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“A cena artística audiovisual é múltipla, complexa e “À medida que a era da televisão chega ao fim e a di-

potente! Reunindo um time ímpar de artistas e pensado- mensão reestruturante da internet predomina, as novas
res, o AVXLab organiza o debate sobre as fronteiras e gerações crescem acostumadas a digerir imagens em
singularidades dessa produção, numa publicação que é movimento. Desde o formato tradicional de um filme aos
peça-chave para articulação do setor.” streamings de vídeo e algoritmos que geram simulações
O cinema e seus outros traz uma
Solange Farkas – criadora e diretora da visíveis em computadores, dispositivos móveis ou de
Associação Cultural Videobrasil (SP). perspectiva sobre o audiovisual proporções urbanas, a imagem em movimento influencia

que se expande para além dos o cinema nosso imaginário e afeta nosso modo de comunicação.
Os autores deste livro reuniram uma série de ensaios
“Uma contribuição sensível a uma literatura nacional, por paradigmas industriais do cinema e seus excepcionais que nos ajudam a navegar por esses fluxos

outros
vezes escassa, sobre as ações das tecnologias no campo transbordantes de imagens que nos cercam e acom-
e da televisão, constituindo novos
das artes, com impactos diretos em nossa sociedade no panham diariamente; um guia para o cinema em suas
âmbito pós-digital. As materialidades e imaterialidades meios, formatos, processos, fluxos múltiplas facetas.”
continuam no centro da nossa relação com o mundo. Esta Emilio Álvarez – codiretor fundador do LOOP
e circuitos criativos. lucas bambozzi e

o cinema e seus outros


obra nos convoca a um olhar atento para uma saída ao Festival e Screen Projects Barcelona (Espanha).
estado de sono profundo, na busca da percepção dos demétrio portugal
rastros e fissuras que estão representados nas diversas
(org.)
temporalidades da produção de imagens do ‘real’. E que “Neste livro instigante, artistas, curadores e pesquisa-
imagens são essas?!” dores nos mostram os múltiplos fluxos que atravessam
Tadeus Mucelli – pesquisador de arte e tecnologia o cinema, transformando-o em um espaço complexo –
e curador da Bienal de Arte Digital (MG). topológico, trans-histórico, interstício entre imagens em
movimento, arte contemporânea e redes de comunicação
– que não para de desafiar o pensamento.”
“Cinema é zona instável. Sempre foi. É o que lemos aqui André Parente – artista e professor da UFRJ (RJ).
em textos que nos deslocam da experiência habitual
como espectadores inertes das salas para a ideia de uma
imagem movente que nos anima desde a exuberância das “[Tanto] o próprio cinema como seu outro fazem parte do
pinturas de Lascaux em variações de meios e modos a mesmo: um cinema de possibilidades. O cinema é outra
nos alcançar no invisível.” coisa. O que se estende e se expande, o que não cabe no
Katia Maciel – artista, poeta e professora recipiente, aquele que excede. Neste livro, então, fala-se
da UFRJ (RJ). 212066 do que vai além. Resistência: vinte e sete artistas, acadê-
micos, pesquisadores, trazem questões sobre o audiovi-
sual expandido. Resistência: são todos do sul da América
“As diferentes interfaces e formas de apresentação que e propõem um saber compartilhado. Resistência: a palavra
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ocorrem no cinema expandido representam um importante se torna um livro. […] Desconstruir, legitimar práticas, dar
indício das mudanças tecnológicas e sociais na percepção voz e palavra. Criar ‘outras’ histórias do sul.”
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da arte contemporânea. Compartilho aqui minha grati- Gabriela Golder – artista e codiretora da BIM –
dão aos criadores por acossar os limites do audiovisual Bienal da Imagem em Movimento (Argentina).
nas suas experiências cinemáticas e também aos autores
deste livro por sua manifestação e mediação em torno das
conquistas de nosso segmento na última década.”
Daniela Arriado – diretora da Screen City Biennial
(Noruega).

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trans-histórico
o cinema
e seus
outros

manifestações
expandidas
do audiovisual

Lucas Bambozzi
e Demétrio Portugal
(orgs.)

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o cinema
e seus
outros

manifestações
expandidas
do audiovisual

Lucas Bambozzi
e Demétrio Portugal
(orgs.)

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Créditos AVXLab

PROCESSO LABORATORIAL PUBLICAÇÃO


2016-2017 O cinema e seus outros

Cocuradores Organizadores
Demétrio Portugal Lucas Bambozzi
Lucas Bambozzi Demétrio Portugal

Coordenadores Coordenação editorial


Tatiane Gonzalez Gabriela Longman
Eduardo Fernandes
Carolina Caffé Projeto gráfico e diagramação
Laura Daviña
Produção
Ihon Yadoya (produção técnico) Revisão
Augusto Santos (produção) Heloísa Oliveira e Renata Brabo
Julia Rodrigues (assistente)
Rayane Vasconcelos (monitora) Tradução
Daniel Hilario (monitor) Roberta Mahfuz

Registros fotográficos Colaboração


Miguel Salvatore Tatiana Gonzalez

Registros em vídeo Impressão


Carolina Caffé Ipsis Gráfica e Editora

Agradecimentos
A toda a equipe da Spcine e do Centro Cul-
tural São Paulo, a Marina Pinheiro e Roberta
Mahfuz (pelos primeiros passos) e a Leo
Wojdyslawski. Aos assistentes e técnicos de
produção que colaboraram com os projetos
de residência: “CONTEXST” (de Mirella Brandi
× Muep Etmo): Camille Laurent, Clara Caramel,
Marcela Katzin, Sibila Gomes dos Santos,
Fernando Miranda Azambuia, Ari Nagô. “ARA-
PUCA” (de Letícia Ramos): Guilherme Rossi e
Flavia Vieira. Ao Padô pela intervenção em
tape art no saguão do CCSP.

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o cinema
e seus
outros
manifestações expandidas do audiovisual

Lucas Bambozzi
e Demétrio Portugal
(orgs.)

1a- edição
São Paulo, 2019

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índice

7 introdução

CAMADAS
INFORMACIONAIS

0. sobre espaços e camadas informacionais


13 lugares e espaços da informação
Lucas Bambozzi

1. de volta ao essencial
25 a linguagem autônoma da luz como arte performativa
Mirella Brandi
41 estático cinemático
Mario Ramiro
47 o invisível como campo cinemático
Claudio Bueno
64 ensaio visual
Lucia Koch

2. espaço informacional em dados


73 cultura visual na era do big data
Giselle Beiguelman
83 a peste da imagem
Fernando Velázquez
95 arte generativa – contracenando com a máquina
Henrique Roscoe

3. a experiência física
109 filmes e vídeos de artistas: preservando e difundindo
o que ainda não se perdeu
Roberto Cruz
119 extremidades: leituras entre arte, práticas midiáticas
e experiência contemporânea
Christine Mello

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135 a efervescência da matéria
Gabriel Menotti
142 ensaio visual
Andrés Denegri
154 ensaio visual
Letícia Ramos

A CENA EXPANDIDA
DE UM AUDIOVISUAL
QUE NÃO COUBE
NO CINEMA

163 outros fluxos cinematográficos e sua produção de imagens


Demétrio Portugal
171 da temporalidade radical em arte-mídia (urbana)
Tanya Toft Ag
183 corpo em cena
Rodrigo Gontijo
191 entrevistas: do VJ ao live cinema
com Eduzal, Patrícia Moran, Raimo Benedetti e Roberta Carvalho

PROCESSOS
AVXLab

200 sobre os processos


201 registro fotográfico
montagem
obras dos residentes
obras em diálogo
seminário

— 217 glossário
227 biografia dos participantes

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introdução

O título deste livro é uma afirmação de possibilidades. Ao apontar


que há diferentes cinemas, os diferentes outros que se desdobram
a partir do cinema, fica sugerida uma conexão com certa literatura
de feições existenciais e filosóficas (que outros são esses? Qual é um
e qual é o outro?), que busca relativizar a própria ideia de cinema
como unidade coerente, simplificada e unificada.
Presume-se que o cinema possa ser diverso e múltiplo, e não
apenas associado a conveniências de um formato que atravessou
o século XX, mais ou menos, imune a tantas outras possibilidades.
Há uma ambivalência nesse que nos interessa: ao mesmo tempo
que se indaga “há um problema com o cinema?”, como muitos já
houveram, aponta também “há um problema com seus desdobra-
mentos”, com seus outros, talvez por serem mais efêmeros ou por
não terem a devida visibilidade. Mas, efetivamente, não se trata
realmente de problema, e sim de questionamentos, especulações e
aferições reincidentes, legítimas, discursivas sobre as possibilidades
que podem surgir desse cinema, como um enigma.
Dividido em quatro grandes partes, “O cinema e seus outros”
procura dar conta da complexidade do audiovisual expandido em
seus diferentes matizes e em diálogo com disciplinas tão diversas
quanto a Física e a História, as Artes Visuais e a Estatística, a Se-
miótica e a Ciência da Computação.
Grande parte dessas problemáticas e complexidades que
pontuam esta publicação surgiu a partir do seminário “Camadas
Informacionais”, programa integrante do AVXLab, que reuniu
em junho de 2017 no CCSP-SP um grupo de pesquisadores,
artistas, intelectuais e interessados nas reflexões sobre processos
artísticos, tecnológicos e fluxos informacionais em torno do
audiovisual expandido.

o cinema e seus outros 7

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A ideia de camada informacional (abordada tanto no seminário
como na parte 1 deste livro) reflete um conceito apropriado das geo-
grafias e dos estudos da comunicação, que se estende pelos terrenos
da arquitetura e da arte. O contexto é pautado pela emergência de
um ambiente permeado por conectividade e fluxo de comunicação
que passa a influenciar o entendimento da noção de espaço e de
lugares específicos, definindo obras e criações artísticas. É uma
abordagem que mira novas formas cinemáticas impactadas por
conhecimentos expandidos e cruzados, tratada a partir do texto
“Sobre espaços e camadas informacionais”, que abre os temas desta
primeira parte da publicação.
Como forma de tratar a complexidade das camadas e nuances
desse audiovisual estilhaçado, de um cinema que cresceu tanto que
explodiu e gerou muitos fragmentos, visualizamos três vertentes
distintas. Os textos de Mirella Brandi, Mario Ramiro e Claudio
Bueno tratam do tema De volta ao essencial e buscam dar conta de
um cinema que revisita suas qualidades mais intrínsecas, associadas
ao enlevo psicológico e sensorial proporcionado pela manipulação
da luz – condição mínima e essencial para o acontecimento cine-
mático. Como aconteceu durante o seminário, a palavra cinema
pouco é citada, mas paira continuamente sobre ideias e conceitos
associados à imaterialidade e à abstração, que permeiam um cine-
ma em busca de suas ancestralidades. A artista visual Lucia Koch,
também presente no seminário, participa da publicação com um
ensaio visual que enfatiza esses conceitos.
Em O espaço informacional em dados, buscamos colocar
atenção em um cinema gerado por sistemas complexos, a partir
de relações matemáticas ou derivadas de processos de análise
científica e computacional. O texto de Giselle Beiguelman analisa
o cenário da cultura visual com base em uma série de trabalhos
contemporâneos, em um contexto indissociável da cultura das redes
e da escrutinização de dados. Fernando Velázquez faz um relato da
condição cognitiva da imagem no âmbito do espaço informacional,
enquanto Henrique Roscoe descreve as possibilidades da arte ge-
nerativa, que flerta com a máquina e com padrões de inteligência
artificial. É um subcapítulo que investiga o quanto as estratégias
e técnicas da estatística, do design e da análise computacional im-
pactam a estética e a experiência audiovisual, ao mesmo tempo que
deixam entrever também as nuances político-sociais, que afetam
as tecnologias e as chamadas novas mídias.
Em A experiência física, abordamos a suposta desmaterializa-
ção do audiovisual como um fenômeno acentuado pelos processos

8 introdução

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digitais e em modo on-line, mas considerando também modelos
de produção decorrentes do tráfego de informações em tensão
com objetos reais, criando interdependências entre conceitos,
entre o real e o virtual. Há, igualmente, um diálogo entre a apa-
rente imaterialidade dos processos tecnológicos atuais e a busca
da corporeidade háptica e palpável proporcionada pelo material
fílmico, químico e físico, como comentado no texto de Roberto
Cruz e também sugerido pelas obras de Andres Denegri e Leticia
Ramos, que participaram do AVXLab com obras físicas instaladas no
espaço do CCSP, estiveram no seminário descrevendo seus proces-
sos criativos e participam da publicação através de ensaios visuais.
Experiências envolvendo computação física, tecnologias as-
sociadas à chamada “internet das coisas”, ou processos de esca-
neamento, fotogrametria ou impressão em objetos 3-D, hoje
potencializam obras decorrentes da experiência física com o
processo artístico. A discussão da materialidade nos novos meios,
entre a película e o digital, em função dos diferentes circuitos,
técnicas e manipulações, é conduzida ao longo do texto de Gabriel
Menotti. Christine Mello desdobra sua pesquisa anterior, sobre
extremidades, em leituras de projetos que acontecem entre redes
on-line e o espaço físico, em exemplos afetados diretamente pela
realidade do espaço urbano.
As três vertentes discutidas na primeira parte da publicação
são formas de tratar um cinema que se mantém como enigma.
São, ao mesmo tempo, uma reinvindicação de seus atributos mais
essenciais, mas também um questionamento sobre o quanto as
novas possibilidades continuam ou não a se encaixar em premissas
e perspectivas que se repetem, mas que implicam novas formas
de fruição e estética.
Na segunda parte desta publicação, A cena expandida de um
audiovisual que não coube no cinema, discutem-se desdobramen-
tos mais pontuais desses “outros cinemas”, ligados a fricções com
circuitos da informação nos espaços públicos, com a performance
e com os mecanismos que os viabilizam.
A reunião de ensaios de Demétrio Portugal, Tanya Toft Ag e
Rodrigo Gontijo investiga como o audiovisal expandido criou uma
linguagem e um campo de atuação que extrapolam, conceitualmente
e em termos práticos, os limites do cinema tradicional, sendo im-
possível, portanto, entendê-lo com base nas categorias deste. Muito
mais do que pensar a partir dos parâmetros cinematográficos, é dos
conceitos de redes, labs e novos circuitos que surge uma chave para
a compreensão desse horizonte em mutação permanente.

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c
in
Por meio de entrevistas realizadas por Rodrigo Gontijo com
quatro artistas e pesquisadores – Raimo Benedetti, Eduzal, Ro-
berta Carvalho e Patrícia Moran –, a terceira parte busca traçar
um panorama histórico da cena do audiovisual ao vivo no Brasil,

c
que começa no final dos anos 1990 e consolida-se no início do
século XXI. Enquanto parte dela se torna atrativa ao mercado, outra
ganha espaço e legitimidade em festivais e galerias. Abordando
essa diversidade em diferentes partes do Brasil, as conversas tocam
especialmente sobre os conceitos de live cinema, videomapping e
performances audiovisuais ao vivo.
Finalmente, a quarta parte do livro se dedica a recuperar critica-
mente e imageticamente os acontecimentos que geraram muitas das
pesquisas, indagações e processos que resultaram nesta publicação.
A partir de documentação fotográfica, desenhos, fotogramas de
vídeo e making of, espera-se rememorar as questões que permearam
os encontros, um possível eco em seus impactos e desdobramentos.
Outras abordagens, autores, criações e experiências fatalmente
ficaram de fora do escopo pretendido. Talvez, haveria de ter mais
partes, pois, em um exercício de possibilidades, sempre haverá
novos outros, outros “outros”. Mas, no conjunto de partes que se
somam neste “O cinema e seus outros”, vale constatar que a ideia
de cinema como unidade coerente, simplificada e unificada cede
lugar a uma arte permeada por instabilidades e enigmas que se
reprocessam, tornando a complexidade inevitável e, por isso mes-
mo, desafiadora, inquietante, em incessante movimento. Outros
cinemas sempre surgirão diante dessa perspectiva.

Lucas Bambozzi

10 introdução

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camadas
informa-
cionais

camadas
informacio-
nais

camadas
informa-
cionais
11

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instabi-
lidade
camadas
0. sobre espaços
e camadas
informacionais

infor-
mação
visões
conec-
tividade
introdução

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Lucas
Bambozzi

lugares e espaços
da informação

O espaço informacional
A definição de espaço informacional migra entre campos. É a
princípio um conceito geográfico, mas que vem sendo aplicado
nas crescentes formas de fricção entre arquitetura, arte e infor-
mação. É uma trama que une campos visíveis e invisíveis em
relações que conectam espaços urbanos, as especificidades do
lugar e do contexto, as redes telemáticas, a internet e as ondas de
rádio, televisão, telefonia e outras formas indutoras de sinais. São
sinais que podem ser minuciosamente mensurados ou apenas
presumidos, percebidos efetivamente através de seu impacto físi-
co ou por suposição, por formas mais científicas ou imaginadas,
fantasiosas que sejam.
Os estudos geográficos, desde o Ensino Médio, observavam
a gradativa transformação do meio em sua influência pelas ati-
vidades humanas, classificando os meios como: natural, técnico
e técnico-científico-informacional. Essa caracterização, tal como
descrita por Milton Santos (1994, p. 24), está associada a um pro-
cesso de reconstituição da própria definição do meio, que deixa
de ser natural e técnico, mas adquire essa camada informacional,
já que no processo de globalização a ciência, a tecnologia e a
informação passam a definir o funcionamento do espaço. “A in-
formação tanto está presente nas coisas como é necessária à ação
realizada sobre essas coisas” (Santos, 1994, p. 24) em um processo
de requalificação dos espaços, uma geografia recriada, assistida
por métodos informacionais.

o cinema e seus outros 13

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O pensamento de Milton Santos converge atualmente com
o de outros pensadores (Trevor Paglen, Alex Galloway, Andre
Lemos) na constatação do quanto o debate sobre as redes passou
a ser intrínseco também ao campo das geografias e dos estudos
da racionalidade do espaço e do lugar, e se intromete em áreas da
arquitetura e da arte (Bambozzi, 2011).

Desde 2003, o artista Daniel Belasco Rogers registra cada viagem


que faz usando um dispositivo GPS junto a seu corpo, que, unidos,
vão compondo mapas, geralmente impressos, retratando cidades
como Berlim ou Londres [fig. 1]. O resultado é uma sobrepopsição de
caminhadas e percursos ao mapa geográfico das cidades, desenhando
um espaço “informado” por decisões de deslocamento por ruas, vias
urbanas, itinerários de transporte público e redes de geolocalização.
Um espaço formado por redes, elétricas ou de comunicação,
potencialmente distributivas e abertas foi postulado por muitos
dentro do que se configurou como uma utopia de sistemas wireless.
Seja a transmissão de energia elétrica sem fio por Nicola Tesla,
os experimentos com telefonia sem fio pelo Padre Landell de
Moura, os manifestos Futuristas em que Marinetti elegia as ondas
de rádio como benéficas, para o cérebro, a expectativa de um sis-
tema de comunicação de muitos para muitos, como prevista por
Bertold Brecht, em todas essas perspectivas estava a evolução das
redes no sentido de um espaço informacional público, acessível,
ubíquo, pairando sobre as vidas terrenas. Sim, o curso da história

14 Lucas Bambozzi

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foi em direção contrária a muitas dessas expectativas: o modelo
de transmissão elétrica sem fio previsto por Tesla foi suplantado
por modelos de interesse mais corporativo, as emissões de rádio
e televisão se consolidaram não de muitos para muitos, mas de
poucos para muitos (Bambozzi, 2011), e cada vez mais os campos
eletromagnéticos ao nosso redor se mostram biologicamente
nocivos, produzindo estresse, alergias, hipersensibilidade, efeitos
colaterais diversos e problemas psíquicos ainda não compreen-
didos devidamente.
O espaço informacional se expande continuamente, tornando-se
algo ainda mais fugidio, imerso e amalgamado em todas as estru-
turas urbanas constituídas a partir de comunicação e informação,
e percebê-lo à nossa volta requer tanto instrumentos específicos
como um certo nível de abstração.
Do campo das geografias migra para toda prática envolvendo
comunicação tecnicamente mediada, em uso crescente do termo,
que nas conformações mais técnicas funde tanto aspectos da in-
formação como da informatização, em um fenômeno semântico
que se soma às definições estabelecidas – sejam as aqui descritas,
sejam aquelas que fogem ao escopo deste artigo.

Campo político-social
O entendimento do espaço informacional como território
político, é, segundo Manuel Castells (1999), uma chave para se
entender as feições do capitalismo pós-industrial e financeiro. O
espaço dito informacional seria assim o “ambiente” que se forma a
partir das novas feições do trabalho, mais notadamente ao longo da
segunda metade do século XX, em uma sociedade que se caracteriza
não mais por modelos de confinamento e disciplina, nem mesmo
controle e imposição, mas que opera com base em números, pela
produtividade e pelo desempenho. Os comandos são semióticos,
os valores se baseiam no acesso à informação e conectividade.
Não é difícil perceber os sintomas dessa caracterização, descrita
nas várias literaturas que nos elucidam o quanto mudanças nas
relações de trabalho transformaram também a materialidade do
capital, seus produtos e suas feições culturais: “A empresa substituiu
a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás” (Deleuze, 1993, p. 220).
E nas táticas corporativas, imagens, signos e discursos e slogans
não apenas representam algo, mas se pretendem como mundos
possíveis (Bauman, 2003; Lazzarato, 2003). Assim, o trabalho em
rede foi aos poucos sendo implementado como solução para o
compartilhamento de atividades e encontros em substituição aos

15

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espaços tipicamente urbanos, supostamente consumidores de
tempo e energia vital. Estamos falando de um modelo de ambiente
supostamente protegido (para não dizer “controlado”), onde se
proclamam ideais de produtividade e acessibilidade à informação.
São os espaços que se estabelecem no âmbito comunicacional, de
ordem semiótica, em formas crescentes de substituição de deter-
minada “realidade” por “realidades de mídia”.
Assim, as definições de espaço informacional geram encantos e
ceticismos, potência positiva e potência negativa, “o fazer incessante
e o não querer fazer” (Han, 2015, p. 57). Há algo de distópico nessa
sociedade hiperconectada, uma nova “organização” configurada
em um mundo de fluxos. Nesse campo de imaterialidades e de
espaços nebulosos (em nuvens), as redes sociais e de ação coletiva
permanecem desintegradas, apesar de toda potencialidade conectiva,
e o devir multitudinário segue irreversivelmente atado às surpresas
dos algoritmos, como um efeito colateral do crescimento de um
tipo de poder evasivo e astuto (Bauman, 2003). Mesmo antes da
implementação de tecnologias de inteligência artificial e dos algo-
ritmos de bots e pós-verdades, sabia-se dos riscos de se aceitar mun-
dos inventados (pessoas, fatos, ideias) como realidades autênticas.
Amontoado com cerca de 1 mil celulares, tablets e carcaças,
de várias gerações, que compõem a instalação “Último Sussurro”
(Lucas Bambozzi, 2017). Alguns se mostram em funcionamento
e evidenciam o quanto cada um dos aparelhos é indutor de um
campo informacional (e eletromagnético) específico em espaços
de circulação. [fig. 2]
Não se trata mais de acreditar na separação entre mundos
reais e construções virtuais, uma concepção que não resistiu ao
final dos anos 1990. Mas parece ser plausível pensar a emergência
do informacional como
campo de atuação não
apenas discursivo, mas
real, e pensar as possi-
bilidades de “sensibi-
lização” de multidões
por formas de atuação
criativa, artística e, tal-
vez, em perspectivas de
ação social efetiva.
2 Há cada vez menos lugares no mundo não habitados por
esses fluxos e sinais de informação, e esses campos definem cada
vez mais a noção de lugar no mundo. Essa definição sugere que o

16 Lucas Bambozzi

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lugar inclua informações humanas, eletivas e afetivas, não neces-
sariamente exclusivas do espaço físico – e de fato não se trata de
opor o físico ao virtual. Assim, perguntaríamos: afinal, que tipo
de lugar (o lócus de desejo, associado ao ambiente, segundo Lucy
Lippard) é esse que se forma no mundo contemporâneo? Se está
tão presente e ao mesmo tempo tão invisível, como se dá a fruição
desses lugares “informados”?
O informacional como campo não depende, contudo, da tecno-
logia empregada. Lygia Pape quando criou seus “Espaços Imantados”
(1968), por exemplo, considerou-os análogos a situações causadas
pelo camelô em centros urbanos, que consegue agrupar as pessoas
em torno do seu discurso e controlar o espaço temporário que cria.
“De repente ele fecha a boca, fecha a caixinha e o espaço se desfaz.”
Alguns artistas desenvolveram um corpo de obras em que essa
conexão com a comunicação e seus sistemas é mais explícita e ime-
diata. As frases de Bárbara Kruger ou de Jenny Holzer empacotando
grandes fachadas se fizeram valer da estética “midiática” dos anos
1990, de forma a demarcar espaços públicos moldados por uma
mescla de arquitetura e comunicação. As projeções de Krzysztof
Wodiczko foram também umas das primeiras a indicar o quanto
a informação imaterial pode estruturar o espaço público de forma
tão potente quanto a arquitetura construída fisicamente. São dos
primeiros exemplos, os mais diretos e evidentes, por sinal, de um
suposto deslocamento e desmaterialização do site/lugar diante da
informação e da comunicação visual.
Haveria muitos outros exemplos a seguir, em uma infindável
lista de citações. Mas importa apenas enfatizar a reincidência de
certos flertes ou de intromissões da arte em áreas da arquitetura,
justamente através da comunicação. Ou seja: de um constituinte
do espaço que não molda diretamente a paisagem, mas o próprio
olhar, borrando a nitidez dos detalhes, ou se infiltrando na per-
cepção feito zumbido em frequência indistinguível – atuante no
espaço “presente”, por assim dizer.

Camadas informacionais
As informações se somam, assim como também se soma o
conhecimento relativo a campos permeados de sinais. Os sinais
existem na natureza, gerados por corpos celestes, pelo sol, pela
Terra, pela ressonância de um corpo sobre o outro, por vários
elementos radioativos, pelos seres vivos. Mas multiplicam-se tam-
bém os dispositivos técnicos que geram campos que somam aos
sinais existentes.

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São quase sempre sinais eletromagnéticos, às vezes luminosos,
às vezes sonoros, que nos informam algo, mesmo que não saibamos
exatamente o quê.
Há o consenso, porém, de que é bastante restrito o espectro
perceptível gerado por esses sinais. As várias formas de radiação
eletromagnética conhecidas formam um amplo espectro de fre-
quências e comprimentos de ondas. Em uma ordem crescente de
intensidades, a partir de exemplos que vão tipicamente do rádio,
das micro-ondas utilizadas em transmissão ou em fornos de ali-
mentos, radares, aquecedores elétricos infravermelhos, luz elétrica,
até lâmpadas ultravioletas, tubos de raio-x e reatores nucleares, a
única faixa visível é a da luz que se situa entre o infravermelho e
o ultravioleta. O espectro conhecido é vasto, de baixas a altíssimas
frequências, com ondas que vão de centenas de metros de compri-
mento a medidas imensuráveis de tão pequenas. E conseguimos
detectar visualmente apenas uma pequena parte disso, em uma
faixa bastante estreita, bem no centro dessa escala. A partir de outras
formas de percepção, pelo calor, pela vibração, por ressonância
sonora ou por efeitos colaterais relatados no corpo ou em animais,
conseguimos ampliar um pouco mais o espectro perceptível, que
nos chega como informação de sua presença.
No entanto, considera-se que vivemos imersos em uma nuvem
(smog) de campos. A suposição é um termo que parece adequado
nesse caso. Imagina-se, acredita-se, mesmo não havendo formas de
visualizar precisamente os eventos e a circulação desses sinais. Assu-
me-se que estão ali quando os aparelhos celulares parecem funcionar
ou quando a internet funciona (acreditar nos ícones demonstrativos
da intensidade/qualidade do sinal é um recurso adicional).
Mas o que se caracteriza como informação nesse espectro, a
presença pela percepção corporal (e, claro, também mensurada
por ferramentas, recursos de ampliação diversos) ou a “cifragem”
em pulsos ou formas decodificáveis como linguagem? Paul Virilio
descreveu as formas codificadas de luz, a partir da alternância
da luz e da sua ausência, apontando-nos não apenas na técnica,
mas nas práticas sociais, o quanto há de informação intrínseca
na luz: do sol (o dia, a caça, o trabalho), da fogueira (a formação
dos clãs sociais), da luz de vela (os ambientes privados), da luz
fria e fluorescente (ambientes semipúblicos, hospitais, repartições
administrativas), na luz codificada que emana de uma tela de TV
ou vídeo.
É uma descrição que parece óbvia, mas que carrega um en-
tendimento bastante agudo e pertinente de que as telas de vídeo

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deveriam ser consideradas não mais do que formas complexas,
codificadas, prenhes de informação a partir da luz.
Com base nesse raciocínio, hoje surgem novas camadas de
informação a cada vez que surgem novas tecnologias associadas
à emissão de luz, novas formas de moldar a luz através do vídeo.
Sejam telas de plasma, cristal líquido (LCD) ou painéis de LED, o
vídeo ainda é basicamente uma superfície sempre dependente de
uma forma de iluminação acessória. Os projetores de vídeo se
desenvolveram de forma impressionante na última década e pas-
sam a protagonizar eventos em escala urbana. Os painéis de LED se
tornaram modulares, flexíveis e expansíveis, permitindo qualquer
tipo de resolução possível, afrontando a tela tipicamente retangular
do cinema do século XX . Qualquer pessoa que tenha revisitado,
depois de 10 anos, a Times Square em NY (ou Picadilly Circus em
Londres, ou Shibuya Street em Tóquio) pode ficar chocada com as
novas formas de comunicação no espaço público. [fig. 3 e 4]
Acúmulo informacional na Times Square em Nova Iorque,
atração turística e midiática repleta de painéis eletrônico-digitais.
Os primeiros painéis elétricos foram instalados nas fachada de
edifícios da área em 1904, envolvendo luminosos voltados para
informação publicitária.
Cabe a ressalva de que esses
dispositivos são massivamente
voltados à publicidade, apesar de
haver iniciativas com programa-
ção artística que acontecem em
painéis e locais específicos, em
projetos como At the crossroads e
Midnight Moments na Times Squa-
3

19

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re em Nova Iorque. Este último acontece desde 2012 a partir de
curadorias ligadas a organizações como Times Square Arts, MoMa,
The Armory Show, Moving Image Art Fair ou Vimeo, inserindo
trabalhos de artistas como Laurie Anderson, Sophie Calle, Tania
Bruguera, Os Gêmeos, Yoko Ono, Isaac Julien, Tracey Emin, Ryoji
Ikeda ou Pipilotti Rist. Há, assim, a expectativa de que iniciativas
que trazem a arte como forma de valorização do espaço público
se tornem mais frequentes, deixando de ser consideradas uma in-
tromissão nessas mídias. Mesmo assim, as obras ali inseridas, com
duração máxima de 3 minutos cada, correm muitas vezes o risco
de perder sua contundência em meio aos anúncios, quando não
articulam explicitamente o contraste estético entre as linguagens
envolvidas. Mais desafiadores se mostram as iniciativas que usam
empenas e fachadas para projeções site-specific, que dialogam mais
proficuamente com o entorno, com as nuances arquitetônicas e
com o contexto histórico-social, de modo desvinculado das relações
comerciais que as viabilizam.
Nesse campo audiovisual recentemente digitalizado são muitas
as possibilidades que permitem a identificação de novas camadas
de informação. A cultura da imagem em movimento é referência
impactante em praticamente todas as formas de expressão. O ví-
deo, esse formato inicialmente intersticial, híbrido, entre cinema,
performance, TV e artes visuais, de fato “cresceu como grama entre
as pedras”, e hoje é formato hegemônico em estratégias de treina-
mento empresarial em reuniões empresariais, elevadores, caixas ATM,
em uma infinidade de aplicativos para celular, na vida cotidiana
de bilhões de pessoas. Tudo é genericamente vídeo: desenhos em
movimento, gifs animados, games, vlogs, relatos íntimos e pessoais,
selfies, sistemas de vigilância, tutoriais do tipo “faça-você-mesmo-
-qualquer-coisa”, megaprojeções com técnicas de videomapping,
painéis de LED ou transmissões de sondas aeroespaciais. A orga-
nização dos dados digitais, que pode ser traduzida em estatísticas
visuais, em datavisualização ou análises computacionais, que fazem
pensar em uma estética de fato peculiar e específica dos banco de
dados, também envolve camadas de informação baseadas no vídeo.
E se até hoje predomina a ideia de que a imagem eletrônica
digital seja algo demasiadamente imaterial, quando comparada com
suportes mais físicos, como a película do cinema ou da fotografia,
hoje ganha relevância novamente uma experiência pautada pela
corporeidade, em atenção ao acontecimento da relação do digital
com o objeto, com a interação gestual, em relações maquínicas e
instrumentais, pela computação física, pela interface de arduínos

20 Lucas Bambozzi

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e raspberrys, com protocolos associados a seres e objetos, através
da internet (das coisas) e outras interfaces.
A detecção das informações circundantes e o foco na per-
cepção de sua signagem adquirem relevância nesse contexto. A
permanência ou não desses conhecimentos no histórico das prá-
ticas audiovisuais parece depender contudo dos caminhos que a
indústria do entretenimento toma para si, e do caminho que o
cinema e as artes afirmam em relação aos meios definidos pela
lógica estritamente comercial.
Em meio a tantas camadas que se sobrepõem, cabe repensar
o que há de essencial em tudo isso. A pergunta “o que é de fato
essencial ao cinema para que ele continue sendo cinema?” é bastante
reincidente, por exemplo; mas caberia aqui um foco maior: se a
luz é, por exemplo, “condição mínima e essencial para o aconteci-
mento cinemático”, seria também essencial o enlevo psicológico e
sensorial que nos convida a formas menos “pesadas” – em termos
de codificação e imposição ideológica –, como pulsações luminosas
de uma projeção em estado bruto?

Pode-se de fato pensar outras combinações possíveis. Uma


vez dissociadas de dispositivos técnico-comerciais, muitas das
práticas associadas a outras formas de cinemas parecem jamais
ter vida muito longa. Tenderiam ao desaparecimento, junto com
uma infinidade de meios que morrem por não encontrar um
nicho de mercado?
Para muitos é essencial ao cinema a capacidade de gerar imagens
mentais, em formas de devaneios ou em conceitos de virtualida-
de menos afeitos à instrumentalização da produção de imagens.

21

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Mas as pesquisas a respeito de como se formam nossas imagens
internas não impulsionaram a lógica audiovisual do século XX e
continuam a não se encaixar em nenhuma lógica contemporânea,
além de mero discurso poético ou curiosidade despertada no
período de suas descobertas. O interesse pelas imagens mentais,
o fenômeno phi, a persistência retiniana ou a pós-imagem são
retomados eventualmente como mera curiosidade ou aberração
associadas ao nosso sistema ótico-nervoso. Não se trata de uma
proposta de rompimento (um desligare), de destecnologizar a in-
formação ou os sistemas existentes, mas sim de resgatar aspectos
de uma alfabetização dos sentidos que parecem se perder em meio
a tantos inputs.
Estudos sobre as imagens hipnagógicas, acontecimentos visuais
multiformes, que pairam entre a vigília e o sono, por exemplo, tam-
bém não tiveram repercussão a partir dessas pesquisas associadas
a dispositivos pré-cinema por não terem sido associados ligados
a nenhuma aplicação prática ou comercializável (Crary, 2014, p.
116). Ou seja, o que está em questão quase sempre é um avanço da
tecnologia em direção a tecnologias convenientes, ou de interesse
diverso da ciência, da fenomenologia, da teoria da comunicação
ou da arte. Estamos, enfim, a apreciar a ideia da latência (Didi-Hu-
berman, 1998), os processos subjetivos, o convívio com fronteiras
mistas, o cruzamento entre conceitos, a relativização da técnica, a
valorização das diferentes formas de ver e outras aptidões da ideia
de invisibilidade e suas feições filosóficas.
Só a partir de uma certa latência talvez seja possível distinguir
e perceber melhor as várias camadas de informação que se con-
figuram; de um lado por meio de dispositivos auxiliares, contêi-
neres de mídia e conteúdo moldados para consumo, tipicamente
de massa, mas agora travestidos de requintes de individuação
singular – através das redes, sobretudo. E, de outro lado, as que se
formam nas mentes, que demandam uma decodificação a partir de
preceitos mais abstratos e subjetivos. Um conjunto de dispositivos
multicamadas, que refletem ideologias em conflito, e uma maior
atenção a modulações e pulsações, para que entre um modo e
outro de absorção possamos também perceber as possibilidades
intercontextuais, as nuances de camadas intermediárias, resgatando,
talvez, uma ideia que Italo Calvino diz que teríamos perdido, “a
faculdade humana fundamental de focar visões de olhos fechados”
(Calvino, 2002, pg. 107-108). Como uma limpeza ocular para aferir
novas perspectivas, seriam visões voluntárias, camadas desejáveis,
não exatamente aquelas que plantam em nossa retina.

22 Lucas Bambozzi

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imagens
1 Desde 2003, o artista Daniel Belasco Rogers registra cada viagem que faz usando um
dispositivo GPS junto a seu corpo, que vai compondo mapas, geralmente impressos,
retratando cidades como Berlim ou Londres. O resultado é uma sobreposição de ca-
minhadas e percursos ao mapa geográfico das cidades, desenhando um espaço “infor-
mado” por decisões de deslocamento por ruas, vias urbanas, itinerários de transporte
público e redes de geolocalização. Imagem: Lucas Bambozzi (Festival Arte.mov, 2010).

2 Amontoado com cerca de mil celulares, tablets e carcaças, de várias gerações,


que compõem a instalação “Último Sussurro” (Lucas Bambozzi, 2017). Alguns se mos-
tram em funcionamento e evidenciam o quanto cada um dos aparelhos é indutor de
um campo informacional (e eletromagnético) específico em espaços de circulação.
Foto: Lucas Bambozzi (Sp_Arte, 2017).
3 Times Square, 2017.
4 Acúmulo informacional na Times Square em Nova Iorque, atração turística e
midiática repleta de painéis eletrônico-digitais. Os primeiros painéis elétricos fo-
ram instalados nas fachadas de edifícios da área em 1904, envolvendo luminosos
voltados para informação publicitária. Montagem com imagens de cartão-postal:
Lucas Bambozzi, 2017.
5 Entrada da instalação/performance “Chumbo”, de Mirella X Muep (ON_OFF,
Itaú Cultural, 2015), composta basicamente por luzes, sombras, fumaça e áudio.
Créditos da imagem: Lucas Bambozzi, 2015.

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Giselle e LA FERLA, Jorge (orgs.). Nomadismos tecnológicos. São Paulo:
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versações: 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro:
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VIRILIO, Paul. O resto do tempo. Tradução de Juremir Machado da Silva.
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23

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invisibi-
lidade
névoa
1. de volta ao
essencial

abs-
tração
poeira
imate-
rialidade
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Mirella
Brandi

a linguagem
autônoma da luz como
arte performativa
A alteração perceptiva através da luz e seu conteúdo narrativo

Este artigo aborda a luz como linguagem autônoma de uma arte


expandida, que se apropria de inúmeros conceitos e técnicas de
diversas áreas cênicas e visuais para a criação de narrativas subjetivas.
Explora o lado perceptivo da luz como ferramenta artística que se
estabelece através das artes visuais, do cinema expandido e da arte
performativa. O texto evidencia conceitos de diferentes ordens
reunidos de modo singular, por meio da luz. Partindo de algumas
descobertas e teorias importantes sobre a natureza incerta da luz,
avança através da fusão de linguagens e do pensamento na arte. Um
olhar é lançado para o que pode ser aprofundado e reorganizado
na criação artística em diferentes áreas. O método investigativo
transdisciplinar busca contribuir para a discussão desse tema ainda
recente na esfera da iluminação como expressão artística.
Trabalhar há tantos anos em parceria com o músico Muep
Etmo, aprofundando uma pesquisa de linguagem que parte dos
elementos de base do cinema (a luz e o som), nos fez perceber
que a comunicação e a narrativa podem partir de elementos tão
subjetivos e que isso abre um longo caminho a ser explorado.
Alterar a percepção do mundo como o conhecemos altera nos-
sa compreensão e amplia a capacidade de perceber diferentes
pontos de vista sobre o que já é conhecido. Nossos caminhos
de luz e som foram se misturando intensamente com o tempo.
Entender melhor os caminhos sonoros me ajudou a refletir
sobre a condução da luz e ao mesmo tempo tornou a música
mais visual. A contaminação e fusão de linguagens é algo que

o cinema e seus outros 25

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considero fundamental quando falamos de arte expandida e
experimental. Colocar de lado a principal função da luz, que é
iluminar ou criar ambientes para algo específico, e transformá-la
em modo de comunicação não é algo possível de ser atingido
apenas a partir de estudos teóricos.
O audiovisual expandido compreende em si a experimentação
de uma comunicação amplificada, que não seja compreendida
apenas através da razão. Isso nos possibilitou um mergulhar no
escuro desta pesquisa sensorial, que experimenta possibilidades
narrativas subjetivas apenas por meio da fusão entre a luz e o som.
A linguagem audiovisual que desenvolvo com Muep Etmo se
desdobra continuamente em novas pesquisas, que buscam também
a intersecção com outras áreas artísticas, de modo que possam se
fundir, e não ser mais identificadas com áreas específicas, mas como
uma linguagem experimental e colaborativa sem protagonismos,
resultado da soma das singularidades envolvidas e que buscam a
percepção como fonte de comunicação e diálogo.

