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Desenredos
Letra a letra, som por som, fui percebendo na minha monótona infância que as
palavras abriam janelas para outras dimensões além da que eu vivia
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Ilustração de Luisa Rivera para a edição comemorativa de 50 anos de Cem anos de solidão | Penguin Random House
21/02/2021
Não recordo muito bem quando comecei a escrever, mas no campo minado da
memória a resposta que me resta é de que foi quase ao mesmo em que
comecei a ler. A palavra viva passou a exercer sobre mim um fascínio quase
místico, o mesmo fascínio que conheci observando os astros ou a vida dos
animais. Letra a letra, som por som, fui percebendo na minha monótona
infância que as palavras abriam janelas para outras dimensões além da que eu
vivia. Elas eram capazes de encurtar distâncias, nomear objetos e lugares que
certamente nunca conhecerei pessoalmente, além de devolver a vida às
personagens que não faziam parte de meu mundo. Então, eu pedia a meu pai
o jornal de domingo – ele certamente excluía as páginas policiais – e ali
descobria palavras e coisas com a sua ajuda ou a de minha mãe. Quando eles
não podiam me explicar, não ficavam aflitos por não saberem responder, mas
me mandavam procurar no dicionário escolar ou nos volumes da Enciclopédia
do Estudante guardados num móvel de jacarandá. Esse oratório se tornou a
minha arca particular, lugar onde eu procurava pelas coisas valiosas da casa.
Além da enciclopédia, minha mãe costumava guardar o doce de jenipapo na
parte mais alta – me obrigando a escalar a peça na sua ausência para pegar
as bolinhas açucaradas.
Anos mais tarde, ao ler os ensaios contidos em Estar vivo, de Tim Ingold,
descobri que os Koyukon, indígenas da região entre os rios Koyuk e Yukon, no
Alasca, nomeiam os animais a partir de sua ação no mundo. O movimento dos
seres, isto é, sua vida, é o que importa para designá-los. Para tanto é preciso
observá-los e capturar a sua essência. O nome do pernilongo poderia ser
traduzido por “pica” – do verbo picar – enquanto o da larva da mosca seria
“venha à vida” – uma referência à metamorfose que sofreria para se tornar uma
mosca adulta. Uma borboleta é chamada de “tremula aqui e ali” e a espécie de
mariposa que se alimenta de tecidos é chamada de “come roupas”. Há uma
certa arbitrariedade na nomenclatura, sendo que o mais importante é o aspecto
relevante da narrativa do encontro entre homem e animal. Assim, poderíamos
dizer que a palavra, o nome que lhe é dado, está contido na sua própria
existência: o animal é o que faz. Para os Koyukon, a classe de palavra capaz
de carregar melhor os significados são os verbos, porque neles estão o
movimento de tudo.
E a palavra deve ser o que diz. Ela captura em si um sentimento, uma história,
a origem de um objeto ou a ação de um ser sobre o mundo. Nela deve estar
contida a vida das coisas e dos seres. Ou seja, elas não são apenas um
adorno que embeleza algo com o objetivo de enganar ou de enfeitiçar quem a
encontra. A palavra é o elo entre a nossa consciência e o entorno, e é assim
que codifica e decodifica o mundo à nossa volta. Ela deve antes se mostrar
plena, e é assim que devemos vivê-la na leitura e na escrita.
ITAMAR VIEIRA
Nasceu em Salvador JUNIOR
(BA), em 1979. É escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela
Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de contos Dias (2012) e A oração do carrasco (2017) e o
romance Torto arado (2019), vencedor do Prêmio Leya.