a essa região pelo mar. Logo, o mais provável era que o povo
egípcio fosse branco.
Acontece que esse raciocínio desconsidera algumas questões muito importantes.
A primeira é de que, atualmente, a ciência considera como mais provável a hipótese da
origem “monogenética” do ser humano. Isso significa dizer que o ser humano, do jeito
que conhecemos hoje, teve uma única origem em um único lugar e que, depois de formado
é que ele foi sair para povoar outros lugares, se diferenciando fisicamente de acordo com
a geografia de cada lugar ocupado. Além de se admitir a origem única do ser humano, os
estudos têm indicado que essa origem se localiza no continente africano e já como um ser
humano de aparência física negra. Então, essa é a primeira questão: se a ciência admite
que os primeiros seres humanos são negros e originados na África e que, posteriormente,
foram migrando até povoar todas as regiões do mundo, atravessar o Saara para ocupar a
região do Egito não seria um desafio tão grande quanto o que os defensores da origem
branca do Egito alegam.
Além disso, sabemos que, antes de ser um deserto, o Saara era uma região úmida
de savana, com um território muito propício para a caça e coleta de frutas e outros
alimentos. Estamos falando de mais de 7.000 anos antes da era cristã. A formação do
deserto do Saara foi muito lenta, levando milênios. Os povos africanos tinham livre
trânsito na área e sobreviviam facilmente por lá. É só quando essa região vai se tornando
deserto que esses povos vão se concentrando cada vez mais próximos do Rio Nilo, que
percorre todo o Egito. Ou seja, baseado nessas duas questões, é mais fácil supor que a
origem dos egípcios seja negra/africana do que branca.
Acontece que esses dois dados são muito recentes e a história de que o povo do
Egito era branco prevaleceu ao pesar a questão de que o Egito foi, de fato, um território
que proporcionou uma mistura de raças. Porém, ainda assim é possível perceber que essa
história, a de que o povo do Egito era branco, não era só uma questão científica. Era
também uma questão ideológica. As ciências naturais do século XIX, e até mesmo do
início do século XX, estavam voltadas para estudar o ser humano de acordo com
diferentes raças. Eles julgavam ser possível definir se uma pessoa era boa ou má; se era
inteligente ou burra; se era trabalhadora ou preguiçosa apenas pelo estudo das
características físicas de uma pessoa e de sua raça. Bom... Adivinhem só qual era a raça
burra, preguiçosa e má? Isso tudo tinha um objetivo: Manter a escravidão sem sentir
“culpa” por isso. No geral, esses estudos e teorias sobre as raças tinham uma função:
defender que apenas o branco era um ser humano completo e, portanto, apenas ele tinha
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o direito da liberdade. Tal como um animal, não há de se falar em liberdade para os


negros. “São uns selvagens” ...
Seguindo esse raciocínio, o Egito era uma grande “pedra no sapato” para quem
defendia que os negros eram animais e não humanos. Como podia um povo selvagem;
um bando de animais, fazer parte da origem de coisas tão grandiosas quanto as pirâmides
e levantar uma civilização tão poderosa quanto foi o Egito dos faraós; contendo relatos
bíblicos, literários e históricos de um povo de tamanha grandeza? Como os Europeus
poderiam estar autorizados a escravizar um povo com base na defesa de que eles não eram
humanos se esse mesmo povo mostrava um passado de glória?
Sobre essa questão, o professor Cheikh Anta Diop nos mostra o relato de um
cientista que viajou para o Egito no ano de 1783 e explorou a região até 1785. Estamos,
portanto, falando do século XVIII, período em que a escravidão do negro pelo Europeu
estava a plenos vapores. Ao refletir sobre sua viagem, o cientista em questão, chamado
Constantin François, ou o “Conde de Vonley”, levanta argumentos que o levam a
acreditar na origem negra dos egípcios. Sobre isso, ele diz o seguinte:

Todos eles têm faces balofas, olhos inchados e lábios grossos, em uma
palavra, rostos realmente mulatos. Fiquei tentado a atribuir essas
características ao clima, até que, visitando a Esfinge e olhando para ela,
percebi a pista para a solução do enigma. Completando essa cabeça,
cujos traços são todos caracteristicamente negros, lembrei-me da
conhecida passagem de Heródoto: ‘De minha parte, considero os
Kolchu uma colônia do Egito porque, como os egípcios, eles têm a pele
negra e o cabelo crespo’. Em outras palavras, os antigos egípcios eram
verdadeiramente negros, da mesma matriz racial que os povos
autóctones da África; a partir desse dado, pode-se explicar como a raça
egípcia, depois de alguns séculos de miscigenação com sangue romano
e grego, perdeu a coloração original completamente negra, mas reteve
a marca de sua configuração. É mesmo possível aplicar essa observação
de maneira ampla, e afirmar, em princípio, que a fisionomia é uma
espécie de documento, utilizável em muitos casos para discutir ou
elucidar os indícios da história sobre a origem dos povos...