Um breve olhar sobre a luz e a arte


A luz transforma nosso olhar, altera nosso espaço, expande
nossos sentidos e interfere no nosso comportamento. O que sempre
me atraiu na luz, por mais contraditório que isso possa parecer,
sempre foi o seu lado mais escuro e ambíguo. O que não vemos
quando existe luz e o que vemos sem a luz. A imagem adulterada
através da luz. O que é possível ver por trás do escuro. A luz que
não ilumina, mas que torna visível o invisível.
Meu trajeto dentro da iluminação começou com a área cênica,
embaralhou técnicas e conceitos que apontaram o início de um
caminho artístico autônomo para a luz, que se estabeleceu através
dos conceitos que definem as artes visuais e o audiovisual. Este
caminho autônomo consiste no potencial perceptivo da luz para
a condução narrativa subjetiva dissociada do texto, da atuação, da
coreografia ou de qualquer outro elemento. Esse é o princípio que
utilizo hoje com Muep Etmo na criação de instalações imersivas e
performances audiovisuais, que se definem como cinema expandido
e são reabsorvidas pelo teatro e pela dança contemporânea com
base no conceito que define o teatro performativo. Linguagens
artísticas distintas que são abordadas neste texto para se concluírem
através de um olhar unificado, que não delimita fronteiras, mas
percebe a arte como espaço amplificado.
Por mais que se relute, não vejo mais sentido, neste mo-
mento, em definir as características de cada área dentro da arte,

26 Mirella Brandi

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assim como não é possível definir a própria vida sem a inter-
ferência dos mais diversos acontecimentos que a preenchem e
a transformam constantemente. A arte e a vida, no melhor da
sua complexidade, estão envolvidas diretamente nesse diálogo
subjetivo através da luz que atinge um espaço desconhecido e
sem respostas definitivas.
A arte vista como campo neutro que permite o risco, a zona de
desconforto, o desconhecido. Um laboratório aberto a experiências
indefinidas e não colecionáveis. A arte para recriar um “não lugar”,
dentro de um lugar reconhecido, onde a tradição e os experimen-
tos de risco podem e devem coabitar e coexistir. O palco cede o
lugar do artista e abre uma possibilidade de transgressão. A luz
que impulsionava a trama agora é a própria trama. O espectador
é seu protagonista.
O cinema expandido integrou todas essas possibilidades e nos
levou para a síntese de uma comunicação que se estabelece apenas
pela imersão de luz e som, espaço e tempo, artista e público. Esses
elementos formam a matéria-prima para o desenvolvimento do
que chamamos de narrativas de imersão perceptiva. Descrevo,
brevemente, algumas linhas de pesquisa que contribuíram para a
residência artística realizada pelo AVXLab e ao longo da pesquisa
de linguagem que realizo com Muep Etmo.

A luz por si mesma (arte e ciência)

A abstração pode ser uma poderosa ajuda para a compreensão,


que em última análise está situada entre o ser humano e a direta
percepção da realidade (Goethe, 2011, p. 135).

A cada olhar ao nosso redor, tornamo-nos conscientes não


só dos objetos vistos, mas, em seguida, por interferência das lu-
zes que os iluminam. Cada diferente ângulo, cor e temperatura
dessa luz pode alterar definitivamente o elemento observado, seja
numa cena cotidiana, seja trabalhada de forma cênica, visual ou
cinematográfica. Sem luz, a visão encontra-se impotente. Quando
transformamos a fonte de luz e o modo como a utilizamos, altera-
mos o comportamento do que vemos e consequentemente nossa
percepção de mundo se modifica.
O impressionismo marca o início da abstração na pintura, a
evolução da ciência óptica e a incidência luminosa sobre a partícula.
Muitas experiências que relacionaram luz, cor e pigmento foram
utilizadas deslocando a atenção do preciosismo figurativo para a
força gestual que indicava percepções mais subjetivas.

27

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É possível analisar a luz a partir do ponto de vista científi-
co, filosófico e contemplativo para entender a sua natureza: a
óptica clássica, a teoria eletromagnética, as bases experimentais
da física e a mecânica quântica da luz. É um precioso caminho
entender e estudar a luz do ponto de vista físico, mas atingir o
pleno entendimento sobre o que é a luz parece não estar ao nosso
alcance. Em 1951, Albert Einstein disse que suas cinco décadas de
estudos sobre a luz não o fizeram chegar nem perto de um real
entendimento. O escritor, pensador e poeta Johann Wolfgang
von Goethe muito tempo antes afirmava que a luz não poderia
ser entendida como um fenômeno físico, pois um mesmo com-
primento de uma onda poderia ser percebido distintamente por
diferentes seres vivos, ou seja, cor e luz são fenômenos de caráter
subjetivo e individual.
Ainda percorrendo o enigmático caminho da subjetividade, é
curioso que tantas culturas diversas tenham idolatrado a luz, seja
através da investigação científica, seja através da arte. Se a física
parte do estudo da observação do visível, o nosso conhecimento
depende diretamente de quem somos e de como pensamos. Uma
cultura completamente diferente, com outros métodos e percep-
ções, chegaria a diferentes conclusões. Werner Karl Heisenberg,
um dos nomes mais importantes da física quântica, dizia: “O que
vemos não é a natureza, mas a natureza exposta ao nosso método
de questionamento” (Heisenberg, 2010, p. 7).
Podemos dizer que, durante todo o período histórico de que
temos notícia, o homem tem enfrentado a difícil tarefa de estudar
o fenômeno da luz. O legado de teóricos, pensadores e artistas de
épocas distintas aponta uma evolução dos conceitos sobre a luz
através dos tempos.
Na antiga Grécia do século IV a.C., Demócrito, Epicuro, Platão
explicavam a visão e a natureza da luz como partículas dos objetos
que chegam até os olhos. Platão estudou os princípios da óptica
e escreveu sobre o enigmático e tão valorizado “Mito da caverna”,
em que através da metáfora da alegoria da caverna e sua relação
entre a luz e sombra é possível conhecer uma importante teoria
platônica: como, pelo conhecimento, é possível captar a existência
do mundo sensível.
Aristóteles, aluno de Platão, fez objeções ao modelo de seu
mestre. Ao refutar as teorias então conhecidas, ele fundamentou
a teoria da transparência: a luz era essencialmente a qualidade
acidental dos corpos transparentes, revelada pelo fogo. Aristóteles
escreve a mais antiga teoria sobre cores de que se tem notícia.

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Muitos anos mais tarde, durante a renascença, em que a ob-
servação científica da natureza tornou-se fundamental, a luz e a
natureza das cores foram profundamente estudadas. Na pintura
renascentista, o homem começa a fazer uso do realismo, da pers-
pectiva e do claro-escuro. Nesse período, Leonardo da Vinci se opõe
a Aristóteles ao afirmar que a cor não era uma propriedade dos
objetos, mas sim da luz. Afirma ainda que o branco e o preto não
são cores, mas extremos da luz. Da Vinci foi o primeiro a observar
que a sombra pode ser colorida e a pesquisar a visão estereoscópica.
Ainda no renascimento, marcado por grandes descobertas
e esplendor artístico, muitos artistas se destacaram por se apro-
priar da luz para reforçar a dramaticidade de suas obras. El Greco,
Caravaggio e Velázques são referências fundamentais para estes
estudos que realizamos. Mais adiante, Isaac Newton, físico inglês
fascinado pela óptica, dedicou muitos anos no estudo da luz e seu
comportamento. Não em vão, o seu primeiro artigo e seu último
livro foram sobre óptica. Newton demonstrou que a luz branca
poderia ser decomposta em diversas cores, através de um prisma.
Também demonstrou, utilizando um disco colorido, que todas
as cores somadas resultariam em branco. Ele afirmava que a luz
era feita de partículas indivisíveis (átomos), enquanto Christian
Huygens escrevia no mesmo período o “Tratado sobre a luz”, que
contradizia Newton e defendia a ideia de que a luz se comporta
como onda, e não como partícula.
No século XIX, Goethe se apaixonou pelo estudo das cores e
passou mais de 20 anos tentando terminar o que considerava sua
obra máxima: um tratado sobre as cores que colocaria abaixo a
teoria de Newton. A principal objeção de Goethe a Newton era
de que a luz branca não podia ser constituída por cores. Assim,
ele defendia a ideia de as cores serem resultado da interação da luz
com a “não luz” ou a escuridão. Observou a retenção das cores na
retina, a tendência do olho humano em ver as bordas de uma cor
complementar, notou que objetos brancos sempre parecem maiores
que pretos. Goethe reinterpretou as cores e as aproximou com muita
precisão das atuais tintas magenta, amarelo e ciano utilizadas para
impressão. Seus estudos voltaram a ser retomados pelos pintores
modernos Paul Klee e Wasilly Kandinsky no século XX.
Em 1905, Albert Einstein, inspirado pela física quântica, emba-
ralhou todas as convicções a respeito da luz quando comprovou
que a luz ora se comporta como onda, ora como partícula. Essa
comprovação lhe daria o Prêmio Nobel e estabelecia um novo
espectro de afirmações.

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Mas desde a introdução da lâmpada incandescente, patenteada
por Thomas Edison em 1879, iniciou-se um lento e crescente avanço
no controle e na utilização da luz no cotidiano e consequentemente
na arte. A invenção teve um papel determinante na indústria do
cinema e nas primeiras pesquisas que olhavam para a luz como
possibilidade arquitetônica imaterial.
O controle da luz se transforma aos poucos em uma potente
ferramenta tecnológica. O cenógrafo Adolphe Appia desenvolveu
espaços que se alteravam através do controle da luz e ampliou esses
caminhos quando conheceu o compositor suíço Jacques-Dalcroze,
que colocava o corpo como organizador de um novo tipo de espaço
rítmico, esculpido pelo movimento e modelado por tecnologias
de iluminação.
O músico e inventor Thomas Wilfred ficou conhecido por
criar uma light art independente, que denominou de lumia. Tal
conceito foi criado para realizar suas performances de luz, desen-
volvidas com o auxílio de seu invento “Clavilux”, criado com a
ajuda do seu assíduo colaborador e arquiteto, Claude Bragdon.
Uma espécie de órgão ou mesa de controle era capaz de produzir
um efeito de luzes flutuando pelo espaço, criando uma experiência
única para a época.
Apesar das inúmeras descobertas e dos mais variados olhares
que lhes foram atribuídos, a questão fundamental sobre a misteriosa
natureza da luz permanecerá aberta. Podemos pensar que cada
época fabricou uma teoria na medida da sua possibilidade, e estas
foram sempre sendo alteradas, quando novas constatações surgiam
e apontavam novas direções, mas ainda hoje vários aspectos sobre
o que é a luz seguem sem respostas definitivas.

A luz nas artes visuais


Apesar de ter trabalhado durante muitos anos com ilumi-
nação cênica, as artes visuais sempre traçaram caminhos que
tangenciaram as artes cênicas em meu entorno. As artes visuais
me levaram a embaralhar os conceitos sobre iluminação cênica,
fazendo migrar as técnicas específicas de uma área para outra, de
forma a explorar como tais características alteram seu comporta-
mento e sua finalidade quando utilizadas em contextos diversos
do convencional, e como isso altera o modo como olhamos a luz
e o que ela nos transmite.
Reuni esses elementos para a pesquisa de um vocabulário que
compreende a luz como linguagem artística autônoma, e o resultado
pode se estabelecer tanto na área visual quanto na área cênica, já

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não importa. Isso já não faz mais sentido no momento em que
vivemos. Alguns artistas e movimentos estéticos estão fortemente
relacionados com essa linguagem, mesmo quando não utilizam a
luz como objeto central da obra.

A op art (optical art)


Inspirada pelo desejo do movimento, a vertente da op art utili-
zou a ilusão através da óptica para atingir resultados que saltam da
tela e alteram constantemente o olhar a partir do ângulo de visão
que escolhemos. Apesar do rigor com que é construída, simboliza
um mundo mutável e instável, que não se mantém nunca o mes-
mo. Jesús Soto, forte referência dentro da op art, disse que, ao ver
os trabalhos de Mondrian, enxergava neles pulsação e movimento
através das cores, e isso o intrigava profundamente, mas foi com a
op art que Soto elevou seu desejo pelo movimento ilusório até as
últimas consequências.

(...) de uma forma ou outra, a pintura sempre se preocupou com a


ilusão, sugerindo algum tipo de movimento ou espaço dentro das
limitações da tela. O tipo de ilusão que eu desejo revelar, o qual,
por sua vez, acredito ser o tipo de movimento e espaço que pode
caracterizar a nossa experiência de mundo (Soto, 2005, p. 14)

O que fascina na op art é o rígido e preciso caminho matemático


para alcançar um movimento absolutamente mágico e enigmático,
em que parece que qualquer explicação lógica se torna irrelevante
diante de tal percepção.
Meu primeiro projeto artístico autoral, “OPr”, realizado em
2006, se aprofundou nas técnicas utilizadas pela op art. O pigmen-
to foi substituído por gráficos de luz e projeção, que se fundiam
enquanto sua frequência era quebrada pela presença de um corpo.
A música buscava a fisicalidade do som possível de ser sentida no
corpo do espectador e contribuía para alterar a relação espaço/
tempo e gerar estímulos ao vivo para a imagem e o corpo. Tal
fusão nos evidenciou o potencial narrativo desse cruzamento e é
nesse momento que inicia um longo percurso de pesquisas sobre
a subjetividade como condução narrativa. É durante esse período
que surge a longa e duradoura parceria com Muep Etmo, músico
que me acompanha na pesquisa e no desenvolvimento de projetos
sobre narrativas imersivas através da luz e do som.
Como desdobramento da op art, podemos observar, também,
notáveis experiências através da arte cinética, que explora os
movimentos físicos mecanizados ou não, na ilusão de óptica.

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Julio Le Parc é um exemplo importante na apropriação da luz
para a criação de obras cinéticas, assim como Abraham Palatnik,
um dos pioneiros da arte cinética no Brasil.
Por sua vez, as instalações imersivas nas artes visuais sugerem
uma ruptura na contemplação por parte do visitante e apostam na
imersão dos sentidos como forma de comunicação.
Artistas como a coreana Kimsooja e o americano James Turrel
trabalham o espaço imersivo de forma magnífica, e são exemplos
que eu não poderia deixar de citar dentro da fascinante travessia
que transporta o visitante para outra percepção, sem abrir conces-
sões – compreender que a realidade dos fatos já é a própria teoria,
como Goethe dizia. Tais constatações se transformam pouco nas
narrativas de imersão com luz e som, que absorvem por completo
o conceito das instalações imersivas e dos estudos ópticos somados
a técnicas e conceituações cênicas. A ação em vez da cena. O estar
em vez do contemplar. O ser em vez do interpretar.

A visual music

A luz parece ser um mediador ideal entre a música como uma arte
temporal e a pintura como uma arte espacial, porque, como elas, a
luz imaterial existe no tempo; seus movimentos permitem que
a estrutura do fluxo temporal se torne visível; ao mesmo tempo,
ela penetra e preenche espaço e, portanto, tem semelhanças com a
pintura (Hoormann, 2003, p. 297).

O conceito de visual music marca a pesquisa sobre a musica-


lização nas artes visuais de um modo mais amplo. A percepção
da imagem e da luz é expandida pela música. A luz e o som são
compreendidos através de uma mesma onda. Teorias e técnicas
musicais foram adotadas para compreender e alterar desenvolvi-
mentos da área visual, e vice-versa. Muito se fez neste período para
incorporar, mesclar e transferir conceitos e técnicas de diferentes
formatos artísticos:

Não mais conteúdo para simplesmente reproduzir o mundo visível,


os pintores deveriam, em vez disso, buscar preencher suas telas com
intensidade emocional, integridade estrutural e pureza estética, como
acontecia com a música (Zilczer, 2005, p. 24).

Dentro do escopo da visual art, a utilização da luz teve uma


importância marcante na condução desses experimentos por seu
caráter imaterial. Segundo as palavras do artista, arquiteto e poeta
da visual music Theo van Doesburg, “se até agora alguém conside-

32 Mirella Brandi

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rava a superfície de projeção uma tela emoldurada, é necessário
eventualmente descobrir o espaço-luz, o filme continuum” (Van
Doesburg, 2012, p. 9).
Vale lembrar que Thomas Wilfred foi dos primeiros a explorar
na luz seu caráter imersivo. Como mencionado, seus vários modelos
de Clavilux induziam perceber as luzes pelo espaço: “o uso mais
elevado e a função suprema de uma arte da luz seria tornar-se o
acelerador da evolução humana e da expansão da consciência”
(Bragdon, 1942, p. 116).
A visual art teve um marco importante a partir da criação do
edifício que foi projetado por Le Corbusier e Iannis Xenakis, por
ocasião da Feira Mundial de Bruxelas, em 1958, chamado Pavilhão
Philips. Seu projeto arquitetônico se baseou nos gráficos sonoros
de Iannis. Foi a primeira grande obra multimídia, considerada a
primeira obra eletroacústica.

A luz e o audiovisual
A inter-relação entre luz, imagem projetada e música é ex-
tremamente rica no que diz respeito à expansão das fronteiras
entre áreas artísticas. Ela é repleta de experimentos que agregam
múltiplas linguagens e “explodem” a relação com o suporte, com
o espaço-tempo, com as narrativas lineares e as imagens figurati-
vas. O século XX, mais especificamente os anos 1970, e a entrada
da tecnologia digital marcam o início de um período abundante
para a relação da luz e da imagem na arte – mesmo ciente de que
estabelecer marcos históricos é sempre perigoso e arbitrário, par-
ticularmente, no campo das artes. Durante esse período, podemos
encontrar inúmeras referências e experimentos de fundamental
importância, não apenas para um novo caminho de comunicação
autônoma através da luz, mas especialmente no que diz respeito
à fusão de linguagens artísticas distintas. Segundo o autor de “Ex-
panded Cinema”, Gene Youngblood (1970),

Na projeção múltipla em tempo real, o cinema torna-se uma arte da


performance: o fenômeno da projeção de imagem torna-se o “sujeito”
da performance e, num sentido bastante real, o meio é a mensagem.

Inúmeros fatores e pesquisas anteriores a esse período concorrem


para o estabelecimento de tais experimentos, como Richard Wagner,
maestro, compositor, diretor de teatro e ensaísta alemão que publicou,
em 1849, “The Artwork of the Future”, em que explora a experiência
perceptiva do espectador na relação com o evento dramático e per-
cebe a necessidade de aproximar todas as artes em uma síntese total

33

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de elementos: cenografia, imagem, música e texto. Wagner pretendia
implementar com o “teatro da arte total” uma visão de “teatro da
ilusão” para um efeito imersivo diante de um espaço cênico.

O cinema
Antes de ser visto como arte autônoma, o cinema se apropriava
de múltiplas linguagens e invenções mecânicas para exibir trechos
simples de um filme que despertava emoções vivas no público; era
o chamado cinema das atrações. Algo diretamente relacionado
ao que vemos hoje nos experimentos de live cinema.
A intenção de recuperar a emoção viva do espectador no que
diz respeito aos novos experimentos audiovisuais ao vivo está forte-
mente relacionada com a pesquisa sobre narrativas subjetivas, além,
é claro, de estímulos vindos do cinema e ligados especialmente
à relação luz-tempo, explorados de forma fascinante pelo cinema
expressionista alemão e por diretores como Andrei Tarkovsky,
Ingmar Bergman e Theo Angelopolus.
O cinema expandido é um termo bastante flexível, que indi-
ca a expansão da linguagem cinematográfica para além dos seus
próprios códigos. Explora outros territórios de ação, a utilização
dos diferentes meios para finalidades distintas e amplia a percep-
ção e a relação entre tempo e espaço. O espaço físico da sala de
projeção cinematográfica “explodiu” e as artes visuais ganharam
uma qualidade performativa. O movimento tem sua origem a
partir do manifesto performático de Carlolee Schneemann e da
publicação do livro “Expanded Cinema”, de Gene Youngblood. Este
livro, considerado referência primordial em torno do conceito
de cinema expandido, é dividido em três aspectos. O primeiro
funde todas as formas de arte, incluindo o filme, dentro de um
evento multimídia e de uma ação ao vivo (live action). O segundo
explora tecnologias eletrônicas e a chegada do cyber espaço, como
enunciado por Marshall McLuhan. O terceiro coloca por terra a
barreira existente entre artista e público através de novas formas
de participação.
A distorção e o deslocamento das convenções cinematográ-
ficas do espaço e do tempo tinham como objetivo a expansão da
consciência, mas também a experimentação com a composição e
a forma em termos imagéticos e sonoros.
A linguagem autônoma da luz se apropria do cinema expandido
em muitos aspectos e mais especificamente através do seu enfoque
na live art, em que é possível interligar princípios das artes visuais
e o teatro performativo.

34 Mirella Brandi

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A videoarte surge pouco antes dos anos 1970 e incorpora ele-
mentos do cinema expandido, seja nos aparatos materiais, seja
nos conceitos de projeção, mais tarde utilizados em instalações e
apresentados em museus e galerias. Entre o movimento de cinema
expandido e o da videoarte, nomes bem diversos e importantes
fizeram sua parte em uma revolução que tomou o audiovisual e
os experimentos com imagem, som e performance. Entre eles, cito
aqui Nam June Paik, Andy Warhol, Peter Greenaway, John Cage
e Antonhy MacCall, que utilizou a luz do projetor para enfatizar
a qualidade escultural de um foco de luz no contexto de cinema
expandido e apresentado em galerias de arte.
Mais recentemente, alguns exemplos, como Ryoji Ikeda,
AntiVJ, Nonotak e Robert Henke, se apropriaram dessas carac-
terísticas para a criação multimídia utilizando a luz em seus
trabalhos, assim como podemos ver em “N_Polytope: Behaviors in
Light and Sound After Iannis Xenakis”, de Chris Salter, apreciador
das ideias de Richard Wagner e que busca ambientes sensibiliza-
dos que utilizam a fusão do material arquitetônico com o som,
a imagem e a luz.
O videomapping é um termo relativamente novo, mas a ideia
começa a ser explorada a partir dos anos 1970. Trata-se de uma
técnica que reconstrói o espaço real, através da adição de um
espaço virtual. Apesar de a exploração do video mapping ser
ainda bastante figurativa e amparada pelo seu fascínio técnico,
alguns artistas buscam outras direções, como Can Buyukberber
e o “Urbanscreen”, extraindo possibilidades brilhantes sobre espa-
cialidade e alteração da percepção através da imagem e do som.
Os experimentos com audiovisual formam um rico alicerce de
pesquisa para a linguagem da luz, pois agregam a base primordial
do cinema: luz e som.
Explorar performances que utilizam apenas luz e som con-
tribuiu de forma muito potente para localizar a síntese de uma
narrativa subjetiva que se define no inconsciente. Em nosso caso,
no projeto Mirella Brandi × Muep Etmo, as performances que for-
mam a “Trilogia das Cores” (Branco, Cinza [ fig. 1] e Chumbo), assim
como outras performances que desenvolvi com Muep Etmo, são
alguns exemplos dessa síntese narrativa que define um caminho
artístico autônomo através da luz. Observar o resultado de tais ex-
perimentos alterou em mim todo o olhar a respeito da apropriação
multidisciplinar na criação artística.

35

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Performatividade

What I love so much in this genre of non dramatic literature is that


you can attend somebody’s thinking. I try to make it visible or audible
(Goebbels, 2015, site do artista).

O teatro contemporâneo pode ser redefinido através dos con-


ceitos de teatro performativo e teatro pós-dramático. O termo
teatro pós-dramático foi definido após a publicação do livro “Pos-
tdramatisches Theater” de Hans-Thies Lehmann, publicado em 1999
na Alemanha, e defende um teatro visto para além do drama, em
que Lehmann aponta que desde o teatro Elisabetano até o teatro
burguês do final do século XX o teatro tem funcionado sempre
dentro dos princípios da mimésis e da catharsis aristotélica. Apenas
na segunda metade do século XX, outros autores, principalmente os
do teatro do absurdo, começam a desenvolver uma dramaturgia
fragmentária na tentativa de construir uma arte total, transversal,
atravessada pelas artes da imagem, do cinema, das artes plásticas,
do circo e impulsionadas pelo desenvolvimento das tecnologias
na cena. Segundo Lehmann, é nos anos 1970 que o teatro começa
a ganhar um olhar renovado: “(…) na esteira do desenvolvimento,
seguido da onipresença das mídias na vida cotidiana desde os anos
1970, que surge uma prática do discurso teatral nova e diversificada”
(Lehmann, 1999, p. 28). Esse olhar renovado, como compreende
Lehmann, possibilita uma redefinição do status do diretor e do
dramaturgo, não exigindo uma dependência recíproca ou centra-
lizadora, elevando e igualando a importância de outras linguagens
na construção da trama.
Josette Féral, crítica, teórica e professora na École Supérieure
de Théâtre de l’UQAM, em Montréal, aproxima os conceitos da
performance e da performatividade e os carrega para o que ela
denomina de teatro performativo. Segundo Josette, o teatro se
beneficiou das aquisições da performance que transformam o
ator em performer; o intérprete em persona; o texto em ação.
Esses elementos caracterizam o teatro performativo. O estar no
lugar do ser.
Um exemplo que vale citar é o de Heiner Goebbels, maestro,
compositor e encenador que desestabiliza a hierarquia e o uso
das linguagens artísticas no teatro. A música em alguns espetá-
culos ocupa um lugar tão relevante quanto o do ator e outras
linguagens. Robert Lepage é outro exemplo importante dentro
do que ele autodenomina criação de uma poética tecnológica.
Segundo Lepage, o teatro deve dar conta da evolução dos mo-

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dos de narração, de percepção e compreensão do mundo. Tantos
outros exemplos de igual relevância poderiam ser citados dentro
desse conceito, como Ariane Mnouchkine, Laurie Anderson, The
Wooster Group, Ivo van Hove, o Teatro da Vertigem e o Coletivo
Phila7 (o qual fundei com mais cinco artistas em 2004 e do qual
participei durante dez anos), além de tantos outros artistas visuais,
cênicos e companhias de teatro que aprofundam a experimentação
de formatos múltiplos. São princípios que cabem perfeitamente
no conceito de teatro performativo, assim como Chris Salter, que
mesmo sendo de outra área de interesse artístico produz obras
perfeitamente cabíveis nesse conceito, como pode ser observado
na sua performance “Ilnix” (2014).
Os conceitos de teatro pós-dramático e de teatro performa-
tivo se misturam em muitos aspectos, especialmente no que diz
respeito ao questionamento do poder centralizador do texto e
elevação ao mesmo plano de importância de outras linguagens
artísticas na construção da trama e da criação colaborativa – a
relação do espectador na trama, a permeabilidade das disciplinas,
a multidisciplinaridade em cena. O que é realmente incom-
preensível é o fato de que a iluminação não tenha sido citada
como exemplo de linguagem em nenhum desses conceitos sobre
teatro contemporâneo. A luz como possibilidade autônoma
de criação e ação narrativa, totalmente permeável ao conceito de
teatro performativo, ainda não foi cogitada. “Esses contrapontos
são importantes para abrir um espaço para a imaginação, que é,
no fundo, a coisa mais importante que se oferece ao público”
(Goebbels, 2015, p. 111).
Se pensarmos na luz como possibilidade narrativa subjetiva,
que conduz uma ação performática para se redefinir através da
percepção do espectador, estamos falando exatamente das mesmas
questões aqui brevemente colocadas. Se a linguagem autônoma
da luz para criação performativa ainda não foi observada pelos
críticos, diretores, teóricos e pensadores do teatro, acredito que já
esteja em tempo.
A pesquisa sobre narrativas subjetivas com luz (seja para a
criação com múltiplas linguagens, seja através das performances
que utilizam apenas luz e som na sua condução) não apenas se
apropria de vários conceitos e técnicas do teatro, das artes visuais
e do audiovisual, como se define perfeitamente dentro de seu
contexto. Depois de um longo percurso que me distanciou das
bases que definem o que é teatro, a luz se encontra-se ressignificada
através do conceito que define o teatro performativo.

37

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1

Mirella Brandi + Muep Etmo


Sob essa assinatura, existem 11 anos de atuação em parceria
para o desenvolvimento de uma proposta conceitual, que utiliza a
luz como linguagem autônoma na condução artística e hibridiza
som e imagem no diálogo com múltiplas linguagens.
Essa parceria se desdobra em inúmeros projetos de experi-
mentação de linguagem, que se dividem em três eixos principais:
1 Performances de imersão narrativa com luz e som.
2 Instalações imersivas.
3 Ações (espetáculos) sobre narrativas subjetivas com
múltiplas linguagens.
Desenvolver narrativas subjetivas a partir da luz me ajudou a
enxergar no som e no silêncio as mesmas características, de forma
complementar. Assim como as frequências de áudio não são per-
cebidas pelo ouvido humano em sua totalidade, os comprimentos
de ondas visíveis se encontram aproximadamente entre 380 e 750
frequências. Ondas mais curtas abrigam o ultravioleta, os raios X
e os raios gama. Ondas mais longas contêm o infravermelho, o
calor, as micro-ondas e as ondas de rádio e televisão. O aumento
de intensidade pode tornar perceptíveis ondas até então invisíveis,
tornando os limites do espectro visível algo elástico e que a lógica
científica nem sempre alcança. A música que o ouvido não capta
pode ser sentida em diversas partes do corpo, e o silêncio em que
acreditamos não existe de fato. O escuro cria imagens, assim como
o silêncio possui sua própria música.

38 Mirella Brandi

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Explorar a comunicação subjetiva da luz e do som me levou
a entender a criação artística com múltiplas linguagens através de
outro ponto de vista.
Não se trata de uma linguagem cênica e/ou visual que sugere
seu ponto de partida através da luz e do som. Trata-se da exploração
de uma linguagem que tem seus alicerces na condução narrativa
subjetiva e que se define no espectador. O desenvolvimento de uma
técnica que funde as linguagens em um turbilhão de interdependên-
cia artística. Um conceito que desloca as convenções estabelecidas
dentro de um teatro, de um espaço expositivo e da própria relação
entre público e artista. Uma pesquisa que se apropria dos conceitos
e pensamentos citados neste artigo, entre tantos outros, para agre-
gar os múltiplos conteúdos e as inúmeras incertezas inerentes ao
homem contemporâneo, pós-era digital, em que apenas a palavra
não parece suficiente para exprimir tal complexidade.
Os mais diferentes olhares e conceitos se contaminam nesse
pensamento e geram possibilidades infinitas de diálogo. A drama-
turgia, que sempre teve o seu alicerce construído através da palavra,
cede espaço para encontrar caminhos menos conhecidos: uma nova
possibilidade dramatúrgica, que se define no espectador através da
percepção. A autonomia da luz como estímulo perceptivo para essa
nova linguagem. A criação artística como metáfora de uma nova
percepção de mundo. A luz como uma polifonia aberta a novas
percepções e olhares, assim como a arte e a vida.
Reuni neste artigo uma parte importante da minha trajetória
de pesquisa para o que compreendo hoje como luz; a luz como
possibilidade de uma arte ampliada. O que me parece é que o fio
tênue que delimita as linguagens artísticas e seus meios talvez nem
exista mais, ou talvez só não faça mais sentido nos nossos tempos…
ou, se ainda existe, estamos em tempo de reavaliar essas diferenças
e nos lançar num pensamento mais unificado. O pensamento de
uma arte ampla e colaborativa, que acompanhe a evolução do nosso
tempo. A arte como pensamento transgressor, que compreende em
si todo um universo de possibilidades direcionadas para a criação
de olhares renovados.

imagem
1 “Cinza ”, performance em parceria com Muep Etmo que integra a “Trilogia das
Cores ”. Foto: Fabricio Remigio.

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Solomon R. Guggenheim Foundation. James Turrel. New York, 2013

40 Mirella Brandi

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Mario
Ramiro

estático cinemático

Um dos artefatos humanos mais antigos que chegaram até nossos


dias é uma estatueta esculpida em pedra, com pouco mais de 10 cm
de altura e cerca de 30 mil anos de idade, representando uma figura
feminina de contornos avantajados e sem face [ fig. 1]. Essa pequena
escultura conseguiu atravessar uma camada temporal pouco comum
para outros objetos, provavelmente feitos de materiais menos du-
ráveis que a pedra. O significado da Vênus de Willendorf não foi
ainda totalmente desvendado, restando muitas especulações sobre
suas origens e funções. Mas, apesar de sua faceta obscura, a viagem
da Vênus pelo tempo é reveladora de uma prática escultórica em
períodos longínquos da história humana. Milênios mais tarde, a
escultura seria concebida programaticamente para resistir ao tempo e
à degradação da carne, carregando para além da morte as lembranças
daqueles personagens representados em bustos, stelas, arquiteturas
e monumentos. Juntamente com tais figuras de representação,
viajavam também pela história as narrativas contadas e cantadas
que se mantinham vivas para além da época em que foram criadas.
Dessa forma, objetos aparentemente inertes tornavam-se um
ponto de convergência dinâmico entre representação, história,
mito, cultura e narrativa. O deslocamento ao longo do tempo
poderia ser visto, assim, como uma das dimensões constitutivas do
objeto ou da imagem. Essa curiosa qualidade cinética do objeto de
arte já havia sido apontada pelo professor Vilém Flusser em seu
texto para o catálogo da exposição “Metrópolis”, de 1991. Nele, o
filósofo argumentava que, se nos dias de hoje temos a impressão

o cinema e seus outros 41

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de vivermos em meio a um universo de imagens
em movimento, isso não seria motivo de surpresa
para o homem de Lascaux ou para um florentino
renascentista. O homem de Lascaux poderia ar-
gumentar que as imagens das cavernas também
migravam de uma caverna para outra, ao passo
que o florentino diria que, desde que as pintu-
ras passaram a ser feitas sobre tela, elas também
começaram a se deslocar de um ambiente para
outro, não mais aprisionadas ao reboco das paredes
(Flusser, 1991, p. 48-53). Apesar desses argumentos
de caráter pré-histórico e histórico, a representação 1

do movimento na história da arte é um tema que encontramos


em constante mutação e alcançou soluções muito engenhosas ao
longo dos séculos na cultura do Ocidente.
Para além da representação, a inclusão do movimento real no corpo
da escultura, no início do século XX, permitiu que ela se deslocasse
fisicamente no tempo e no espaço. Dessa forma, o tempo foi acrescen-
tado às três dimensões do objeto e, com a incorporação posterior da
sonoridade, poderíamos arriscar dizer que outra dimensão temporal
foi agregada ao corpo da obra, que passaria a ter, então, mais do que
quatro dimensões. Além disso, descobrimos também que o próprio
espaço no qual o objeto se insere é parte constitutiva de sua estrutura,
e não apenas o “pano de fundo” de sua presença. Portanto, a dimensão
instalativa poderia também ser somada às outras qualidades do objeto
de arte, tornando a instalação e a
escultura cinética e sonora hexadi-
mensionais. Da mesma forma, as es-
culturas elétricas criadas por Marcel
Duchamp na década de 1920 trouxe-
ram para o campo da tridimensio-
nalidade ilusões retinianas derivadas
do movimento, como na “Rotary
Glass Plates (Precision Optics)”, de
2,3 1920 [ fig. 2] e na “Rotary Demisphere
(Precision Optics)”, de 1925 [ fig. 3], em
que a superfície convexa de uma meia esfera se assemelha visualmente a
uma superfície côncava.
Na mesma época, Naun Gabo produziu a sua “Construção cinética”,
de 1920 [ fig. 4], uma escultura de “volume virtual” na qual um motor
elétrico produz uma vibração em uma haste metálica que, ao vibrar,
gera um volume visual percebido apenas durante o seu movimento.

42 Mario Ramiro

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Esse fenômeno foi mais tarde
definido pelo artista da Bauhaus,
László Moholy-Nagy, como uma
das etapas mais avançadas de
evolução da escultura, conside-
radas a partir do ponto de vista
do tratamento do material. Com
4 o movimento real aplicado ao
bloco escultórico, o artista considerava que o “fenômeno primiti-
vo identificado como: escultura = material + relações de massa se
converteria na desmaterializada e alarmante fórmula intelectuali-
zada: escultura = relações de volume” (Moholy-Nagy, 1972, p. 85-87).
Curioso é que a evidência desse fenômeno era constatada especial-
mente por meio da fotografia de longa exposição, que revela uma
dimensão sensível do movimento no espaço à qual nossos sentidos
não estão plenamente aptos a perceber
[ fig. 5]. Com o advento da fotografia e com
a aceleração das imagens (os fotogramas
da película fílmica), a projeção e a ilusão
do movimento se arraigaram na arte do
cinema. Mas em 1930 o cineasta alemão
Walter Ruttmann, utilizando uma das pri-
meiras câmeras sonoras, o sistema tri-er- 5

gon de 1928 [ fig. 6], antecipou uma noção


contemporânea de cinema expandido ao
filmar os acontecimentos transcorridos
em um fim de semana em uma sequência
de pouco mais de 11 minutos. Intitulado
“Wochenende” (“Weekend”), esse é um filme
sem imagens, que constrói apenas com
sons, trechos musicais, ruídos e palavras
uma narrativa que desperta o ouvinte para a experiência de um 6

“cinema mental”. Transmitido por uma rádio de Berlin – Berliner


Funkstunde, em junho de 1930 –, esse audiofilme fez da transmis-
são eletromagnética o veículo de uma forma desmaterializada e
extremamente dinâmica de arte. O historiador Jeanpaul Goergen
escreveu que “pela primeira vez uma peça radiofônica fora concebida
não como um texto literário interpretado por atores à frente dos
microfones. Não havia nem mesmo atores, apenas pessoas comuns,
gente das ruas (…). Pela primeira vez uma peça radiofônica não
tinha a sua origem numa máquina de escrever, mas sim numa
mesa de corte e montagem acústica” (Goergen, 1994). Tal como no

43

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deslocamento da pequena escultura pré-histórica até nossos dias, esse
“filme” transmitido por ondas de rádio, que considera a sonoridade
como material para a construção de imagens interiores, parece
apontar para a ideia da transmissão e do deslocamento como forma
de arte. Foi isso que animou grande parte dos artistas multimídia
dos anos 1980 e 1990, até o advento da internet. Talvez o evento
mais significativo desse período seja a conexão entre continentes
organizada por Nan June Paik, em 1984, intitulada “Good Morning
Mr. Orwell”. Entre todos os participantes pop stars da cena cultural
daquele período (Joseph Beuys, Peter Gabriel, John Cage, Laurie
Anderson, Phillip Glass, Oingo Boingo, Allen Ginsberg e outros),
o coreógrafo e bailarino Merce Cunningham parece ter sido o
único a aproveitar o evento transcontinental de forma a enfatizar
as características do movimento envolvidas pelo meio. Ao som de
Astor Piazzolla, realizou uma dança minimalista com um delay
de sua própria imagem, transmitida dos estúdios da WNET TV em
NY para o Centro Pompidou em Paris, e de lá retransmitida com
o intervalo de um segundo que a onda eletromagnética utilizou
para viajar do continente americano
para a Europa e de lá de volta [ fig. 7].
O eco visual da imagem do artista,
ao mesmo tempo que explicitava o
feedback da imagem, realizava uma
operação única naquele momento,
sem emulação de qualquer efeito e sem
qualquer maneirismo. Aquele foi um
exemplo de como arte e técnica estão
intimamente conectados na construção de uma poética vigorosa e 7

como tais noções arcaicas da arte do passado continuam vivas na


arte eletrônica. Afinal, como questionou Régis Debray, se “o meio
propõe, o talento dispõe?” (Debray, 1994, p. 285)

44 Mario Ramiro

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imagens
1 “Venus de Willendorf”, período 29.500 a.C.
2 “Rotary Glass Plates (Precision Optics) ” [Pratos de Vidro Rotativos (Ópticos de
Precisão)], Marcel Duchamp, 1920.

3 “Rotary Demisphere (Precision Optics) ” [Demisféra Rotativa (Ópticos de Preci-


são)], Marcel Duchamp, 1925.

4 “Kinetic Construction (Standing Wave) ” [Construção Cinética (Onda Em Pé)],


Naum Gabo, 1920.

5 Volume virtual de um carrossel iluminado em movimento em Blackpool - Ingla-


terra, Laszló Moholy-Nagy. Ilustração da pá.

