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itamar vieira junior, 

liberado

Desenredos
Letra a letra, som por som, fui percebendo na minha monótona infância que as
palavras abriam janelas para outras dimensões além da que eu vivia

ITAMAR VIEIRA JUNIOR SALVADOR - BA

# CRÔNICAS, EXCLUSIVO SITE

Ilustração de Luisa Rivera para a edição comemorativa de 50 anos de Cem anos de solidão | Penguin Random House

         

21/02/2021

Não recordo muito bem quando comecei a escrever, mas no campo minado da
memória a resposta que me resta é de que foi quase ao mesmo em que
comecei a ler. A palavra viva passou a exercer sobre mim um fascínio quase
místico, o mesmo fascínio que conheci observando os astros ou a vida dos
animais. Letra a letra, som por som, fui percebendo na minha monótona
infância que as palavras abriam janelas para outras dimensões além da que eu
vivia. Elas eram capazes de encurtar distâncias, nomear objetos e lugares que
certamente nunca conhecerei pessoalmente, além de devolver a vida às
personagens que não faziam parte de meu mundo. Então, eu pedia a meu pai
o jornal de domingo – ele certamente excluía as páginas policiais – e ali
descobria palavras e coisas com a sua ajuda ou a de minha mãe. Quando eles
não podiam me explicar, não ficavam aflitos por não saberem responder, mas
me mandavam procurar no dicionário escolar ou nos volumes da Enciclopédia
do Estudante guardados num móvel de jacarandá. Esse oratório se tornou a
minha arca particular, lugar onde eu procurava pelas coisas valiosas da casa.
Além da enciclopédia, minha mãe costumava guardar o doce de jenipapo na
parte mais alta – me obrigando a escalar a peça na sua ausência para pegar
as bolinhas açucaradas.

A etimologia da palavra “palavra” – do latim parábola, que por sua vez vem do


grego parabolé e significa comparação – tem relação com a sua capacidade de
capturar a vida em algo. Esse mistério de tentar resumir a essência das coisas
em palavras – maximizada pela descoberta da leitura e da escrita – teve em
mim um efeito encantatório. A partir daí não poderia viver desacompanhado do
interesse por elas. Decidi não mais me separar de livros, revistas, de qualquer
coisa que as continha. Poderiam ser as bulas de remédio, ou as folhas de
jornais úmidas que embrulhavam os ramos verdes de coentro, e mesmo as
mensagens escritas nos muros do bairro.

Vez ou outra, na literatura, me vi diante deste mesmo fascínio exercido pela


palavra, não apenas quando se tratava das escolhas textuais dos autores, mas
ao ver sua existência ligada à vital capacidade de nos comunicarmos. Como o
que ocorreria em um mundo sob o risco de perdê-la, por exemplo. Em Cem
anos de solidão, de Gabriel García Márquez, segue-se como sequela da
epidemia de insônia que acometeu os habitantes de Macondo o esquecimento
do nome das coisas. Aureliano encontra uma forma de se defender das
“evasões da memória”. Um dia, procurando a pequena bigorna que utilizava
para laminar metais, se deu conta de que não lembrava mais do nome do
objeto. O pai, José Arcádio, recorda, e para não esquecer, Aureliano o escreve
num pedaço de papel para colar no objeto. Logo depois ele percebe que não
lembrava de quase todos os nomes dos objetos de seu laboratório e pôs-se a
fazer o mesmo. Assim passou aos objetos da casa – mesa, cadeira, cama,
panela – e aos animais e às plantas da casa – vaca, porco, taioba, bananeira.
Percebendo que poderia se esquecer também da utilidade das coisas, passou
a escrever letreiros dizendo qual a finalidade de cada uma delas. O da vaca
dizia o seguinte: “Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para
que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com café e fazer o
café com leite”. O medo de esquecer o leva a fixar um cartaz com o nome da
cidade, “Macondo”, e outro na rua principal, para manter relativa ordem sobre
seus habitantes, “Deus existe”.

Anos mais tarde, ao ler os ensaios contidos em Estar vivo, de Tim Ingold,
descobri que os Koyukon, indígenas da região entre os rios Koyuk e Yukon, no
Alasca, nomeiam os animais a partir de sua ação no mundo. O movimento dos
seres, isto é, sua vida, é o que importa para designá-los. Para tanto é preciso
observá-los e capturar a sua essência. O nome do pernilongo poderia ser
traduzido por “pica” – do verbo picar – enquanto o da larva da mosca seria
“venha à vida” – uma referência à metamorfose que sofreria para se tornar uma
mosca adulta. Uma borboleta é chamada de “tremula aqui e ali” e a espécie de
mariposa que se alimenta de tecidos é chamada de “come roupas”. Há uma
certa arbitrariedade na nomenclatura, sendo que o mais importante é o aspecto
relevante da narrativa do encontro entre homem e animal. Assim, poderíamos
dizer que a palavra, o nome que lhe é dado, está contido na sua própria
existência: o animal é o que faz. Para os Koyukon, a classe de palavra capaz
de carregar melhor os significados são os verbos, porque neles estão o
movimento de tudo.

E a palavra deve ser o que diz. Ela captura em si um sentimento, uma história,
a origem de um objeto ou a ação de um ser sobre o mundo. Nela deve estar
contida a vida das coisas e dos seres. Ou seja, elas não são apenas um
adorno que embeleza algo com o objetivo de enganar ou de enfeitiçar quem a
encontra. A palavra é o elo entre a nossa consciência e o entorno, e é assim
que codifica e decodifica o mundo à nossa volta. Ela deve antes se mostrar
plena, e é assim que devemos vivê-la na leitura e na escrita.
ITAMAR VIEIRA
Nasceu em Salvador JUNIOR
(BA), em 1979. É escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela
Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de contos Dias (2012) e A oração do carrasco (2017) e o
romance Torto arado (2019), vencedor do Prêmio Leya.

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