Como é possível perceber, o Conde de Vonley nos fornece informações que são
favoráveis ao argumento de que o povo egípcio é de origem negra muito antes da ciência
cogitar a origem monogenética do ser humano e, também, muito antes de termos
conhecimento sobre os períodos úmidos da região do Saara. Ele faz o básico para um
historiador: consegue juntar as informações que chegam até ele e, a partir delas, formula
uma hipótese. Como tudo indica, inclusive, a hipótese por ele levantada no século XVIII
é mais próxima da realidade do que a hipótese de uma origem branca do povo egípcio,
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que encontrou defensores até, pelo menos, a segunda metade do século passado e que,
mesmo hoje, ainda está longe de ter um “veredicto definitivo” sobre o assunto. E ele ainda
vai além... Depois de considerar como forte a hipótese sobre a origem negra do povo
egípcio, o Conde de Vonley afirma:

Mas, voltando ao Egito, sua contribuição para a história fornece muitos


temas para a reflexão filosófica. Que temas importantes para meditação:
a atual barbárie e ignorância dos coptas1, considerados como tendo
nascido do gênio dos egípcios e dos gregos; o fato de esta raça de
negros, que hoje são escravos e objeto de nosso menosprezo, ser a
mesma a quem devemos nossa arte, nossas ciências e mesmo o uso da
palavra escrita; e, finalmente, o fato de, entre os povos que pretendem
ser os maiores amigos da liberdade e da humanidade, ter-se sancionado
a escravidão mais bárbara e questionado se os negros teriam cérebros
da mesma qualidade que os cérebros dos brancos!

A partir da constatação de sua hipótese histórica (a de que os egípcios são de


origem negra), Vonley faz uma crítica clara e direta, chamando essa crítica de uma
reflexão filosófica: “Como nós, Europeus, temos coragem de escravizar dessa forma um
povo com uma contribuição histórica tão rica? Um povo que nos influenciou nas artes, na
cultura e na escrita... Como ainda podemos negar que eles são seres humanos tão capazes
como nós? Como ainda escravizamos e humilhamos esses povos ao mesmo tempo em
que afirmamos pertencer à “terra da liberdade”?
Se considerarmos que a escravidão foi muito além do século XVIII e atravessou
o século XIX até o seu final, podemos considerar que a reflexão filosófica do Conde de
Vonley foi completamente ignorada. Por outro lado, se considerarmos sua hipótese
histórica, veremos que ela foi negada.
Nesse ponto da questão, já é muito difícil separar o que é o fato verificável daquilo
que é ideologia, porque o Egito, certamente, foi palco de uma grande mistura de diferentes
etnias. O problema é que negou-se, por muito tempo, o vínculo efetivo que (tudo indica)
o Egito possuiu com o restante do continente africano, funcionando como um exemplo
da rica cultura negra do continente. O professor Cheikh Anta Diop, como já falamos,
levantou mais uma série de informações que advogam a favor dessa ligação negra dos
egípcios. Vejamos algumas delas:

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Coptas são os povos egípcios que se converteram ao cristianismo. Hoje eles são maioria no Egito.
No texto, o autor identifica os Coptas como originados dos negros egípcios.
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- Antropologia Física: a análise de crânios e esqueletos aponta para a


predominância de tipos físicos negros em relação a brancos por quase toda história do
Egito. Além disso, as múmias fornecem melanina o suficiente para uma análise que
determine se o corpo, quando vivo, era branco ou negro. O professor Diop relata que foi
obrigado a recolher os estudos que faziam apenas as análises de crânios e esqueletos,
porque as amostras de múmias necessárias para o estudo de melanina não foram cedidas
a ele para estudo, mesmo tendo solicitado insistentemente. A partir das informações
limitadas a que teve acesso, portanto, ele sustenta que, por mais que a mistura fosse uma
realidade no Egito, a predominância dos mortos negros pode significar maioria da
população negra.

- Padrão linguístico: Por meio da análise filológica (estudo das línguas antigas),
o professor Diop verificou um padrão na língua dos povos negros africanos de hoje que
é similar e, pode-se dizer, derivado dos padrões da língua egípcia do tempo dos faraós. A
partir dessa familiaridade entre as línguas, podemos afirmar que é provável que todos
esses povos mantiveram contato entre si em algum momento da história; tendo um
influenciado os modos de falar do outro e vice-versa.