6 Foto do sistema tri-ergon optical sound recording em uso, 1922.


7 “Good Morning Mr. Orwell ”, Nam June Paik, 1984. Quadro de vídeoinstalação
apresentando Merce Cunningham dançando.

referências bibliográficas
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Petrópolis: Vozes, 1994.
FLUSSER, Vilém. Bilderstatus. Metropolis: internationale Kunstausstellung.
Berlin, 1991.
GORGEN, Jeanpaul. Walter ruttmanns tonmontagen als ars acustica. MuK 89:
Siegel, 1994.
MOHOLY-NAGY, László. La nueva visión y reseña de un artista. Buenos Aires:
Ediciones Infinito, 1972.

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Claudio
Bueno

o invisível como
campo cinemático*

Introdução
Ao pensarmos a palavra campo, rapidamente nossa cabeça converte-a
em uma imagem, inventa uma paisagem, muitas vezes relacionada
ao limite do que os nossos olhos conseguiriam enxergar. Como se
fosse uma grande área diante de nós, aberta à nossa visão, mais ou
menos definida por alguns limites e contornos do que poderia se
formar em nosso campo visual.
Essa imaginação imediata nos sugere que campo seja uma
região, uma zona, uma área que, a todo momento, tenta ser deli-
mitada pelo nosso olhar ou por nosso pensamento. Afinal, iden-
tificar limites permite-nos localizar o corpo no espaço e, ainda,
tranquilizar o espírito, que não suporta estar diante de um campo
sem margens, de contornos provisórios, atravessado por forças que
apontam em diferentes direções.
A tentativa de definir qualquer forma precisamente nos escapa
ao tratarmos do invisível como um campo, pois a perspectiva que
nos interessa, desde o campo da arte, é dinâmica, móvel. A mani-
festação desses campos se dá a partir da posição de corpos, coisas e/
ou não coisas, próximos ou distantes, parados ou em deslocamento,
diante de determinados espaços e tempos, em arranjos provisórios,

* “O invisível como campo cinemático”: este texto parte da pesquisa desenvolvida para
a tese de doutorado intitulada “Campos de Invisibilidade”, defendida pelo autor em
2015, com orientação do artista e professor Gilbertto Prado, no departamento de Artes
Visuais da ECA-USP. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/
tde-26052015-112544/pt-br.php>. Acesso em: 7 ago. 2017.

o cinema e seus outros 47

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em uma duração específica. São campos que se manifestam e se
atualizam diante de determinada situação ou acontecimento. Nesse
sentido, não há campo dado, mas atualizado a partir de latências
possíveis contidas na virtualização dessas situações.
Corpos, coisas, não coisas, tempos e espaços operam como
balizadores móveis das margens e regiões desses campos. Mas não
se deve pensar que essas balizas podem configurar algum tipo de
forma ou contorno bem delimitado.
Apesar de possuírem extremidades variáveis e acontecerem de
modo informal (no sentido daquilo que não tem forma definida ou
reconhecível), os campos invisíveis não são entendidos como um
nada, totalmente negativo, uma coisa inata, um vazio qualquer e
desprovido de sentidos. São, portanto, simultaneamente, positivos
e negativos (Merleau-Ponty, 2012), entendidos como uma presença,
um campo percebido, que modula, organiza, controla, media e ativa
os espaços e as relações em seus atritos com o mundo.
Ao referenciarmos esses campos, automaticamente nos damos
conta de sua impossibilidade de ser nada. No momento em que
se dirige a eles, tornam-se algo e, assim, recebem atribuições e
qualidades que lhe oferecem alguma definição.
O esforço de abstração para falar daquilo que não é visto –
apesar de reconhecido e frequentado diariamente por nossos
corpos – não deve ser confundido como uma ideia platônica,
que desvaloriza as coisas vistas e tangíveis de nossa realidade, em
função da pura imaginação. Sugerimos tratar esses campos como
presenças ativas, de contato com os espaços cotidianos, agindo
junto e entre as superfícies visíveis, concretas e aparentes. Essas
superfícies, em sua total positividade e reflexibilidade, muitas
vezes balizam e fazem emergir esses campos, permitindo-nos
experienciá-los em um corpo psicofísico, simultaneamente lógico
e sensível (Merleau-Ponty, 2012).
Por exemplo, se falarmos a palavra ar, mas não atribuirmos a
ela um ou mais locais específicos de ação, como o nosso corpo ou
a sala em que estamos, a palavra não é nada mais que um conceito
genérico que imaginamos sobre o ar. Um elemento solto no espaço,
apesar de ser alguma coisa, assume posição negativa em relação
ao que o circunda. É supostamente autônomo e não cria atrito e
relação com nenhuma outra coisa. Mas, à medida que falamos do
ar nessa sala, criamos uma implicação que tensiona essa região.
Mesmo sem vê-lo, passo a notar a presença dele em meu corpo,
a identificar as correntes que ele percorre na sala, a saber que ele
é o mesmo para mim e para você. Entendemos, assim, que um

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campo invisível é sempre relacional e relativo, seja aos espaços,
aos corpos, seja às coisas.
Um campo de invisibilidade assume nova configuração e
sentido a cada novo movimento no espaço, antes mesmo de expres-
sar-se formalmente pela linguagem ou pela visualidade. Modula as
ações e percepções de nosso corpo diante daquilo que não vemos.
Trata-se de algo que está entre todas as coisas, como um invólucro,
ubíquo, que envolve o dentro e o fora dos corpos e dos espaços.
Constitui-se de diversos elementos, como: os psiquismos, as energias
vitais, o divino, a alma, os desejos, os afetos, as relações, os conflitos,
as políticas, as geografias, os poderes, as memórias, as histórias, as
ciências, as leis, as linguagens, os sentidos, as temporalidades,
as tecnologias, os magnetismos etc.
É, portanto, sob esses múltiplos vetores que essa palavra/
conceito é compreendida no contexto deste artigo. E se à noção
de campo estão contidos todos os elementos, é dessa maneira que
entendemos também a noção de invisível.

O invisível como campo.


Compreender “O invisível como campo cinemático”, confor-
me enunciado no título deste artigo, tem como intenção evocar e
enfatizar os campos invisíveis como campos de movimentos, vivos,
mutáveis, zonas de atividade. Campos não estáticos, baseados em
formas ativas, que guardam latências, virtualidades e disposições
para a transformação, para o movimento e para a mudança de
posição e de sentido no espaço e no tempo.
Sugere ainda, no contexto deste livro, a perspectiva do que
se reconhece comumente como cinema expandido, refletir sobre
práticas artísticas capazes de agitar e fazer emergir esses campos e
suas composições de forças, sem a urgência das polarizações, dos
sentidos objetivos, supostamente claros e ordenados sobre as coisas.
Aos artistas caberia, portanto, fazer-nos perceber, sentir, habitar
e tomar consciência de tais campos invisíveis, sem, necessariamen-
te, a confecção de objetos e formas bem delimitadas – mas por
meio de práticas que exploram espaços, tempos, fluxos, aconte-
cimentos, agenciamentos e conexões, pressupondo que “existem
outros mundos que estão neste”1, os quais somos convidados a
reconhecê-los, sem vê-los.

1 “Sobre outros mundos que estão neste”: essa expressão é homônima ao título do
trabalho do arquiteto e escritor Tony Chakar, exibido na 31a Bienal de São Paulo: Como
[...] coisas que não existem (2014). O nome é inspirado na frase do poeta Paul Éluard
que diz “Há um outro mundo, e ele está neste mundo”.

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Práticas do invisível como práticas conceituais
Refletir hoje sobre práticas artísticas que lidam com a dimensão
do invisível é reconhecê-las em conexão histórica com as práticas
conceituais realizadas, principalmente, na segunda metade do
século XX.
São trabalhos que, ao problematizarem a natureza da arte e
sua manifestação visual, objetual e formal, pura e autônoma em
relação ao seu contexto, ou enquanto mercadoria, passam a enfa-
tizar características participativas, não representacionais, impuras,
intermedia2, transitórias, temporais, contextuais, espirituais, não
retinianas, endereçadas ao binômio arte-vida e entrelaçadas, muitas
vezes, aos espaços, meios, debates e temporalidades cotidianos.
Se os chamados “conceitualismos”, pulverizados globalmente,
mas vivenciados com intensidade na América Latina, se utilizam
de diferentes modos de fazer e circular a produção artística, como:
arte-postal, performance, instalação, land-art, videoarte, livro de
artista etc. (Freire, 2006, p. 8); cabe diferenciá-los da chamada arte
conceitual norte--americana. Essa última é marcada por um período
de tempo determinado frente ao fortalecimento do mercado de
arte nos EUA, nos anos 1960 e 1970 – conforme organizado pela
crítica de arte Lucy Lippard3. Para Lippard, a arte conceitual viria
intensificar a problematização do objeto artístico moderno, a fim
de desmaterializá-lo e deslocalizá-lo de seu lugar garantido pela
autonomia formal da pintura e da escultura.
Trabalhos desse período passaram a tratar a arte como ideia,
informação, processo, conceito, atentando para a função intelec-
tual do artista e de seu receptor (que se tornou elemento-chave de
ativação e sentido das obras).
Boa parte dos aspectos suscitados pela arte conceitual, desma-
terializada e invisível, é influenciada por ideias como as de Marcel
Duchamp, que se mudou para os Estados Unidos em 1942 e contou
com o artista e compositor John Cage como peça fundamental
para a disseminação do seu pensamento, a partir de escritos, aulas,
seminários e performances.

2 Intermedia: termo cunhado em torno de 1966 por Dick Higgins – um dos protago-
nistas do grupo Fluxus. Sob essa concepção, a arte é valorizada como comunicação e
enfrenta a dialética dos meios, em vez da simples fusão entre eles.
3 A escritora e crítica de arte norte-americana Lucy R. Lippard organizou cronologica-
mente por meio de uma série de documentos – composta por depoimentos, entrevistas,
fotografias, registro de obras e de exposições – grande parcela de uma produção identificada
como arte conceitual. Esse mapeamento deu origem ao seu livro intitulado “Six years:
the dematerialization of the art object from 1966 to 1972” (“Seis anos: a desmaterialização
do objeto artístico de 1966 a 1972”), publicado em 1973.

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Em 1919, alguns anos após apresentar a célebre “Roda de bicicleta”
(1913), Duchamp realizou a obra “50 cc of Paris air”. Como mais um
de seus ready-mades (objetos industriais selecionados no cotidiano
e transferidos para o contexto artístico), o trabalho foi constituído
por uma ampola de vidro que contém dentro dela, supostamente,
alguns centímetros cúbicos do ar de Paris. A ampola foi comprada
por Duchamp em uma farmácia, como um souvenir, e levada aos
Estados Unidos para Walter Arensberg, seu amigo pessoal, crítico
e colecionador de arte.
A informação sobre a quantidade de ar dentro da peça (re-
velada pelo título) passa a operar como conexão entre o objeto e
seus públicos. Frente à ampola aparentemente vazia, o artista nos
exige esforço mental para imaginar, completar e refletir sobre o ar
contido dentro da peça. O objeto apresentado não possui quali-
dades artísticas formais em si, tendo em vista apenas uma ampola
industrial e o suposto “ar” de Paris. O aspecto visual de apreciação
do trabalho havia sido, ali, definitivamente rebaixado.
“50 cc of Paris air” revela uma mistura paradoxal entre contenção
e indeterminação do objeto artístico: ao mesmo tempo dentro do
vidro, mas também expandido, variável, solto no espaço. Somos,
assim, sensibilizados pelo gesto simbólico proposto por Duchamp,
uma vez que o ar, essencial à própria vida, disponível a todos, havia
se tornado arte, potencialmente dentro e fora da ampola de vidro.
A repercussão dessas ideias é claramente notada em muitos
trabalhos da arte conceitual norte-americana realizados a partir dos
anos 1960, como se observa nas propostas do artista Robert Barry.
Ao longo de sua produção, que trata o invisível como expansor
da nossa percepção, o artista se apropria de ondas de rádio, sons,
eletromagnetismo, telepatia, gases etc.
Em sua série de gases inertes de 1969, entendida pelo artista
como série de grandes esculturas ambientais, Robert Barry lan-
çou cinco de seis gases nobres na atmosfera. Convidado por Seth
Siegelaub para a “mostra” intitulada “One Month” (1969), o artista
realizou essas ações ao longo de um mês, no sul da Califórnia.
O trabalho aconteceu de duas maneiras: as ações de Barry na
paisagem e pôsteres distribuídos com o anúncio da mostra na
galeria de Siegelaub. Através de um número de telefone dispo-
nibilizado nesses pôsteres, as pessoas podiam ligar e escutar uma
mensagem eletrônica que descrevia o trabalho. Não havia obra
no espaço da galeria.
O artista atribuiu a escolha dos gases ao conhecimento ad-
quirido durante o período escolar. Revelou, assim, certa relação

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com a ciência e com os conhecimentos gerais, extraindo qualquer
sentido simbólico referente aos gases, em si, mas tensionando, de
maneira discursiva, a relação com seus contextos de apresentação.
Essa ação invisível pode nos levar a perceber elementos in-
formes que frequentamos diariamente, como o ar e os gases que
respiramos e emitimos na atmosfera, mas não vemos – ao mesmo
tempo que, tanto para o curador quanto para o artista, importa-
va ainda inventar novos circuitos de produção e circulação da
arte, para além da pureza visual e do circuito comercial de arte
estadunidense.
Robert Barry integrou também, em 2012, a mostra do curador e
diretor da Hayward Gallery, em Londres, Ralph Rugoff, intitulada
“Art About the Unseen 1957-2012”4 (referência importante para este
texto). No texto “Como olhar o invisível na arte”, que integra catá-
logo da exposição, o curador situa o trabalho do artista Yves Klein
como possibilidade inaugural para o que viria a ser reconhecido
como “arte invisível”.
Em 1957, na galeria Collete Allendy, em Paris, Klein abriu uma
exposição aparentemente vazia, somente com as paredes pintadas
de branco. Chamava-se inicialmente “Surfaces et Blocs Sensibilité
Picturale” (em tradução livre: “Superfícies e Blocos de Sensibilidade
Pictórica”), que foi reapresentada entre 1957 e 1962, passando a ser
chamada, por fim, somente de “The Void” (“O Vazio”). Diante das
variações de título, interessa-nos assinalar o deslocamento que o
artista realizou da noção de superfície à noção de vazio. Essa última,
ao se aproximar das relações com o ambiente, relaciona-se com os
campos de invisibilidade elaborados aqui. Ou seja, ao adentrar o
espaço da galeria, não se tratava mais de ver ou de tentar encontrar
algo na pintura aplicada à superfície da parede, mas sim do campo
invisível e sensório ativado no espaço da sala, no corpo e na mente
daquele que visitava a galeria.
Essa negação do espaço formal e fixado da produção artística,
bem como o desejo de aproximação com os espaços móveis e sen-
síveis da vida, deram origem ainda, em 1962, influenciados também
por John Cage, ao grupo Fluxus.

4 “Art about the unseen 1957-2012”: integraram essa mostra as obras dos artistas Yves
Klein, Yoko Ono, Claes Oldenburg, Art & Language, Robert Barry, James Lee Byars,
Chris Burden, Andy Warhol, Teaching Hsieh, Horst Hoheisel, Gianni Motti, Maurizio
Cattelan, Tom Friedman, Jochen Gerz, Bruno Jakob, Song Dong, Carsten Holler, Teresa
Margolles, Jay Chung, Ceal Floyer, Mario Garcia Torres, Jeppe Hein, Bethan Huws, Glenn
Ligon, Roman Ondák e Lai Chin-Sheng.

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Criado em torno de George Maciunas5, artista lituano radicado
nos Estados Unidos, Fluxus6 contou com uma vasta participação
de artistas de diversas partes do mundo7.
O grupo configura-se como um modo de fazer aberto, que
não segue um estilo ou movimento. Incorpora a noção de inter-
media, colocando suas práticas numa zona entre diferentes meios
e linguagens, enfrentando a chamada “dialética dos meios”, e não
apenas a simples fusão entre eles. Suas ações abarcam instruções
de performances, happenings, eventos, intervenções em meios ele-
trônicos, apresentações sonoras, publicações impressas etc.
Diante dessa variedade de práticas, destaca-se o caráter expe-
rimental, efêmero e performático de suas ações, marcadas pela
contínua mudança e pela não repetição, em completa negação de
relações com a tradição artística visual.
Caso exemplar da desconstrução da imagem, as experiências
Fluxus realizadas pelo artista coreano Nam June Paik, desde 1963,
utilizavam televisores, ímãs e o processamento de imagens televisivas
em tempo real. O artista afirmava o caráter processual, efêmero,
de acontecimento e apresentação da ação artística, que não mais
estaria a serviço da representação de conteúdos. Paik manipulava
o campo imaterial e invisível das ondas eletromagnéticas da TV e
do ímã utilizado na ação.
Esse breve percurso traçado entre práticas conceituais e suas
relações com o invisível nos permite verificar, a seguir, proposições
artísticas realizadas pelo autor deste texto, em diálogo com outros
artistas, que se inserem nesse modo de pensar e de fazer arte hoje
– atravessada pela multiplicidade, simultaneidade e pluralidade de
espaços, tempos, corpos, circuitos, políticas, meios e tecnologias
históricas e atuais.

5 George Maciunas (1977), entrevista: nesse áudio, o artista afirma a relação com John
Cage e sua influência na criação do grupo Fluxus. Disponível em <http://www.fluxus.
org/audiofile.html>. Acesso em: 2 nov. 2014.
6 Grupo Fluxus, site: <http://www.fluxus.org/>. Acesso em: 8 ago. 2017.
7 Integrantes Fluxus: integraram o grupo, em diferentes momentos, Ben Vautier, George
Brecht, Joseph Beuys, Nam June Paik, Wolf Vostell, Yoko Ono e muitos outros, como
é o caso do artista brasileiro Paulo Bruscky, que manteve comunicação com o grupo.

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Experimentações artísticas com o invisível

redes
Em 1974, a artista Lygia Clark realizava sua obra intitulada
“Rede de elástico”. Nesse trabalho, convidava um grupo de pessoas a
tecerem juntas uma rede de elásticos, para em seguida colocarem-se
debaixo dela e então tensioná-la com o corpo para todos os lados.
Para Lygia, a ação e a duração do tecer eram tão importantes como
a ação de envolver-se nessa trama, embaraçando organicamente os
corpos e as identidades, desenhando linhas e vetores no espaço.
Ao tomar contato com a proposição da artista, para além de
uma perspectiva nostálgica e historicista do corpo, das identidades,
da arte e das relações, ocorreu-me perguntar sobre um novo regime de
relações, entrelaçamentos, proximidades e distâncias, do ponto
de vista de alguém que residia em uma metrópole como São Paulo,
em 2010, ano da criação da obra “Redes Vestíveis”, estudada a seguir.
Qual era esse novo tecido, essa trama, esse campo, essa rede que
passava a atravessar, envolver e modular os corpos e as relações nas
dinâmicas da vida cotidiana?
Imaginei, então, a possibilidade de vestirmos uma rede, como se
fez em “Rede de elástico”, mas agora estruturada em uma trama imate-
rial, como um campo sem margens, baseado em linhas e vetores que
se lançam no espaço. Os corpos, de natureza orgânica, somar-se-iam
ao espaço lógico e funcional das redes de informação e de tecnologias.
E, ao contrário de um elogio a essa maneira de se relacionar dominada
por empresas de telecomunicações e megainfraestruturas globais,
importava-me enfrentar e imaginar as qualidades e diversidade de
vínculos, cumplicidades e relações que se impunham fortemente
no contexto das metrópoles contemporâneas conectadas.
A partir dessas reflexões, Redes vestíveis (2010)8 configurou-se
como uma performance coletiva baseada numa rede virtual elástica,
geolocalizada e graficamente representada nas telas de aparelhos
celulares [ fig. 1]. Duas ou mais pessoas conectavam-se a ela por meio
de um aplicativo para celular, tornando-se novos nós da trama,
que se tensiona por meio de movimentos e deslocamentos físicos,
em espaços próximos ou distantes. O corpo que se desloca incita
virtualmente o movimento físico dos outros corpos, que, caso não
se movimentem também, fazem esgarçar e estourar os nós da rede,
desconectando o participador do trabalho.

8 “Redes Vestíveis” (2010): o desenvolvimento desse projeto contou com o apoio do


Prêmio Mídias Locativas, do Festival Vivo Arte.mov, 2010.

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1

Diferente do espaço mais definido de ação da obra de Clark,


em “Redes Vestíveis” as pessoas são atravessadas por uma espécie de
geometria diagramática da mobilidade e da distância (visualizada na
interface gráfica). Nessa proposição, os corpos atuam como vetores
e vértices móveis dessas relações espaciais e temporais. Trata-se de
uma cartografia móvel, constituída por linhas, presenças e conexões,
locais e globais, tendo no corpo o lugar de contato direto com as
informações e os espaços em relação.
É também um jogo, cujo desenvolvimento ocorre por meio das
decisões tomadas na relação entre as pessoas e os grupos conectados
a cada tempo e seus desejos e disponibilidades para a conexão. Na
medida em que a conexão com o aplicativo acontece, a informação
toma o corpo do participante e o move, colocando-o sob a posição
de ceder e/ou resistir aos outros.
Apesar de o trabalho sugerir certa liberdade de negociação
das presenças diante dessa rede virtual, é possível dizer que essa
liberdade é ilusória. Afinal, quem controla as presenças e rela-
ções, sob uma óptica mais pessimista, é o tecido invisível dessa
arquitetura ancorada em datacenters, cabos, antenas, satélites e nas
grandes empresas de telecomunicações – demasiadamente físicas,
centralizadoras de toda informação, pouco democráticas, a serviço
de agências de vigilância global e orientadas aos negócios –, ainda
que se vislumbre nessas redes possibilidades de contrapoderes.

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Esse espaço imaterial entre nós (abordado aqui pelo viés da
circulação digital de informações) suscita ainda paradoxos entre
individuação e coletividade, liberdade e controle, estabilidade e
instabilidade, centralização e descentralização do corpo, dos espaços,
das informações e das relações.
A malha invisível de “Redes Vestíveis”, constituída aqui pela in-
formação, elabora novas reflexões ao dialogar com a obra “Divisor”
(1968), da artista Lygia Pape. Encontra nessa conversa a dimensão
sensível entre a experiência individual e coletiva, agenciada por
um tecido, agora, imaterial e invisível, produzido pela informação.
Na performance coletiva proposta por Pape, um grande tecido
branco é estendido e sustentado por corpos, que ocupam fendas
e se movimentam no espaço. O indivíduo passa a ser percebido
enquanto parte de um corpo coletivo – afetando e sendo afetado
pelo movimento produzido pelos demais participantes.
Em texto publicado no catálogo “Lygia Pape. Espaço Imantado”
(2012, p.19), o crítico de arte e curador Paulo Herkenhoff define
“Divisor” como “campo de luz, o grau zero suprematista da estética
neoconcretista”. Nesse texto, o curador resgata a aproximação con-
ceitual de Pape a Malevich, permitindo-nos pensar, por meio desse
grande plano branco, “Divisor” como um grau zero, como campo de
possibilidades e campo de luz, imaterial, não representativo, não objeto.
Pape nos trazia o lugar da poesia e da utopia como possibilidade
de vislumbrar uma sociabilidade livre, frente a um contexto de di-
tadura, no qual ocorria, no mesmo ano de “Divisor”, 1968, a passeata
dos 100 mil no centro do Rio de Janeiro e a promulgação do AI-59
no Palácio das Laranjeiras (eventos que ocasionaram mortes e
enormes perdas de direitos civis). Sob essa perspectiva de uma
sociabilidade livre, a artista declarou: “Divisor. A pele de TODOS:
lisa, leve como nuvem: solta” (Pape, 2012, p. 244).
Essa declaração, poética como tal, nos permite refletir sobre
obras como “Divisor” e também “Redes Vestíveis”, não apenas como
uma vontade gregária de viver junto a todo tempo, sem espaço
para os desejos e desvios singulares e individuais, mas nos conduz
a conceitos como o de idiorritimia, discutido por Roland Barthes
em seus cursos e seminários intitulados “Como Viver Junto”, entre
1976-1977, no Collège de France, em Paris (Barthes, 2003, p. 74).

9 AI-5: Ato Institucional número 5. Foi o quinto de uma série de decretos emitidos
pelo regime militar brasileiro nos anos seguintes ao Golpe Civil-Militar de 1964 no
Brasil. Dava poderes extraordinários ao Presidente da República e suspendia muitas
das garantias constitucionais.

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A idiorritimia (ídios: próprio; rhythmós: ritmo) é exemplificada
pelo autor em relação aos monges que viviam no monte Athos,
que, mantendo apenas alguns vínculos com o mosteiro, buscavam
adotar seu ritmo de vida próprio. Desejavam uma distância que não
fosse capaz de quebrar o afeto, mas viver junto e, ao mesmo tempo,
separado – como parte da pele de todos, sem necessariamente a
presença em tempo integral.
Nesse mesmo livro, sobre a possibilidade de um tempo próprio,
Barthes nos fala: “O que o poder impõe, acima de tudo, é o ritmo”.
Há aqui um deslocamento para a dimensão imaterial, temporal
e invisível do poder, não apenas baseada no modelo panóptico,
disciplinar e visual, como das cadeias, fábricas e escolas, conforme
descrito por Michael Foucault em “Vigiar e Punir” (1999). Agora,
no final do século XX, aparece diante de espaços informatizados,
conectados a redes e bancos de dados a partir de grids infraestrutu-
rais, como um tecido, uma malha, que enreda a todos – o controle
e o exercício do poder se faz a distância (Deleuze, 1992, p. 219).
É sob essa perspectiva monumental dos grids infraestruturais
de controle, absolutos, contínuos, invisíveis, determinantes dos
ritmos globais que discorreremos a seguir.

monumentos
Desde os anos 1960, no cruzamento entre arte e arquitetura,
verificamos inúmeras experimentações em torno da ocupação
tecnológica dos territórios globais, mais recentemente conhecidos
como “territórios informacionais”, o que nos coloca em diálogo com
os grupos, Archigram (1961, Inglaterra) e Superstudio (1966, Itália).
Archigram (archi: architecture; gram: telegram) organizou-se em
torno de uma publicação impressa homônima, baseada em desenhos
e colagens, que propunha projetos especulativos e visionários em
torno de uma arquitetura de eventos: móvel, temporária e com forte
apelo à infraestrutura tecnológica e em rede. Diagramava futuras
cidades, como em “Computer City” (1964), baseadas em redes e
fluxos: de tráfego, de pessoas e, sobretudo, de informação. O caos
em potencial em uma grande cidade estaria muito mais vinculado
ao desligamento das estruturas de comunicação em rede do que ao
comprometimento das demais arquiteturas físicas da cidade.
Integrantes do grupo, como David Greene, através do projeto “The
Bottery / Locally Available World unseen Network – L.A.W.u.N.” (“Mundo
Localmente Acessível por Redes Invisíveis”), lançado em 1969 – mesmo
ano da transmissão televisiva em escala global, do homem pisando na
Lua –, vislumbrava uma paisagem liberada de toda arquitetura edifi-

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cada, enfatizando noções de tempo e tecnologia. Greene pensava: “a
reestruturação do estilo de vida em termos de softwares relacionados
ao tempo, em vez de hardwares, relacionados ao espaço”. Discutia-se
sobre a possibilidade de a arquitetura ser pensada em termos invisíveis,
e não apenas materiais e visíveis como em sua tradição.
De modo análogo, mas com o propósito de criticar projetos
modernos, de natureza utópica e baseados em motores, equipa-
mentos eletrônicos, malhas de comunicação que se espalhariam
por todo o território e as técnicas de controle ambiental, surgiu
também o grupo italiano Superstudio, em 1966. O grupo criava
colagens, esboços e filmes que ironizavam e desconfiavam da
suposta melhoria de vida trazida por essa arquitetura midiática,
pop, de consumo, apoiada nos meios tecnológicos, racionais e
científicos – como prospectadas pelo Archigram.
Como uma antiutopia, ou “utopia negativa” (modo como o
grupo entendia seus trabalhos), especulavam por meio das “redes
infraestruturais do pós-guerra a oportunidade de equipar todo o
território disponível sem precisar construir um único edifício, quer
dizer, simplesmente distribuindo energia e meios de subsistência
em abundância através de uma grelha isotrópica” (Miyada, 2013,
p. 261). O espaço era tratado de modo indiferenciado, possibilitando
estar em qualquer lugar, pois toda a cidade estaria equipada com
conexões e microambientações semelhantes.
Tal proposição se nota através da série “Monumento Contínuo”
(1969), em que o grupo apresentava em suas colagens o absoluto
domínio do homem sobre a natureza, racional e antinatural, evi-
denciado pelo rigor geométrico do grid, fixado a todas as estruturas,
entre ambiente urbano e natureza. O grid como estrutura monu-
mental, brutal, imutável, incomunicável e inabalável.
A visualidade e a experiência das cidades tomadas por esses grids
infraestruturais nos sugerem, em “Monumento Contínuo”, um senso
de continuidade aflitivo, pervasivo, ubíquo e inescapável – como
uma aplicação infinita e repetida no espaço-tempo, capaz de cobrir
com seu padrão quadricular toda a superfície da Terra. E de maneira
monumental, revela uma arquitetura totalitária, regular e opressiva.
“A estabilidade absoluta do grid, sua falta de hierarquia, de centro,
de inflexão, enfatiza não só o seu carácter antirreferencial, mas – mais
importante – sua hostilidade à narrativa”10 (Krauss, 1986 p. 158).

10 Do original em inglês: “The absolute stasis of the grid, its lack of hierarchy, of centre,
of inflection, emphasizes not only its anti-referential character, but – more importantly – its
hostility to narrative”.

58 Claudio Bueno

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Tal hostilidade narrativa, sem memória ou história específica,
é problematizada pela série de “Monumentos Invisíveis”, propostos
por mim e desenvolvidos por meio de encontros, oficinas e gru-
pos de trabalho, desde 2011. Busca produzir flexibilizações desses
grids, devolvendo ao território aquilo que ele teria de particular,
específico, do lugar diferenciado e não homogeneizante frente às
redes de comunicações globais.
Nessa série de trabalhos, a monumentalidade das redes in-
fraestruturais que tomam o cotidiano das cidades e das próprias
dinâmicas da vida é entendida, em sua capacidade de cobrir toda
a superfície da Terra, sem possibilidade de desvio, como monu-
mentos contínuos.
“Monumentos Invisíveis” é uma série de trabalhos baseados
em narrativas sonoras projetadas para a experiência do corpo no
espaço urbano, criando visibilidade para histórias que deixam
entrever a estrutura brutal dos monumentos oficiais, procurando
relativizá-los e desmanchá-los.
Os sons instalados permanentemente em diversas cidades ao
redor do mundo podem ser ouvidos quando as pessoas se aproxi-
mam de determinados locais, utilizando um aplicativo11 instalado
em seus aparelhos celulares com GPS e internet. Até o momento,
existem monumentos instalados na Cidade de Québec; em Puebla;
na Cidade do México; em Goiânia; e em São Paulo. Ao criarmos
“Monumentos Invisíveis”, uma inauguração oficial é organizada, a
partir de peças de comunicação distribuídas pela cidade, a fim de
apresentá-los publicamente a turistas e moradores locais.
Em novembro de 2011, o primeiro monumento sonoro foi
inaugurado no Antigo Porto da Cidade de Québec. Chama-se “Le
Chant des Sirènes”12 (“O Canto das Sereias”) [ fig. 2 e 3 ]. Trata-se de
uma homenagem a oito mulheres canadenses que morreram no
mar, trabalhando na comunicação via rádio, nos navios da Primeira
e da Segunda Guerra Mundial. Agora, representadas pelas vozes de
oito cantoras quebequenses que performaram no local, elas cantam
permanentemente na margem do rio Saint Laurent como sereias.
Quando nos aproximamos da margem do rio com o aplicativo
“Monumentos sonoros”, instalado em um aparelho celular, as vozes
começam a reverberar em nossos ouvidos.

11 Download do aplicativo: é possível baixar gratuitamente esse aplicativo nas lojas


Google Play ou Apple Store, buscando pelo título “monumentos sonoros” (nome dado
inicialmente a essa série).
12 “Le chant des sirènes” (2011): assista ao vídeo-registro do trabalho no link: <http://
buenozdiaz.net/index.php/project/monumentos-invisiveis/>. Acesso em: 12 ago. 2017.

59

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2

No momento em que se escuta esse som, todos os elementos


(materiais e imateriais, visíveis e invisíveis) que compõem a paisagem
passam a convergir para o corpo do visitante e consequentemente
para a produção da experiência do trabalho.
Seguindo os atuais padrões de mobilidade e fluxos propostos
pelas redes digitais em mídias móveis, um som ou o acesso a uma
informação poderiam ser realizados, teoricamente, de um lugar
qualquer. Já em “Le Chant des Sirènes”, utilizando o serviço de geolo-
calização por satélite, cabos submarinos e antenas, os sons só podem
ser acessados e escutados nesse local. Cria-se, assim, uma relação
estreita entre o corpo do visitante, o espaço físico da arquitetura e
o campo invisível fornecido pela infraestrutura tecnológica, pela
história e pela memória da cidade.
O raio de escuta desse som está localizado: em frente ao mo-
numento dos marinheiros da marinha mercante que morreram
durante a Segunda Guerra Mundial; em frente ao Museu Naval
da cidade, que contém a história da guerra; de frente para o Rio
Saint Laurent, onde ocorreram bombardeios durante a Segunda
Guerra. No caminho até esse local, lê-se ainda nas placas dos veí-
culos a frase: “Je me souviens” (“Eu me lembro”) – um modo que
a cidade encontrou para lembrar a guerra e dizer que não quer
reviver esse fato.
Ao escutar a letra da música, que sensibiliza esse espaço-tempo
por meio do acesso a um arquivo digital, ecoada pela voz das can-
toras-sereias repetindo infinitas vezes “plongez... plongez... plongez...”,
que em francês quer dizer “mergulhe... mergulhe... mergulhe...”, esse
corpo, localizado na margem do rio, sem nenhum guarda-corpo
que lhe ampare, é também incitado a mergulhar. É estabelecido um
conflito entre a consciência racional do espaço físico e a flutuação
mental provocada por esse mantra.

60 Claudio Bueno

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O trabalho cria com o visitante uma relação similar à de “Odisseia”,
em que Ulisses deseja ouvir as sereias, mas pede que seja amarrado
para não morrer. Trata-se de uma relação semelhante à nossa em
relação às tecnologias que desejamos utilizar, mesmo prevendo as
consequências desse uso.
Como um contramonumento ou um monumento negativo –
em contraposição à positividade histórica oficial, ao mármore e ao
bronze utilizados na confecção dos monumentos tradicionais –,
“Le Chant des Sirènes” revela, através de sua imaterialidade e in-
visibilidade, uma parcela do sistema de valores que estruturam
as cidades, como: a homenagem ao marinheiro (homem) e a
redução histórica do papel social das mulheres; os dispositivos
de representação da cidade; a manipulação e o sentido imutável
construído pela história; a anulação do corpo pela arquitetura,
entre outros.
Em um lugar altamente protegido como o Porto de Québec,
utilizado para imigração de turistas e também para o transporte de
cargas, o uso da informação sonora geolocalizada pela tecnologia sur-
giu como dispositivo de hackeamento desse espaço. Nesse local, nada
podia acontecer sem autorização concedida pelos agentes oficiais da
marinha – que nos interrogaram algumas vezes durante as gravações.
Se é possível compreender os monumentos como redes de
histórias, de memórias e, nesse caso específico, baseados em trans-
missões, seria possível dizer que os novos monumentos estariam
concentrados hoje nas redes de comunicação e sua presença pervasiva
nas cidades? – monumentos entendidos como os datafarms que
reúnem informações do mundo e se afirmam cada vez mais como
presença global nas cidades. Se concordarmos com essa declaração,
a noção de poder atribuída aos monumentos tradicionais passaria a
nos afetar também por meio de campos e arquiteturas invisíveis,
submersas e transmitidas pelo espaço aéreo.

máquinas
Como parte dessa sequência de experimentações artísticas que
exploram as dimensões invisíveis nos espaços e nas relações, apre-
sento, a seguir, o último trabalho dessa série, desenvolvido até o mo-
mento de escrita deste texto. Trata-se de “Estudo para Duelo”13 (2013),
realizado em coautoria com a artista Paula Garcia [ fig. 4].

13 “Estudo para Duelo” (2013): essa instalação foi desenvolvida como parte da residência
artística Videobrasil em Contexto, realizada pela parceria entre Casa Tomada, Videobrasil
(São Paulo) e Delfina Foundation (Londres). O desenvolvimento dessa peça contou com
a colaboração imprescindível do artista Paulo Galvão.

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Nessa obra, o invisível é
sentido e apreendido de ma-
neira mais concentrada e con-
creta, por meio de um campo
magnético repulsivo, presente
nos coletes vestidos pelos par-
ticipantes (em contato direto
com o corpo). A obra produz
uma experiência de impacto
físico com o invisível, experienciado no encontro entre duas pessoas 4

– que definem, no uso dessa estrutura, os graus de cumplicidade


no impacto gerado entre esses dois corpos. Por meio desse embate,
espera-se que o sujeito crie uma memória sensível e psicológica
em seu corpo, permitindo-lhe perceber e refletir sobre as possíveis
forças invisíveis presentes nas relações e nos espaços cotidianos.
Essa peça não sugere liberdade, mas intensifica, por meio de
sua arquitetura, baseada em um corredor de 6 metros de com-
primento, sem possibilidade de desvio, o confronto direto com
o outro e o caráter disciplinar dos deslocamentos e encontros
diários nas cidades. Tal condição, material e imaterial, corporal
e incorporal, entre a estrutura metálica e o campo magnético
repulsivo, oferece questionamentos que duvidam de certo tom
leve e libertário que possa estar ideologicamente impregnado
nos espaços contemporâneos, especialmente quando tratamos
de fluxos de informação.
Ao contrário das máquinas cotidianas de aparência amigável,
cujas estruturas não são questionadas devido à fácil adaptação
aos corpos de seus usuários, a máquina produzida para essa obra
inverte esses valores, assumindo sua brutalidade.
O caráter precário da obra é assumido nos elementos da cons-
trução civil, comprados, parcialmente, em ferro-velho. Trata-se de
um trabalho sujo, que se difere da assepsia do cubo branco dos
espaços da arte ou dos dispositivos tecnológicos comercializados
atualmente – que ocultam, deixando fora do campo de visão,
seus meios de produção e de trabalho precarizados, bem como seus
modos de operar.
Essa máquina revela um sentimento distópico, que não idea-
liza um futuro, mas problematiza fortemente a experiência do
tempo presente e das máquinas e campos invisíveis que mediam,
em seus constantes movimentos, as nossas relações e repulsões
nos dias de hoje.

62 Claudio Bueno

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imagens
1 “Redes Vestíveis ”, 2010. / Foto: Cauê Ito.
2 e 3 “Le Chant des Sirènes ”, 2011. / Fotos: Sebastien Hudon.
4 “Estudo para Duelo ”, 2013, realizado em coautoria com a artista Paula Garcia.
Foto: Marcos Cimardi.

referências bibliográficas
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cotidianos. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes,
1a edição, 2003.
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Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/
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DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Tradução de Peter Pal Pélbart.
São Paulo: Ed. 34, 1992.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
KRAUSS, Rosalind. The originality of the avant-garde and other modernist myths.
Cambridge: MIT Press, 1986.
LIPPARD, Lucy. Six years: the dematerialization of the art object from 1966 to 1972.
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MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.
MIYADA, Paulo Kiyoshi Abreu. Supersuperfícies: New Babylon (Constant
Nieuwenhuys e Internacional Situacionista, 1958-74) e Gli Atti Fon-
damentali (Superstudio, 1972-73). O pensamento utópico como parte da
cultura arquitetônica no pós-guerra europeu. 2013. Dissertação – FAU-USP,
São Paulo, 2013.
PAPE, L. Espaço imantado. Textos de Paulo Herkenhoff; Manuel J. Borja-Villel.
cat. exposição, 2012.

63

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Lucia Koch

65
“Cromoteísmo”, 2012,
impressão jato de tinta sobre
lona vinílica, painel retroilu-
minado instalado no altar
da Capela do Morumbi

66-67
“New Development”, 2011,
impressão jato de tinta
sobre tela de vinil,
desenvolvido para a
11a- Bienal de Lyon

68-69
“Conversation”, 2013,
instalação desenvolvida
para a 11a- Bienal do Shar-
jah, “Re: emerge”

70-71
“Night Fever”, 2010,
frame de vídeo

64 ensaio visual

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datavi-
sualização
estatís-
2. tica espaço
informacional
em dados

análise com-
putacional
estética de
banco
de dados
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Giselle
Beiguelman

cultura visual

s- na era do big data

A cultura visual contemporânea é indissociável da produção ima-


gética nas redes. Nunca se fotografou tanto como em nossa época.
Estima-se que a cada dois minutos sejam produzidas mais imagens

-
que a totalidade das fotos feitas nos últimos 150 anos (Eveleth, 2015).
Essa é uma estimativa relativamente modesta, considerando-se
que há 1 bilhão de dispositivos com câmera (entre os 5 bilhões de
celulares ativos) e que cada um deles captura cerca de três fotos
por dia (ou mil por ano).1
A relevância desse fenômeno não é sua pujança quantitativa,
são as transformações culturais e, portanto, qualitativas para a qual
aponta. À popularização das câmeras corresponde uma inequívoca
multiplicação de sujeitos que passam a enquadrar e ser enqua-
drados nas telas. O que se coloca em jogo aqui é um processo de
apropriação da imagem por novos perfis sociais sem precedentes.
Não é possível isolar essas manifestações dos impactos da

de
digitalização da cultura e da ubiquidade das redes. Alteraram-se
os processos de distribuição de imagem, as formas de ver, cada vez
mais mediadas por diferentes dispositivos simultâneos, e conso-
lidaram-se novos modos de criar, de olhar e também de ser visto.
Ambivalente, essa nova cultura visual (Beiguelman, 2016) oscila
entre possibilidades de democratização do acesso ao audiovisual,
novos regimes estéticos, superexposição, vigilância e rastreamento.

1 Pela mesma lógica da divisão do número de câmeras pela população, calcula-se que
do século XIX até hoje tenham sido capturadas 2,5 trilhões de fotos analógicas em filme.

o cinema e seus outros 73

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O direito à tela
Desde seus primórdios, as imagens estiveram diretamente
relacionadas a instâncias de classe, gênero e poder político,
sendo reservadas primeiramente a figuras sagradas, reis, aristo-
cratas e papas e, depois, a políticos e burgueses abastados. Ao
longo do século XX, as comunicações de massa expandiram o
raio de quem podia se transformar em imagem publicada e
passível até de ser arquivada. Mas é apenas no século XXI, com a
câmera digital e a internet, que se pode falar em multiplicação
e diversificação em grande escala do espectro social e cultural
dos registros imagéticos.2
A tela foi canibalizada. Em todas as suas dimensões. Despejadas
aos “quaquilhões” de bytes por segundo na internet, as imagens do
século XXI tornam-se também espaços de sociabilidade. Por ali, no
YouTube, no Instagram, no Musically ou no que vier, outros regimes
estéticos fluem. Não são os regimes consolidados nas escolas de
cinema e de artes, e rompem cânones de estilo e mercado.
Todo um outro paradigma de consumo e produção está se
montando e evidenciando que as imagens deixaram de ser planos
emolduráveis. Transformaram-se nos dispositivos3 mais impor-
tantes da contemporaneidade, espaço de reivindicação do direito
de projeção do sujeito na tela, subvertendo os modos de fazer
(enquadrar, editar, sonorizar), mas também os modos de olhar, de
ser visto e supervisionado.
O protagonista dessa história é o celular dotado de câmera e
com acesso à internet. Foi ele o responsável por converter a câme-
ra de dispositivo de captação em um dispositivo de projeção do
sujeito4. Essa projeção pessoal tem destino certo: as redes sociais e
os grupos interpessoais (de Facebook e Instagram ao Snapchat
e WhatsApp).

2 Para uma discussão sobre as estéticas da memória e a diversificação do seu espectro


social, ver BEIGUELMAN, Giselle. “Das memórias conservadoras às memórias desobe-
dientes”. Da cidade interativa às memórias corrompidas: arte, design e patrimônio histórico na
cultura urbana contemporânea. Tese de Livre-docência. FAU-USP, 2016, p. 131-154.
3 Entende-se o dispositivo aqui não como instrumento, mas no seu sentido filosófico,
como “um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguística
e não linguística, no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de
segurança, proposições filosóficas etc.”. Em uma frase: “um conjunto de práticas e meca-
nismos”. AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo?”. In: O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Chapecó: Argos, 2019. p. 29 e 35.
4 Para uma discussão sobre a conversão do celular de dispositivo de captação em dis-
positivo de projeção, ver: STEYERL, Hito. “Proxy Politics: Signal and Noise”. e-Flux, n. 60
(dez. 2014): 4. Disponível em: <http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8992780.pdf>.

74 Giselle Beiguelman

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“Do It Yourself Hollywood”
Os impactos são notáveis. Por um lado, vemos emergir no mun-
do como protagonista, em particular e sem qualquer cerimônia no
Brasil, um personagem que já foi o mais ausente tematicamente da
cena cinematográfica nacional: a classe média, conforme já foi anali-
sado em profundidade em um ensaio seminal de 1967 de Jean-Claude
Bernardet (“Brasil em Tempo de Cinema”), mas também o funk nas
favelas cariocas, o tecnomelody no Norte e o hip hop nas periferias.
Por outro lado, fenômeno tão brasileiro quanto global, vai
se tornando comum um modo de vida mediado pelas lentes, em
que tudo pode ser registrado e “tubado”, antes mesmo até de ter
existido, como se a documentação pudesse prescindir do fato e
da experiência das coisas. A câmera parece justificar o estar no
lugar e em cena.
Esses dois aspectos são essenciais no documentário “Pacific”
(2009), de Marcelo Pedroso. Feito com imagens gravadas pelos
passageiros de um cruzeiro (o próprio Pacific) que faz o trajeto
Recife-Fernando de Noronha, todo o documentário foi negociado
pessoalmente por um grupo de produtoras que viajou no navio e
ao final do trajeto abordou os passageiros solicitando seu material.
Com muito gosto, o material foi disponibilizado, resultando em
um longa-metragem que documenta uma viagem, sem nenhuma
imagem captada pelo diretor, e da qual também ele não participou.
O filme mostra não só a cara da classe média pelos olhos da
classe média no contexto da classe média, como também revela,
escancaradamente, as texturas dessas imagens produzidas aleato-
riamente, no afã de registrar o acontecimento antes mesmo de
ele ocorrer. Logo na abertura do filme, vemos/ouvimos, entre o
marulho e os gritos de uma multidão histérica à espera – “há 50
anos”, conforme diz uma senhora documentarista/personagem – da
aparição dos golfinhos: “Filmou?”. Ao que outro responde: “Mas é
lógico…”. E do que valeria ter ido, se não fosse para registrar, ainda
que gravar compulsivamente roubasse o privilégio de ver?
“Pacific” se apropria da escola do “Do It Yourself Hollywood”, dos
“produsadores”5 das imagens. Ao mesmo tempo, é retroalimentado
por um estado de vigilância neopanóptica, “resultante de um de-
sejo quase compulsivo – que se poderia chamar de fetichista – de
fazer com que virtualmente tudo seja acessível na forma de uma

5 O termo é de Axel Bruns, que define o criativo da web 2.0 como um sujeito produtor
e usuário (producer e user, produser).

75

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imagem”.6 Mas “Pacific” é também, nos seus procedimentos de
montagem, um cinema do homem sem a câmera. “Gênero” cada vez
mais recorrente na filmografia pós-YouTube, enuncia uma estética
que tira partido da organização das redes em bancos de dados.7

Estéticas dos bancos de dados


Esses novos formatos diferem das artes arquivísticas e do cine-
ma baseado em found footage. Não são apropriações de arquivos e
instituições que gozam já de uma tradição no campo da história da
arte e do cinema. Fala-se aqui de formatos de criação emergentes a
partir de rotinas provenientes de processos de automação, que pro-
põem uma cultura visual alternativa à homogeneização do big data.
Metaobras programadas para lidar com rearranjos de informações
tensionam a hierarquia das rotinas de programação das grandes
bases de dados, recombinação das informações contidas nessas bases.
Isso pode se dar a partir de universos fechados, que se tornam
narrativas recombinantes imprevisíveis, como em “Whiteonwhi-
te:algorithmicnoir” (2012)8, de Eve Sussman. Pode também partir
da conversão de arquivos sempre crescentes, mas que não são
preparados para remixagem artística, como o que ocorre em
“Breaking the News – Be a News Jockey”9, de Matt Lee (um work
in progress desde 2007). É possível, ainda, ocorrer pela apropria-
ção de tags populares em um banco de imagens do porte do
YouTube, tal qual acontece em “Vista On, Vista Off II”10 (2012),
de Denise Agassi.
No primeiro caso, temos 3 mil cenas gravadas em ruínas co-
munistas do Cazaquistão. Elas são combinadas, enquanto o filme é
projetado a partir de algumas palavras-chave (como neve, apocalipse,
futuro etc.) e 150 músicas, em um loop contínuo, por um programa
que provavelmente não conseguirá repetir a mesma combinação.
No segundo, em “Breaking the News”, Marc Lee nos convoca a ser
um “news jockey”, remixando notícias em tempo real. Basta digitar uma
palavra ou seguir os trending topics do dia. Seu programa faz
uma busca em bancos de dados variados na web e disponibiliza

6 DRUCKREY, Timothy. “Instability and Dispersion”. In: C. Squiers (ed.), Overexposed


– essays on contemporary photography. New York: The New York Press, p. 94.
7 Na definição de Victoria Vesna, seriam estéticas dos bancos de dados, que operam
por “metaestruturas, que incluem arquiteturas físicas, software e obras não só de outros
artistas, mas também do próprio público”. Victoria Vesna, Database Aesthetics (Minnesota:
University of Minnesota Press, 2007), XIII.
8 https://vimeo.com/72393953
9 http://www.news-jockey.com/
10 http://midiamagia.net/projetos/vista-on-vista-off/

76 Giselle Beiguelman

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alguns filtros para que cada um possa dar o seu tom e ritmo ao
marasmo das informações que se sucedem nos inúmeros clippings
on-line. É possível salvar o seu videoclipe no final, e tanto as versões
instalativas para exposições quantos as para acesso no computador
são um sucesso há anos.
Já em “Vista On, Vista Off II”, uma obra comissionada pelo Festi-
val arte.mov, somos convidados a manipular um dispositivo circular
que aciona a projeção de uma série de vídeos, todos provenientes
do YouTube, cruzando informações de uma bússola digital com
palavras-chave pré-selecionadas em diversos idiomas. Essas palavras
se referem a tipos de vista (aérea, panorâmica, mirante etc.) e aos
locais apontados pelo dispositivo.
Os tamanhos das projeções que vemos na tela correspondem,
imaginária e proporcionalmente, à distância entre o local onde a
obra está instalada e o lugar que se vê na imagem, criando uma
ilusão de profundidade espacial. Quanto mais movemos o dispo-
sitivo circular, mais vídeos são carregados na tela, superpondo-se
em distintas camadas.
Curiosamente, somos confrontados com a situação de estar
diante de um timão que, se não é capaz de navegar por todas as
paisagens do mundo, é certamente a paisagem mais globalizada
de todas. Afinal, existe ainda alguma paisagem que não foi depo-
sitada no YouTube?

Imagens de depois do tubo


A resposta pode ser sim e não. A economia liberal dos likes e
suas fórmulas de sucesso tendem a homogeneizar tudo. Padroniza
ângulos, enquadramentos, cenas, estilos. Em “Mass Ornament” (2009),
Natalie Bookchin11 se apropria do clássico homônimo dos anos 1920
de Siegfried Kracauer para fazer a crítica desse olhar pré-fabricado.
Na obra de Kracauer, o chorus line é interpretado a partir da luz do
capitalismo fordista. No vídeo de Bookchin, centenas de vídeos do
YouTube, de pessoas dançando em frente à câmera, são editados
ao som das trilhas de Busby Berkeley, “Gold Diggers”, e o “Triunfo
da Vontade” de Leni Riefenstahl. O resultado é uma coreografia
de uma massa compacta de corpos adestrados. Eles encontram
nesse misto de isolamento no quarto, e na espetacularização da
intimidade nas redes, o seu melhor espelho.
Não por acaso, os diretores japoneses Masashi Kawamura,
Qanta Shimizu e Saqoosha, quando convidados, em 2011, para

11 https://vimeo.com/5403546

77

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criar o videoclipe para a música “Utsushi Kagami” (“Espelho”, em
japonês), da banda Sour, resolveram que ele seria “rodado” inteira-
mente na internet. Inspirados pela letra, que diz que tudo e todos
à sua volta refletem o que você é, eles decidiram fazer o vídeo na
web e transformar os espectadores em protagonistas do clipe.
Existiria melhor espelho de nós mesmos hoje em dia que nossa
rotina diária, entre redes sociais, mapas e serviços on-line?
Premiado em vários festivais de arte, como o Ars Electronica,
e no De Publicidade com o Cannes Lion, o projeto não está mais
ativo. Existe hoje apenas como documentação. O ponto de partida
era a autorização do espectador para conectar a webcam ao site do
projeto e permitir seu acesso ao seu perfil no Twitter e no Facebook.
Conexão feita, imediatamente iniciava uma busca de imagens com
o nome do usuário no Google. As fotos eram, então, reorganizadas
dentro do clipe, com os membros da banda caminhando sobre
as telas das redes sociais de quem deu acesso ao clipe, passeando
sobre os mapas de lugares em que estiveram etc. O resultado, além
de um audiovisual único e dinâmico, era um “videoespelho”. Uma
provocação sobre o estatuto da imagem e do sujeito no tempo das
mídias sociais e da emergente estética do banco de dados.12

“Shareveillance”
Nesses circuitos de redes sociais, as imagens aparecem atreladas
ao lugar e à hora em que são produzidas, permitem a contextua-
lização de cada um de seus autores em relação a seu grupo e são
rastreadas a partir de alguns padrões. É nesse ponto que a cultura
do compartilhamento se cruza com a cultura da vigilância.
Essa ambivalência, que levou Clare Birchall a cunhar o neolo-
gismo “Shareveillance” (Birchall, 2017), é um dos traços marcantes da
cultura das redes e aponta para diferentes concepções e tendências
políticas da ecologia midiática atual. Elas abrem possibilidades
inéditas de uso crítico e criativo das mídias existentes, mas são, tam-
bém, novas plataformas de fomento ao consumo e ao controle de

12 Outro videoclipe notável nessa seara, e que também se alimenta de dados pessoais
disponíveis na internet para a construção de novas estruturas narrativas, é o de “We Use
to Wait”, de Chris Milk e Aaron Koblin para “The Wilderness Downtown” (2010). O clipe
responde a um modelo metautoral bastante particular da cultura web 2.0, o mashup de
software e conteúdo. Feito para o lançamento do disco “The Wilderness Downtown” do
Arcade Fire, explorava as possibilidades de jogar com a cidade em que o “espectador”
(na falta de melhor palavra) cresceu, misturando imagens e dados desse local à música.
Para tanto, demandava que cada visitante inserisse o seu endereço naquela época, na
entrada do site. A partir daí, cruzava imagens geolocalizadas disponíveis no Google,
com referências do videoclipe.

78 Giselle Beiguelman

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pessoas que se tornam facilmente rastreáveis por dispositivos de toda
sorte. Esse rastreamento não é feito apenas por equipamentos da
infraestrutura urbana, mas é alimentado pelo manancial de dados
fornecidos voluntariamente por nós, especialmente a partir do
uso da câmera do celular.13
Diferentemente do que ocorre com os textos, que podem ser
rastreados semanticamente, os conteúdos visuais são mapeados
pelo reconhecimento de alguns padrões, como linhas, densidades
e formas geométricas. Esses padrões designam, por exemplo, o que
supostamente são seios, nádegas e pênis. Podem, por isso, funcionar
como primeiro operador da censura das imagens nas redes sociais,
fato que vem se tornando cada vez mais corriqueiro.
Facebook e sua empresa afiliada, Instagram, não declaram se
fazem uma triagem do material que é bloqueado com base em
algoritmos. Mas devido à overdose informacional que circula nesses
espaços, é bem plausível pensar que o processo segue, ou seguirá
em breve, a mesma lógica do gerenciamento automatizado da
timeline no Facebook, que “escolhe” os conteúdos que acessaremos,
via instruções algorítmicas.
Os bloqueios de imagens atingem desde conteúdos históricos
até a arte contemporânea e impactam as formas como decidimos
utilizar as redes. Há casos como o da foto de 1909 dos índios Boto-
cudos, feita por Walter Grabe, que levou ao bloqueio de uma página
do Ministério da Cultura no Facebook. Ela mostra uma índia com
os seios nus e havia sido escolhida para ilustrar o lançamento do
portal da Brasiliana Fotográfica, que ocorreu em 2015. Depois de
protestos, inclusive do governo brasileiro, foi liberada.14
Há outros casos, mais recentes, como o dos “mamilos sem
gênero”, que evidenciam nuances mais políticas dos processos de
seleção. Com mais de 80 mil seguidores, a conta “genderless_nipples”
posta todos os dias um close de mamilo no Instagram, no entanto,
pelas regras do serviço, apenas as fotos de mamilos de mulheres
são proibidas. Olhando, é impossível saber quais são masculinos
e quais são femininos. A batalha on-line, que desafia as regras de
uso do Instagram, a capacidade de escolha dos algoritmos e o
machismo dos processos de censura e bloqueio, prossegue.
Em um mundo cada vez mais mediado pela cultura visual e
suas interdições, projetos pioneiros como “Logo Hallucination”,

13 STEYERL, Hito. “Proxy Politics: Signal and Noise”. e-Flux #60, dez. 2014. Disponível
em: <http://worker01.e-flux.com/pdf/article_8992780.pdf> (acesso em: 16 maio. 2019).
14 https://oglobo.globo.com/sociedade/midia/ministerio-da-cultura-vai-entrar-na-jus-
tica-contra-facebook-por-foto-de-india-bloqueada-1-15910229

79

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do artista Christophe Bruno (2006), ganham relevância. Para sua
realização, Bruno escolheu 18 logomarcas de grandes empresas,
como McDonald’s, AT&T, Apple e Mercedes-Benz, entre outras, e
colocou em operação um software de reconhecimento de padrões
para buscar na internet imagens que pudessem ser consideradas
as matrizes das marcas dessas grandes corporações.
Assim, a logomarca dos jogos Atari já estaria contida em um
quadro de Vermeer, uma máscara africana seria o original da do
McDonald’s, um biquíni fio-dental seria a matriz da marca da
Mercedes-Benz, entre outros casos bizarros disponíveis e docu-
mentados no site do projeto.
Bruno mostrava como os novos recursos de reconhecimento
de padrões tornavam-se um campo fértil para as tecnologias de
controle e gerenciamento de direitos autorais de imagens. Ques-
tionava se chegaríamos a um grau de alucinação tal que culminaria
na privatização do olhar. Visto cerca de uma década depois, “Logo
Hallucination” enuncia os métodos de uma nova forma de censura.
Uma censura que não proíbe. Antes, define, algoritmicamente, o
direito de visualizar.
Outro aspecto a considerar na cultura visual na era do big data?

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80 Giselle Beiguelman

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81

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Fernando
Velázquez

a peste da imagem
Vemos com os olhos, mas também vemos com o
cérebro, e ver com o cérebro é o que comumente
chamamos de imaginação. Estamos familiari-
zados com as paisagens da nossa imaginação,
nossos inscapes, vivemos com eles por toda a vida.
(Oliver Sacks1).

Para poder viver diretamente as imagens, é ainda


necessário que a imaginação seja suficientemente
humilde para se dignar encher de imagens
(Gilbert Durand2).

22 de dezembro de 2017, 17:03.


A imagem é contagiosa como peste. Chegou devagar, sorrateira,
mascarada, sedutora, técnica, sintética, violenta, tomou conta das
coisas do mundo, quer dizer, tomou conta de mim, tomou conta
de nós, tomou conta.
Peste: fenômeno de propagação orgânica e emergente, com
causas e efeitos que podem ser desconhecidos e/ou conhecidos, a
priori descontrolados. Imagem: um fenômeno à deriva que nem
peste, que nos afeta, nos transforma, nos domina.
À deriva? À deriva no vácuo que se instaura quando não con-
seguimos a distância focal necessária para enxergar o futuro. Entre
posts, selfies, eleições suspeitas, fusões corporativas e pós-verdades,
quando a vertigem pautada na velocidade das coisas dá uma trégua
e o borrão começa a clarear, o vislumbre fugazmente desaparece
com a ligeireza de um varrido de frequência na tela.

1 Disponível em: <https://www.ted.com/talks/oliver_sacks_what_hallucination_re-


veals_about_our_minds?language=pt-br>. Acesso em: 10 dez. 2017.
2 DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.

o cinema e seus outros 83

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Loop. 25 de dezembro de 2017, 10:553.
Vemos com o cérebro, imaginamos. Vivemos na imagem e a
imagem vive em nós. Mas, afinal, de que falamos quando falamos
em imagem? Sem dúvida, podemos estar falando de muitas coisas.
Mutações genéticas acidentais acontecidas entre 30 e 70 mil
anos atrás deram lugar à chamada Revolução Cognitiva, e fizeram
com que o Homo sapiens desenvolvesse novas capacidades de apren-
dizado, memória e comunicação, que o levariam a conquistar o
mundo; entenda-se: submeter as outras espécies e decodificar
o meio ambiente (Harari, 2017, p. 30). Surge, então, nesse momen-
to, uma linguagem extremamente complexa que possibilita ao
sapiens ter um domínio maior do entorno, “consumir, armazenar
e comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre
o mundo à sua volta” (ibid., p. 35). Alguns pesquisadores acreditam
que as principais informações a serem comunicadas eram sobre
humanos. Assim, nossa linguagem teria evoluído como uma forma
de fofoca4. Pesquisas sociológicas indicam que o tamanho máxi-
mo de um grupo de humanos unidos por fofoca não passaria de
150 membros, circunstância sobre a qual não haveria necessidade
de hierarquias formais, títulos e livros de Direito para manter a
ordem. A necessidade de falarmos dos outros estaria diretamente
relacionada à nossa habilidade de cooperar e confabular em grande
número de pessoas.
A linguagem humana, diferentemente das desenvolvidas por
outras espécies, nos dá a capacidade de falar de coisas que não
existem. As religiões, o dinheiro, as instituições, as constituições,
as corporações etc. são invenções humanas nas quais combinamos
acreditar. Essa capacidade de criar e aderir a ficções individuais e
coletivas permite o agenciamento de grandes grupos de humanos
(centos, milhares, milhões, bilhões).
Lendas, mitos, deuses e religiões datam da Revolução Cognitiva.
“Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes
de dizer: ‘Cuidado, um leão!’. Graças à Revolução Cognitiva, o
Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: ‘O Leão é o espírito
guardião da nossa tribo’” (Harari, 2017, p. 30).
A modo de curiosidade, as primeiras imagens produzidas pela
espécie homo que chegaram até nós, as pinturas rupestres, foram
feitas, aproximadamente, entre 30 e 40 mil anos atrás.

3 Esse ensaio é um apanhado de observações colocadas em conjunto pela primeira


vez, portanto me permitirei certas liberdades.
4 “A maioria das informações que circulam hoje em e-mails, telefonemas e colunas
de jornal é fofoca” (ibid., p. 32).

84 Fernando Velázquez

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Com licença poética ou pelo abuso do pragmatismo, a civili-
zação não passaria de uma ficção coletiva em tempo real.

Loop. 28 de dezembro de 2017, 22:07.


Em artigo recente5, Harari destaca que em um futuro próximo
haverá o surgimento de uma nova classe social, a dos “inempregá-
veis”6. Nas próximas décadas, muitos empregos desaparecerão à
medida que máquinas e algoritmos tomem o lugar de humanos. É
certo que novas profissões surgirão, como a de designer de mun-
dos virtuais, por exemplo. Mas dificilmente motoristas de táxi ou
vendedores de seguros poderão se reinventar em um mundo que
exige cada vez mais criatividade e flexibilidade. Supondo que a
mesma tecnologia que tornará os seres humanos improdutivos
poderá viabilizar algum tipo de renda básica universal, surgirá
a questão de como manter as massas de “inempregáveis” ocu-
padas em atividades que deem um propósito às suas vidas. No
cruel prognóstico do autor, as pessoas produtivamente excluídas
poderiam gastar seu tempo em mundos virtuais, “o que lhes
proporcionaria muito mais emoção e engajamento emocional
do que o mundo real externo”7.
Se, a priori, a possibilidade de suplantar de forma substancial,
consistente e contínua a realidade exterior por uma realidade
sintética pode parecer loucura, desvios comportamentais, como a
adicção aos videogames8, e o crescente aumento do tempo gasto
em frente às telas conectadas (telefones celulares, computadores
portáteis e televisões inteligentes) evidenciam a frágil fronteira
que nos separa das tecnopatologias9. As tecnologias de hoje têm a
capacidade de nos envolver de tal maneira que, ao mesmo tempo
que nos abrem as portas de universos desconhecidos, revelam

5 Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2017/may/08/virtual-rea-


lity-religion-robots-sapiens-book>. Acesso em: 15 dez. 2017.
6 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/01/1951904-16-milhoes-
-de-brasileiros-sofrerao-com-automacao-na-proxima-decada.shtml>. Acesso em: 21 jan. 2018.
7 Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2017/may/08/virtual-rea-
lity-religion-robots-sapiens-book>. Acesso em: 15 dez. 2017. Tradução do autor.
8 Disponível em: <https://www.theguardian.com/technology/2017/apr/25/video-game-
-addiction-compulsive-dangerous>. Acesso em: 30 nov. 2017.
9 Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/01/09/well/live/hooked-on-our-s-
martphones.html>. Acesso em: 20 fev. 2017. Disponível em: <https://well.blogs.nytimes.
com/2015/07/06/screen-addiction-is-taking-a-toll-on-children/?_r=0>. Acesso em: 25 nov.
2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2014/08/06/movies/web-junkie-exami-
nes-internet-addiction-in-china.html>. Acesso em: 20 jan. 2018. O documentário Eis os
delírios do mundo conectado, dirigido por Werner Herzog, também traz luz sobre essas
questões. Disponível em: <http://www.imdb.com/title/tt5275828/>. Acesso em: 10 jan. 2018.

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faces desconfortáveis de nós mesmos, e alimentam a ansiedade e
a desconfiança em relação ao futuro.

Loop. 7 de janeiro de 2018, 9:20.


Da primeira cápsula (parágrafos entre loops) extraio a ideia de que
somos seres de linguagem e vivemos em universos interpretativos.
A segunda cápsula descreve um contexto do qual se extrai
a ideia de que os dispositivos imersivos contemporâneos – no
exemplo citado, os videogames, mas poderíamos acrescentar ao
combo a realidade virtual e aumentada, as redes sociais, etc. –
tensionam ao extremo a tendência de nos submergirmos em
universos interpretativos disruptivos. Diferentemente do cinema,
dispositivo imagético disruptivo por natureza, ao qual vamos com
hora marcada e dispostos a blindar o contato com o mundo exte-
rior, os dispositivos tecnológicos contemporâneos irromperam na
vida cotidiana de tal maneira que estamos permanentemente em
fluxo entre estados de consciência, em maior ou menor medida,
mediados por eles.
Novamente, entre a licença poética e o abuso do pragmatismo,
seria exagerado pensar que os algoritmos de inteligência artificial
que comandam as redes informacionais, e que sugerem alternativas
para praticamente todos os tipos de atividade humana, estariam
escrevendo o roteiro generativo de nossas vidas?
Parece-me evidente que a imagem (ver com os olhos) e a ima-
ginação (ver com o cérebro) desempenham um papel central na
encruzilhada sugerida nos parágrafos anteriores.
A nossa linguagem sempre esteve profundamente enraizada
nas imagens; a imagem é um fenômeno endógeno, ontológico e
fundador do ser. Para nós, sujeitos do século XXI prestes a cortar
o cordão que nos prende ao Iluminismo, e já introduzidos aos
paradoxos da complexidade, isso pode parecer um tanto óbvio. Mas
não faz mal lembrar que “o pensamento ocidental, especialmente
a filosofia francesa, tem por constante tradição desvalorizar ontolo-
gicamente a imagem e psicologicamente a função da imaginação
‘fomentadora de erros e falsidades’”10.
Muito embora com o seu importante papel histórico como
mecanismo imersivo (Grau, 2007), a imagem esteve associada princi-
palmente aos domínios da filosofia e da estética, e só recentemente

10 Na introdução do livro As estruturas antropológicas do imaginário, Gilbert Durand


resenha diferentes perspectivas históricas que modelaram os estudos da imagem e da
imaginação (Durand, 1998).

86 Fernando Velázquez

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adentrou o território da antropologia, das ciências sociais, da psi-
cologia, da comunicação e da neurociência, por exemplo.
Ainda, a condição biológica da imagem, o fato de que operamos
por imagens, mesmo sem visão, é um assunto relativamente novo e
sem dúvidas deverá ser incorporado nas abordagens transdisciplinares.

Loop. 9 de janeiro de 2018, 7:22.


Em “O olhar da mente”, último capítulo do livro do mesmo
nome, Oliver Sacks elenca uma série de casos clínicos com pessoas
cegas. A grande maioria dessas pessoas perdeu a visão após algum
tempo de vida. Em todos os casos citados, exceto em um, elas con-
tinuaram a produzir imagens mentais com base em memórias ou
recriando-as a partir de estratégias e habilidades desenvolvidas de
forma particular (Sacks, 2010, p. 179-210).
Nesses casos, mesmo sem receber dados externos, o córtex
frontal (área relacionada à visão) continua a converter em imagens
boa parte das informações coletadas pelos outros sentidos.
Em todos os casos, os outros sentidos se viram altamente esti-
mulados (plasticidade cerebral); olfato, tato, ecolocalização passaram
a ser fundamentais para a vida dessas pessoas. Contudo, pratica-
mente todas elas relatam, cada uma a seu modo, que continuam a
transformar as informações dos outros sentidos em imagens, para
assim, por exemplo, reconstruir o espaço, imaginar ou recriar rostos
etc. Em um caso extremo, um dos cegos consegue reparar sozinho
o telhado da sua casa a partir da reconstrução mental do entorno.
É bem provável que outras articulações e desdobramentos
biologicamente estruturais entre os sentidos, principalmente aqueles
em que a visão não é preponderante, determinassem outros mundos
possíveis. Alguns dos relatos colhidos por Sacks fazem menção a
um tipo de consciência com que, por exemplo, nos seria possível
conhecer o estado de ânimo de uma pessoa pelo seu cheiro, ou
perceber a presença de objetos no espaço pela reverberação do som.
Não significa que esses processos cognitivos não ocorram em pessoas
com visão, mas, com certeza, tais mecanismos de aferição do mundo
exterior ficam relegados a camadas mais profundas da consciência.
O nosso cérebro opera principalmente através de imagens, há
um lastro biológico na espiral do conhecimento11 e, consequen-

11 Nos anos 1990, Kosslyn e outros concluíram que a visualização de imagens “ativa a mesma
área do córtex visual ativada pela percepção, e isso mostra que as imagens mentais são uma
realidade fisiológica, além de psicológica, e que elas usam no mínimo alguns dos mesmos
trajetos neurais que a percepção visual”. Também conseguiu demonstrar que “as imagens
mentais são essencialmente espaciais e organizadas no espaço como figuras” (Sacks, 2010, p. 200).

87

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temente, na maneira com que o sapiens enxerga o mundo. O “vir-
tual”, entendido como representação mental ancorada na imagem,
persegue-nos desde tempos remotos decantado na capacidade de
abstrair, modalidade do conhecer que nos destacou dos outros
seres e nos permitiu a criação de todo tipo de estruturas simbólicas.
Biológica e/ou culturalmente, é impossível fugirmos dos desíg-
nios da imagem em qualquer uma das suas variadas configurações.

Loop. 12 de janeiro de 2018, 9:11.


Parece natural pensar que, assim como a cultura da oralidade
foi profundamente modificada com o aparecimento da escrita
(que logo foi amplificada pela tecnologia da imprensa), a palavra
escrita e falada hoje esteja dando lugar a uma cultura da imagem,
que, por sua vez, reconfigura e atualiza as anteriores.
A cultura da imagem dos nossos dias se desdobra e se sustenta
no fluxo das redes, cúmplice dos atuais dispositivos de imagem,
dos quais o telefone celular é o mais popular, mas que comporta
ainda câmeras que filmam 360°, scanners 3-D e, sobretudo, a imagem
algorítmica. Em seu conjunto, esses dispositivos ejetam e projetam
novos imaginários, que na linha sucessória de tecnologias anteriores
vêm reconfigurar a ideia de real.

A partir da utilização do telescópio e do microscópio, primeiras má-


quinas de visão, a dimensão fundamental da “reprodução” imagética
da realidade propiciada pelas tecnologias da imagem não se reduz
nem a seu caráter instrumental, como extensão dos sentidos do ho-
mem (McLuhan), tampouco à sua capacidade manipulatória, como
fator condicionador da consciência (marxistas), mas sim a seu valor
ontológico, como princípio gerador de um novo real (Parente, 1993).

À medida que nos permitem enxergar com cada vez mais


densidade, no macro e no micro, essas tecnologias amplificam
nossa capacidade de criar imagens e de imaginar. A partir das
informações que agora se apresentam como possíveis (micróbios,
bactérias, vírus, átomos, elétrons, prótons, quasares, buracos ne-
gros), novas abstrações (ficções, narrativas, “combinados”) passam
a fazer parte do domínio do humano. Novos universos podem ser
pensados, imaginados, descobertos, introjetados e decantados nos
mecanismos de representação que nos auxiliam a dar sentido à
nossa experiência12. A nossa capacidade de dar crédito a coisas que

12 Sacks menciona quanto a própria capacidade de abstrair está relacionada a meca-


nismos de visão e à capacidade de imaginar.

88 Fernando Velázquez

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nossos sentidos não aferem, mas que a consciência valida, dilatada
no poder das ferramentas tecnológicas que ampliam os domínios
cognitivos, dá lugar a esse novo real.
O advento de novidades tecnológicas e técnicas ao longo da
história tem sido essencial para a quebra de paradigmas. Todo
um tipo de literatura surge em paralelo às descobertas científicas
relacionadas ao uso do telescópio e do microscópio. O imagi-
nário que se desprende da teoria da relatividade13, até pouco
tempo atrás um conhecimento de fronteira, hoje é de domínio
público. Boa parte dos filmes e das séries de TV fazem referência
à relatividade do tempo e do espaço, aos universos paralelos, às
viagens interestelares, ao buraco da minhoca e assim por diante.
Aliás, a percepção de que tudo acontece ao mesmo tempo e o
tempo todo é um bom exemplo dessa nova configuração do real.
Desde o momento em que a vida dos outros é transmitida em
tempo real, a compreensão, ou melhor, a sensação constante de
que o mundo se estende para além daquilo com que posso me
relacionar presencialmente produz uma aflição latente, que pulsa
em cada like recebido ou oferecido. Será que nossos antepassados
padeciam dessa mesma angústia?
Vale lembrar que, se o telescópio e o microscópio nos auxiliam
a enxergar para além das nossas capacidades, a invenção das lentes
por volta do século XIII deu lugar a uma revolução que desembo-
caria na proposição da janela perspectiva que molda a nossa forma
de ver até os dias de hoje.
Por essas e muitas outras, a imagem há tempos vem mostrando a
sua cara e alterando o modo como contamos e escrevemos histórias.

Loop. 15 de janeiro de 2018, 23:33.


Pretendi trazer até aqui, de forma “serendíptica”, algumas ideias
avulsas, mas intuo que intimamente conectadas com a atual peste
da imagem, esse fenômeno que subitamente tomou conta da con-
temporaneidade e que aparentemente está fora do nosso controle.
Somos seres de linguagem, vivemos em mundos interpretativos
biológica e culturalmente moldados na imagem, conectados recur-
sivamente a artefatos tecnológicos que mediam nossa percepção.
De maneira rápida, também trouxe a ideia de que a linguagem,

13 Neste sentido, consultar o livro de Eric Kandel “The Age on Insight”, mencionado
nesta bibliografia. Na virada do século XX, Viena esteve no centro de uma revolução
científica (física, psicologia, neurociência) que influenciaria profundamente todos os
domínios do conhecimento. É de particular interesse o quanto a produção de Kokoscha,
Schiele e Klimt, por exemplo, se vê profundamente modificada pelo contexto histórico.

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dinâmica e cambiante, há tempos vem dando sinais do avanço da
imagem em direção à sua autonomia.
A atual ordenação desse conjunto tem se demonstrado fora
de controle. Fora de controle do que e de quem? Arrisco, a seguir,
algumas possibilidades.

Parece óbvio que padecemos de uma inflação de imagens sem pre-


cedentes. Essa inflação não é a excrescência de uma sociedade hiper-
tecnificada, se não o sintoma de uma patologia cultural e política,
cujo seio irrompe o fenômeno do pós-fotográfico. A pós-fotografia
faz referência à fotografia que flui no espaço híbrido da sociabilidade
digital e que é consequência da superabundância visual. A aldeia
global vaticinada por McLuhan se inscreve agora na iconosfera, que
não é mais uma abstração alegórica: habitamos a imagem e ela nos
habita. Debord expressou em outras palavras: “Ali onde a realidade
se transforma em simples imagens, as imagens se transformam
em realidade” (“A Sociedade do Espetáculo”). Estamos instalados no
capitalismo das imagens e seus excessos, que não só nos submete à
asfixia do consumo, mas nos confronta com o desafio de sua gestão
política. (Fontcuberta, 2016, p. 7, tradução do autor).

Segundo o mesmo Joan Fontcurberta, a “patologia cultural e


política” do pós-fotográfico (ponta do iceberg da atual fúria ico-
noclasta) se revelaria na “imaterialidade e transportabilidade da
imagem, na sua profusão e disponibilidade, e no seu aporte defi-
nitivo à ‘enciclopedização’ do saber e da comunicação” (ibid., p. 9).
Sem dúvidas, esse fenômeno corre no leito dragado pelos no-
vos meios, que, como apontava Lev Manovich, no já clássico “The
Language of New Media” (Manovich, 2001), têm por característica a
reprodução numérica, a modularidade, a automação, a variabilidade
e a transcodificação cultural, distinções próximas às propostas por
Fontcuberta. Mas 17 anos atrás o cenário era outro.
A primeira imagem transmitida de um celular data de 199714,
mas o Vimeo foi criado em dezembro de 2004, o Youtube em
fevereiro de 2005, o Facebook e o Orkut em 2004, o Twitter em
2006 e o caçula Instagram em 2010, assim por diante. Desde então,
nunca a humanidade produziu tantas imagens, que provavelmente,
na sua imensa maioria, nunca serão vistas.
É bem possível que esse fenômeno responda em parte a uma
necessidade íntima de falarmos de nós e dos outros – lembra-se
da teoria da fofoca? Por outro lado, pergunto-me se ao mesmo

14 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Philippe_Kahn>. Acesso em: 10


dez. 2017.

90 Fernando Velázquez

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tempo não seria o sintoma de um novo estado da imagem en-
carnada na linguagem. Até então, a imagem na sua condição
de ilustração, fotografia etc. assumia um papel subordinado
à oralidade e à escrita. Quando nos domínios da arte ou áreas
correlatas, assume um papel instrumental que a distancia da
linguagem do dia a dia.
A cascata de imagens de um fluxo de Instagram, as interfaces,
os memes, parecem reivindicar um novo status da imagem – um
certo pragmatismo comunicante na sua utilização que as converte
em artefatos comunicacionais que condensam uma grande quanti-
dade de informação de natureza diversa, com significado variável e
aberto, e à disposição de qualquer um, letrados e não letrados. Ela
permite uma comunicação direta nos mais variados níveis, em um
universo desprovido da rigidez das regras gramaticais, semânticas
e sintáticas. A imagem equivale a mil palavras, não ilustra nem
representa; frase-imagem: comunica. Não que ela não comunicasse,
mas, libertada dos domínios da teologia e da perspectiva burguesa
da modernidade (Rancière, 2007), perdeu a aura, a seriedade, a
mística. Agora ela é imediata, fugaz, despretensiosa.
As imagens, levam-nas o vento.
Como nos lembra Durand na epígrafe, temos que resgatar
a humildade para com as imagens, devemos nos dispor a reaprender a
lê-las, a saber lhes dar sentido e, sobretudo, a colocá-las em contexto.

A massificação das imagens tem alterado as regras da nossa relação


para com elas. Num momento em que a imagem constitui o espa-
ço social do humano, não podemos permitir seu descontrole, não
podemos permitir que se ponham furiosas e arremetam contra nós.
Se antes eram apassíveis telas que regulavam a ordenada circulação
das nossas vidas, agora corremos o risco de que explodam e que sua
rachada fragmentada saia em disparada em todas as direções: a imagem
hoje é sobretudo um projétil. Temos fabulado o fim da nossa espécie
num combate incerto com uma tecnologia desobediente, contra a
inteligência artificial vingativa ou contra inimigos alienígenas. Mas
talvez a mãe de todas as batalhas será contra as imagens. Existe uma
consciência “de” e “em” nas imagens que se disponham a assombrar-
-nos? De onde provém a sua fúria? Em que afronta se origina a sua
hostilidade? Estariam se vingando da iconoclastia com a qual as temos
maltratado? O que está claro é que temos perdido a soberania sobre as
imagens e queremos recuperá-la (Fontcuberta, 2016, p. 260).