- Representação dos faraós: Evidências arqueológicas recolhidas pelo professor


Diop mostram que os faraós eram claramente retratados segundo os tipos físicos de um
negro (lábios grossos, nariz achatado, etc.). Para o professor Diop, como os próprios
faraós eram retratados como negros, é possível afirmar que a mistura entre os povos
africanos, europeus e asiáticos (proporcionada pelo Mar Mediterrâneo) não significou que
havia alguma relação entre cor de pele e classe social, sendo um faraó negro algo normal
e muito respeitado. Eis alguns exemplos em imagens:
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A partir dessas e outras análises, o professor Diop defende que, em sua origem, o
povo egípcio é tão negro quanto qualquer outro povo africano e que a mistura veio para
contribuir e não para criar uma sociedade branca no continente africano. Além disso, ele
ainda afirma que houve uma grande “troca cultural” por meio dos possíveis contatos entre
o Egito e o restante do continente africano. Como o Egito era uma civilização muito
avançada, ele considera que não é exagero colocar, no contexto africano, o Egito como
uma “matriz cultural”; ou seja, cumprindo uma função semelhante à que a Grécia cumpre
para a Europa. Sobre isso, ele nos afirma:

A estrutura da realeza africana, em que o rei é morto, real ou


simbolicamente, depois de um reinado de duração variável – em torno
de oito anos –, lembra a cerimônia de regeneração do faraó, através da
festa de Sed. Os ritos de circuncisão já mencionados, o totemismo, as
cosmogonias, a arquitetura, os instrumentos musicais, etc. também são
reminiscências do Egito na cultura da África Negra. A Antiguidade
egípcia é, para a cultura africana, o que é a Antiguidade greco-romana
para a cultura ocidental. A constituição de um corpus de ciências
humanas africanas deve ter isso como base.

Ao chamar a atenção para essa questão, podemos fazer a seguinte reflexão: Por
que, quando falamos de Grécia e Roma nas escolas, falamos como se fossem civilizações
que deram origem a coisas e costumes ainda presentes na nossa vida (como a democracia,
a república, a filosofia, a matemática) e, quando falamos de Egito, parece que tratamos
de uma sociedade perdida e que só nos interessa por pura curiosidade?
As soluções de engenharia que envolvem as construções das pirâmides são
incríveis! Há registros arqueológicos que mostram que os egípcios tinham uma
matemática muito bem desenvolvida antes de qualquer povo da Grécia ou Roma. O
legado cultural egípcio envolve literatura, mitologia, política e tantas outras coisas que
são tão importantes quanto os legados culturais de Grécia e Roma, tendo o Egito,
inclusive, influenciado esses dois últimos.
Essa é a importância de mostrarmos o Egito Antigo em sala de aula. Tal como
Grécia e Roma, estamos falando de uma sociedade com uma contribuição inegável para
diversos povos do presente, incluindo nós. Porém, diferente de Grécia e Roma, a história
do Egito foi desligada do continente africano, negando ao povo negro o valor de terem
legado ao mundo uma contribuição dessas. Além desta importância, é o próprio avanço
científico que possibilitou reconhecer o valor do continente africano e sua contribuição
para a humanidade. Considerar o desafio que foi, para a ciência, sustentar a hipótese de
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que é negra a origem do povo egípcio significa considerar o quão forte é o racismo; capaz
de levar uma comunidade científica inteira a ir contra as evidências. Nesse sentido,
afirmar a origem negra do povo egípcio requer, também, afirmar um compromisso com
a verdade dos fatos.
Por isso mesmo, considero muito importante reproduzir para você, aluno(a), os
dois últimos parágrafos do texto do professor Diop. Para que vocês percebam o quão
importante é superarmos as limitações do racismo e como a ciência pode nos ajudar a
sermos fraternos com os povos de origem africana, visto que o racismo só funcionou para
massacrar-nos:

Este estudo torna necessário que se reescreva a história da humanidade


a partir de um ponto de vista mais científico, levando em conta o
componente negro-africano, que foi, por longo tempo, preponderante.
Assim, é, doravante, possível constituir um corpus de ciências humanas
negro-africanas apoiado em bases históricas sólidas, e não suspenso no
ar. Finalmente, se é fato que só a verdade é revolucionária, deve-se
acrescentar que só um rapprochement realizado com base na verdade
será duradouro. Não se contribui para a causa do progresso humano
lançando um véu sobre os fatos. A redescoberta do verdadeiro passado
dos povos africanos não deverá ser um fator de divisão, mas contribuir
para uni-los, todos e cada um, estreitando seus laços de norte a sul do
continente, permitindo-lhes realizar, juntos, uma nova missão histórica
para o bem da humanidade, e isto em consonância com os ideais da
Unesco.