Sim, estamos perdendo algumas batalhas. Não há como negar


que o capitalismo infiltrado na nossa debilidade pela imagem
vem moldando a subjetividade entre simulacros e pós-verdades,
entorpecendo e neutralizando a capacidade crítica e fagocitando

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as dobras da contracultura. Esses territórios, com certeza, devem
ser retomados com base na partilha do sensível15.
Em contrapartida, por trás das doutrinas de shock (Klein, 2008)
há todo um movimento tectônico a descobrir e colonizar, a peste
da imagem vem demolindo velhos padrões, alguns dos quais
sustentam o próprio capitalismo. Talvez nunca como hoje tantas
pessoas partilhem o comum sensível da comunicação. A utopia de
nos unirmos em matilhas de roteiristas não é pouca coisa. Afinal,
a civilização não passa de uma ficção coletiva em tempo real.
Cinema é nós [sic].

20 de janeiro de 2018, 21:35.


Prestes a entregar este ensaio, decido dar uma espairecida e
assistir ao show da Orquestra Vermelha16, um concerto, aliás, no
qual só Matheus Leston está presente e os outros músicos partici-
pam virtualmente. Foi-me impossível concentrar nos 15 primeiros
minutos: uma pessoa à minha frente não parava de filmar com
aqueles celulares de tela grande que rebatem uma luz que cega.
De volta para casa, passei por uma viatura de polícia estacionada
na calçada, os três agentes da ordem estavam imersos nos seus
respectivos telefones, e a realidade às moscas. Um pouco mais
adiante, cruzei com uma pessoa encenando uma curiosa coreografia,
celular em riste, frita o peixe e olha o gato, provavelmente estava
procurando seu Uber. Chego em casa, meu filho de dez anos, que
ganhou seu primeiro celular há uma semana, já está infringindo
o código familiar de uso de tecnologias disruptivas, extrapolando
a quota diária de imersão, enquanto a minha filha, sete anos, frita
o peixe e olha o gato, brinca de bonecas com a TV sintonizada
numa websérie. Já na cama, quase em alfa, fico pensando qual é a
desse filme que me tem como personagem principal.

15 Disponível em: <https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/10/16/da-parti-


lha-do-sensivel-e-das-relacoes-que-estabelece-entre-politica-e-estetica-jacques-ranciere/>.
Acesso em: 10 jan. 2018. Para mais detalhes, ver: RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível.
São Paulo: Editora 34, 2000.
16 Disponível em: <https://www.matheusleston.com/orquestra-vermelha>. Acesso
em: 20 jan. 2018.

92 Fernando Velázquez

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referências bibliográficas
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo:
Difel, 1998.
FONTCUBERTA, Joan. La fúria de las imágenes, nota sobre la post-fotografia.
Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2016.
GRAU, Oliver. Arte virtual, da ilusão à imersão. São Paulo: Senac, 2007.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens, uma breve história da humanidade. Porto Alegre:
L&PM Editores, 2017.
KANDEL, Eric. The age on insight. The quest to understand the unconscious in
art, mind and brain. From Vienna 1900 to the present. Nova Iorque:
Random House, 2012.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre.
São Paulo: Nova Fronteira, 2008.
MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: The Mit Press, 2001.
PARENTE, Andre. “Os paradoxos da imagem máquina”. In: Imagem máquina.
A era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 1993.
RANCIÈRE, Jacques. The future of the image. Londres: Verso, 2007.
SACKS, Oliver. O olhar da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Henrique
Roscoe

arte generativa –
contracenando com
a máquina
Arte generativa pode ser definida como “qualquer
prática artística na qual o artista cria um processo,
como um conjunto de regras ou linguagem, um
programa de computador, uma máquina ou outro
mecanismo que então é colocado em movimento
com algum grau de autonomia, contribuindo ou
resultando em um trabalho de arte completo”1
(Galanter, 2003, p. 4).

Arte generativa, arte viva


O procedimento generativo se caracteriza pelo uso de sistemas
compostos por pelo menos uma parte autônoma com a finalidade
de produzir ou alterar trabalhos artísticos que se desenvolvem
ao longo do tempo. Nesses trabalhos, o artista propõe narrativa,
limites e possibilidades que serão concretizados em tempo real
pela máquina, durante uma performance, instalação ou mesmo
em uma aplicação estática, congelada em frames. O interesse do
artista é, em parte, perder – parcial ou totalmente – o controle
sobre o resultado final, inserindo elementos aleatórios que podem
alterar substancialmente o processo, tanto para o bem quanto para
o mal, levando a resultados inesperados. Variáveis, que podem ser
vinculadas a qualquer parâmetro dos elementos em cena, ampliam
as possibilidades narrativas, com a capacidade de influenciar o
performer pela variação das ações propostas pela máquina.
Mas por que não ter o controle seria uma vantagem? Talvez
o objetivo de quem trabalha com esse tipo de abordagem seja

1 Definição usada por Galanter em suas aulas, citada na publicação, conforme biblio-
grafia. Tradução livre do autor.

o cinema e seus outros 95

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demonstrar que não há um só caminho, mas múltiplos, que podem
ser explorados de forma diversa a cada vez que o trabalho for exe-
cutado. Isso faz com que cada performance seja única, e aconteça
de forma diferente a cada apresentação. Esse caráter do inesperado,
da variação, da porta aberta para novos modos de fazer pode ser
muito inspirador para o artista. Mas, na mesma medida, amedronta.
Nem sempre o resultado será ótimo, ou mesmo bom. Já que se
baseia em variáveis, é bem provável que nem todas as possibilida-
des resultem em um quadro interessante. E esses limites devem
ser propostos pelo próprio criador, no momento de definição do
sistema. Esta é uma parte muito importante do processo: a restrição
das possibilidades dos elementos de modo que o resultado final
fique dentro de uma margem esperada. O ideal nunca é alcançado,
mas várias tentativas são feitas, chegando-se a diferentes distâncias
da meta. Ou, ainda, não se ter uma meta definida, mas potências
de caminhos a ser trilhados. O importante é ter o dinamismo que
a falta de uma resposta única pode dar. É mostrar direções a seguir,
que por sua vez oferecem novas bifurcações a cada salto.
Sistemas complexos (Bighetti, 2008) possuem um grande
número de componentes que interagem entre si. É dessa intera-
ção entre uma vasta gama de atores que surgem novos padrões,
tornando o procedimento generativo interessante e fonte de ge-
ração de acasos. O comportamento, apesar de aparentar, não é
totalmente imprevisível e fica, primordialmente, dentro de certas
fronteiras impostas pelo seu criador. Existe o questionamento a
respeito de quais sistemas seriam intrinsecamente generativos, já
que a própria definição de sistema incorpora a possibilidade de
um comportamento autônomo por parte deste em relação ao seu
criador/programador. Porém, a diferença pode ser percebida nos
resultados, já que a intenção das obras de arte generativas é justa-
mente buscar, através de suas regras, novos e diferentes resultados
a cada execução, em comparação a um sistema em que se espera
sempre a mesma resposta. Esses tipos de sistema buscam a repeti-
ção, sem mudanças não intencionais, a fim de sempre manter uma
estabilidade. Já na construção de um sistema artístico generativo,
é exatamente o contrário que se busca – a inserção do novo e do
inesperado a cada momento. Um sistema de fluxo de caixa, por
exemplo, deve ser sempre exato e alcançar respostas objetivas em
função dos dados inseridos. Já em um sistema generativo, o que se
espera é diverso – a instabilidade, a surpresa, o inesperado. É com
esse material que o artista expande sua obra, que muda de alguma
forma a cada vez que acontece.

96 Henrique Roscoe

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Apesar da liberdade proposta pelo procedimento generativo, é
necessária alguma redundância, de forma que os resultados tenham
algum sentido para o espectador (e mesmo para o próprio artista). É na
repetição de alguns padrões que se identifica uma ordem narrativa a ser
seguida, sentida ou entendida. Variáveis aleatórias devem acrescentar
uma certa quantidade de caos ao sistema, sem, no entanto, deixá-lo
indecifrável. Quando isso ocorre, a obra entra no “vale-tudo” do caos,
e a comunicação com o público começa a apresentar problemas. A
apreciação de uma obra de arte normalmente passa pelo entendimento
ou pela apreciação de padrões reconhecíveis, que devem estar presentes
como organizadores do conteúdo artístico. É no embate entre caos e
ordem que se encontra o fundamento da arte generativa.
É interessante notar como composições generativas executadas
por máquinas podem ser bem mais humanas do que grande parte
das tocadas pelos próprios humanos. Quando são programadas
variáveis randômicas, que dinamizam o processo e alteram seu
percurso, novas possibilidades emergem, diferentemente do pro-
cedimento mecânico de músicos que sempre executam – por um
viés extremamente técnico – todas as notas de uma composição
sempre da mesma forma. Esse deveria ser um padrão maquínico,
que poderia facilmente ser trocado por uma máquina, inclusive com
melhores resultados, se somente a apuração técnica é valorizada.
O mais interessante do ser humano é exatamente a criatividade;
poder ir além do que está estabelecido, criando novas formas de
fazer e existir. Então, para que treinar movimentos repetitivos?
Por que não deixá-los para as máquinas? Simplesmente para uma
satisfação pessoal baseada na técnica pura?
Em termos práticos, o resultado de um trabalho produzido de
forma generativa não precisa ter a participação do artista após a sua
programação. Entretanto, um dos fatores que mais me interessam
nesse modo de produção são as probabilidades de alteração da obra
pelo seu criador ao vivo, no palco, ou então pelo público, no caso
de instalações interativas. É aí que o processo de coautoria entre
homem e máquina emerge de forma prazerosa e desafiadora. Em
certo sentido, tem a ver também com a inteligência artificial, porém
utilizada de forma bem menos exata, da qual o que se espera são
resultados poéticos, e não necessariamente exatos. É como se um
ser fosse ensinado a executar determinadas ações e tivesse algumas
possibilidades de escolha, dentro de certos limites predefinidos pelo
seu criador, que realiza essa ação em conjunto com ele.
Acredito ser uma questão importante na prática de métodos
procedurais o desafio. É conseguir o melhor resultado possível sem

97

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deter o controle total sobre tudo que está acontecendo. É estar
sempre aberto a alguma parcela de erro, mas tentando reduzi-la
ao mínimo possível. É montar um quebra-cabeças com centenas
de peças, em que a possibilidade de existência de cada uma delas
é definida pelo próprio artista. A máquina não tem inteligência
própria, quem diz o que ela fará é o artista que a programou. As-
sim, tanto a culpa pelo “erro” quanto o mérito pelo êxito não são
atribuições da máquina, já que o plano foi pensado pelo humano e
é apenas por ela executado. Mas desde que os limites tenham sido
bem definidos pelo autor, que tem de cercar os possíveis pontos
fora da curva e limpá-los das possibilidades, é bem provável que o
resultado seja interessante. Já as variáveis aleatórias podem ampliar
esse jogo, surpreendendo o artista e levando-o para lugares aonde
talvez não chegasse sozinho. Determinadas combinações podem
inspirar o performer e fazê-lo mudar de intenção, partindo para
outra linha sugerida pela variável randômica. Essa contingência é
o maior desafio, pois nunca há certeza; o improviso e a mudança
rápida de caminho são agilidades necessárias ao artista que tra-
balha com arte generativa ao vivo. A rapidez da mudança deve
ser acompanhada de um reflexo imediato, impondo sempre um
desafio à criatividade do executor. Assim como no jazz, em que
o músico vai criando na hora novas melodias a partir dos limites
da harmonia, o performer de arte generativa tece seu improviso
em cima das ações e posições dos elementos em cena, definidos
pelas variáveis.
Além das dificuldades de se pensar um sistema que sempre dê
resultados interessantes, o performer precisa também estar disposto
a correr o risco de ter um dia medíocre, como qualquer artista
que trabalhe com improvisação. Nem sempre a criatividade do
momento consegue obter bons resultados – na lógica do tempo
real. É um risco que se corre por trabalhar dessa forma. Mas por
que, então, não levar ao palco o máximo que se pode alcançar com
determinado material? Por que não usar imagens pré-renderizadas
durante dias para se ter uma imagem excepcional em termos de
enquadramento, luz etc.? Para que se aventurar em riscos que
podem destruir completamente o resultado final em um dia
pouco inspirado? Acredito que para colocar algum movimento
fora do perfeito, do irretocável, do estático – do morto. Um grande
estímulo para se produzir sistemas generativos é a possibilidade
de criar vida, pensar em comportamentos dinâmicos que vão
acontecendo ao longo do tempo, como criaturas que seguem
seus caminhos na vida. A organicidade está no movimento; só os

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seres sem vida são estáticos. Quando já se chegou ao ideal, todas
as potências terminam, e a monotonia toma conta. Assim, tenho
mais interesse em tangenciar a linha do ideal ou perfeito, sem me
atear a ela, efetuando pequenos desvios de curso que conferem um
caráter vivo à obra. Não gostaria de estar fadado a repetir sempre
a mesma apresentação, por melhor que ela fosse, pois assim o
desafio de executar ao vivo se esvairia, cairia por terra e sobraria
somente uma repetição com emoções atuadas ou simuladas. Deixa
de ser uma performance vivida na hora e passa a ser uma imitação.
Uma representação, não o real.

Minha prática
Na sequência deste artigo, pretendo analisar meios de com-
posição em sistemas generativos a partir da minha experiência
prática, fazendo uma análise de trabalhos autorais que utilizam esse
formato. Tais práticas variam da inserção de variáveis oscilatórias
para controlar parâmetros dos objetos em cena até a chamada de
pessoas da plateia para executar metade da composição comigo,
ao vivo. Vou analisar alguns trabalhos que produzi utilizando
técnicas generativas a fim de apontar onde foram inseridas, qual
o seu impacto no processo e no resultado final.
Criar vida. Extrapolar o cotidiano. Sair da repetição. Uma
diferença marcante em meus trabalhos como VJ e no projeto
audiovisual “Hol” tem relação direta com a repetição. Se os loops
em si já têm essa característica intrínseca da reincidência, a sobre-
posição de camadas e a dinâmica dos efeitos aplicados permitem
um resultado semelhante ao generativo, porém produzido a partir
de material constante, pré-gravado na forma de loops de vídeo. As
diferenças se dão pelo tamanho dos loops, que fazem com que a
sobreposição destes somente se repita ocasionalmente, de forma
imperceptível pelo público. Quando várias camadas são aplicadas,
essa sensação de não repetição se amplia, já que a combinação de
vários fatores aumenta a variedade de resultados. A manipulação
de efeitos ao vivo acrescenta uma nova variável e faz com que
esse material que já tinha uma grande diversidade seja outra vez
estendido em suas possibilidades.
Já no “Hol”, pelo fato de as composições serem muito mais
elaboradas, seguindo um roteiro criado do zero, a possibilidade
de determinação das variáveis se expande muito e permite o
uso de técnicas generativas mais complexas, controlando cada
parâmetro dos atores da cena e elevando as variações possíveis
praticamente ao infinito. Esses corpos são majoritariamente

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formas geométricas que têm todas as suas características cam-
biáveis através das variáveis escolhidas. Assim, cor, tamanho,
posição, quantidade de elementos, alterações na forma, direção,
movimento etc. são algumas das funções imagéticas parametri-
záveis que alteram a configuração da cena. Já na parte sonora,
o controle de frequências (não restrito às notas temperadas), a
inserção de elementos randômicos no controle do ritmo, geração
de melodias pela máquina a partir da determinação de uma escala
ou faixa do espectro, entre inúmeros outros exemplos, operam
a ampliação das alternativas cambiáveis em uma apresentação.
Tendo esse controle fino sobre todos os elementos, consigo
relacionar cada um deles ao conceito que está sendo tratado.
Por exemplo, controlar a velocidade de determinado objeto,
em função de seu papel na trama, ou alterar a quantidade de
ruído em determinado elemento denotando agressividade em
momentos específicos.
Após a definição das variáveis, sua sobreposição é uma prática
que uso bastante, pois, simplesmente colocando dois objetos em
rotação com velocidades diferentes, já se consegue uma gama
enorme de contraposições. Além disso, o controle dessas veloci-
dades ao vivo ou sua interferência por outras variáveis ampliam
em muito as alternativas possíveis. Nesse caso, as variáveis não
são aleatórias – têm um comportamento constante –, mas a
soma de algumas delas já confere ao sistema uma multiplicidade
de resultados interessantes. Já as variáveis randômicas sozinhas
produzem um grande efeito. Variações não esperadas ocorrem
todo o tempo quebrando a monotonia da cena a cada novo
número gerado. Se somadas a variáveis lineares, que têm um
padrão previsível, criam novas órbitas e narrativas dinâmicas
para estas, enriquecendo a cena. A essas duas práticas são soma-
das as ações ao vivo, através do uso de controladores Midi, em
que é possível manipular outros parâmetros ou interferir nos
que já têm um padrão de comportamento dinâmico (como os
alterados por osciladores).
Percebo ainda que essa prática pode ser refinada com o tempo.
Nas minhas composições mais antigas, os objetos em cena nem
sempre tinham uma função bem definida, às vezes deixando mar-
gem para resultados medianos em termos de composição estética
no quadro. Após algumas performances produzidas, percebo que
consigo definir cada vez mais a atuação de cada elemento, elabo-
rando limites para as variáveis e mantendo o sistema dentro de
um nível satisfatório de resultados.

100 Henrique Roscoe

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I
Em alguns casos, não se espera
um resultado harmônico (no senti-
do convencional) e as variáveis estão
mais à vontade para passear entre as
possibilidades, sem a necessidade de
uma narrativa minimamente linear.
No trabalho “Tímido” [ fig. 1 ], as frequências sonoras e as luzes 1

correspondentes são geradas por uma variável randômica, que


por si só já é suficiente para conferir uma dinâmica fragmentada.
Além disso, a distância medida por sensores entre o objeto e o
visitante é acrescida a essa variável, integrando, mesmo que de
forma não muito perceptível, a máquina e o público. Essa melodia
audiovisual não tem uma coerência estrita dentro das práticas
musicais convencionais, já que não faz uso de notas temperadas
ou escalas, mas o tempo de disparo se encarrega de operar a nar-
rativa e a comunicação com o público, como se fosse um diálogo
entre duas pessoas.

II
Na instalação “Afeto” [ fig. 2], através do uso de três instrumen-
tos audiovisuais, o caráter generativo aparece sob diversas formas.
No primeiro objeto, composto de dois spots de luz RGB, um jogo
acontece quando um instrumento autônomo – conectado aos dois
equipamentos de luz – inicial-
mente gera uma frequência
e uma cor, por meio de uma
variável randômica, que é emi-
tida por um dos spots. Em se-
guida, o spot que está do lado
oposto começa a trilhar um
caminho entre a cor e a fre-
quência que atualmente emite
até chegar às propostas pela
2 primeira variável. Esse caminho é um continuum de som e luz, até
que ambos estejam emitindo a mesma frequência. Logo após, uma
nova variável é sorteada e o processo se repete, desta vez com o
segundo spot tomando a frente no processo. Em um outro objeto,
constituído também por um instrumento autônomo, este conec-
tado a um projetor e ao sistema de som, a frase “Você me ouve?” é
repetida em código morse com variadas durações, resultando em
uma forma de monólogo com diferentes entonações, de acordo

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com cada velocidade escolhida pela máquina. Nesses dois objetos,
a participação do visitante é apenas externa, não havendo intera-
tividade no sentido de alterar algum comportamento dos objetos
em função do público.

III
Já a obra “Territórios” [ fig. 3] é uma soma complexa de intera-
ções humano-máquina, em que a própria imprecisão de leitura
do microfone rudimentar acrescenta uma pitada de aleatoriedade
ao processo. Nela, o som gerado por cada interator é analisado e
modifica a posição da tela central no sentido de quem aplicou o
menor volume ao instrumento. Os frames que aparecem na tela
não são randômicos, porém aparentam ser devido à forma com
que foram programados. É a intensidade da batida no instrumento
que faz a projeção deslizar por uma sequência de frames estáticos
em uma timeline que é acessada em função do volume captado
pelo respectivo microfone. Porém, a amplitude faz com que se
tenha uma sensação de que as imagens acontecem de uma forma
completamente fragmentada, apesar de estarem sempre na ordem
fixada pelo vídeo pré-gravado. Variáveis físicas, como atrito e inércia,
também interferem na obra.

102 Henrique Roscoe

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IV
Passando para as performances
audiovisuais, meu primeiro traba-
lho utilizando um conceito que é
tratado de formas variadas durante
um espetáculo de aproximadamen-
te 30 minutos se chamou “Aufhe-
bung” [ fig. 4]. Na ocasião, ainda esta-
va em uma fase de exploração dos limites narrativos e estéticos de 4

uma performance e não tinha domínio sobre técnicas generativas.


Assim, em alguns momentos as imagens tinham vida própria um
pouco além do que eu gostaria, fazendo com que algumas não
se apresentassem de forma interessante esteticamente. Naquela
época, eu usava dois computadores interligados pelo protocolo
Midi e controlados por uma interface criada por mim especifica-
mente para esse trabalho. Para dar vida às imagens, utilizei vários
parâmetros generativos, como a deformação de um objeto em
função do som; a possibilidade de alteração das subdivisões da
estrutura desse objeto; movimentos de câmera randômicos; mul-
tiplicação de elementos similares, cada um com comportamento
próprio; uso do rastro deixado pelas imagens como forma cons-
titutiva e construtiva da imagem final; alterações e controle na
forma de determinados elementos; controle de velocidade, posição
e texturas em tempo real; além de outros detalhes menores. Já a
parte musical contou com partes criadas ao vivo e feitas de modo
diferente a cada apresentação, além de alguns improvisos usando
escalas não convencionais.

V
Os procedimentos generativos foram sendo amadurecidos ao
longo do tempo e, no projeto mais recente, “Synap.sys” [ fig. 5], tenho
conseguido definir melhor o que quero que cada objeto faça na cena,
além de estar mais livre para improvisar durante a performance, em
função da automatização de alguns parâmetros que anteriormente
tentava controlar “na mão”. A automatização se utiliza de práticas
criativas para tornar movimentos mais repetitivos – ou transições –,
mais fluidos, sem exigir a minha ação, que pode ser direcionada para
outros processos. O uso de uma interface construída especialmente
para a performance – que, inclusive, tem seu design pensado em
função do tema escolhido – ajuda na ampliação das possibilidades
generativas, através de seu próprio modo de funcionamento. Esse
é um instrumento de cordas que contém uma parte digital e tem

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como referência o modo
de operação modular, em
que conexões são feitas ao
vivo ligando cada um dos
20 possíveis pontos, dois a 2
através de cabos. Cada co-
nexão resulta em uma ação
quando recebida pelo pro-
grama, podendo controlar
alterações na imagem, fazer
a transição entre as partes, mudar parâmetros de um sintetizador 5

de som, alternar entre sequências de ações audiovisuais etc. A com-


binação entre as ligações possíveis daria um número muito alto de
possibilidades, então restringi o máximo para 40. Defini também
que uma parte dessa combinação seria responsável pela ligação de
cada uma das oito partes da performance, e o restante controlaria
as ações. Dentro de cada parte, o procedimento generativo está
presente de formas distintas. Alguns exemplos seriam: a definição
do caminho a ser trilhado por linhas que atravessam a tela; a po-
sição/rotação/escala de cada elemento tridimensional na cena; a
deformação que um objeto 3-D sofre ao longo do tempo; a escolha
e as formas de sobreposição de frames de um vídeo; e a geração de
objetos a partir da análise do áudio recebido pelo instrumento.

VI
No trabalho “PONTO, um Videogame sem Vencedor” [ fig. 6 e 7],
as estratégias generativas chegam ao ponto máximo: além de todas
as variáveis que controlam som e imagem, outra é inserida pelo
visitante, que tem controle sobre 50% de tudo que é gerado durante
a performance. Ao convidar cinco pessoas do público para execu-
tá-la no palco comigo, perco o controle sobre boa parte das ações,
já que é impossível prever o que cada um irá fazer. A apresentação
é toda gerada pelo sintetizador audiovisual que criei, controlada
a partir de joysticks, que geram som e controlam imagens em
tempo real, criando ao vivo tanto a trilha sonora quanto os visuais
de uma forma radical: sem a atuação dos performers, quase nada
acontece na cena, pois grande parte da ação depende destes. Cada
participante recebe as instruções quando sobe ao palco, onde estão
descritas as ações possíveis e a função de cada botão do joystick.
Mas, mesmo recebendo instruções idênticas, cada participante tem
uma atuação completamente distinta. Alguns tentam produzir algo
musical, mas boa parte aperta os botões de forma frenética, tentando

104 Henrique Roscoe

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fazer várias coisas ao mesmo tempo. Como as ações são limita-
das, alguns percebem a melhor forma de usar em pouco tempo,
mas isso depende totalmente da sensibilidade de cada interator.
Além do aparente caos trazido pelo convidado, a performance se
utiliza de um grande número de funções com elementos randômicos
que dão um caráter de variação em um ambiente com possibilidades
audiovisuais extremamente restritas. O número de elementos, cores,
processamento por parte da placa, capacidade de síntese sonora
etc. é bastante limitado, principalmente se comparado às alterna-
tivas oferecidas por softwares rodando em computadores atuais.
O instrumento é autônomo, baseado no microcontrolador Arduino
Mega, que tem memória e processamento similar aos primeiros
computadores construídos há mais de 50 anos. Somente com o
uso dessas estratégias foi possível conseguir um resultado criativo
em termos de som e imagem, mesmo que estes se resumam a
uma estética 8 bits presente nos
videogames dos anos 1980. En-
tre as estratégias empregadas na
programação está a busca de uma
relação próxima entre som e ima-
gem, com ideias tiradas de um
outro universo fundamental na
minha prática artística: a visual
music (Brougher, 2005).
6 Esse tipo de arte busca nas relações audiovisuais um equi-
líbrio, sem hierarquia, em que as imagens tomam emprestadas
características mais comuns à música para criar melodias visuais,
nas quais a relação entre música e visuais acontece de uma forma
indissociável. Assim, ao apertar um botão no joystick, eu ou o
convidado sintetizamos, em tempo real, um som e uma imagem,
alterando dinamicamente a cena exibida.

VII
Outro procedimento importante que aparece com frequên-
cia nessa performance são os loops randômicos. O uso desses
dois termos aparentemente contraditórios, já que o termo “loop”
sugere repetição, enquanto o randômico busca a variação, existe
em função da mescla de características dos dois lados, a fim de
inserir alguma repetição a comportamentos aleatórios. Assim,
alguns loops são criados de modo que, sempre que são repetidos,
geram uma nova sequência de números, que é usada para criar
melodias dentro de uma escala inventada ou gerar variações no

105

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movimento dos objetos em cena,
por exemplo. Essa repetição sutil
aproxima a relação de coautoria
entre o artista e a máquina. É esta
que cria melodias audiovisuais
reconhecíveis esteticamente inte-
ressantes, a partir da programação
desenvolvida pelo artista. É buscan-
do equilíbrio fluido e sutil entre
7 a criatividade humana e o poder da máquina de gerar infinitas
combinações que baseio meu trabalho, tentando uma harmonia
entre o que se pode conseguir de melhor nos dois mundos.

Considerações finais
Neste artigo, descrevi procedimentos generativos em trabalhos
artísticos audiovisuais, buscando uma conceituação em função de
conteúdo adquirido em leituras prévias de autores da área, mas
principalmente pela minha prática, que se utiliza constantemente
desse modo de operação. Acredito que essas bases possam auxiliar
artistas e estudantes da área a conhecer um pouco sobre o tema
e inspirá-los a ir além do que foi dito aqui, explicitando melhor
procedimentos e técnicas usadas, sugerindo novas possibilidades
artísticas em trabalhos que se utilizem desse modo de pensar.

106 Henrique Roscoe

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imagens
1 “Tímido ”, 2019. Mais informações sobre o trabalho: <http://1mpar.com/index1.
php/portfolio/shy-2>.

2 “Afeto”, 2013. Mais informações sobre o trabalho: <http://1mpar.com/index1.php/


portfolio/afeto>.

3 “Territórios ”, 2013. Mais informaçõe sobre o trabalhos: <http://1mpar.com/index1.


php/portfolio/territories-territorios>.

4 “Aufhebung ”, 2009, Mostra Live Cinema. Mais informações sobre o trabalho em:
<http://hol.1mpar.com/?page_id=879>.

5 “Synap.sys ”, 2014. Mais informações sobre o trabalho em: <http://hol.1mpar.


com/?page_id=1271>. / Foto: Eduardo Magalhães.

6 Instrumento para “PONTO, um videogame sem vencedor ”, 2011. Mais informações


sobre o trabalho em: <http://hol.1mpar.com/?page_id=811>. / Foto: Henrique Roscoe

7 Coparticipação do púlblico em PONTO, um videogame sem vencedor, 2012.


Foto: Bruna Finelli.

referências bibliográficas
BIGHETTI, Vera. Complexidade da arte generativa. Disponível em: <https://
artzero2008.wordpress.com/programacao-generativa-como-lingua-
gem-e-comunicacao/complexidade-da-arte-generativa/>. Acesso
em: 5 set. 2016.
BROUGHER, Kerry. Visual music: synaesthesia in art and music since 1900.
Londres: Thames & Hudson, 2005.
GALANTER, Philip. What is generative art? complexity theory as a context for art
theory. Disponível em: <http://www.philipgalanter.com/downloads/
ga2003_paper.pdf>. Acesso em: 5 set. 2016.
ROSCOE, Henrique. Afeto. Disponível em: <http://1mpar.com/index1.php/
portfolio/afeto/>. Acesso em: 5. set. 2016.
_______. Territórios. Disponível em: <http://1mpar.com/index1.php/portfolio/
territories-territorios/>. Acesso em: 5 set. 2016.
_______. Synap.sys. Disponível em: <http://hol.1mpar.com/?page_id=1271>.
Acesso em: 5 set. 2016.
_______. Aufhebung. Disponível em: <http://hol.1mpar.com/?page_id=879>.
Acesso em: 5 set. 2016.
_______. PONTO, um videogame sem vencedor. Disponível em: <http://hol.1mpar.
com/?page_id=811>. Acesso em: 5 set. 2016.
_______. Tímido. Disponível em: <http://1mpar.com/index1.php/portfolio/
shy-2/>. Acesso em: 5 set. 2016.

107

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materia-
lidade
objeto
3. a experiência
física

inte-
ração
internet
das
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coisas 23/08/19 13:24
Roberto
Cruz

filmes e vídeos de
artistas: preservando e
difundindo o que ainda
não se perdeu

A preservação de obras de arte produzidas em time-based media


(como o filme, o vídeo, a arte cibernética) é uma das grandes
questões que as instituições culturais estão enfrentando. Em função
do desenvolvimento muito acelerado da tecnologia, essas obras se
tornam tecnicamente obsoletas muito rápido. Uma das preocupa-
ções centrais é com a integridade da obra e sua durabilidade, uma
vez que ela foi produzida em um formato que em pouquíssimo
tempo se torna algo raro e inexistente no mercado.
Um exemplo é o super-8, uma bitola difundida pela indús-
tria para consumo não profissional nos anos 1960-1970, muito
utilizada pelos artistas e que hoje não se encontra com facilidade.
Esse formato tem um agravante, pois a revelação da película é
o próprio positivo dessas imagens, não havendo, portanto, uma
matriz em internegativo da qual se extraem novas cópias. Assim,
um dos desafios por parte desses departamentos de conservação
é criar metodologias de trabalho que considerem a preservação e
a integridade da obra, mas que ao mesmo tempo a torne passível
de ser exibida. Qual é o sentido de uma obra ficar exclusivamente
guardada, conservada em uma sala refrigerada, sem poder ser
vista? Elas são patrimônios culturais e precisam ser conhecidas,
pesquisadas, admiradas.
No Brasil, não existe um protocolo definido pelos museus e
instituições voltado para a conservação de obras de arte produzi-

o cinema e seus outros 109

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das em formatos audiovisuais1. Esse é um tema fundamental para
ser discutido, porque, se estamos trabalhando com uma mídia
baseada em uma tecnologia ou em um modo de produção que
se torna obsoleto rapidamente, é muito grave não termos uma
cultura arquivista dedicada para isso. Nos museus brasileiros, não
existem departamentos especializados nessa matéria. A impressão
que se tem é de que essas instituições ainda não atentaram para a
categoria do filme e do vídeo do artista. A representatividade das
coleções em tal setor é irrisória. Para se ter um exemplo concreto,
enquanto o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) guarda em
seu acervo mais de 1.500 obras de fotografia, a coleção não registra
mais do que 40 obras em vídeo, filme ou instalações nesse formato.
É uma desproporção quase injustificável. A precariedade ocorre
inclusive naquelas instituições que a priori deveriam estar atentas
a tais questões, como é o caso dos Museus da Imagem e do Som.
Basta citar o exemplo de um dos mais bem estruturados Museus
da Imagem e do Som do país, que é o de São Paulo. O acervo lá
constituído está preservado precariamente, e não há investimentos
no sentido de mantê-lo atualizado em termos técnicos e meto-
dológicos. A política que foi adotada para esse museu na última
gestão2 foi a mais perversa possível, baseando-se exclusivamente
em realizar exposições com apelo de público, esquecendo-se que
a função essencial e primeira de um museu é a constituição e
preservação de seu acervo.

As fitas portapack do setor de vídeo do MAC


O Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP)
foi pioneiro no país em formular, ainda que de forma embrioná-
ria, um projeto de fomento e difusão de obras audiovisuais, mais
precisamente de vídeo, na segunda metade da década de 1970. No
período em que foi diretor do MAC, de 1968 a 1978, Walter Zanini
demonstrou interesse pela utilização da tecnologia como forma de
expressão artística. Era recorrente em suas curadorias a presença
de propostas nas quais os artistas utilizavam modos pouco ortodo-
xos de criação e traziam para o campo da experimentação estética
meios e linguagens próprios da comunicação, como a fotografia
em slide, o cinema em seus formatos não profissionais (super-8 e
16 mm), o vídeo, a arte postal e o videotexto.

1 Aqui não me refiro à Cinemateca Brasileira, que, apesar de ter esse protocolo muito
bem definido, não abriga em seu acervo obras dessa natureza.
2 O período se refere aos anos de 2013 a 2016.

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Em 1977, Zanini colocou em prática nesse mesmo museu um
laboratório de experimentação ao constituir o Setor de Vídeo.
A aquisição de um equipamento portapack, o modelo VC34500 da
Sony, de ½ polegada, em preto e branco, inaugurou as atividades
da instituição e contou com a coordenação de Cacilda Teixeira da
Costa, Marília Saboya, Fátima Berch e com o apoio técnico
de Hironie Ciafreis.
Após um longo período de desaparecimento, todo o conteúdo
audiovisual produzido pelos artistas naquele período de experiências
do setor de vídeo foi novamente depositado no acervo do MAC-USP.
Só foi encontrado em 2013 por Regina Silveira e Cristina Freire
no acervo do MIS-SP. Essa localização se deu após insistência da
artista, pois o material não estava indexado no acervo do museu.
Havia uma suspeita de que Zanini havia levado esse material para
o MIS-SP em 1978 por ocasião da realização do Primeiro Encontro
Internacional de Videoarte e que desde então estaria depositado lá.
Em uma das tentativas de localizar o material, uma das conserva-
doras do MIS-SP entregou uma caixa para Regina Silveira dizendo
que havia algumas fitas sem identificação, mas que se tratava de fitas
de áudio. Ao verificar, constatou-se serem as fitas produzidas em
1977 e que equivocadamente estavam identificadas como material
sonoro devido à semelhança que o suporte de ½ polegada em por-
tapack tem com as fitas de áudio de rolo aberto (open reel). As fitas
foram digitalizadas em formato mov pela própria Regina Silveira
com a contribuição de Antonio Muntadas, conseguindo efetuar
a remasterização em um laboratório na Espanha. Atualmente no
Brasil não existem equipamentos portapack em funcionamento.
O aparelho original que pertencia ao departamento de vídeo do
MAC-USP ainda se encontra no museu, mas está inoperante.
O conteúdo das dez fitas é, em grande parte, composto pelos
trabalhos produzidos pelos artistas que participaram das atividades
do setor de vídeo e estavam registrados no protocolo de tombo do
acervo desde a sua origem, entre os anos 1976 e 1978. Três delas não
estão registradas como acervo do museu e se referem ao registro
de uma reunião da Comissão Pró-Índio Parakanã, realizada por
Gastão de Magalhães, outra com o registro da vernissage de uma
exposição de José Roberto Aguilar e uma terceira ainda sem des-
crição, identificada somente com o nome da artista Cybelle Varela.
A recuperação desses originais produzidos entre os anos de
1976 e 1978, no período embrionário da história do vídeo no Brasil,
permite, agora, cerca de quatro décadas depois, assistir às obras
remasterizadas integralmente no formato original em que foram

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produzidas e entender mais fidedignamente os processos de criação
nos quais foram realizadas. Na bibliografia que faz referência a essas
obras, os autores tiveram acesso às cópias em formatos diversos
(VHS, U-Matic, Betacam), que circularam informalmente entre os
artistas e pesquisadores, muitas delas de origem desconhecida e de
má qualidade. Essas análises, portanto, se pautaram exclusivamente
por obras e relatos dos artistas e pesquisadores remanescentes da-
quele período. Não consideram as peculiaridades do processo de
criação, tampouco as condições técnicas intrínsecas à sua produção,
aspectos que acrescentam informações pertinentes à compreensão
desses trabalhos.
Durante o período de atuação do setor de vídeo do MAC, foram
realizados 15 vídeos e a série “Videopost”, composta de 19 trabalhos
de autoria de Jonier Marin em parceria com outros artistas inter-
nacionais. Os artistas nacionais que participaram efetivamente do
laboratório de criação desse departamento foram Carmela Gross,
Flávio Pons, Claudio Goulart, Gabriel Borba, Gastão Magalhães,
Ivens Machado, José Roberto Aguillar, Julio Plaza, Liliane Soffer,
Regina Silveira e Donato Ferrari. Os trabalhos foram realizados
a partir do intuito de experimentar formas de linguagem, através
de um dispositivo de produção de imagens nunca antes utilizado
por tais artistas. Além deles, participaram de algumas das mostras
organizadas pelo setor de vídeo no chamado Espaço B, sala de
exibição dedicada à difusão desses trabalhos, outros artistas que
também estavam produzindo obras em vídeo. Foram eles: José
Roberto Aguilar, Letícia Parente, Anna Bella Geiger, Sônia Andra-
de, Fernando Cocchiarale, Miriam Danowsky, Paulo Herkenhoff,
Milton Lana e Marcelo Nietsche.
Nas fitas, além dos vídeos propriamente ditos, existem tam-
bém, em alguns casos, versões das obras sendo executadas mais
de uma vez pelo artista, constituindo, portanto, um documento
histórico precioso e revelando como se deu o próprio processo
de elaboração das imagens. É o caso do trabalho de Carmela
Gross, no qual a artista desenha linhas sobre a tela de televi-
são, que exibe um programa da época, formando uma espécie
de padrão geométrico sobre essa imagem. Esse procedimento
aparece em outro momento que o antecede na fita de vídeo,
em que a artista realiza o mesmo gesto, mas sobre uma folha de
papel-manteiga. O diálogo que é possível ouvir em off revela a
voz da própria Carmela Gross em conversa com outras pessoas,
comentando como ela deve fazer o desenho para que este fique
ajustado ao campo da tela. Nitidamente é uma espécie de teste,

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um exercício de preparação para a execução do trabalho que se
daria logo na sequência.
Rever esses trabalhos em suas versões originais permite aos
olhos do historiador de hoje investigar mais precisamente as aventu-
ras da produção de vídeo desses pioneiros, muitos deles esquecidos
ou pouco investigados pela própria impossibilidade de acesso às
matrizes produzidas naquele laboratório.

Desafios da difusão
Como criar meios de exposição que permitam que obras
produzidas em novas mídias possam ser exibidas numa concepção
museológica contemporânea, com longos períodos de exposição,
em turnos diários contínuos de 8 a 10 horas durante 60, 70 dias?
“Ão”, de Tunga, é um exemplo que merece ser analisado, consi-
derando aspectos expositivos e as particularidades técnicas da obra.
O cinema foi uma linguagem não muito frequente no repertório
de Tunga, mas, mesmo assim, essa obra se insere integralmente
no vocabulário estético do artista. Da mesma forma que a maté-
ria plástica do aço, do vidro, da madeira, do cobre, da argila, tão
frequente em suas esculturas e instalações, era moldada em for-
mas simbólicas e orgânicas, representando questões filosóficas e
antropológicas da cultura brasileira, a filmeinstalação “Ão”, criada
pelo artista em 1982, propõe uma transmutação entre a imagem,
o som e o próprio dispositivo da projeção.
No espaço da instalação, o espectador assiste ao interminável
plano-sequência, que exibe o percurso circular por dentro de um
túnel sem saída. Esse trajeto contínuo tem como trilha sonora
um fragmento da canção “Night and Day” de Cole Porter, interpre-
tada por Frank Sinatra, que repete também infindavelmente a frase
que dá título à canção. A experiência visual e sonora se estende
para uma percepção física, para o próprio espaço da exibição, no
qual a película de 16 mm circula além do carretel do projetor,
transformando a sala em cenário da representação.
A obra de Tunga transporta a percepção do espectador para
uma dimensão sobrenatural, onírica. Cria outros significados
para a imagem, o som e o próprio devaneio do corpo, presente em
uma mediação dos sentidos que se estabelece entre a experiência
de ver, ouvir e estar. Atualmente existem duas edições dessa obra.
Uma delas faz parte do acervo da Coleção Inhotim, em que pode
ser apreciada permanentemente na Galeria Psicoativa, pavilhão
concebido por Tunga para integrar a arquitetura ao meio ambien-
te, criando uma intersecção entre duas dimensões espaciais com

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várias instalações, objetos e esculturas. Nesse ambiente, a filme-
instalação pode ser visitada em horários de exibição periódicos. A
outra edição está no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque (MOMA). A obra foi adquirida em 2015 e é mantida com
toda a infraestrutura de montagem pelo departamento de media
e performance art da instituição.
Em relação especificamente à infraestrutura aqui mencio-
nada, “Ão” requer recursos técnicos de apresentação que tornam
peculiar e criteriosa a sua montagem. A obra foi apresentada no
Sesc Belenzinho (São Paulo) em agosto de 2017, em uma nova
edição, produzida em parceria com a Agnut Produções, escritório
responsável pelos direitos sobre a obra do artista, para a exposição
“Iluminados – Experiências Pioneiras em Cinema Expandido”, da
qual fui curador. Ela é composta de um filme de 16 mm, 12 hastes
suspensas pelas quais a película circula, um projetor de 16 mm,
modelo EIKE Slin Line, com sistema de exibição em looping, caixas
de som e media player para o áudio. Foram feitas duas cópias de
exibição a partir de um internegativo original do filme. Dada a
inexistência de laboratórios no Brasil que trabalhem com bitolas
em 16 mm, estas foram produzidas em Nova Iorque por intermédio
de indicação do gerenciamento técnico de Inhotim, que efetuou
cópias recentemente para a montagem da obra na instituição.
Cada vez mais se torna um desafio a montagem de obras que
utilizam esses dispositivos, indisponíveis no mercado audiovisual
atual. A película como formato de produção e reprodução de
imagens saiu de uso definitivamente e, consequentemente, toda a
cadeia produtiva migrou para o digital. Raramente se encontram
disponíveis câmeras, projetores e películas. Produzir e exibir nesses
formatos (8 mm, 16 mm e até mesmo em 35 mm, o formato mais
comumente utilizado pela indústria audiovisual) se tornou uma
idiossincrasia. Permitir que obras históricas, produzidas há cerca
de quatro ou cinco décadas e que utilizavam esses dispositivos,
possam ser conservadas e exibidas publicamente tornou-se um
desafio e uma missão predestinada para as instituições museológicas
e culturais que preservam tais acervos.
No Brasil, existe um único fornecedor que aluga projetores de
16 mm. Em seu estoque, estão disponíveis somente cinco apare-
lhos. Um agravante é a manutenção desses equipamentos. Não se
encontram facilmente peças de reposição, e mantê-los em razoável
estado de conservação é uma tarefa quase arqueológica. No exterior,
o cenário não é muito diferente, mas ainda é possível encontrar
prestadores de serviços especializados. É o caso da KS Objectiv em

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Londres, que atende especificamente à demanda de artistas, galerias
e museus no fornecimento de equipamentos e infraestrutura de
montagem de filmeinstalações e videoinstalações. Ela auxilia, por
exemplo, na montagem do trabalho de Tacita Dean, artista con-
temporânea que se interessa especialmente pela criação de filmes
experimentais produzidos em formatos alternativos, como o 16 mm.
Em uma obra como “Disappearance at Sea” (1996), ela utilizou um
formato raro de filme anamórfico, que permite projetar através de
lentes especiais adaptadas ao equipamento uma imagem com um
aspect ratio (proporção da tela) ampliado.

Constituindo uma coleção


Desde 2012, atuo como curador da Coleção de Filmes e Vídeos
do Itaú Cultural. Essa iniciativa, pioneira por parte de uma insti-
tuição privada no país, formaliza através da aquisição, conservação
e restauração a constituição de um acervo permanente de obras
audiovisuais, produzidas no Brasil nas últimas cinco décadas.
Um dos aspectos que motivam a aquisição permanente de
obras audiovisuais para essa coleção, e talvez o mais fundamental,
é o de propor o resgate da importância da produção pioneira, tra-
zendo ao olhar contemporâneo a força inventiva dessas imagens.
Remasterizando e recuperando filmes e vídeos de artistas como
Rubens Gerchman, Nelson Leirner, Letícia Parente, Regina Silveira,
Paulo Bruscky, Sonia Andrade, Anna Bella Geiger e Rafael França, a
coleção visa conservar obras passíveis de deterioração, pela própria
obsolescência da tecnologia. Por esses aspectos, a coleção pode
ser compreendida como um acervo audiovisual, pois acredita na
preservação de bens culturais, constituindo-se, neste sentido, num
patrimônio histórico inestimável.
Algumas dessas obras merecem destaque. “Marca Registrada”
(1974), de Letícia Parente, é um marco na videografia brasileira.
O impacto dessa obra não está exclusivamente na contundência
do gesto da artista, que costura a frase “Made in Brasil” na sola de
seu próprio pé. O que aparentemente soa como autoflagelação é
essencialmente um ato político, elegendo o corpo como instru-
mento derradeiro de uma manifestação, de afirmação cultural e
de identificação da cidadania. A singularidade dessa obra evoca a
capacidade transformadora da arte em um momento no qual a
liberdade de expressão estava comprometida pela censura e repri-
mida pela ditadura militar que governava o país.
Em certo sentido, “A Arte de Desenhar” (1980), de Regina Silveira
também investiga a possibilidade de transformar o corpo em um

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instrumento de linguagem. No caso, as mãos da artista executam
gestos programados, tentando reproduzir a posição e o contorno
desenhado da silhueta de uma outra mão. Uma espécie de pedagogia
da forma e do conceito, em um jogo de certo e errado em busca
da mimése perfeita. No vídeo, a melhor tentativa é reconhecida
por uma salva de palmas, reforçando a escolha ideal daquilo que
se quer representar.
Essas duas obras caracterizam um aspecto muito presente nas
criações desse período. O dispositivo básico dessas primeiras pro-
duções consistia quase que exclusivamente no confronto entre a
câmera e o artista. Não são trabalhos que exploram propriamente
uma narrativa mais definida, que se apoie nos recursos da montagem
e da passagem de tempo – mesmo porque esses recursos técnicos
eram praticamente inviáveis de serem realizados no portapack,
devido à impossibilidade de editar as imagens. Mesmo assim,
é evidente uma intertextualidade entre o gesto propositivo das
artistas e o dispositivo da câmera e do monitor de TV, que servia
como uma referência espacial de sistematização do enquadramento
da performance.
É o que se nota também em “Passagens #1” (1974), de Anna
Bella Geiger. A proposta da artista é circular por vários ambientes,
repetindo a atitude de subir escadas. Curiosamente, sua identidade
nunca é revelada, sendo gravada sempre de costas. A artista propõe
passagens de tempo, mudança de espaços cênicos – várias escadas
são mostradas –, mas sua proposição cria uma continuidade, por
estar executando sempre o mesmo movimento de subir as escadas,
em uma continuidade que nega a ação e o transcorrer próprios da
linearidade narrativa com princípio, meio e fim.
Dois filmes antológicos, produzidos no Brasil na década de 1970,
estão na coleção. “Triunfo Hermético” (1972), de Rubens Gerchman,
é a melhor experiência cinematográfica realizada pelo artista, trans-
pondo para essa linguagem os seus poemas tridimensionais. No
filme, as palavras recortadas em grandes dimensões e em suportes
variados estão expostas ao ar livre, criando uma sobreposição de
significados entre o signo e os elementos da natureza (água, terra,
fogo e ar). De retorno ao Brasil, após viver seis anos em Nova Ior-
que, o artista foi um dos mais expressivos representantes da arte
pop e da arte conceitual no país, tendo ainda realizado mais dois
filmes em super-8.
O outro filme que pertence à coleção é “Homenagem a Steinberg
– Variações sobre um Tema de Steinberg: as Máscaras Nº 1” (1975),
de Nelson Leirner. Filmado e montado em super-8, o artista usa

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da mesma ironia e narrativa non-sense que comumente propõe em
seu trabalho de objetos e instalações. No filme, todos os personagens
utilizam sacos de papel na cabeça e se comportam caricaturalmente
na rotina de seus afazeres diários. Adquirida para a coleção em 2013,
a película permaneceu guardada na geladeira do ateliê do artista –
uma forma muita adequada de conservação intuída por Leirner, já
que seu filme era raramente exibido publicamente e jamais havia
sido adquirido para uma coleção privada ou institucional. A inclusão
dessa obra na coleção permitiu realizar procedimentos de limpeza
e remasterização do filme para o formato digital, contribuindo,
assim, para a sua conservação.
Artista de linhagem peculiar na arte contemporânea brasileira,
por apresentar em sua trajetória um repertório muito vasto e diver-
sificado de propostas artísticas, Paulo Bruscky realizou um conjunto
de filmes e vídeos entre meados da década de 1970 e no decorrer
da década 1980. Como o próprio artista afirma, esses trabalhos
eram experiências que analisavam “a diferença entre a linguagem
do vídeo e a do cinema, principalmente naquela época, em que a
questão da velocidade/mo(vi)mento era diferente/fundamental”.
“Registros (Meu Cérebro Desenha Assim)”, de 1979, e “Xe-
roperformance”, de 1980, evidenciam a relação corpo-máquina,
muita explorada por Bruscky no período mais conceitualista de
sua trajetória. Tanto no primeiro produzido em vídeo quanto
no segundo feito em super-8, Bruscky procura estabelecer uma
intersecção entre a ação do ato performático e o dispositivo de
produção audiovisual. Formalmente, são obras com características
bem distintas, mas que guardam similaridade na proposição e
elaboração conceitual da imagem.
O vídeo tornou-se uma linguagem hegemônica mais evidente
a partir da década de 1980. Foi nesse período que emergiu uma
geração de videomakers propondo a utilização do meio como
instrumento de invenção, transformando o aparato e o suporte
televisivo em elemento de expressão. Muitas obras passam a utilizar
em sua composição cenográfica o aparelho de TV (monitores tradi-
cionais de tubo de raios catódicos), os equipamentos de captação e
reprodução da imagem (câmeras de vídeo e players VHS, U-matic e
posteriormente Betacam) e os projetores de vídeo (o modelo mais
utilizado era o de três tubos da Sony CRT VPH 1000).
Artista que representa o momento de transição entre as ex-
periências pioneiras do vídeo no Brasil e a segunda geração que
emerge nos anos 1980, Rafael França encontrou na linguagem do
vídeo aspectos estruturais de representação da realidade, explorando

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a edição e a temporalidade da imagem como elementos expres-
sivos. Realizando seu mestrado na Escola de Artes do Instituto
de Chicago, França teve a oportunidade de vivenciar o momento de
efervescência das artes do vídeo norte-americanas, em que teve
acesso a laboratórios voltados para a experimentação artística com
equipamentos pouco acessíveis no Brasil.
A obra de Rafael França que integra a coleção é “After a Deep
Sleep (Getting Out)”, realizada em 1985, ainda em seu período de
residência nos Estados Unidos. Nesse trabalho, o artista explora
aspectos da narrativa, experimentando desconstruir o tempo da
representação naturalista a partir de um exercício de edição e
corte descontínuo. Uma obra que demonstra o rigor formal da
sua linguagem e a busca pelo artista de um modo de operação do
código da imagem, algo muito próprio e peculiar do seu trabalho,
em uma época em que o desenvolvimento da tecnologia do vídeo
implicava certamente em constantes reinvenções da linguagem.

118 Roberto Cruz

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Christine
Mello

extremidades: leituras
entre arte, práticas
midiáticas e experiência
contemporânea*

Estabelecida na passagem para os anos 2000, a investigação “Ex-


tremidades do vídeo”1 teve como princípio cartografar e analisar
a produção experimental com o vídeo no Brasil2. Seu principal
objetivo foi colaborar com uma abordagem histórica e estética
das inter-relações promovidas com o vídeo no campo da arte con-
temporânea. Nela, foi desenvolvida uma metodologia de análise
denominada “Leitura das Extremidades”.
Esse termo se refere a uma abordagem crítica para a arte e
para as práticas midiáticas a partir da noção de extremidades.
De modo mais específico, nela são articulados os procedimentos de
desconstrução, contaminação e compartilhamento como vetores
de leitura. Trata-se de constituir metodologia de análise para tra-
balhos que transitam entre arte, práticas midiáticas e experiência
contemporânea, interconectados entre múltiplas plataformas,
comunidades e linguagens.
Hoje, busco redimensionar a pesquisa nos campos da arte e
da comunicação, procurando ampliar sua ação na área crítica.

* Texto originalmente apresentado em Diálogos transdisciplinares: arte e pesquisa.


PRADO, Gilbertto; TAVARES, Monica; ARANTES, Priscila (orgs.). In: Extremidades:
leituras entre arte, comunicação e experiência contemporânea. São Paulo: ECA/USP, 2016;
sendo, na presente versão, revisto e ampliado.
1 Desenvolvida inicialmente sob a forma de tese de doutorado, entre 1999 e 2004,
na PUC-SP, com orientação de Arlindo Machado, foi publicada em 2008 pela Editora
Senac – São Paulo.
2 O período de abrangência da produção analisada, em grande parte, vai até o ano
de 2004.

o cinema e seus outros 119

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No presente texto, reexamino essa abordagem crítica, observando,
por um lado, certos tensionamentos na esfera social entre o global
e o local, e, por outro, buscando estabelecer diálogos com as ideias
de Eric Hobsbawm (“Era dos extremos”), Massimo Canevacci
(“Culturas eXtremas”) e do artista Antoni Abad (“Megafone.net”).
“Extremidades” traz reflexões sobre limites, fronteiras, crises e
atravessamentos. Há motivos vitais para se pensar sob sua perspecti-
va, principalmente quando associamos tais dimensões a problemas
concretos, ligados diretamente à vida cotidiana. É possível abordar
a noção de extremidades não apenas no plano micropolítico – rela-
cionado às políticas do sujeito e do cotidiano, como nos faz pensar
Michel Foucault (1979) – mas também no plano da grande política,
da economia, do meio ambiente e da sociedade como um todo.
Com essa perspectiva, vivenciamos nas primeiras décadas do
século XXI conflitos urbanos, guerras civis, terrorismo, intervenções
militares, crises migratórias e de refugiados, chacinas, corrupção,
crises políticas e econômicas, discriminação racial e sexual, desi-
gualdades sociais e tragédias ambientais.
O signo das extremidades se faz presente no cotidiano concreto,
não podendo ser considerado, portanto, estado de exceção. Trata-se
de perceber problemas contínuos da ordem pública relacionados
a situações limítrofes. Como reflete o historiador Eric Hobsbawm
(2014), tais problemas colocam em xeque a democracia e trazem
novamente uma era de decomposição e incerteza.
Por outro lado, no campo das relações interculturais fala-se cada
vez mais da experiência contemporânea que tem lugar nos atraves-
samentos e na expansão de espaços sociais, artísticos e midiáticos.
Observamos essa experiência, por exemplo, nas redes sociais, nas
dobras entre vida pública e privada, entre espaços físicos e virtuais
– os chamados espaços intersticiais – nos trânsitos entre fotografia,
audiovisual (cinema, televisão, vídeo e linguagens digitais), internet,
dispositivos móveis, arquivos, bancos de dados, aplicativos, software
e ações performativas. Trata-se de observar o campo da percepção e
sensorialidades em incessante contaminação e transformação.
Comunicar-se, no sentido amplo, significa estar em relação,
implicando, portanto, problemas de alteridade. A inquietação que
aqui toma lugar diz respeito a questionar sob que circunstâncias a
abordagem das extremidades possibilita promover análises entre
experiência social, artística e midiática como processos regidos
pela diferença e diversidade.
Sob a noção das extremidades, que atitude devemos ter diante
de tal plano de realidade? Como analisar problemáticas sociais,

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artísticas e midiáticas que se circunscrevem sob tais experiências?
Como produzir, ante essas condições, aproximações críticas com
o plano da produção poética na análise de obras e artistas que
emergem no século XXI?
Traço, com isso, algumas inquietações: em um momento agu-
do de crise, entre condições de vida, forma estética e experiência
social, como articular hoje em dia a leitura das extremidades?
Busco refletir, desse modo, sob que aspectos a leitura das extremi-
dades pode contribuir na formulação de metodologias de análise
que apontam para “o lugar das diferenças” não como “dispositivo
disciplinar”, mas como um “processo de mediação” (Greiner, 2014,
p. 161) ou um processo de contato e aproximação crítica.

Leituras descentralizadas
Desde a passagem dos anos 2000, com o acesso cotidiano à pro-
dução audiovisual, às linguagens digitais e redes móveis, sabemos
que tais práticas colocam em xeque a especificidade dos meios e das
linguagens, assim como promovem um campo aberto de possibi-
lidades e interações entre diferentes ambientes culturais, circuitos
midiáticos e ações artísticas.
A leitura das extremidades foi traçada na direção de uma cartogra-
fia disforme, observando práticas e contextos da arte contemporânea
em suas intersecções com o vídeo, regidos pelo pluralismo, de forma
a não se apresentarem como um campo específico de manifestações
artísticas e midiáticas.
Integraram a pesquisa artistas como Andrea Tonacci, Anna
Bella Geiger, Antonio Dias, Arnaldo Antunes, Arthur Omar, Cao
Guimarães, Carlos Nader, Dora Longo Bahia, Eder Santos, Eduardo
Kac, Fernando Meirelles, Flávio de Carvalho, Geraldo Anhaia Mello,
Gilbertto Prado, Gisela Motta, Leandro Lima, Giselle Beiguelman,
Hélio Oiticica, José Roberto Aguilar, Julio Plaza, Kiko Goifman,
Leticia Parente, Lia Chaia, Lucas Bambozzi, Lucila Meirelles,
luiz duVa, Marcelo Tas, Mauricio Dias, Walter Riedweg, Moysés
Baumstein, Otávio Donasci, Paula Garcia, Paulo Bruscky, Phila-
delpho Menezes, Rafael França, Raquel Kogan, Regina Silveira,
Regina Vater, Rejane Cantoni, Rita Moreira, Rosangela Rennó,
Sandra Kogut, Sonia Andrade, Tadeu Jungle, Vincent Carelli, VJ
Spetto, Walter Silveira e Wesley Duke Lee. Participaram também
grupos como BijaRi, Corpos Informáticos, Olhar Eletrônico,
SCIArts e TVDO.
Como força que atravessa, a noção de extremidades foi im-
portante para tirar o foco do “específico” e do centro tanto de

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práticas artísticas quanto midiáticas, problematizando nas leituras
dos artistas e das obras aspectos poéticos que tinham existência
nos diversos trânsitos entre comunicação e arte. Possibilitou
refletir sobre procedimentos baseados em processos de hibridi-
zação, que propiciavam a interconexão entre múltiplos espaços
e diferentes linguagens. Nesse sentido, buscou compreender que
as extremidades do vídeo ressignificam as artes visuais na passagem
para o século XXI.
“Extremidades do vídeo” teve como perspectiva histórica e estética
a Antropofagia de Oswald de Andrade (1920-30) articulada com a
Tropicália de Hélio Oiticica, Torquato Neto, Gilberto Gil, Caetano
Veloso e Os Mutantes (1960-70). Tais experiências foram lidas em
relação às práticas internacionais do Fluxus, às da videoarte nos
anos 1960 e 1970 e às promovidas no Brasil com a arte conceitual
e o vídeo independente. Na obra, analiso processos experimentais
entre os campos da comunicação e da arte sob a perspectiva do
(re)processamento cultural (pela Antropofagia e pela Tropicália),
da intermídia (por Dick Higgins) e dos processos de hibridização
(pelos estudos culturais, teorias da arte e das mídias).
A ação de cartografar a produção criativa gerou um levanta-
mento sistematizado de dados sobre obras e artistas que atuavam
de modo descentralizado com o vídeo no Brasil. Dessa maneira,
com a ajuda de vários colaboradores, foi organizado um banco
de dados3 sobre práticas artísticas e midiáticas produzidas no
contexto brasileiro entre os anos 1950 e 2000. Realizado sob a
forma de um levantamento biográfico e videográfico de mais
de cem artistas, que em muito contribuíram com a pesquisa e
incentivaram-na, o banco de dados reuniu informações objetivas
(fichas técnicas) e a sistematização de cerca de 2.500 títulos em
arte contemporânea.
A partir da aproximação com os artistas e do conhecimento de
grande parte de seus trabalhos, foi organizado o banco de dados e
em seguida o recorte para a análise crítica pela leitura das extremi-
dades. Foi nessa fase da investigação que optei por refletir sobre os
procedimentos poéticos das extremidades, no caso, a desconstrução,
a contaminação e o compartilhamento que atravessavam os mais
de 2.500 trabalhos em detrimento de análises específicas sobre os
artistas, gêneros criativos e as obras investigadas.

3 Disponível na Biblioteca Central da PUC-SP sob a forma de anexo da pesquisa de


doutorado. Também ficou disponível para acesso público ao longo dos anos 2000 no
site do Videobrasil por meio da plataforma Videobrasil on-line, projeto integrante da
Associação Cultural Videobrasil (www.videobrasil.org.br), dirigida por Solange Farkas.

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A análise de tais procedimentos se configurou como um mi-
crocosmo que pretendeu mostrar as potências e as pluralidades de
um plano maior, um macrocosmo da arte contemporânea. Assim,
a leitura de uma obra específica foi considerada em seu caráter
de inter-relação com um contexto maior de abordagem tanto no
plano histórico quanto no estético. Desse modo, não existiu uma
intenção analítica em relação a cada um dos artistas ou a cada
uma das obras abordadas; tratou-se muito mais de relacioná-los a um
período de transformação da arte e de seus processos.
A leitura das extremidades deu visibilidade a operações artís-
ticas e midiáticas descentralizadas e não hegemônicas ao eleger os
procedimentos de desconstrução, contaminação e compartilha-
mento como campos de tensão por onde imantava boa parte da
produção artística4 na passagem para o século XXI. O mapeamento
e a análise da produção artística foram possíveis, assim, ao consi-
derá-la em seus aspectos heteróclitos, desviantes. Objetivou, desse
modo, analisar “um conjunto multidimensional de realidades
radicalmente descontínuas” (Peixoto, 2011, p. 161).
O exercício que agora procuro fazer é o de redimensionar a
leitura das extremidades não necessariamente associando-a ao exer-
cício de cartografar e analisar a produção artística com o vídeo no
Brasil. Pretendo ampliar o campo de ação da leitura em relação às
condições de vida, forma estética e experiência social, propiciando,
com isso, maior generalidade e sua expansão na área crítica.
Neste estudo, busco promover um breve reexame da leitura
das extremidades, mostrar possíveis passagens dos anos 2000 à
atualidade, assim como gerar abertura para novos diálogos.

Sobre as extremidades
A ideia de extremidades é embasada enquanto “caminho de
leitura”, em direção à articulação entre campos não oponentes, não
dicotômicos, não polarizados, mas complementares. É utilizada
como atitude de olhar para as bordas, observar as zonas-limite, as
pontas extremas, interconectadas em variadas práticas.
Diz respeito a um termo metafórico derivado da medicina
oriental e de seus métodos terapêuticos, como a acupuntura, a
reflexologia e o do-in. Esses campos da medicina alternativa tra-
balham com a capacidade que os pontos cutâneos extremos do
corpo (como orelha, mão e pé) possuem de, ao serem ativados,

4 Conforme Arlindo Machado, na apresentação do livro “Extremidades do vídeo”


(Mello, 2008).

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realizarem processos de natureza comunicacional, interligando
múltiplos órgãos (como coração, fígado e intestino) e produzindo,
com isso, contato ampliado sobre eles.
Na perspectiva oriental, as extremidades do corpo possuem,
portanto, a habilidade de nos fazer apreender simultaneamente os
órgãos do corpo de forma descentralizada e interligada. Acionam,
portanto, uma rede de relações na análise de diversos elementos
de um mesmo organismo.
Associo o pensamento das extremidades aos procedimentos
poéticos da desconstrução, contaminação e compartilhamento,
como pontas extremas de um organismo interligado. Para tanto,
chamo atenção à potencialidade que tais procedimentos possuem
de nos colocar em contato com experiências artístico-midiáticas que
acontecem entre situações limítrofes, fronteiriças, experimentais.
Os procedimentos desconstrutivos giram em torno da des-
montagem de um significado para se obter outro. Evocam, em um
primeiro momento, a negação de um estado, e, em um segundo
momento, a reversão, ressignificação e expansão de seus limites
criativos. A corrente desconstrutiva pretende que a apreensão
da realidade se dê pela experiência sensória, sendo o processo
de descoberta nela dimensionado como campo de testagem e
experimentalismo.
A contaminação é um tipo de procedimento poético em que
uma relação de troca se potencializa a partir de seus contágios.
As operações criativas geralmente partem de uma problemática
advinda de determinado contexto e se associam a outra área. Nelas,
os significados não se dispersam nem se diluem; ao contrário,
possuem o poder de afetar e contaminar irreversivelmente as
áreas em diálogo.
Entre os procedimentos das extremidades, o compartilha-
mento é a ponta mais extrema e descentralizada. Ocorre onde há
a transmutação, a partilha, de um formato em outro. O comparti-
lhamento, como agenciador de uma proliferação de significados,
diz respeito, por exemplo, tanto às transformações criativas nos
ambientes colaborativos das redes sociais quanto aos modos de
circulação de imagem, som e escrita na arquitetura, nos arquivos
digitais e em banco de dados.
Articulada como campo vetorial pelos procedimentos da
desconstrução, contaminação e compartilhamento, a leitura das
extremidades busca contribuir, portanto, para a análise de fenôme-
nos em constante transformação, trazendo, com isso, dimensões
plurais da experiência contemporânea.

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Traço, então, perguntas como: “Seria possível observar os
procedimentos poéticos da desconstrução, contaminação e com-
partilhamento como processos de hibridização, que, de modo
provisório, assumem a dinâmica de leitura e apresentam-se em
constante reexame?”.
A complexidade da leitura pode ser alcançada, quiçá, a partir
das dobras entre grandes e pequenos campos, entre procedimentos
poéticos que inter-relacionam diversas práticas. Verifica-se, assim,
na ativação da leitura, uma rede de relações entre espaços sociais,
circuitos midiáticos e linguagens, assim como potencialidades
artísticas ampliadas nessas relações.

Extremidades entre o global e o local


No contexto introdutório em que a leitura das extremidades
foi articulada, na passagem para os anos 2000, a organização po-
lítica, cultural e social dizia respeito aos impactos da economia
globalizada e à hibridez pós-moderna. No campo estético, é um
período em que a experiência sensível relacionada aos signos do
fluido, da multiplicidade e do heterogêneo articula uma crítica
da sociedade.
Tendo como princípio a redefinição de fronteiras entre o
global e o local, o crítico e curador Moacir dos Anjos afirma que
o hibridismo sugeria “a impossibilidade da completa fusão entre
componentes diferentes de uma relação, ainda que em situações
de coexistência longa e próxima” (Anjos, 2005, p. 28). Dá a ver, com
isso, a força de resistência, diante da hegemonia homogeneizante
global, em que consistia o gesto crítico de ativar o hibridismo
cultural como articulação de diferenças locais.
Para a ensaísta, crítica e curadora Christine Greiner, a partir de
1990 a “crise do capitalismo e do socialismo no leste europeu tornou
o conceito de pós-moderno mais amplo” (Greiner, 2014, p. 158).
Nesse sentido, para ela, “a perspectiva pós-colonial, que surgiu
mais tarde, partia da ideia de que era das margens ou das perife-
rias que as estruturas de poder e de saber começavam a se tornar
mais visíveis”. Diante da derrocada do muro de Berlim, a atitude
em relação à hibridez sinalizava a necessidade de deslocamentos
de posições, sugerindo, com isso, tanto uma nova perspectiva geo-
política do conhecimento e da produção de subjetividade quanto
deslocamentos na esfera crítica e teórica.
Daí o interesse de autores como o argentino, radicado no
México, Néstor García Canclini sobre questões relacionadas
ao hibridismo e à hibridação cultural. Em seu ensaio “Culturas

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híbridas”, escrito na passagem dos anos 1980 para 1990, Canclini
sustenta que o objeto de tal estudo não é em si a hibridez, mas sim
os processos de hibridação. A seu ver, “se falamos da hibridação
como um processo ao qual é possível ter acesso e que se pode
abandonar, do qual podemos ser excluídos ou ao qual nos podem
subordinar, entenderemos as posições dos sujeitos a respeito das
relações interculturais” (Canclini, 2003, p. 158). Significa, com a
visão da pluralidade, observar os impactos da globalização e das
trocas culturais sem que os conflitos sejam subtraídos.
Para Canclini, é importante refletir sobre os modos hegemô-
nicos de pressão do global sobre o local, observando, com isso, o
fenômeno do hibridismo em meio às ambivalências dos processos
simbólicos e dos conflitos de poder que suscitam. O autor chama
atenção para a necessidade de não promovermos leituras totalizantes
ou autorreferentes com o hibridismo.
A condição glocal que determina a experiência contemporâ-
nea, teorizada e criticada por pensadores como Eugênio Trivinho,
diz respeito a uma realidade tecnocultural híbrida. Esse tipo de
condição vital é, para ele, “invisível aos sentidos, mas efetiva, qua-
se inescapável” (Trivinho, 2014, contracapa), uma “condição nem
global nem local, antes misturada, glocal, internamente múltipla
e já concretizada como se fosse mundo, absoluto, intransitivo, re-
duzido ao presente”. Nessa dimensão, aquilo que antes significava
descentralização, processo de heterogênese e pluralidade passa a
ser hoje o centro, a tônica dominante, esvaziando-se o seu caráter
relacional e empobrecendo-se, portanto, como experiência.
O paradoxo fenomenológico híbrido glocal, como mediação
cotidiana, instala, para Trivinho, a “percepção comum, positivista
e funcionalista” (Trivinho, 2014, p. 27), tanto na prática política
quanto na micropolítica, no domínio das redes de comunicação
em tempo real. Para o autor, o “híbrido constitui há muito a forma
pela qual o capitalismo tecnológico, doravante em fase interativa,
garante a sua reprodução social-histórica”, precisando ser, antes
de tudo, “problematizado com o concurso de uma propensão
teórica tensional”.
Se a lógica do capitalismo tardio é glocal, como indica Trivinho,
assistimos, por outro lado, ao acirramento de crises de fronteiras
entre o local e o global. Nada estranho para um mundo permeado
por conflitos migratórios ininterruptos. Enfrentamos, no plano
global, reflexos das intervenções militares feitas por países hege-
mônicos (como Estados Unidos, França e Inglaterra) no Oriente.
Como exemplo, a guerra civil na Síria, que deixou mais de 500 mil

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mortos5, gerando uma das principais crises políticas, relacionada
não apenas a atos de violência extrema, mas também a uma infi-
nidade de imigrantes e refugiados.
Por outro lado, vivemos no plano local, por exemplo, no Bra-
sil, com o esgotamento de um modelo de representação política,
instabilidade econômica contínua e profunda violência social, que
geram um estado de crise intermitente de difícil resolução. É neste
contexto, relacionado à passagem para os anos 2020, que a leitura
das extremidades é reexaminada.

Eric Hobsbawn em “Era dos Extremos” e Massimo Canevacci


em “Culturas eXtremas”
O historiador inglês Eric Hobsbawm analisa retrospectiva-
mente o século XX como “a era dos extremos”, um período de
difícil compreensão. Os extremos do século são observados em
uma perspectiva histórica macropolítica, que vai da eclosão da Pri-
meira Guerra Mundial ao colapso da URSS, fechando o ciclo após
a Guerra do Golfo. Trata-se, para ele, de um período confrontado
por duas grandes eras, a da catástrofe (de 1914 a 1948) e a de ouro
(de 1949 a 1973), cuja última parte do ciclo retoma o início por
conta dos conflitos nos Balcãs, em especial as Guerras da Bósnia
e de Kosovo, nos anos 1990.
Para Hobsbawm, um dos campos de força para compreen-
dermos um mundo qualitativamente diferente no século XX
diz respeito não apenas ao deslocamento do centro do poder
mundial-ocidental com a quebra do europeísmo e a ascensão
norte-americana, mas também às tensões provocadas pelo poder
da mídia e pela globalização incontrolável da economia capitalista.
Nas questões relacionadas às artes, o historiador aponta rupturas
de fronteiras entre o que é e o que não é classificável como arte
(principalmente provocadas pela arte conceitual e pela pop art),
assim como mudanças de percepção promovidas pelos espaços
comunicacionais.
Em sua leitura das extremidades, a crise histórica do século
XX aponta a necessidade de reconfigurações e mudanças políticas
para o século XXI uma vez que as forças geradas pela economia
tecnocientífica são agora suficientemente grandes para destruir o
meio ambiente, ou seja, as fundações materiais da vida humana.

5 “Aproximadamente 522 mil pessoas foram mortas nos 90 meses subsequentes ao


inicio da revolução Síria em março de 2011”, relata a ONG SOHR (Syrian Observatory for
Human Rights) em reportagem de 13/09/2018. (http://www.syriahr.com/en/?p=102385).
Nota do Editor.

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Sobre o agravamento da era dos extremos no prelúdio do
século XXI, Hobsbawm o enfoca sob o ponto de vista do colap-
so financeiro globalizado deflagrado a partir de 2008-2009, do
terrorismo e dos refugiados como problemas concretos ligados
diretamente à vida cotidiana.
Ele observa que recentemente as guerras entre países e grandes
potências desapareceram. Tal fenômeno mostra o fim do sistema
clássico de poder internacional. A partir disso, há uma situação
endêmica de conflitos armados, guerras civis, terrorismo e desi-
gualdades sociais.
Para o historiador, outros elementos que afetam a ordem pública
no início do século XXI são a “aceleração extraordinária do processo
de globalização e seu efeito sobre o movimento e a mobilidade dos
seres humanos, que afeta tanto os movimentos transfronteiriços
temporários quanto os duradouros” (Hobsbawm, 2007, p. 89),
assim como a xenofobia. Para ele, os nomadismos atuais reforçam
a “longa tradição popular de hostilidade econômica à imigração
em massa e de resistência ao que se vê como ameaças à identidade
cultural coletiva” (ibid., p. 91).
No caso do antropólogo Massimo Canevacci, ele aborda de
outro modo a leitura das extremidades. Para tanto, na passagem
para os anos 2000, observa manifestações micropolíticas associadas
às linguagens da comunicação juvenil nos corpos das metrópoles
(como punk, pirataria, rave, piercing, techno, tatuagem, fanzine, vi-
deoarte, cibernauta, entre outras, que expressam conflitos e inovações
entre os fluxos da comunicação móvel). Canevacci denomina como
“Culturas eXtremas” (2005) as zonas limítrofes, os espaços vazios e
os atravessamentos gerados pelas manifestações das extremidades.
Trata-se de abordar, em sua visão, minorias não minoritárias.
O autor conceitua assim, de que modo se dá a transformação
da noção de “extremo” em eXtremo. Segundo Canevacci, tal tipo de
estratégia diz respeito a utilizar conceitos oblíquos às metodologias
tradicionais de classificação extraídas do social.
Ao observar que nos anos 1990 a letra X emerge tanto como
signo de “contra” e de “proibido”6 quanto se conjuga ao excesso,
ao irregular, ao alheio e ao pornô, sendo que “muitas formas de
comunicação juvenil de oposição assumem o X como código (lema)
que explode os limites e fica contra os limites” (Canevacci, 2005,

6 Canevacci demonstra isso a partir de exemplos como Generation X, exstasy, X-file e


X-treme, XL como “extra large”, assim como no título do livro “S, M, L, XL”; ver: KOOLHAS,
Rem. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A,
2005, p. 42-47.

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p. 42-47), o antropólogo aponta formas como a oposição juvenil
passou do conflito político-social, próprio dos anos 1960-1980,
para os “conflitos não políticos, comunicacionais, metropolitanos,
conferidos ao X, que incorpora atravessamentos corporais, espaciais,
linguísticos caracterizados pelo irregular, pelo incontível, pelo
imaterial, pelo extra como além e como anomalia”.
Em sua abordagem das extremidades, Canevacci observa proces-
sos de subjetivação associados à cultura urbana como uma zona em
trânsito, por meio de manifestações e linguagens intersticiais – fora
da regra, in between – que até podem tocar o poder sem, contudo,
buscar a centralidade. Para tanto, ele afirma que a noção de eXtremo
traz menos a oposição ou a contradição dialético-historicista, e
mais a noção de diferença, nomadismo e deslocamento. Como os
conceitos fluidos, remete a um pensamento de Marguerite Duras
para afirmar que as culturas eXtremas buscam a virada da linguagem.
Se para Eric Hobsbawm o pensamento das extremidades traz o
signo do poder e da dicotomia existentes entre uma era da catástrofe
e uma era de ouro, para Massimo Canevacci o pensamento das
extremidades traz a potência da recusa das políticas tradicionais.
Para o antropólogo, trata-se de observar pelas extremidades a multi-
plicação dos espaços – ou interzonas – contra a fixidez dos lugares.
O que o historiador Eric Hobsbawm analisa como pertinente à
era dos extremos, em seu caráter macropolítico e de periodicidade,
é exatamente o que o antropólogo Massimo Canevacci contrapõe
ao observar a cidade e suas multinarrativas, que brincam contra
o poder totalizante e reunificador da história. Nesse sentido, o
antropólogo coloca nossa atenção diante de uma perspectiva micro-
política, relacionada às “percepções simultâneas” que se misturam
constantemente no caldeirão da cidade, de forma não linear.
Se o primeiro pertence à tradição crítico-dialética, o segundo
se opõe a essa tradição pelo elemento da diferença, encontrado na
filosofia de Nietzsche como pluralismo conceitual e devir múltiplo.
Embora a princípio seus pontos de vista pareçam díspares, tanto em
um quanto em outro o exame das transformações da experiência
contemporânea, sob o signo das extremidades, remete a situações
limítrofes que ressignificam condições de vida e visibilidade.

Experiências contemporâneas: forças que atravessam, forças


que fazem ficar junto
Transitando ora pelo signo de poder, ora pelo signo de potên-
cia, ao observar leituras das extremidades, tanto pela perspectiva
de Eric Hobsbawm quanto na de Massimo Canevacci, é possível

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compreender que o colapso dos planos político, econômico e
social do início do século XXI coloca em xeque os discursos
centrais, sugerindo crises de representação, e gera crises perió-
dicas capazes de transformar problemas culturais, artísticos e
de linguagem. Tal tipo de colapso exige que reorganizemos não
apenas as relações entre o global e o local, mas também a própria
noção de extremidades.
Como indica Nelson Brissac Peixoto, “as novas dimensões do
mundo globalizado exigem uma nova cartografia: das dinâmicas,
dos fluxos, das reconfigurações permanentes e variáveis” (Peixoto,
2011, p. 162).
Nesse sentido, a multiplicidade dos espaços – ou interzonas –,
como aponta Massimo Canevacci, é possível de ser observada na
atualidade em linguagens intersticiais, como as promovidas entre
múltiplas plataformas, comunidades e linguagens, que globalmente
e localmente interconectam antigas mídias às redes sociais, aos
smartphones, aplicativos e software de toda ordem.

Essas plataformas entrecruzadas de comunicação permitem


que hoje em dia, por exemplo, imigrantes ilegais e refugiados
políticos interajam com agências internacionais de notícias, em
vez de apenas receberem passivamente a informação. Permitem
também que uma página popular do Facebook na Síria relate a
contagem em tempo real de disparos de morteiros contra Damasco

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e mapeie suas localizações, fazendo com que os usuários evitem
certas áreas7.
Isso equivale a dizer de agenciamentos concretos, cotidianos,
que se constroem nas extremidades, nas linhas fronteiriças entre
organização vital e múltiplas linguagens, entre condições de vida,
forma estética e experiência social.

“Megafone.net”, de Antoni Abad


Em São Paulo, observamos tais tipos de agenciamentos em
exposições como “Megafone.net”,8 uma retrospectiva do artista
catalão Antoni Abad, com trabalhos realizados entre 2004 e 2014.
Nela, o artista mostrou o projeto processual em que representantes
de grupos sociais marginalizados compartilham suas experiências
e opiniões por meio de mensagens de áudio, vídeo, textos e fotos
associados às redes sociais. A mostra reuniu material de diferentes
edições da iniciativa, que aconteceram em cidades como Barcelona
(Espanha), San José (Costa Rica), Tindouf (Argélia), León (Espanha),
Madrid (Espanha), Cidade do México (México) e São Paulo (Brasil).
Para tanto, Antoni Abad articulou práticas artísticas e midiáticas
com cada uma das comunidades locais (pessoas com mobilidade
limitada, imigrantes ilegais, refugiados políticos, comunidades des-
locadas, profissionais do sexo e setores profissionais, como taxistas e
motoboys) a partir da criação de uma rede social gerada por meio de
múltiplas plataformas de comunicação (que interligam, por exemplo,
4
captação de áudio, vídeo e foto com smartphone e página na web).
Como práticas midiáticas que tencionam contextos urbanos, é
possível observar que o projeto “Megafone.net” tem como princípio
a exploração dos atravessamentos entre diferentes espaços, circuitos
e linguagens, neles provocando tensões e inusitados processos de
hibridização. Em “Megafone.net”, Antoni Abad dá visibilidade a
conflitos existentes cotidianamente entre comunidades locais,
grandes centros urbanos e redes globais de comunicação.
Na cidade de São Paulo, em especial, a experiência transmí-
dia de “Megafone.net” propiciou pluralidade e nomadismo por
meio do canal motoboy www.zexe.net. Trata-se de um sistema
formado por dispositivos móveis de publicação colaborativa na
web, em que motoboys percorrem espaços públicos e privados e

7 Falamos na perspectiva apontada por Matthew Brunwasser em “Para migrantes,


celulares funcionam como salva-vidas”, publicado em Folha de S.Paulo. São Paulo, 5 de
setembro,2015, p. 3.
8 Falamos da exposição realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 01 de
agosto e 18 de outubro de 2015, integrante do “Projeto Octógono – Arte Contemporânea”.