Depois de toda essa reflexão sobre os motivos pelos quais nós estudamos o Egito
Antigo numa escola pública do Mato Grosso, e sobre como esse estudo deve servir para
garantir a união fraterna de todos os povos e culturas, ainda precisamos nos perguntar:
Ok... Mas como nós vamos estudar a civilização Egípcia?
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DEZEMBRO:
Como estudar a civilização egípcia? Essa, com certeza, é uma pergunta muito
complexa, porque existem mil e uma formas diferentes de se estudar essa história. Por
causa disso, nós devemos fazer uma escolha. Isso significa, literalmente, escolher o que
vai ou não ser apresentado da história do Egito para você, aluno(a). Essa escolha não deve
ser feita por mero capricho. Ela deve ter critérios básicos para que o “pedaço” da história
do Egito que iremos contar para vocês seja um pedaço que faça sentido... Que consiga
levar vocês a pensarem sobre as semelhanças e diferenças entre uma sociedade tão longe
(no tempo e no espaço) quanto a sociedade do Antigo Egito e a nossa própria sociedade.
Pensando nisso é que iniciamos os nossos estudos a partir das relações entre
civilização e propriedade. Ou seja: a história do Egito que nos importa agora... A história
do Egito que achamos que seja interessante contar para vocês, é a história de como um
grupo qualquer de pessoas conseguiu levantar uma grande civilização. A partir dessa
questão, iremos mostrar que a dinâmica do trabalho e da cultura humanas podem ser
muito semelhantes entre povos aparentemente diferentes.
Primeiramente, devemos ter isso bem claro: Quando falamos em propriedade,
estamos falando no resultado direto (material) da relação do ser humano com o lugar no
qual ele vive; neste caso, no Egito de cerca de 7.000 anos antes da era cristã. Justamente
por isso, devemos ter uma noção de como é a região que estamos falando em termos de
geografia. Vejamos, portanto, dois mapas da região do Egito. O primeiro deles mostra o
Egito de forma ampla, ou seja, no contexto do continente africano. O segundo deles é um
mapa mais centralizado no Egito como uma região específica, às margens do rio Nilo e
banhado pelo Mar Mediterrâneo:

Mapa 1: Mapa 2:
No mapa 1, vocês poderão perceber que o Egito se encontra a nordeste do continente
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africano. Além disso, ele tem uma ligação por terra com o que chamamos hoje de “Oriente
Médio” (Israel, Palestina, Jordânia, etc.). Além dessa ligação por terra, o Egito é banhado
pelo Mar Mediterrâneo que, como já dissemos, foi o que possibilitou o intenso contato
do Egito com outros povos.
No mapa 2, o Egito já aparece centralizado. Mais acima, onde está escrito a
palavra “Delta”, nós temos o “Delta do Rio Nilo”. Deu-se esse nome porque, quando
chega nessa parte, o Rio Nilo vai se ramificando até desembocar no Mar Mediterrâneo.
Portanto, o Rio Nilo não se encontra com o mar por uma única fonte, mas por várias
ramificações. É como se o rio viesse único e, nesse ponto, acontecesse alguma coisa que
fizesse ele se dividir em muitos filetes (chamados de canais). Quando olhamos todos esses
filetes em conjunto (como no mapa), percebemos que eles formam um triângulo. Daí o
nome “Delta” (letra do alfabeto grego cujo símbolo é um triângulo). Para entendermos
melhor como foi o processo de formação da civilização egípcia, uma vez localizada,
precisamos compreender a dinâmica geográfica dessa região.
O continente africano passou por algumas mudanças climáticas ao longo de
milênios. Como eu já havia mencionado, duas dessas mudanças compreendem uma fase
“úmida” e uma outra fase “desértica” numa faixa que vai de Leste a Oeste do continente,
terminando justamente no Egito. Com a sociedade egípcia já formada, nós temos uma
fase úmida que vai de 3.300 a. c. até 2400 a. c. Ou seja, por 900 anos, a sociedade egípcia
viveu num clima favorável; com as atividades baseadas na criação de gado, na caça de
outros animais e tendo a agricultura como uma atividade a mais; como um complemento
na alimentação do povo.
Posterior a esse ano de 2400 a. c., começa o chamado período seco, no qual haverá
a formação climática desta região da forma como conhecemos hoje. Neste novo cenário,
nós temos 3 grandes faixas no continente: a do deserto do Saara; uma faixa intermediária,
denominada Sahel e, mais ao sul, as savanas. O mapa abaixo contextualiza o continente
africano de acordo com essa geografia:

Uma vez formado, o deserto do Saara


impossibilita a permanência de grupos que antes eram esparsos e que viviam da criação
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de gado, da caça e de outros recursos. O deserto do Saara é realmente algo impressionante.