131

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transmitem conteúdo via celular. Por meio das multiplataformas
comunicacionais, inter-relacionam audiovisual, novas mídias e redes.
No canal motoboy, há a compreensão de um sistema colaborativo
relacionado à pluralidade de espaços, circuitos e linguagens, que
produzem uma narrativa experimental mais imersa no plano da
experiência social.
Mapas virtuais, aplicativos de GPS e redes sociais transformam
hoje em dia tanto as “percepções simultâneas” dos nômades urbanos
quanto as movimentações de migrantes e refugiados, intensifican-
do novas rotas e fronteiras profundamente associadas a formas
contemporâneas de vida, aos trânsitos e aos conflitos existentes
entre linguagens.
Diante da sociedade de controle, novos modelos de comuni-
cação estão em curso “no que diz respeito aos deslocamentos e
acessos” (Costa, 2004, p. 161-167). A era dos espaços híbridos (que
interconectam espaços físicos e virtuais) transforma não só os
modos de acesso como também amplia os modos de operação dos
sistemas comunicacionais pervasivos9. Promove rastreamento dos
indivíduos. Gera, por um lado, conflitos de poder e, por outro, zonas
em trânsito, por meio de manifestações e linguagens intersticiais,
como aponta Canevacci.
O transpasse contínuo, por exemplo, de fronteiras por meio de
rotas perigosas entre Brasil, México e Estados Unidos, Colômbia e
Venezuela, Afeganistão e Irã dizem respeito a exemplos de ações
extremas promovidas por minorias não minoritárias, como aponta
Massimo Canevacci, que trazem a potência da recusa das políticas
tradicionais da comunicação tecnológica e da arte contemporânea.
Sob a forma da comunicação on-line e seus dispositivos, é
possível observar brechas no sistema de controle das redes por
intermédio da experiência social e da criação de novos espaços-
-tempos, como zonas de trânsito e deslocamento.
Nesse contexto, o impróprio, o não específico e o descentrali-
zado de cada espaço, circuito e linguagem são a regra. São como
experiências de entre-lugares. Trata-se de observar ações limítrofes,
extremas, entre procedimentos desconstruídos, contaminados e
compartilhados.
Tais ações suspendem o modelo comunicacional hegemônico
dos dispositivos em rede, produzindo, com isso, inversão, descon-
tinuidade e acontecimento. Impedem narrar a história da mesma

9 Significa aquilo que se infiltra em um sistema, que penetra de forma indesejada,


que acomete um sistema ou grupo.

132 Christine Mello

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maneira. Instauram, assim, um campo de força constituído por
processos de diferença e alteridade.
Sabemos que o poder determina condições de visibilidade.
Sendo assim, as intervenções artísticas provocadas nos regimes de
interação das multiplataformas comunicacionais de projetos como
“Megafone.net” são capazes de restituir breves fendas nas formas
de visibilidade. A crise de representação abre espaço, portanto, ao
redimensionamento da experiência contemporânea na passagem
para os anos 2020, e também reflete outros modos de produção
e pensamento.
Segundo tal raciocínio, ao analisarmos, hoje, os procedimentos
poéticos das extremidades, é necessário, portanto, antes nos con-
frontarmos com reconfigurações e mudanças nas metodologias
de análise crítica e nas políticas de leitura.
Entre signos de poder e potência, a leitura das extremidades
é aqui proposta em forma de ponto de partida para pensarmos
processos regidos pela diversidade, assim como para oferecer instru-
mental de análise a trabalhos como “Megafone.net” de Antoni Abad.
A leitura das extremidades tem interesse na atualidade, então,
a partir das dobras entre micros e macrocampos, entre procedi-
mentos poéticos que inter-relacionam práticas sociais, artísticas e
midiáticas. Verificam-se, assim, novos processos de descentralização
dos circuitos e linguagens e as potencialidades artísticas ampliadas
com essas relações. Segundo esse ponto de vista, não é a produção
artística o objeto privilegiado da análise, mas o perfil de suas prá-
ticas e contextos, bem como as inter-relações entre forma estética
e experiência social.
O enfrentamento de uma crise leva a caminhos alternativos,
à experimentação. Proponho, dessa maneira, uma fenda, ou um
deslocamento na leitura das extremidades no sentido de oferecer
outros modos de observar a experiência contemporânea, em suas
tensões e ambivalências. Desse modo, reexaminá-la significa abri-la
a uma maior diversidade.
Sob a forma de virada da leitura, procuro, dessa maneira, en-
contrar modos expandidos de relacionar as leituras das extremi-
dades. Mas isso implica material para mais reflexões, assim como
próximos atravessamentos.

133

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imagem
1 Migrantes vindos da Turquia verificam seus celulares logo após chegarem na
ilha de Kos, Grécia, ao conseguir cruzar o mar Egeu em um bote inflável em agos-
to de 2015. Dados da ONU estimam que 124 mil refugiados e migrantes tenham
desembarcado na Grécia durante o primeiro semestre daquele ano. Foto: Angelos
Tzortzinis / AFP.

referências bibliográficas
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Editor, 2005.
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sociopolíticas e econômico-financeiras, na civilização mediática avançada.
São Paulo: Annablume; FAPESP, 2014.

134 Christine Mello

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Gabriel
Menotti

a efervescência
da matéria

Quanto mais circula, mais a imagem se dissolve nas trocas de


informação subjacentes. Ao intensificar esse processo, a represen-
tação computacional coloca em xeque abordagens essencialistas,
que determinam a imagem como sendo isto ou aquilo. Não
obstante, a condição da imagem nunca foi outra que não a de
insuficiência. O trabalho cinematográfico sempre existiu em uma
oscilação constante entre dispersão e contenção. Na película de
celuloide, a imagem se dá não como uma entidade singular, mas
sim como um efeito do agrupamento de tomadas individuais.
Por meio da manipulação desse material, pedaços de realidade
pró-fílmica previamente desconexos podem ser combinados em
um todo coerente.
Algumas das primeiras teorias sobre o cinema reconhecem
nessa constituição heterogênea a fonte do potencial estético do
meio. Nos anos 1920, os diretores associados às vanguardas so-
viéticas propuseram princípios de montagem que sistematizam
a produção de sentido com base na combinação de elementos.
Sergei Eisenstein teceu uma famosa comparação entre a poética
do corte e a forma ideogramática da escrita chinesa (Eisenstein,
2002). Segundo sua analogia, as brechas entre um quadro e outro
seriam tão relevantes para a constituição do filme quanto os pró-
prios quadros. A descontinuidade abriria espaço na obra para o
investimento cognitivo do espectador, elevando os rastros visuais
a uma espécie de modalidade discursiva. A capacidade do filme

o cinema e seus outros 135

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como expressão de sentido estaria, portanto, baseada na articulação
conjunta de componentes materiais distintos.
Ainda assim, as teorias da montagem só parecem reconhecer a
fragmentação do trabalho cinematográfico à medida que buscam
anulá-la. Como operação linguística, a montagem clama por uma
unificação completa das partes. O filme bem feito se baseia em um
alto grau de economia formal. Ele deve se conter por completo,
premeditando até mesmo o engajamento vindouro do público
espectador. Nesse sentido, o corte não anuncia uma cisão nem de-
nuncia a modularidade interna da imagem. Trata-se, pelo contrário,
do elemento fundamental de uma estrutura narrativa calcada no
que Sean Cubitt caracteriza como uma “estética de unicidade orgâ-
nica” (Cubitt, 2004, p. 67). A montagem busca apresentar o trabalho
cinematográfico como uma totalidade irredutível, à qual nada pode
faltar, da qual nada pode sobrar. A sequência audiovisual resultante
é chamada de corte final porque qualquer alteração subsequente viria
a desequilibrar o delicado balanço atingido entre matéria e sentido.
O termo corte final implica tanto no último estágio de reali-
zação cinematográfica quanto no seu resultado derradeiro. Ele
representa o momento em que a prática criativa dá lugar a um
produto isolado. O arranjo dos elementos constitutivos do filme
se faz definitivo e a sua duração é rigorosamente fixada. Trata-se de
uma prerrogativa autoral. Na falta de uma literal partitura que dê
conta da obra cinematográfica, é o corte final que lhe serve como
paradigma identitário. Nos primeiros anos do cinema nos Estados
Unidos, cópias em papel da sequência de quadros de um filme
eram depositadas na Biblioteca do Congresso como meio para
instituir os direitos do autor. O corte final estabeleceria, portanto,
a origem a que toda a reprodução do filme se refere. Ele permite
que a obra seja destacada de seu processo de produção e publicada
como uma entidade autônoma. Nessa transição, o filme obtém
uma certa estabilidade objetiva que o separa das contingências de
circulação. Após o corte final, todas as operações realizadas sobre
a imagem são consideradas circunstanciais; os rastros deixados na
matéria são tomados como elementos externos ao trabalho.
Ao analisar os meios de reprodução técnica, Walter Benjamin
procurou demonstrar não apenas o seu efeito antiaural, mas também
a sua impermeabilidade. No exame do romance como uma forma
cultural, o filósofo destaca um regime de isolamento que se mani-
festa igualmente na solidão do autor no seu escritório, na relação
individual do leitor com a história e na contenção do texto entre
as capas de um livro (1994). Em resposta às condições modernas

136 Gabriel Menotti

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da indústria e da vida urbana, a separação entre os modos de pro-
dução e consumo narrativo se enrijece. As histórias se tornaram
produtos de massa passíveis de circularem autonomamente, à parte
da experiência intersubjetiva ocasionada pelo fluxo da narração
tradicional. Como uma forma decorrente de ecologias midiáticas
coetâneas, o corte final parece propiciar a mesma lógica de encap-
sulamento. Na medida em que permite a comodificação do filme,
ele torna a imagem independente de suas próprias ocorrências.
Destarte, o corte final promete um encerramento, como se
fosse uma membrana capaz de delinear o filme de maneira defi-
nitiva. Ao constituir uma fronteira que separe a composição do
trabalho de suas performances, o corte final também permite
que autoridades ausentes exerçam controle sobre ele. É preciso
perceber, entretanto, que não há nada realmente final no filme
decorrente. Isolado das operações midiáticas que o circundam, o
filme não consegue conter o trabalho cinematográfico. O arranjo
de quadros produzido na montagem precisa se articular por meio
dos padrões de movimentos pré-programados no dispositivo. A
resolução do movimento no filme está sujeita ao modo como os
projetores estandardizam a duração em etapas. Cubitt (2004) se
vale do conceito da matriz de pixels para descrever esse “mapa do
tempo” analógico. Sua metáfora anacrônica evoca as qualidades
procedurais que a imagem em movimento já possuía antes mesmo
do advento das mídias computadorizadas. Ela nos lembra que o
movimento da imagem não pode ser simplesmente inscrito; ele
é um efeito que precisa ser atingido durante a projeção. Ele seria,
logo, exclusivo à performance da imagem. Apenas por meio do
acoplamento com o mecanismo de projeção é que o corte final
poderia cumprir a sua suposta totalidade.
Aqui, vemos como o trabalho cinematográfico demanda a
articulação de componentes tanto internos quanto externos. Para
que a imagem apareça, o filme deve ser operado como uma parte
intercambiável do projetor. Em cada um dos seus acionamentos,
a imagem é reconstituída. Dessa maneira, ela permanece porosa
aos procedimentos que a fazem circular. Não é possível postular
uma separação clara entre a sua inscrição e a sua transmissão. Essa
contínua modulação material desafia a integridade do corte final.
O curador Paolo Cherchi Usai chega a caracterizar o filme como
“a arte de destruir imagens em movimento” (Usai, 1999, p. 2). Usai
salienta que as mesmas condições técnicas que possibilitam o
filme também causam a sua lenta degradação. Cada reprodução é
um assalto inevitável ao meio: o vão apertado atrás do obturador

137

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esfola a película, a luz do projetor desbota os seus pigmentos, o
atrito contra as engrenagens corrói as suas perfurações. Nesse
contexto, o arranjo meticulosamente calculado pelo realizador não
pode perdurar. O corte final é desordenado pelo mesmo sistema
que permite a sua fixação. Em um dado momento, o projecionista
precisará remover quadros parcialmente danificados, de modo a
evitar que o filme agarre no mecanismo e derreta ante o calor da
projeção. Apenas com essas intervenções cirúrgicas é possível evitar
o completo colapso do trabalho cinematográfico.
Diante da condição imperfeita do filme, a integridade da
imagem em movimento só pode subsistir como hipótese. Usai
resume essa existência platônica no conceito de “imagem mode-
lo” (Usai, 1999, p. 19): uma totalidade de informação visual que
jamais poderá ser completamente apreendida pela audiência.
Seja porque a cópia do filme esteja maculada, seja porque os
espectadores chegaram tarde à sessão, ou mesmo porque um ser
humano pisca em média 15 vezes por minuto, a imagem modelo
nunca estará lá. Ela, todavia, permanece como um horizonte de
estabilidade potencial, que permite ao público separar a imagem
de seus aparecimentos. Com base na suposição de uma integrida-
de ausente, podemos discernir os rastros de circulação ora como
informação relevante, ora como um efeito de circunstâncias
materiais. Sem essa referência, a imagem estaria inteiramente
sujeita às contingências de sua situação: os arranhões no filme
seriam vistos como parte do trabalho; cenas perdidas durante
um espirro nunca teriam existido. Ao estabelecer um parâmetro
de diferença, diz Usai, a imagem modelo cria condições para a
história do meio (Usai, 1999, p. 4).
A premissa da imagem modelo corrobora o que Matthew
Kirschenbaum chamou de ideologia medial. Kirschenbaum cunhou
esse termo para descrever a mentalidade que “substitui represen-
tações populares de um meio, construídas socialmente e ativadas
culturalmente para realizar tipos específicos de trabalho, por um
tratamento mais acessível das particularidades materiais de uma
determinada tecnologia” (Kirschenbaum, 2008, p. 36). A ideologia
medial seria uma das razões por trás da “atenção predominante dada
às tecnologias de exibição nos estudos de novos meios” (2008, p. 31).
Esse “essencialismo das telas”, que Nick Monfort detectou inicial-
mente nas análises dos primeiros textos eletrônicos, claramente
enforma a nossa compreensão do cinema. O fato de ele parecer
natural e inquestionável demonstra que realmente atribuímos
pouca importância às bases materiais na formação da imagem.

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O problema não é simplesmente que o essencialismo das
telas iniba a interpretação do trabalho cinematográfico. Antes, é
o fato de que ele aliene a imagem das políticas materiais em que
ela está inevitavelmente implicada. A hipótese de um filme com-
pletamente estável, eternamente preservado das contingências de
sua circulação, reflete a crença em um meio que exista para além
de suas bases técnicas. O próprio Usai reconhece a impossibilidade
dessa situação: a imagem só poderia existir numa condição perfeita
“caso o filme nunca tenha sido projetado, ou se a sua matriz nunca
tiver sido empregada para a duplicação impressa” (1999, p. 32).
Em outras palavras: se o filme nunca for exibido e a imagem nunca
se movimentar.
Nesse sentido, precisamos aceitar a volatilidade integral à exis-
tência das imagens em movimento. Nos lugares onde a tendência
conservadora da ideologia medial só consegue ver manifestações
de entropia desfigurando a superfície do filme, apreciemos as suas
transformações vitais. Componentes químicos desencadeando
tonalidades sem precedentes. O celuloide cedendo gentilmente às
forças que o conduzem. A efervescência da matéria não desfaz o
meio no ruído inescrutável de um canal vazio. Ela, pelo contrário,
renova a imagem, fazendo com que cada reprodução do filme o
torne cada vez mais singular.
Nam June Paik explorou essa inversão da relação sinal-ruído
em “Zen for Film” (1964), um trabalho livremente inspirado na
composição 4’33” (1952) de seu colega John Cage. “Zen for Film”
consiste em um rolo de película 16 mm não exposto, portanto
transparente, projetado em loop contínuo. A luz atravessa o suporte
e atinge a tela de maneira praticamente desimpedida. Inicialmente,
assim como na obra silenciosa de Cage, parece não haver quase
nada para ser percebido. Mas, então, de repente, há muita coisa. O
despojamento do trabalho provoca uma inversão na percepção
da audiência, chamando a atenção para as nuances do evento. Os
diversos elementos que estão sempre presentes em segundo plano
na projeção vêm à tona. O espectador é levado a encontrar imagens
sutis feitas pelas partículas flutuando em frente à luz, e a confrontar
sua própria imaginação no retângulo desabitado da tela.
Assim, a primeira lição a ser tomada do trabalho de Paik é um
corolário da ideia de que o projetor nunca está vazio. Mesmo sem
filme, e ainda que desligado, o dispositivo possui implicações cine-
matográficas. Em todo caso, as primeiras impressões não conseguem
dar conta do modo como “Zen for Film” abarca a temporalidade
material do meio. Um espectador dedicado, capaz de acompanhar a

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sua exibição por dias seguidos, viria a perceber que, quanto mais a
projeção se repete, mais ela diverge. A tábula rasa da tela vazia
proporciona uma oportunidade para reconhecermos a escritura
incidental realizada continuamente sobre o filme. Ao longo de
sua execução, a película acumula poeira e riscos, ocasionando a
emergência de padrões gráficos. Na ausência de um princípio de
imagem a ser decomposto, a deterioração da matéria se dá como
fonte de novas formas visuais, lentamente esculpindo camada sobre
camada de ritmos, através de cada um dos aparecimentos da obra
ao longo de diferentes lugares e momentos.
Desse modo, conquanto a película não seja trocada a cada
projeção, a circulação de “Zen for Film” é sempre reafirmada duran-
te a experiência da obra. O público é apresentado ao filme como
uma entidade profundamente embutida em seu milieu técnico, e
que realiza trocas frequentes de matéria e energia com os diversos
fenômenos que o circundam. A imagem, ocasionada por vivas inte-
rações, é identificada com as suas circunstâncias de aparecimento.
O corpo do filme registra a sua própria história, deixando resíduos
na medida em que recebe cicatrizes. Qualquer esforço para suprimir
essas ocorrências do desde sempre ausente significante imaginário
resulta no acúmulo de outros estratos: finos revestimentos de pro-
dutos químicos, remendos com fita, retoques de tinta. A despeito
da matriz sancionada para a reprodução técnica, a imagem não
pode ser isolada dos seus fluxos materiais de disseminação. O filme
precisa existir em meio à bagunça. A reflexividade exaltada por
Benjamin na narrativa oral subsiste de certa maneira no staccato
da indústria fílmica. Fora do controle do realizador, das ilhas de
edição às cabines de projeção e às cinematecas, processos múltiplos
e irregulares de retroalimentação criam no filme uma forma que
não é de todo autocontida, mas sobretudo autodiferente.
A ideologia medial nos leva a acreditar que o trabalho cine-
matográfico possui uma identidade objetiva, estável e homogênea.
No entanto, basta acompanhar os seus meios de circulação para se
aperceber do contrário. O filme está continuamente sendo posto
em prática, e não é possível circunscrever a sua produção apenas
às atividades convencionalmente compreendidas dessa maneira.
Nesse sentido, o filme leva uma existência precária. A realização
fenomenológica da imagem envolve a articulação conjunta de
diversos componentes materiais, tanto fixos quanto móveis. Esses
processos, por sua vez, dependem de instruções de operação, relatos
discursivos, cláusulas de uso e direito que ocorrem tanto dentro
quanto fora dos campos reconhecidamente midiáticos. Em um

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mundo de crescente desequilíbrio ambiental e agenciamentos
infraestruturais, faz-se imperativo reafirmar essas conexões. A
tarefa que se impõe aos estudos cinematográficos seria, portanto:
como olhar através da ideologia medial e alcançar o inconsciente
tecnológico do meio?

referências bibliográficas
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Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
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Stanford, California, v. 7, n. 2, p. xiv-49, 1999.

141

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Andrés
Denegri

143
“Éramos Esperados (16 mm) ”, 2013,
instalação fílmica com dois
projetores 16 mm, estruturas
metálicas com telas translúcidas
e dois andaimes. (vista parcial)

144
“Éramos Esperados
(Chumbo e Pau) ”, 2013,
instalação fílmica com projetor
16 mm, estrutura metálica,
sistema motorizado e andaime
(vista parcial)

148-149
145 acima “Mecanismo do
“Éramos Esperados Esquecimento”, 2017,
(Chumbo e Pau) ”, 2013, instalação fílmica com projetor
instalação fílmica com projetor 16 mm “intervencionado”
16 mm, estrutura metálica, (à esquerda)
sistema motorizado e andaime
(vista parcial) “Memória em Chamas”, 2017,
instalação fílmica com dois
projetores 16 mm com película
145 abaixo em loop (à direita)
“Éramos Esperados
(Ferro e Terra) ”, 2013,
dispositivo fílmico com três 150-151
projetores Super 8, duas mesas de “Aula Magna”, 2013,
madeira, sistema de suporte para filme experimental em Super 8
tela translúcida e sistema para de 420 seg.
passagem de película

152
146-147 “Aeropuertos”, 2016,
“Clamor ”, 2015, filme experimental em Super 8
instalação fílmica com dois de 160 seg.
projetores 35 mm, dois projetores
16 mm, dois projetores Super 8,
mesa de madeira, quatro 153
andaimes, estrutura metálica com “Corumbé”, 2016,
telas translúcidas e sistema para filme experimental em Super 8
passagem de película de 160 seg.

142 ensaio visual

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Leticia
Ramos

155, 160
“Meteorito”, 2014,
fotografia a partir
de microfilme,
100 × 85 cm (cada)

156-159
“Paisagem”, 2014,
Fine art print a partir
de microfilme,
100 × 211 cm (cada)

154 ensaio visual

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a
p
d
a
q
c
c

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a cena ex-
pandida
de um
audiovisual
que não
coube no a cena
expandida

cinema
de um audio-
visual que
não coube
no cinema

a cena ex
pandida
de um
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Demétrio
Portugal

outros fluxos
cinematográficos e sua
produção de imagens

A produção que se estereotipou como “cinema” ao longo das últimas


décadas contempla apenas uma pequena porção das linguagens
cinematográficas conhecidas, porém sua importância para a cons-
trução imagética do mundo ocidental pós-guerra é inegável e está
diretamente ligada à potência de mercado que ela possui atual-
mente. Isso é consequência da articulação de toda uma cadeia de
produção e distribuição que envolve, além do “cinema”, a “música”,
a “televisão”, o “teatro” e, mais recentemente, aponta-se também
o “game” (jogos) como pilares da Indústria do Entretenimento.
Além dessa indústria, atualmente é possível distinguir ao menos
outros dois fluxos potentes de linguagem audiovisual pela análise
dos seus meios de produção e distribuição. Um, totalmente novo,
caracterizado pela dinâmica narrativa das redes sociais e pelo uso
do “neopanóptico” como ponto de vista dominante – que trato aqui
como “segunda câmera”; o outro se caracteriza por uma produção
autoral que emprega tanto o ambiente quanto os recursos técnicos
em função do conteúdo criado, possui natureza híbrida e se utiliza
da experiência do espectador como linguagem; esse fluxo é o que
se refere às expressões expandidas do audiovisual.
Dentro da complexidade do seu sistema, imagino a confluên-
cia do fluxo de mercado com o fluxo de conteúdo audiovisual se
comportando como as infinitas correntes de um oceano. Carre-
gando suas ideologias e dinâmicas de poder e trabalho, os “fluxos

o cinema e seus outros 163

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principais”1, aqueles com maior volume de deslocamento, são
também por onde agem os mercados mais aquecidos. As potências
disruptiva e inovadora do sistema estão nas regiões de turbulência
que ocorrem no encontro de diferentes correntes ou no atrito com
outros sistemas; os vetores (sentidos) de deslocamento dos fluxos
principais tendem ao alinhamento e à convergência. Assim, são
os criadores de conteúdo, com sua natureza singular, que talvez
representem o elemento mais sensível, resiliente e fundamental
para a manutenção das dinâmicas desse grande meio.
Evidentemente, estão todos em relação de troca e contaminação
constantes, nenhum deles se configura como estanque e muito
menos como homogêneo, mas podem ser identificados a partir
da maneira com que produzem suas imagens, pela forma e pelos
locais onde seu conteúdo ocorre.
Assim, se por um lado são os meios de produção e distribui-
ção que estipulam as características formais do conteúdo (o que é
aceito tecnicamente como “cinema” e “televisão” na Indústria do
Entretenimento, por exemplo), por outro lado são as qualidades
estéticas e conceituais trazidas pelo autor que posicionam tal
produção mais ao centro, à margem ou até como uma “vertente”.
Em um momento de reorganização e adaptação às possibilida-
des tecnológicas no qual nos encontramos hoje, algumas expressões
cinematográficas ganham evidência exatamente por ocorrerem onde
os modelos industriais não têm tanta eficiência. Essas expressões, que
num primeiro momento pareciam dispersas, passaram a estruturar-se
como um outro fluxo, com seus valores, padrões e cadeia produtiva
próprios. É da identidade desses outros universos cinematográficos
e suas possibilidades de articulação que pretendo a tratar aqui.

Uma reimaginação do cinema


O amadurecimento industrial do cinema trouxe também a
ideologia da mecanização e automatização à sua estrutura. Em
nome da massificação, foi sendo eliminado dessa experiência fílmica
o calor espontâneo do “ao vivo”, subtraindo-se pouco a pouco a
participação de narradores, músicos, projecionistas e até a orgânica
textura flicante da película, que já se tornou uma mídia de época.
Embora a grande tela branca dos movie theatres (que efetiva-
mente se apropriou do espaço e da dramaturgia do espetáculo
teatral) continue como um meio estruturante da produção in-
dustrial, seu formato de conteúdo não é suficiente para abrigar as

1 Uma analogia à ideia de mainstream.

164 Demétrio Portugal

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diversas possibilidades de produção de imagem em movimento
a partir dos recursos de luz, som e processamento computacional
acessíveis nos dias de hoje.
Sob essa perspectiva, a busca por um novo Cinema não significa
promover uma cisão histórica, visto que, inclusive certas vertentes
artísticas buscam (e às vezes até representam) exatamente a sua origem
experimental, apresentando um universo que vai muito além da narra-
tiva dramática, representativa e institucional2 típicas do fluxo industrial.
Tratam-se de manifestações – que se dirigem a uma experiência sensorial
plena, capaz de mudar a nossa realidade, mesmo que momentanea-
mente, ideias que continuam perseguindo o “Cinema Total”.
No ensaio intitulado “Mito do Cinema Total”, André Bazin
coloca que “todos os aperfeiçoamentos [de linguagem] acrescen-
tados pelo cinema só podem, paradoxalmente, aproximá-lo de
suas origens. O Cinema ainda não foi inventado!” (Bazin, 1953, p.
31). Assim, mesmo cercado pelas ideias realistas do seu tempo, ele
conseguiu antever que: é o próprio Cinema (Total), enquanto ideal
de indivíduos “possessos de sua imaginação” (ibid., p .31) que se
desenvolve incorporando e transformando tecnologias que estão
a seu dispor, e não o contrário. “Como se [para o caso do Cinema]
devêssemos inverter a causalidade histórica que vai da infraestrutura
econômica às superestruturas ideológicas” (ibid., p .27).
Logo, não é o Cinema, enquanto linguagem artística, que está
ameaçado, mas sim aquele modelo ideológico do “fluxo principal”
que, para renovar-se, busca aumentar seu domínio sobre outros
meios de produção e distribuição, propondo o discurso de que
incorporar “novas mídias” é o mesmo que reinventar o cinema
pela perspectiva de mercado.

O fluxo da segunda câmera


(E se a sequência de fotogramas de um filme fossem as publi-
cações na timeline de uma rede social?)
A mídia “rolo de acetato” em si é tecnicamente bastante simples,
porém só ganha sentido e efeito de movimento quando esse rolo é
acoplado à complexidade do aparelho que o reproduz. Isso resulta
na compreensão daquela imagem cinematográfica que, ao revelar-se,
se constitui como uma outra camada: o suporte da narrativa.3

2 Referência aos modelos de representação: INR (Industrial-Narrativo-Representativo),


proposto por Claudine Eizykman, e também o MRI (Modo de Representação Institu-
cional), usado por Noël Burch.
3 “O ‘conteúdo’ de qualquer meio ou veículo é sempre um outro meio ou veículo”
(McLuhan, 1964, p. 22).

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Inicialmente, a câmera que registrava a imagem se posicionava
entre o fotógrafo e o objeto fotografado, em uma posição de anteparo
do olhar. O autor do filme ficava invisível, a não ser pelo indício do seu
ponto de vista (plano ou movimento de câmera) e da sua intenção ao
conduzir (ou induzir) a percepção do espectador pela edição narrativa.
Com a evolução dos celulares (equipamento que tornou a
produção audiovisual tão acessível quanto trivial), em determinado
momento surge um segundo “olho” acoplado ao dispositivo, porém
este fica do lado oposto à câmera original, com a função de observar
o autor como objeto e sob seu próprio enquadramento: massifica-se,
assim, o ponto de vista da autorrepresentação com o selfie.
Mais do que um recurso tecnológico, o advento dessa segunda
câmera estabelece um novo paradigma ontológico, que se constitui
por duas camadas: uma superficial (redes sociais, por exemplo), em
que se estabelece uma narrativa de autorrepresentação social a partir
do compartilhamento de conteúdo do tipo muitos-para-muitos e
um-para-um; e, simultaneamente, uma outra camada profunda, que
absorve esses e outros dados (como meta dados) a partir de um ponto
de vista “neopanóptico” (do tipo muitos-para-um) para, assim, construir
representações baseadas em perfis4 estatísticos e probabilísticos dinâmi-
cos, sendo que o acesso aos meios de produção desse tipo de imagem,
assim como aos respectivos bancos de dados, se dá por algoritmos de
inteligência artificial – na sua grande maioria, exclusivos e privados.
Não só aos que ficam por trás da segunda câmera é reservado
esse tipo de visualizações,“a exposição de conhecimento estatístico,
na forma de diagramas ou gráficos de diversos tipos, é agora uma
forma discursiva necessária para a expressão da verdade” (Cubitt,
2016, p. 25). Cubitt ainda aprofunda a ideia recapitulando a de-
finição de “forma simbólica” proposta por Panofsky: “na época
do regime significativo, (...) a verdade não mais aparece como
uma perspectiva representativa, mas sim abstraída das aparências
na forma inequívoca do diagrama e do seu avatar do séc. XXI, a
visualização de dados” (ibid., p. 26).
Isso nos leva a crer que percebemos como verdade não só os
infográficos dos veículos jornalísticos, mas também as estatísticas
sobre likes e perfil dos nossos seguidores, ou ainda os mapas que
nos geolocalizam e dizem que caminho devemos seguir. No en-
tanto, significa também que um influxo deliberado de dados nesse

4 McLuhan dedica o capítulo “Número: O perfil da multidão” ao pensamento desse


tema, em que comenta: “A coleta estatística de números dá ao homem um novo influxo
de intuição primitiva e de conhecimento mágico e subconsciente relativamente ao gosto
e aos sentimentos do público”.

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sistema pode muito bem induzir a uma discrepância estatística
capaz de reorganizar o que um grupo de pessoas acredita. Esse
tipo de “ataque” atinge a camada profunda desse meio e tem como
resultado a reação infecciosa típica das fake news.
Se até algum tempo se ficcionava “entrar” para a tela do cinema
incorporando a realidade dos seus personagens e a visão onipotente
da câmera subjetiva, hoje é o próprio fluxo informacional, intera-
tivo e conectado que penetra e perfila a nossa realidade a partir de
dispositivos; compilando, por exemplo, nossas fotos, vídeos, falas,
localização, dados biométricos e nosso próprio comportamento na
rede, para então, em uma nova camada, reconstituí-los na forma de
um perfil sujeito a interferências e direcionamentos dos algoritmos
que regem aquele meio. “E esse império dos objetos tem um papel
relevante na produção desse novo homem apequenado que estamos
todos ameaçados de ser” (Santos, 2000, p. 51).
Em resumo, essa imagem é formada por duas realidades simul-
tâneas e paradoxais, a digital e a física, a que monitora e a que é
monitorada, a que produz e a que é produzida enquanto informação
e narrativa. Uma representação potente, inerente a uma existência
hiperconectada contemporânea que se estabelece em um ambiente
onde interagem pessoas, instituições e robôs. Sendo que qualquer dado
absorvido por essa estrutura pode ser mercantilizado por aqueles que
possuem o privilégio de acessar tais bancos de dados e criar imagens
dinâmicas para identificação de diversos tipos de comportamentos.

A ideia de um fluxo expandido do audiovisual


(Quando o autor tem poder sobre o meio)

A “essência da tecnologia da automação (...) é integral e descentraliza-


dora em profundidade, assim como a [da] máquina era fragmentária,
centralizadora e superficial na estruturação das relações humanas”
(McLuhan, 1964).

A percepção de McLuhan também sintetiza as características


da construção da imagem nos meios do fluxo industrial (máquina)5
e do fluxo da segunda câmera (autômato). A partir daí, por exclu-
são, podemos identificar um terceiro grande fluxo de produção
audiovisual como sendo aquele que se caracteriza não pelo meio

5 É evidente que a produção industrial passou pelo processo de automação e possui


canais de distribuição dentro da internet, mas suas características centralizadora (quanto
ao acesso aos meios de produção e à sua distribuição broadcast), fragmentária (pela es-
pecialização do trabalho em toda a sua cadeia produtiva) e superficial (que não oferece
feedback ou maior interatividade narrativa) permanecem.

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onde ocorre, mas pela diversidade de meios de produção e distri-
buição que incorpora na origem do seu processo de criação. Uma
produção cuja transversalidade e natureza híbrida são algumas das
características que fazem desse fluxo o que melhor intersecciona
com o circuito das artes visuais e performáticas.
Se para o cinema industrial a representação do espaço se dá
através da lente e do posicionamento/movimento de câmera, quando
a moldura da janela cinematográfica se desfaz, o que nos resta é,
em essência, o próprio ambiente da experiência fílmica em embate
direto com o espectador. Dessa forma, se no modelo industrial
são os conteúdos que atendem às demandas e às características
do meio onde ocorrem, no fluxo expandido é o próprio meio
(ambiente ou dispositivo) que passa a ser utilizado em função do
conteúdo criado – uma vez que o uso da janela cinematográfica
se tornou apenas mais uma entre tantas opções para o autor, e
não mais uma característica formal predeterminada pelo meio ao
conteúdo produzido.
Essa inversão não se resume apenas a uma opção estética,
significa que o autor desse tipo de conteúdo tem também mais
proximidade aos meios finais de produção e distribuição do que
os autores dos demais fluxos, pois os níveis de mediação, controle
e interferência sobre a sua mensagem são menores, porém não
pouco influentes.
Como percebido por Bazin, a própria origem do Cinema se
dá por um caminho que parece inverter o processo da causalidade
histórica6, em que a pulsão por um ideal de linguagem audiovisual
acabou por organizar a infraestrutura necessária para sua ocorrência,
resultando no “cinema” e na “televisão” que conhecemos hoje. A
construção subjetiva7 do fluxo audiovisual expandido, portanto,
tende a gerar um resultado análogo ao do “cinema” na sua trajetória
para criação de circuitos de distribuição, formação de público e
participação no mercado.

Para Lacan, o sujeito precede a subjetivação, (...) de certo modo, o sujeito,


em sua natureza, “é” coisa alguma exceto o resultado do processo de
subjetivação; pode-se dizer também que o sujeito precede a si mesmo
– para se tornar sujeito, ele já tem que estar sujeito, de modo que, em
seu processo de transformação, se torne o que já é (Žižek, 2008, p. 343).

6 Retomando o pensamento exposto na segunda parte deste texto – “Uma reimagi-


nação do cinema”.
7 Refere-se à construção de identidade ao representar “toda a problemática de como
os indivíduos subjetivam ideologicamente sua situação, como se relacionam com suas
condições de existência” (Žižek, 1999, p. 253).

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Assim, apropriar-se da condição de autor como parte integrante
da ampla cena do audiovisual expandido8 é também trazer reco-
nhecimento e identidade para sua produção individual a partir da
construção de uma imagem clara da expressão artística à qual pertence
e representa enquanto classe, ao mesmo tempo que aumenta sua
capacidade de esculpir nossa sociedade com sua produção. Dessa
forma, cabe ao autor/artista, antes de qualquer outro, a busca pelo
entendimento da ideologia que rege e está incorporada à sua produ-
ção, já que essa busca é parte inerente ao seu processo de subjetivação.
Por outro lado, não realizar essa construção identitária enquanto
grupo significa continuar apenas replicando (e sem alavanca para
confrontar) a ideologia, os mecanismos e os valores do mercado do
fluxo industrial. Sendo que essa identidade de grupo, ao favorecer o
entendimento da complexidade da atuação do setor, acaba deixan-
do esse fluxo naturalmente mais intenso e dinâmico – podendo,
inclusive, reduzir a condição muitas vezes precária da sua produção
artística autoral.9
Essa ideia, se vinculada à estruturação de uma mecânica para
o fluxo audiovisual expandido, vai muito além de “construir uma
nova visão que nos faça atingir a consciência oceânica a partir de
experiências imersivas do cinema sinestético”, como foi proposto
por Youngblood como “cinema expandido” (Youngblood, 1970, p.
92). Refere-se, também e enfim, a “uma maneira de proceder em
que se percebe que o olho interno é muito mais importante que
as imagens externas” (Beuys, 1984, p. 74).

Capital é, no presente, a habilidade de sustentação do trabalho.


Dinheiro não é um valor econômico. Os dois verdadeiros valores
econômicos envolvem a conexão entre a habilidade (criatividade)
e o produto. Isto explica a fórmula apresentada para o conceito
expandido de arte: arte = capital (Beuys, 1985)10.

8 A expressão “audiovisual expandido”, depois de quase dois anos de reticência e debates,


foi convencionada em uma reunião da rede ALTav.org que tinha exatamente como fim
sintetizar em um nome o que os integrantes da rede fazem. Só assim, com identidade
e nome próprios, foi possível ir adiante com o processo de reconhecimento em relação
a seu setor/classe, assim como reivindicar fomento para desenvolver essa cena junto ao
poder público e outras instituições.
9 “Today, the predominant form of exploitation is the exploitation of knowledge, and so
on and so forth – there is a new ‘postmodern’ social development going on which the old Left
refuses to take into account, and, in order to renovate itself, the Left has to ... read Deleuze
and Negri and start to practice nomadic resistance, follow the theory of hegemony, and so on”
(Žižek, 2008, p. 339).
10 Texto retirado de obra manuscrito esquemático de J. Beuys, citado por Ian Alden Rus-
sel. (2011) in <http:///bellgallery.wordpress.com/2011/11/15/creativity-capital-by-joseph-beuys>

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Sob essa perspectiva, ao pensar uma expansão para o enten-
dimento de audiovisual, é inevitável notar também o conceito
expandido de arte já esculpido por Beuys, no qual a consciência
sobre nosso “olho interno” – ferramenta que talvez sirva como
um contraponto à “segunda câmera” – orienta nosso “proceder”
para implementação de uma sociedade que é “produto” de uma
imagem dinâmica, criada coletiva e compartilhadamente, a qual
ele chamou de “Escultura Social”.
Faz sentido entender, portanto, que a expansão desse audiovisual
depende da apropriação dos seus meios de produção específicos,
assim como da criação de uma consciência identitária e política
coerente com o momento do seu fluxo, que está em crescimento e
naturalmente produzindo atrito com o “fluxo principal”. Por esses
meios, então, contaminar esse sistema com novas ideias, formatos,
estilos, modos e maneiras, enfim, sotaques de culturas que, se não
desenvolverem domínio e autonomia sobre esses outros cinemas
possíveis, tenderão à diluição e ao esquecimento da sua manifes-
tação mais criativa e autoral.

referências bibliográficas
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nizado por Domenico Spinosa. <https://journals.openedition.org/
estetica/1634>. On-line, 2011 (cc).
_______; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução de
Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus Editora, 2003.
BAZIN, André. O mito do cinema total (1953). In: O que é o cinema – Ensaios.
Tradução de Hugo Sérgio Franco e Eloísa de Araújo Ribeiro. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
BEUYS, Joseph; apud in MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: pensar Cristo.
Barcelona: Herder Editorial, 1997.
CUBITT, Sean. Verdade e realismo. Tradução de Gabriel Menotti. In: Cinema
apesar da imagem. Gabriel Menotti, Marcus Bastos, Patrícia Moran
(orgs.). São Paulo: Intermeios, 2016.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem
(Understanding media). Tradução de Décio Pignatari. São Paulo:
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YOUNGBLOOD, Gene. Expanded cinema. New York: P. Dutton & Co., Inc., 1970
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
ŽIŽEK, Slavoj. In defense of lost causes. London/New York: Verso, 2008.
_______. The ticklish subject. London/New York: Verso, 2000.