Se você ainda não conhece, vale a pena procurar sobre ele no Google ou no Youtube.
Assim, você terá uma noção maior do que ocorreu nesse momento em que, de repente,
parou de chover; os pastos foram secando; a vegetação morrendo e a vida estável se
tornando impossível.
Com essa mudança, os diferentes grupos foram se espalhando pelo continente e
muitos deles se concentraram numa região que já era habitada, mas que passou a se tornar
cada vez mais populosa: a das margens do Rio Nilo. O Nilo é estratégico porque se trata
de um rio gigantesco no meio do segundo maior deserto do mundo! A partir desse
momento, ele é a fonte de vida para todas as pessoas que antes estavam mais espalhadas
por essa faixa territorial. Mas o rio possuía uma dinâmica própria. E é essa dinâmica que
nos interessa por agora.
Como nós já falamos na apostila de outubro, a civilização é o resultado direto da
relação do ser humano com a natureza. Essa relação está alicerçada na noção de
propriedade, que é o fruto direto do trabalho. Todo ser humano que trabalha, está
produzindo uma propriedade. Mas o trabalho do ser humano varia conforme o lugar e o
tempo em que ele está inserido. Como nós acabamos de ver, quando o clima dessa região
era úmido, a base do trabalho da população era a criação de gado e outros animais. Uma
vez o clima se tornando seco e desértico, essa população espalhada passa a se concentrar
nas margens do Rio Nilo. Nesse momento, o próprio rio é a fonte de vida das pessoas e
era necessário que essas pessoas conseguissem se adaptar a essa nova forma de vida. Os
Egípcios antigos se adaptaram da mesma forma como todos os seres humanos se adaptam
à natureza: por meio do trabalho.
Vamos explicar isso melhor: Se os animais que eram criados na região foram
morrendo, significa que a agricultura, que antes era apenas um complemento, se tornou a
base da alimentação dessas pessoas. Dessa forma, as regiões que ficavam às margens do
rio tinham mais valor, pois nelas se plantaria para se ter o que comer. Entretanto, a questão
não era tão simples. Não era apenas chegar ali na margem do rio e começar a plantar. Era
preciso compreender como o rio e a terra que ficava às margens funcionavam.
Entre os meses de fevereiro e março, o Rio Nilo ficava mais baixo, ocupando um
espaço menor. Nos meses de agosto e setembro, o rio enxia, espalhando suas águas por
uma parte de terra muito maior. Depois de voltar ao seu nível normal, as terras que
estavam submersas ficavam com os resíduos orgânicos que eram levados pelo rio, além
de reter umidade (afinal de contas, elas estavam abaixo de um rio gigantesco). É só nesse
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momento (depois que as águas do Rio Nilo voltam ao seu nível normal) que as terras
ficam férteis e proporcionam a agricultura. Os Egípcios tiveram que aprender como o rio
funcionava para conseguirem sobreviver.
Essa dinâmica das cheias do Rio Nilo forçava a população a disciplinar o seu
trabalho de acordo com os momentos propícios. Ou seja: era necessário esperar o rio
baixar para começar a plantar. E esse plantio tinha data marcada para terminar, pois
deveria ser feita a colheita antes da próxima cheia. Conseguem perceber como existia aí
uma relação entre o trabalho humano e uma imposição da natureza? Por mais que o ser
humano fosse capaz de produzir muitas coisas, ele tinha que se adaptar a essa imposição.
Porém, essa relação fica ainda mais interessante quando nós conseguimos
observar que a capacidade humana de aprender com a experiência e de se reinventar a
partir dela é uma das marcas fundamentais da civilização egípcia. As cheias do Nilo eram
periódicas e constantes. Mas isso não quer dizer que elas eram cheias uniformes (ou seja,
que sempre enchiam com a mesma intensidade). Havia anos em que a cheia mal cobria a
terra e não conseguia tornar fértil sequer os poucos lugares em que essa água alcançava.
Havia outros anos em que a cheia era tão violenta que extrapolava as terras agricultáveis
e inundava vilarejos, levando casas e matando famílias inteiras.
Diante dessa imprevisibilidade das cheias do Nilo, a grande questão era: como se
preparar melhor para sobreviver numa condição tão incerta e extrema quanto essa? Ficar
muito à margem do rio poderia significar ser tragado por ele. Ficar muito distante do rio
poderia significar estar cara a cara com o temível deserto do Saara. Como resolver essa
questão? A partir dessa dificuldade prática, os egípcios desenvolveram um grande sistema
de engenharia. As pirâmides são uma parte ritualística dessa grandiosa engenharia. Outra
parte, tão grandiosa quanto e fundamental para a sobrevivência da sociedade, era a dos
canais e aquedutos.
Por meio dessas obras, os egípcios “domesticaram” o Rio Nilo. Os canais
representam, mais uma vez, essa relação entre a natureza e o trabalho humano. Por meio
da construção de grandes tubos e bacias enormes, os egípcios aproveitavam as cheias do
Nilo para levar a água até lugares onde, pela cheia natural, o rio não alcançava e, melhor
ainda, de modo controlado; ou seja, sem resultar em inundações catastróficas. Por outro
lado, quando o rio não enchia muito, os egípcios desenvolveram métodos para bombear
as águas do rio e, por meio da ação humana, levar as águas até onde elas deveriam ter ido
em caso de uma cheia regular.
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Outra questão importante: toda essa engenharia envolvia um trabalho


essencialmente coletivo. Manipular as águas de um rio não é tarefa fácil sequer para nós,
com toda a tecnologia que dispomos. Imagine isso há 2.000 anos antes da era cristã... O
esforço envolvido era gigante e o número de trabalhadores necessários era alto. Dessa
forma, todas as pessoas que plantavam, enquanto esperavam a plantação crescer,
deveriam trabalhar nas obras, fazendo a manutenção necessária para esperar a próxima
cheia. Além do mais, como estamos falando de uma sociedade construída às margens de
um grande rio e do Mar Mediterrâneo, não é difícil imaginar que havia, no Egito Antigo,
um uso muito importante das águas para navegação, o que envolve transporte de produtos
e uma grande logística das diferentes regiões do reino.
Como se vê, o Egito Antigo vivia em função do trabalho gerado pela sua relação
com o Rio Nilo. E isso é muito importante, pois é daí que vem toda a questão cultural que
envolve os faraós, a cultura egípcia e sua religião. Naquela região e naquele momento, a
propriedade era algo essencialmente coletivo. Não existia uma pessoa que se dedicava a
um negócio com um propósito comercial individual. Não existia um empresário que
construísse fortuna, como se fala hoje em dia, “do zero”. Todo o trabalho, no Egito
Antigo, envolvia um planejamento coletivo para que a sociedade pudesse sobreviver
como um todo.
A figura do faraó envolvia, justamente, um governo central que conseguisse
administrar o trabalho de todos em função da sociedade. Além de tudo isso que já falamos
para que os egípcios conseguissem “domesticar” o Rio Nilo, havia a necessidade de
produzir e viver um ano inteiro com o resultado dessa produção. Até que o rio voltasse a
encher, era preciso se precaver para sobreviver. Uma das coisas que os egípcios fizeram
para lidar com isso foi a criação de grandes galpões de estoques. De todo o produto dos
trabalhadores do campo, uma parte ficava com as famílias e a outra ia para o governo,
como se fossem impostos. O governo central armazenava toda essa produção (na maioria,
grãos de cevada, com os quais se faziam pão e cerveja) e ficava responsável por distribuir
nos momentos em que havia falta de comida.
Todo o governo Egípcio é resultado de uma longa aprendizagem que envolvia
domesticar e sobreviver na região do Rio Nilo. A organização social, a ideia de que todos
deveriam trabalhar e que o fruto do trabalho era coletivo; ou seja, era necessário à
sobrevivência da sociedade, está intimamente ligado a esse aprendizado.
Com isso, não queremos afirmar que a sociedade egípcia é melhor ou pior do que
a nossa. Estamos apenas ressaltando uma noção diferente de se viver e que pode nos
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ajudar a compreender melhor o nosso presente. Como seria a vida se tivéssemos um senso
coletivo de trabalho mais aguçado? Será que significaria nossa salvação ou nossa ruína?
Impossível saber com precisão. O certo, contudo, é que estamos olhando para uma forma
diferente de propriedade, onde o que se produz é produzido para toda a sociedade.
Também é preciso deixar claro que essa questão não significou o desenvolvimento
de uma sociedade igualitária. Muito pelo contrário. A ideia de um governo central, nas
mãos do faraó, desenvolveu uma rígida hierarquia social. Quando falamos em hierarquia
social, estamos destacando a ideia de que cada pessoa exerce uma função específica na
sociedade e que essa função vai revelar qual é o seu destaque nessa sociedade. Por
exemplo, além do faraó, uma figura social muito importante era a do escriba. O grupo
social dos escribas recebe esse nome porque era o único grupo, no antigo Egito, que
dominava a escrita.
Pense um pouco: o valor da escrita numa sociedade que precisa administrar tantos
tipos diferentes de trabalho (plantação, obras públicas, armazenamento e distribuição de
grãos, etc.) é muito grande. A escrita era o registro de toda a vida produtiva dessa
sociedade. Em função disso, os escribas eram pessoas privilegiadas naquele reino. Eles
tinham o poder de controlar toda a sociedade a partir da sua relação íntima com o faraó e
com a administração real. Eram também os escribas que registravam e que professavam
os ritos religiosos. Portanto, eles tinham em suas mãos o poder econômico e religioso.
Como esse poder era um grande privilégio e como a escrita era a chave para esse poder,
não era qualquer um que aprendia a ler e escrever. Em geral, você nascer numa família
de escribas era o que determinava se você seria um privilegiado ou não. Assim como
nascer numa família de camponeses determinava que você seria um camponês para o
resto de sua vida.
Esse é um breve panorama do que consideramos ser importante mencionar a
respeito da história do Egito. Trata-se da história da construção de uma grande civilização
a partir de uma relação muito interessante com a natureza. As cheias do Nilo coordenaram
a vida dessas pessoas. Por outro lado, elas não se renderam aos caprichos das
irregularidades das cheias do Nilo e souberam, com grande precisam, fazer o rio servir a
eles melhor do que a própria natureza era capaz. Não fosse essa capacidade do ser humano
(a de lidar com a natureza), não haveríamos construídos civilizações tão grandiosas
quanto a do Antigo Egito.
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ATIVIDADE:

Acredito que já ficou claro: a relação entre o ser humano e o lugar em que ele vive
vai nos dizer algo sobre o tipo de propriedade que ele constrói e a sociedade que vai se
formando. Essa relação é comum a todos os seres humanos. Não foi diferente com nós,
que vivemos às margens do Rio Cuiabá. Para pensarmos um pouco sobre isso, a atividade
desse mês consiste no seguinte: Vocês irão ler a reportagem sobre o Rio Cuiabá que eu
reproduzirei abaixo. Depois de lida, vocês irão pensar um pouco sobre e escrever um
texto de, no mínimo, 30 linhas sobre as semelhanças e diferenças nos usos da terra e
na relação entre o ser humano e o ambiente nos casos dos Rios Nilo e Cuiabá.

Os critérios para correção serão: 1 - Clareza na exposição do argumento (coesão


e coerência textual) e 2 - Capacidade de diálogo com as informações trazidas pela
apostila, bem como com a reportagem que é o documento gerador para o tema.

O eterno protagonista da História

Na história da consolidação do território matogrossense, o rio Cuiabá sempre foi


protagonista. De fonte de sustento dos índios paiaguás a principal destino do esgoto de
uma cidade com 800 mil habitantes, o velho rio e sua saga contam três séculos de invasão,
conquista, vida e morte. “Se não houvesse o rio Cuiabá, a tentativa de povoar essa região
teria resultado em desastre”, garante o historiador Lenine de Campos Póvoas, autor de
“História Geral de Mato Grosso”. Segundo ele, toda a conformação territorial do oeste
brasileiro está ligada aos rios. Dois séculos antes da chegada das bandeiras paulistas a
Mato Grosso, já havia espanhóis explorando a região, em busca de rotas mais seguras
rumo ao território peruano. “E o caminho que eles utilizavam era o fluvial”, conta.
Quando vieram, no início do século 18, os paulistas buscavam escravos e ouro. Póvoas
conta que as bandeiras só foram viabilizadas pela existência de uma rota fluvial partindo
de São Paulo rumo ao centro do país. “Em São Paulo, ao contrário dos outros estados do
litoral, os grandes rios caminham da Serra do Mar para o interior, ou seja, eles foram
feitos para ajudar o conquistador”. Saindo do rio Tietê, as expedições geralmente seguiam
pelos rios Pardo, Taquari e Paraguai, rumo a territórios repletos de povos indígenas –
escravos em potencial – e ouro. Repleta de perigos e obstáculos, a jornada durava cerca
de seis meses. Algumas comitivas chegavam a ter 400 pessoas. “Muitos trechos de
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cachoeiras tinham que ser cumpridos a pé, carregando as embarcações nas costas”. O
primeiro a dar notícias sobre esta região foi o bandeirante Antônio Pires de Campos que,
em 1718, explorou o ribeirão Mutuca e o rio Coxipó até o encontro com o Cuiabá.
“Naquela época, o rio, que não era esse esgoto de agora, permitia embarcações grandes,
os chamados batelões”, conta Póvoas. “Mas Pires de Campos não encontrou o ouro, só
índios”. Mais sorte teve Pascoal Moreira Cabral. Em 1719, sua bandeira descobriu ouro
no rio Coxipó, dando partida à ocupação do território mato-grossense. Nascia ali o Arraial
da Forquilha (hoje o distrito de Coxipó do Ouro). Em 1722, uma descoberta mudaria os
rumos da história e o destino do rio Cuiabá. “Miguel Sutil construiu sua casa às margens
do rio Cuiabá. Certo dia, ao ver que faltava açúcar, pediu os índios lhe trouxessem mel.
Eles trouxeram ouro”, conta Póvoas. “Ele havia encontrado uma das maiores jazidas de
ouro de todo o mundo”. Com a descoberta das novas jazidas, a povoação inicial foi
gradativamente se mudando para a região do rio Cuiabá. “A partir do córrego da Prainha,
onde estavam as lavras do Sutil, uma cidade começou a se constituir rumo ao Porto”. Em
condições extremamente desfavoráveis aos colonizadores, os rios fizeram a diferença.
Todo o comércio com São Paulo era feito por meio do Paraguai, o Cuiabá, o Vermelho e
o São Lourenço. “Eram a espinha dorsal de Mato Grosso”, diz Póvoas. Pelo rio Cuiabá,
chegavam escravos, alimentos, remédios e roupas, além de novos exploradores,
interessados não só nas jazidas de ouro, mas nas terras férteis da região do rio abaixo. “O
rio Cuiabá, após suas enchentes, deixava grandes campos fertilizados e propícios à
agricultura. Era um terreno muito produtivo, uma réplica do que acontece no rio Nilo, no
Egito. As beiras do rio foram se povoando nesta época e, mais tarde, surgiriam ali muitos
engenhos de açúcar e fazendas de gado”. Em meados do século 18, já havia indícios de
que aquela ocupação não seria transitória, ajudando a consolidar a porção portuguesa das
terras do “novo mundo”. “Quando o vice-reinado do Prata foi se dividindo (Argentina,
Paraguai e Uruguai), o Brasil já tinha sua unidade garantida, graças aos rios, inclusive o
Cuiabá”, lembra Póvoas. Como meio de comunicação com os grandes centros políticos e
econômicos do litoral, os rios perderam importância no final do século 18. Segundo
Póvoas, a longa duração das expedições fluviais (que só permitiam o abastecimento de
Mato Grosso duas vezes ao ano) e os cada vez mais freqüentes ataques dos índios
paiaguás forçaram os colonizadores a buscar rotas terrestres até o litoral - cortando o
território de Goiás. A assinatura de um tratado bilateral, em 1856, faria novamente
deslanchar a hidrovia do Prata, em franca operação até o início do século 20. Por outro
lado, o desenvolvimento do núcleo urbano começou a exigir mais do rio como fonte de
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água, alimento e via de escoamento dos dejetos. Mais uma vez, o velho Cuiabá
correspondeu, sustentando o desenvolvimento da cidade até os dias de hoje. Para o
historiador, se o rio foi fundamental no período colonial, hoje é ainda mais
imprescindível. “Se não fosse o rio Cuiabá, eu repito, a tentativa de povoar essa região
seria um desastre. Mas estamos nos aproximando de um desastre ainda maior, pois, se
hoje o transporte fluvial não representa mais nada para a cidade, o mesmo não podemos
dizer do abastecimento de água, cuja única fonte é a mesma do tempo dos colonizadores”.
Em 1933, lembra Póvoas, o Rio Cuiabá atingia 1,3 metro no período de maior estiagem.
“Hoje, com a seca ainda começando, ele já está abaixo de zero”, lamenta. “Logo vamos
ter 2 milhões de habitantes em Cuiabá e Várzea Grande. Ao mesmo tempo, os ribeirões
e córregos que alimentam o Cuiabá estão secando. Vai haver água para matar a sede de
toda essa gente?”.

Fonte: http://www.diariodecuiaba.com.br/especial2.php?cod=4&mat=9721
último acesso em 27 de fevereiro de 2019.

A PESQUISA REALIZADA PARA A ELABORAÇÃO DESTE MATERIAL


RECORREU AOS SEGUINTES DOCUMENTOS

História geral da África, II: África antiga / editado por Gamal Mokhtar. – 2.ed. rev. –
Brasília : UNESCO, 2010.
Reportagem especial – Diário de Cuiabá. Disponível em:
http://www.diariodecuiaba.com.br/especial2.php?cod=4&mat=9721 último acesso em
27 de fevereiro de 2019.

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