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Tanya
Toft Ag

da temporalidade
radical em arte-mídia
(urbana)

Por algum tempo, e em minha prática curatorial, interessei-me pelas


emergências artísticas no domínio da arte-mídia. Em continuidade
a uma concepção expandida do cinema e seus outros – videoarte,
performance, audiovisual e manifestações recentes de mídia-arte
–, estou interessada em como artistas incorporam estéticas e lin-
guagens “contemporâneas” em um campo mais amplo das artes,
que inclui, por exemplo, ciência da imagem, games, VJs e outras
práticas performativas; e também em como a inovação tecnológica
– como as que ocorrem em mídias móveis, telas, equipamentos
de projeção e tecnologias ópticas (realidade virtual, aumentada
e mista) – informa expresses artísticos e agenciamentos artísticos.
Minha investigação, em particular, refere-se a como a mí-
dia-arte que se expressa e se situa no contexto urbano – à qual
me refiro em termos gerais como “arte-mídia urbana” – pode ser
compreendida como arte contemporânea; especialmente no sentido
de um engajamento direto com as dimensões temporais de nossa
contemporaneidade, como um material artístico que emerge de,
responde a e coexiste com o tempo e as experiências temporais
que nos são oferecidas em materiais, infraestruturas e interfaces
de nossos ambientes reais e híbridos. Estou particularmente in-
teressada na contingência da arte com tendências estéticas de
mídia e experiências perceptivas que caracterizam nossa existência
comunicativa contemporânea.
Vou exemplificar essa concepção de arte-mídia urbana por
meio de um projeto expositivo em São Paulo no qual trabalhei

o cinema e seus outros 171

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como curadora a partir do início de 2013: a Galeria de Arte Digi-
tal Sesi-SP. Tecnicamente, trata-se de uma fachada de LED que se
desdobra por três lados do edifício localizado na Avenida Paulista.
A galeria foi inaugurada em 2012 com exposições produzidas pela
Verve Cultural (Marília Pasculli e João Frugiuele)1. Essa galeria-fa-
chada expositiva apresentou instalações visuais e audiovisuais que
se integraram ao espaço público urbano, social, cultural e político:
instalações que tomam conta de toda a fachada e podem ser vistas
a longa distância, mudando a aparência do entorno do edifício e
reconfigurando a vida social na rua. Essas instalações – entre elas,
as de Radamés Ajna e Thiago Hersan, Lucas Bambozzi, e Anaísa
Franco e Jordi Puig – demonstram como a arte-mídia no espaço
urbano representa muito mais que o seu conceito, intenção ou
“imagem” em termos de uma área de exibição visual.
A partir do meu ponto de vista sobre a condição contingente
da arte, sua interferência em tempo real e sua experiência ime-
diata no ambiente urbano, analisarei a qualidade particular da
temporalidade radical em arte-mídia (urbana). Ao enfatizar essa
qualidade, proponho expandir a compreensão epistemológica da
arte-mídia urbana e suas manifestações.

Contingência contemporânea2
Em minha pesquisa e em meu trabalho curatorial, tento acom-
panhar os artistas em suas curiosidades, inovações e maneiras de
usar (enquanto questionam) os materiais de nossos contextos
tecnológicos contemporâneos hoje3. Atentando às tendências e
dinâmicas artísticas que emergem fora das categorias estabelecidas
da história da arte (ancorada no Ocidente), e em resposta direta
à cultura visual contemporânea e à estética popular cotidiana,
concentrei-me mais detidamente na “arte-mídia urbana” como
forma de arte contemporânea condicionada por sua contingência
em nossa contemporaneidade. Essa abordagem alinha-se com o

1 Descrevo a Galeria de Arte Digital Sesi-SP mais detalhadamente no artigo “Situations


of presence: reclaiming public space in the urban digital gallery”, in Martin Brynskov,
Peter Dalsgaard, Ava Fatah, S. B. Pold, Marcus Foth (eds.). Proceedings of the 2nd Media
Architecture Biennale Conference: World Cities. Nova Iorque: ACM, 2014.
2 (N. dos Orgs.) Contingência aqui se refere à condição de troca entre arte e seu con-
texto. Uma referência ao termo utilizado por Marta Buskirk em “The Contingent Object
of Contemporary Art”. MIT Press, Cambridge, 2003.
3 Descrevo a metodologia curatorial de seguir a arte no sentido de estar aberto às ino-
vações e maneiras de usar e ponderar com os “materiais” de nosso contexto tecnológico
no artigo “Curatorial Interfacing”, em breve em uma edição especial sobre “interfaces”,
no Leonardo Electronic Almanac (2018).

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que Jacques Rancière descreve como nosso atual regime estético
das artes, no qual a arte é vista como liberta de regras, hierarquias,
temas e gêneros específicos (Rancière, 2015, p. 20-23)4. Por exemplo,
reconhecemos essa condição contingente quando a experimen-
tação em campos relacionados se funde em práticas e expressões
artísticas, “transbordando” a estética ou empurrando as fronteiras
estéticas da arte. Em consequência, a arte deriva e se desenvolve a
partir de diferentes expressões estéticas, curiosidades e conjuntos
de habilidades, e toma forma como instalações que incorporam
em si o ambiente e as pessoas do entorno de diferentes maneiras.
A concepção de uma condição contingente na arte-mídia
contemporânea abre-se para uma noção de arte não como um
objeto do discurso crítico-cultural e também não caracterizado em
nenhum meio específico ou ponto de partida de alguma disciplina.
A dimensão contingente da arte envolve menos a preocupação
em como a arte responde a uma ou mais histórias da arte ou
discursos artísticos, e também menos a preocupação em como os
artistas se associam com uma vertente ou cultura particular da arte
contemporânea, seja em um contexto de artes visuais, arquitetura
ou música e performances de VJs, seja em um ambiente em que
os artistas estejam buscando linguagens experimentais motivados
pela especificidade estética e técnica de uma galeria-fachada expo-
sitiva ou uma infraestrutura urbana em particular. Em vez de se
preocupar com o que a arte é, como ela pode ser categorizada ou
interpretada quanto a um significado, estou interessada no que a
arte faz, especialmente quando situada no espaço público urbano5.
Minha posição aqui continua a de conceber a “arte de novas mídias”
em termos de sua natureza processual e seus comportamentos pro-
cessuais.6 Essa abordagem reflete uma atenção para a “arte” como
situada na experiência mais do que no objeto, algo que se localiza
em uma óptica pragmática enraizada nas teorias de John Dewey,
que dá ensejo à ideia de que, em nossa relação processual com o

4 Ver também Tanya Toft Ag, “Contemporary Urban Media Art – Images of Urgency. A
Curatorial Inquiry”, tese de doutorado, Copenhagen, University of Copenhagen, 2017.
5 Desenvolvo uma concepção de arte-mídia urbana em termos do que ela faz em vez
de o que ela é em: Tanya Toft Ag, What Urban Media Art Can Do, introdução a Susa
Pop, Tanya Toft Ag, Nerea Calvillo e Mark Wright (eds.), “What Urban Media Art Can
Do: Why When Where & How”, Stuttgart, av edition, 2016.
6 Para a caracterização da arte-mídia ou arte digital em termos de seus comportamentos,
ver: Steve Dietz, “Why Have There Been No Great Net Artists?”, no site oficial do Neme,
<www.neme.org/82/why-have-there-been-no-great-net-artists>, acesso em: 1 maio 2015;
Christiane Paul, Introduction, “New Media in the White Cube and Beyond: Curatorial Models
for Digital Art”, Berkeley, University of California Press, 2008, p. 4; Beryl Graham e Sarah
Cook, “Rethinking Curating: Art After New Media”, Cambridge, MIT Press, 2008, p. 69.

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mundo, a experiência com a arte pode nos ajudar a navegar pela
vida ajustando uma forma de comportamento previamente esta-
belecida de maneira a melhorar a resposta e o hábito humanos em
relação à experiência futura (Dewey, 2005). Meu engajamento com
uma concepção expandida de arte (cinema ou outras orientações
de arte-mídia) finalmente abarca ideias de como a arte – especi-
ficamente a “arte-mídia urbana” – evoca um engajamento com a
vida cotidiana e, ao interferir em nossa experiência de lidar com
essa vida, de como ela imerge em processos de mudança. Isso está
na base dessa atenção à arte-mídia como um impulso processual
experiencial que localizo e proponho como uma qualidade artística
de temporalidade radical.

Imagens presentes da arte


Levando-se em conta meu foco curatorial com as formas de
arte-mídia experimentais, privilegio uma perspectiva da arte mais
em termos de “acontecimento” do que de “imagem” representada.
Enquanto a arte moderna enfatiza as relações formais e nos ensina
a prestar atenção à pintura, escultura ou a outro objeto de arte
como uma composição superficial ou “imagem” representada – no
cinema, lançando-nos em viagens mentais imaginárias e produ-
zindo pensamentos, sensações e deliberações em nosso sistema
mente-corpo –, as manifestações de arte contemporânea às quais
me refiro aqui são diferentes.
Boris Groys sugeriu que a arte contemporânea pode ser dis-
tinguida daquela que prevaleceu durante o período moderno
de maneira significativa pelo seu compromisso com a noção de
temporalidade radical. Groys não fala explicitamente de arte-mídia,
mas propõe que a arte contemporânea materializa uma situação na
qual cada elemento deve ser considerado “temporário”. Desse modo,
a arte (e nossa concepção dela) passa a ser condicionada pela subs-
tância de nosso ser contemporâneo, como um ser substancialmente
afetado por instabilidades como temporalidade, fluxo, imateriali-
dade, advento e virtualidade, por quadros temporais de incorpo-
ração e condições de imersão, por processos temporais de cultura
de rede e computadores, e pelas condições temporais para os
encontros (Groys, 2008, p. 40). Gostaria de levar sua concepção de
temporalidade radical um passo adiante e considerar a arte-mídia
como essencialmente enraizada na luz.
Claro que a arte-mídia utiliza diversas formas de luz ao em-
pregar, por exemplo, tecnologia de iluminação, de projeção, luz
de laser, luz de busca, néon, monitores e outras telas, assim como

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transmissão de luz via fibra óptica em dispositivos móveis, sistemas
de som, dispositivos de games, câmeras, drones e vários outros ele-
mentos e funcionalidades computacionais. A dimensão temporal
que eu gostaria de destacar aqui concerne mais no que o “material”
da arte ou um “objeto” iluminado ou iluminante de uma instalação:
diz respeito à natureza processual, viva e performativa da arte. Por
exemplo, comportamentos artísticos de interatividade (quando
uma característica temporal pela qual a presença da obra de arte é
responsiva à nossa presença, nossa participação ou intervenção); o
estar em rede [networkedness] (quando a arte permite conectarmo-
-nos através do tempo-espaço em interfaces artísticas; telepresença
(envolve interação humano-humano mediada por computador
com o objetivo de estabelecer encontros e situações de intercone-
xão, e eventualmente de cooperação, entre participantes que estão
separados por distância física); ou sobreposição temporal (como
pela projeção em superfícies urbanas e em superfícies de exibição
temporária). Esses e outros modos de comportamentos temporais
da arte anunciam um sentido de ruptura temporal característica de
como a arte incorpora o ambiente urbano de entorno.
Em vez de apresentar um conteúdo em uma área de exibição
visual determinada por um campo de origem (que deve de outro
modo parecer adjacente quando, por exemplo, se observam apara-
tos de arte visual em superfícies urbanas), e mais que engajar um
relacionamento entre o observador e seu campo estético (que é
delimitado àquilo que é “visto”), com a concepção da arte-mídia
essencialmente como fonte de luz podemos procurar compreender
o ambiente de relacionamento entre a arte e o espaço no qual ela
intervém e pelo qual é condicionada. Isso nos leva além da fixação
em modos formais de uso ou experiências alcançadas por meio
das propriedades técnicas dessa mídia artística – como prescrito
por um certo predomínio cultural segundo o qual a arte poderia
facilmente ser reduzida ao status contemporâneo das funções
culturais, comunicativas e ideológicas dessa mídia. Essa concepção,
em vez disso, abre para potencial de interação direta (e temporal)
da arte com nossa contemporaneidade, talvez de maneira similar
ao que o filósofo Henri Bergson caracterizou em termos de uma
imagem presente, que ele diferencia de uma concepção de imagem
representada. Enquanto a imagem representada é caracterizada
pelas qualidades (homogêneas) de repetição, expansão, homoge-
neidade e valor, que podem ser quantificadas, a imagem presente
interfere em todas as outras sensibilidades em seus contextos de
existência; ela age sobre outras “imagens” (no entendimento das

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sensibilidades) e reflete um modo alternativo de duração (hetero-
gênea). Bergson escreve:

Aquilo que a distingue […] enquanto imagem presente, enquanto


realidade objetiva, de uma imagem representada é a necessidade em
que se encontra de agir por cada um de seus pontos sobre todos os
pontos das outras imagens, de transmitir a totalidade daquilo que
recebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária, de não
ser, enfim, mais do que um caminho por onde passam, em todos os
sentidos, as modificações que se propagam na imensidão do universo
(Bergson, 2011, p. 28).

Se a arte modernista pode ser compreendida na concepção da


imagem representada, encontramos na arte-mídia uma natureza
viva, temporal e performativa, uma resolução conceitual da “arte
imagem” em sensibilidades multissensoriais que distribuem as ma-
terialidades e temporalidades de um ambiente híbrido e imersivo
na forma de “fenômenos em tempo real”. Nesse contexto, podemos
considerar a dimensão do “tempo real” na arte não estritamente
no sentido de uma resposta computacional instantânea ou como
reflexo da dimensão de rede em tempo real da arte, mas na arte
como interferência distribuída e direta na realidade urbana, suas
ecologias e esferas social e cultural, e em seus processos e desen-
volvimentos, como potencialmente capaz de afetar a distribuição
sensível nessa realidade. Mais que nos transportar para um mundo
de imagens – como experimentado no espaço fechado do cinema
tradicional –, a arte-mídia exposta no contexto urbano integra e
interfere em nosso mundo sensível, físico e material. O que é parti-
cularmente interessante na distinção bergsoniana entre a imagem
presente e a imagem representada é como ele relaciona as duas
imagens diferentes (no entendimento de imagens-sensibilidades
em vez de “imagem” como campo visual delimitado) com dois
modos diferentes de habitar o tempo no espaço; modos pelos
quais nossa atenção e nosso sentido de presença são mobilizados
temporalmente na experiência (“na duração”).
Como analisarei detalhadamente seguir, a dimensão temporal
na arte-mídia de fato nos permite intervir em nossa realidade,
pela intervenção nas estruturas experienciais de nossa vivência
ontológica contemporânea – em sistemas, lógicas e arquiteturas
de nossa realidade cada vez mais mediada e nas suas estruturas de
mediação (ou melhor, imediação ou imediatas) fundamentais
de nossa experiência contemporânea; engajar com o que Jacques
Rancière descreveu como a “redistribuição do sensível” no ambiente,

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como uma forma temporal e arte-midiática de interferência es-
tética (Rancière, 2015).

Temporalidade radical em instalações de arte-mídia urbana


Apresentarei agora três exemplos de meu trabalho curatorial
com a Galeria de Arte Digital Sesi-SP para exemplificar como
aquilo que as instalações “fazem acontecer” diz respeito não apenas
à dinâmica física nas ruas, mas também à dinâmica temporal que
opera ao nível da experiência perceptiva. Nessas instalações, a arte
age como “imagens presentes” – agindo sobre nossa experiência
sensível do ambiente urbano.
Na instalação da artista brasileira Anaísa Franco e do artista
japonês Jordi Puig, intitulada “Reflexões Oníricas” (2013), você olha
através de uma moldura branca aparentemente vazia. À medida que
se aproxima da moldura, ativa-se um programa de reconhecimento
facial que mapeia seu rosto em tempo real. Assim que seu rosto
“toca” a tela ausente da moldura, ele aparece em cores na galeria-fa-
chada expositiva, não nítido (devido à resolução da fachada), mas
reconhecível, e como a resolução mais grosseira aumenta o senso de
tactibilidade do visível, a imagem visual na fachada aparece distinta
de representações de rostos em telas com as quais estamos habitua-
dos. Conforme move seu rosto, animações de desenhos manuais são
mapeadas em seu rosto projetado no edifício, seguindo seus movi-
mentos. Dessa maneira, a obra interconecta o físico com o digital na
forma de animação. O engajamento íntimo, pessoal, parece convidar
a diferentes expressões faciais-emocionais. Você está em ressonância
sensível em tempo real com o visual, não apenas em nível cognitivo,
mas também em uma frequência intuitiva incorporada.
Embora exposta em uma fachada de LED, a imagem artística
pode ser considerada em termos de uma noção expandida de pro-
jeção: uma projeção de um momento extremo de sua existência,
como se conectasse a psique com uma existência artificial digital.
Trata-se de um estado de pseudocerteza, de uma simultânea inten-
sificação de presença – “você está aqui com certeza!” – e incerteza.
Esse modo de presença é em alguma medida familiar, uma vez que
vemos nosso “reflexo” em espaços mediados o tempo todo, mas
certamente também não familiar, devido ao tamanho, intensidade,
materialidade e manipulação dessa imagem refletida. A impressão
visual parece abrir uma profundidade virtual no ambiente. A ima-
gem artística distorce o contexto urbano como uma reprojeção da
realidade com o ser humano nele, e abre os sentidos para abarcar
um novo modo de se sentir presente.

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O público é confrontado com a visualização de sonhos, me-
mórias e reescrituras mentais. Na reprojeção da realidade, essas
coisas se tornam parte do contato físico com o mundo, evidencia-
das por sua aparição sobre os rostos das pessoas, participando de
nossa experiência. Dessa maneira, a instalação reflete sobre como
as imagens que estão contidas em nossa memória participam do
processamento de nosso mundo exterior.
A obra “Coisa Lida” (2014), do artista brasileiro Lucas Bambozzi,
evoca uma condição urbana ditada pela velocidade, apresentando
sequências em vídeo de textos e imagens, que são interrompidas em
tempo real pelo ritmo e pelo ruído cambiantes da Avenida Paulista,
pelo movimento do trânsito e das pessoas em frente à galeria-fachada
expositiva. Ao explorar uma linguagem artística em algum ponto
entre a projeção de poesia e a visualização de dados, a instalação
fala de condições urbanas de velocidade, combinando citações de
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), Paul Virilio, Pierre Clastres,
Oscar Wilde, Clarice Lispector e outros, o que nesse contexto vem
lidar com condições globais e locais que impactam o ambiente da
Avenida Paulista. Sequências de vídeo mostram relances de palavras,
que refletem sobre velocidade e percepção. Elas surgem e se vão em
fade in e fade out em ritmos variados e se mesclam em sequências,
como em uma montagem fílmica. Misturam-se com relances de
narrativa que aparecem como um flash de apenas alguns quadros,
mostrando, por exemplo, uma formiga correndo com uma folha,
um avião aparecendo no céu, flores caindo de uma janela, uma lua
intermitente vista através das nuvens ou um pássaro cruzando um
edifício. Em uma negociação entre aceleração e desaceleração, e ao
explorar uma linguagem em algum ponto entre a projeção de poesia
e a visualização de dados, a instalação, o ritmo das sequências de
vídeo, responde a sinais de um sistema de detecção de movimento
instalado na frente da galeria-fachada expositiva, a partir de uma
webcam que “vê” e “ouve” em meio aos fluxos de carros e pessoas. O
áudio da calçada em frente à galeria é gravado, amplificado e des-
viado para telas localizadas na rua. Ao modo de ruptura temporal,
reagindo em tempo real aos ritmos da cidade, a instalação torna
visível a velocidade da cidade de São Paulo.
A oscilação entre as frases revela o processamento das imagens
sobre nossas retinas e memórias como uma colisão entre o que
escapa ao olho e o que é retido em nossa consciência. As sequências
de vídeo revelam brechas na percepção humana, flutuando entre a
consciência e o escapismo para uma realidade ilusória. Convida o pú-
blico a desacelerar de maneira a preencher as brechas entre palavras

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e imagens, e procurar produzir um sentido para as sequências de
vídeo. “Coisa Lida”, portanto, indica que é pela desaceleração que
atingimos um estado de consciência, que nos tornamos conscientes
dessa programação, e somos capazes de agir de modo diferente
em nosso entorno.
Na instalação “0.25 FPS” (2014), de Radamés Ajna e Thiago
Hersan, um espelho é colocado em frente ao edifício que abriga a
Galeria de Arte Digital Sesi-SP e uma câmera é posta diante dele
a uma pequena distância, conectada com o dispositivo da fachada.
O público é livre para caminhar em frente ao espelho sabendo que
uma foto sua será tirada e então projetada na fachada. Primeiro,
um flash branco aparece na fachada várias vezes, uma para cada
“fotografia” tirada pela câmera do público que está intuitivamente
posando à sua frente. Os vários flashes no edifício indicam um
processo de mediação antes que a imagem apareça na fachada em
uma versão levemente processada, semelhante a um GIF (Graphics
Interchange Format). Após algumas repetições, a imagem finalmente
desaparece antes que a próxima série de fotografias seja tirada. A
fachada então pausa, retornando ao preto, até que o próximo par-
ticipante interaja com a câmera. O atraso entre as fotos é capturado
e o GIF sintetiza a série de “imagens”, permitindo aos participantes
refletir sobre o momento que acabaram de ter diante da câmera.
Alguns segundos após, o GIF se encerra, o momento se foi.
A ruptura temporal ocorre por meio de uma curta pausa em
“0.25 FPS”, entre a série de retratos tirada e o momento em que o
GIF é mostrado na galeria-fachada expositiva. Isso evoca como, em
vez da abordagem direta, a mediação cada vez mais diz respeito às
relações invisíveis entre circuitos técnicos e a experiência humana.
Evoca ainda uma discrepância entre as temporalidades humana e
maquínica nos processos de mediação atuais, algo que nós expe-
rienciamos ao “enviar”, seguir os “trending topics” [tópicos mais
debatidos], “dar likes” ou “postar” nas redes sociais – sensibilidades
que escapam à nossa consciência humana.
Como formas de ruptura temporal, essas instalações exemplificam
como a arte-mídia urbana – por meio de sua temporalidade radical
– oferece diferentes modos de habitar o tempo no espaço urbano.

Mediação e experiência afetiva


Ao examinar a “arte” não apenas em termos de “imagens” expostas,
mas sim no que a expressão e a tática artísticas fazem acontecer – emo-
cional, cognitiva e fisicamente – junto e entre as pessoas, precisamos
assumir uma abordagem epistemológica diferente para compreender

179

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o encontro com a arte-mídia urbana. Minha abordagem em relação
à temporalidade radical na arte-mídia urbana diz respeito a uma
maneira de abordar a arte como afetiva e experiencial; como sentida
e incorporada mais que iluminada ou retratada. Como manifestações
de “mediação”, podemos então considerar as instalações não como
experiências visuais relacionais ou representacionais, mas, em vez
disso, como evocadoras de um sentido de “imediatez”.
Em relatos representacionalistas/tradicionais, a “mediação” é
entendida como algo que acontece tanto no meio como entre ob-
jetos, sujeitos ou fenômenos pré-existentes – o papel da mediação
é proporcionar a conexão ou a negociação entre objetos, sujeitos,
categorias ou eventos que já estavam lá. Em continuidade às teorias
do século XXI sobre a “mediação” que desafiam a ideia de uma distin-
ção ontológica entre representações e o que elas podem representar
(Alfred North Whitehead, Gilbert Simondon, Gilles Deleuze, Brian
Massumi, Karen Barad), Richard Grusin propôs uma concepção de
mediação radical, uma teoria preocupada com como nos encontramos
não em relação a (distanciados de) algo, mas “no meio” da própria
mediação; no meio do processo, ação ou evento que gera ou provê as
condições para a emergência de sujeitos e objetos (Grusin, 2005, p. 128).
Em vez de considerar a “mediação” como um filtro por meio do
qual podemos chegar a conhecer o mundo, como já posto diante
de nós ou em termos de uma qualidade relacional de conectar,
filtrar, limitar, constranger ou distorcer nossa percepção das coisas
no mundo, Grusin está preocupado com a imediatez incorporada
do evento da mediação. Para ele, a experiência mediada não é ime-
diata em termos do que é exposto, representado ou mediado para
um público, mas sim em termos de como todo o sistema sensório
humano é evocado na presença da arte.
Essa perspectiva pode ser situada em uma atenção crescente que
atravessa a cultura visual contemporânea em direção à presença e à
corporeidade da percepção, que é comumente referida em termos de
experiência afetiva. Com a virada do milênio, vimos uma crescente
atenção ao “afetivo” no discurso acadêmico. Essa orientação acarreta
a reavaliação dos paradigmas do conhecimento particularmente
ocidentalizados, fundados na estrutura epistemológica do paradigma
sujeito/objeto; entre o observador intelectual e a superfície mate-
rial do mundo a ser observada e interpretada como continente de
significado. Nesse paradigma, o cogito cartesiano fez a ontologia
da existência humana depender exclusivamente dos “movimentos da
mente humana”. Em sua reavaliação desse paradigma, Hans Ulrich
Gumbrecht sugeriu que as recentes orientações em direção aos

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modos sensíveis na experiência afetiva – que ele descreve, na pers-
pectiva da presença, referindo-se a algo que não tem um impacto
imediato nos corpos humanos – refletem uma crescente fascinação
com o pensamento materialista e a redescoberta da apropriação do
mundo por meio do corpo humano e dos sentidos (Gumbrecht,
2004, p. 17). Similarmente à posição de Grusin, a perspectiva de
Gumbrecht sustenta a concepção de “mediação” como ativamente
transformadora dos humanos e de nosso mundo, por afetar nossos
estados conceituais e afetivos.
É em continuidade com essa posição que eu proponho a qua-
lidade temporal radical na arte-mídia urbana, como potencialmente
capaz de afetar a “mudança” através de nossa experiência percep-
tiva com a arte. No exemplo de “Onirical Reflections” [Reflexões
Oníricas] (2013), de Anaísa Franco e Jordi Puig, experimentamos
a simulação de nossos mundos internos, sonhos ou memórias em
escala arquitetônica, processos de nosso cérebro e imaginação,
que na experiência vêm também para “processar” o ambiente – e
nisso abrem os sentidos para abarcar um novo modo de nos sentir-
mos presentes. No exemplo de “Coisa Lida”, o ritmo da instalação
visual – que responde em tempo real à velocidade do tráfico de
pessoas na rua – revela as condições temporais da Avenida Paulista
e ilustra como nessa condição as narrativas e coerências escapam
à nossa consciência. No exemplo de “0.25 FPS” (2014), o público é
convidado a experienciar a discrepância entre as temporalidades
humana e maquínica (enquanto espera que sua pose em frente
à câmera retorne na forma de um GIF que ocupa a fachada do
prédio), caracterizando, também, como a mediação atualmente
afeta o sistema sensorial humano. Essa discrepância, cada vez mais
recorrente, acaba por estimular a reação antes do pensamento, o
clique antes da ponderação ou o atuar com indiferença.

Temporalidade radical da arte em perspectiva com a cidade


tecnologicamente desenvolvida
Em ambientes urbanos tecnologicamente desenvolvidos, a
experiência é condicionada pela intensificação de estímulos, com
a implementação de luzes cada vez mais brilhantes na arquitetura
e telas de propaganda crescendo em tamanho e avanço computa-
cional. Procedimentos algorítmicos introduzem temporalidades
de processos maquínicos e sensores que aferem nossos dados para
a contínua “otimização” de nossos mundos de vida urbana. Con-
forme nossas realidades se tornam cada vez mais computacionais,
somos afetados por impressões sensoriais que evitam a tomada de

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consciência humana ao contornar nosso alcance perceptivo. Somos
em alguma medida incapazes de entender o quanto as impressões
sensório-temporais maquínicas afetam nosso sistema perceptivo, e
como a inovação tecnológica acaba afetando nossa relação com o
ambiente em direções cada vez mais convenientes, eficientes e suaves.
Nessa condição, precisamos de contraformas de mediação que
possam facilitar experiências de “presença” alternativas àquelas
geradas com o objetivo de nos treinar para dar sustentação às
ordens de nossa sociedade neoliberal. Precisamos de experiências
mediadas – ou mediadoras – que nos capacitem para habitar nossos
ambientes de um modo distinto, oferecendo espaços para contem-
plação e reflexão crítica. Proponho a qualidade da temporalidade
radical em arte-mídia, um meio pelo qual a arte pode nos oferecer
recortes de experiências temporais alternativas.
A perspectiva apresentada aqui evoca uma mudança de um
prestar atenção na arte – como paradigma da arte moderna – para
um prestar atenção com a arte, o que introduz uma atenção renovada
e retemporalizada em nossos ambientes urbanos e nas condições
da vida cotidiana dentro deles. Ao levar essa qualidade mais adian-
te, o que acarreta a ruptura com epistemologias dominantes do
paradigma modernista, podemos captar melhor as contribuições
que a arte-mídia experimental oferece não apenas para o discurso
artístico, mas para a nossa intuitiva, emocional e consciente relação
com o mundo.

referências bibliográficas
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blishing, 2011.
BRYNSKOV, Martin; DALSGAARD, Peter; FATAH, Ava; POLD, S.B.; FOTH,
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TOFT, Tanya. Contemporary urban media art – images of urgency. a curatorial in-
quiry, tese de doutorado, Copenhagen, University of Copenhagen, 2017.

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Rodrigo
Gontijo

corpo em cena
reflexões sobre o cinema
em circuito fechado

As performances audiovisuais, em que a imagem é editada e ma-


nipulada no instante da apresentação e em ato performático, são
conhecidas também como live cinema. Podemos considerar essa
prática artística como o desdobramento de uma série de experimen-
tos audiovisuais que reinventaram o dispositivo cinematográfico
por meio de fluxos narrativos mais livres, subversivos, múltiplos
e híbridos, que não se preocuparam em contar histórias. No live
cinema, vemos o artista editar e manipular imagens em movimento
diante da plateia, sendo muitas vezes acompanhado por músicos
que executam a trilha sonora ao vivo.
Com quase duas décadas de existência, o cinema ao vivo se
desenvolveu a partir de diferentes modos e procedimentos de
produção de imagens, impulsionados pelo aparecimento de no-
vos softwares e aparatos tecnológicos, pelo resgate de propostas
desenvolvidas ao longo da história do cinema experimental e
expandido, e sobretudo com a incorporação dos repertórios dos
artistas envolvidos, que chegaram de diferentes áreas de atuação.
Os artistas que migraram do cinema e do vídeo costumam
carregar uma experiência muito maior em edição de imagens
do que programação, produzindo sequências visuais a partir de
cenas previamente organizadas e armazenadas no computador,
ao contrário daqueles que executam performances audiovisuais
generativas. Estes possuem geralmente formação em áreas per-
tencentes às ciências exatas, com interesse e facilidade na pro-
gramação de softwares. Existem também trabalhos em que o

o cinema e seus outros 183

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foco é o corpo em cena mediado por registros ao vivo, que são
editados durante a própria apresentação. Tais obras costumam
ser mais bem recebidas no âmbito das artes performáticas, ou
seja, teatro, dança contemporânea e performance.
Diante disso, o live cinema apresenta algumas características
específicas que se desenvolveram em locais distintos e bem defini-
dos. Todas essas possibilidades nos levam a apontar para três tipos
de tendências primordiais no processo de construção de imagens
ao vivo. São elas:

• Cinema do Banco de Dados, que parte da organização


ao vivo de composições a partir de materiais audiovi-
suais armazenados no computador do artista-performer;
• Cinema Generativo, em que códigos de programa-
ção executam determinada ação para gerar imagens
em movimento;
• Cinema em Circuito Fechado, realizado a partir do
registro de ações performativas que são editadas e
manipuladas em tempo real, com a projeção desse
material acontecendo simultaneamente.

Esta última qualidade se hibridizou com outras práticas artísti-


cas, sendo no âmbito das artes cênicas e performativas o local onde
observamos sua maior incidência. O Cinema em Circuito Fechado,
tema deste artigo, apresenta características fugidias, transitórias,
provisórias e temporárias, em que o ato da criação transcorre no
instante presente, estabelecendo uma relação direta com a câme-
ra, apontando, portanto, para um alto nível de performatividade.
Estes dois traços, performatividade e relação com a câmera, são
elementos fundamentais que determinam os aspectos estéticos
dessa tendência.

Dimensões estéticas do Cinema em Circuito Fechado


A performatividade, aponta Josette Feral, “não é um fim em si
mesmo, uma realidade concreta ou acabada, mas um processo. Ela é
uma construção (uma realidade como performance) e reconstrução
(reconhecimento intelectual das etapas dessa construção)” (Feral,
2009). No campo das práticas artísticas, esse conceito, que amplia
a noção de performance, “compreende também a ação, a atuação, a
vivência e a expressividade da experiência de troca e da relação
do público com a obra”. Portanto, a performatividade está ligada
diretamente ao instante da criação, uma ação de compor, preparar

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ou elaborar algo, incorporando os possíveis erros, desvios, riscos e
fracassos, o que proporciona uma reflexão sobre a própria criação
na iminência do acontecimento.
Assim, Feral conclui que “a performance é sempre ação, sempre
um domínio do fazer” e nela a performatividade é “marcada pelo
princípio da ação, ou seja, é o processo mais que o objeto pronto”.
Jacques Derrida reintera sobre o “valor de risco” e o “fracasso” como
elementos constitutivos da performatividade, portanto, esses elemen-
tos devem ser considerados como norma. Dessa maneira, quanto
maior o iminência do risco, maior o nível de performatividade.
Por se tratar de um cinema efêmero, mediado por registros
em circuito fechado, a decisão dos planos, enquadramentos e
movimentos de câmeras, assim como a escolha dos equipamentos
de registro, torna-se fundamental para a fruição poética e estética
do trabalho. Em alusão aos trabalhos de site-specific, podemos re-
fletir sobre a condição dessas performances para tela como obras
em camera-specific. As imagens captadas, a partir da montagem e
da composição por mixagem em intensidades e temporalidades
distintas, produzem novos significados e sentidos.
No cinema em circuito fechado, o “fora de campo” é visível ao
público e assim estabelece uma relação direta com o que é enqua-
drado pela câmera. Os atores, performers e dançarinos, ou, ainda, os
elementos manipulados diante do aparelho de registro dialogam
com o que está “fora de quadro”. Para Philippe Dubois (Dubois,
2004), o espaço off é a lógica espacial do cinema que ajuda a de-
terminar o que está enquadrado na constituição do plano (bloco
decupado no espaço e no tempo) como elemento fundamental
que determina a lógica narrativa da montagem. Essa tendência do
live cinema retira a importância do espaço off como peça-chave da
linguagem cinematográfica em benefício de uma proposta mais
abrangente e totalizante.
Vale ressaltar que cinema em circuito fechado é a única ten-
dência do live cinema em que todas as etapas da produção de
imagem – captação, edição e projeção – são incorporadas ao ato
performático. A ação acontece diante da câmera, que executa uma
tomada fazendo com que o registro sofra mediações tecnológicas
promovidas pela montagem e pela composição de imagens. Esta-
belece-se, nesse instante, uma relação entre videoartista, performer e
espectador na criação de uma imagem enquanto ato, que substitui
a ideia da representação. Todas as ações para esse tipo de realização
audiovisual transcorrem no instante presente, da captação à edição
final, tornando-o um cinema mais efêmero, imprevisível e cheio

185

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de riscos, podendo o trabalho ser bem-sucedido ou simplesmente
fracassar diante da plateia.
Diferente de uma produção cinematográfica convencional,
todos os planos são realizados em um único take e o modo como
o artista se coloca em cena é fundamental. Ele precisa adquirir
um estado de prontidão, estar concentrado e em um alto nível de
atenção para realizar todas as etapas da construção audiovisual e
lidar ainda com as imprevisibilidades da tecnologia, pois não terá
chance de refazer seu take.
O live cinema, a partir de sua particularidade performativa,
reconduz e desloca as características de arquivo do cinema, do
seu registro final enquanto memória, produzindo apenas vestígios
de uma obra fugaz, efêmera e momentânea que inicia e acaba no
decorrer da apresentação.
O circuito fechado no meio audiovisual refere-se a uma traje-
tória que a imagem estabelece dentro de um percurso previamente
determinado, em que o registro e a exibição acontecem de manei-
ra simultânea dentro de um espaço restrito, estabelecendo uma
correlação quase que imediata entre a captação e a visualização.
O que difere as instalações em circuito fechado realizadas
no âmbito das artes visuais, como os precursores Nam June Paik
e seu “TV Buddha” (1974) [ fig. 1 ], Bruce Nauman com seu “Video
Surveillence Piece” (1970) [ fig. 2] ou Yoko Ono com seu “Sky TV”
(1966) [ fig. 3] dos trabalhos de live cinema em circuito fechado é
que, entre a câmera e o projetor, encontra-se a montagem, uma
travessia das imagens que proporciona
outras modalidades de funcionamento
e agenciamento das informações.
Esta proposta de cinema ao vivo in-
corpora desde os conceitos da montagem

2 3

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clássica, centrada na continuidade da narrativa visual, até as expe-
rimentações abertas pela revolução eletrônica e digital.

Montagem clássica no cinema em circuito fechado


No espetáculo “El Agitador Vórtex” (2014) [figs. 4 e 5], Cristina
Blanco realiza um filme ao vivo sobre uma diretora que gostaria
de fazer um filme. Blanco manipula a câmera, posicionando-a em
ângulos estratégicos, muitas vezes fazendo-se valer de trucagens,
muitas delas desenvolvidas por George Méliès ainda no tempo do
primeiro cinema. Com a câmera colocada na posição vertical, a atriz
deita-se no chão sobre um fundo pintado que acentua a perspectiva,
para assistirmos a personagem do filme pendurada em um prédio,
prestes a cair. Em um outro instante, vemos uma maquete de pré-
dios ser pisoteada pela pé de um suposto Godzilla. Com escalas
reduzidas, uma máquina de fumaça e uma fotografia ao fundo para
compor a paisagem, assistimos a tudo isto ampliado pelo registro
da câmera, como se fosse a destruição de um gigantesco monstro
em um filme de ficção científica.

4,5

A artista espanhola domina diversos gêneros cinematográficos


para realizar um cinema em circuito fechado com roteiro mirabolante
sobre uma jovem ninja prometida pela mãe a um rico joalheiro, com
guerra civil, reinos distantes, monges e monstros destruidores. Tudo
isso culmina em um número final inspirado nas comédias musicais.
No espetáculo da companhia catalã Agrupación Señor Serra-
no, três performers se desdobram em cena para abordar uma das
maiores caçadas da história através de maquetes, soldadinhos de
chumbo, carros e helicópteros de brinquedos ampliados pela câme-
ra, juntamente com atuação, música e narração em off. São todos
esses elementos que compõem “House in Ásia” (2014) [figs. 6 e 7],
um cinema de ficção ao vivo e em circuito fechado. É a partir,

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sobretudo, da decupagem clássica com muitos closes, campo e
contra-campo e visão subjetiva que assistimos a um western pop
que mescla realidade e fabulação aos eventos que seguiram após
o ataque do 11 de setembro e a intensa busca que se deu a um dos
homem mais procurado do século XXI, Osama bin Laden.

A dimensão experimental do Cinema em Circuito Fechado


Outra vertente do cinema em circuito fechado, já distante
do universo cênico e teatral, são as performances para tela que
incorporam experimentações da linguagem audiovisual a partir
da mixagem de imagens, acumulando verticalmente, dentro do
mesmo plano, temporalidades distintas do registro, incorporando
atrasos ou delays, com velocidades variadas. Tudo está ali sobreposto
ao mesmo tempo e no mesmo quadro.

Assim como a montagem do cinema em circuito fechado


no âmbito teatral organiza-se a partir de uma sucessão de planos
que contam uma história, a mixagem videográfica, que costuma
acontecer no âmbito da performance, apresenta de uma só vez a
simultaneidade da imagem multiplicada, composta e recomposta.
Utilizando-se de bolas, papéis, fotogramas e poeira em frente
a uma câmera a pino (zenital) e de alta definição com uma lente
macro, o artista francês Yroyto desenvolveu a performance “Eile”
(2009) [figs. 8 e 9]. Microfones de contato são colocados próximos
à mesa de luz onde as ações acontecem, captando os sons emitidos
pelos objetos manipulados e incorporando-os à trilha. As imagens
se distanciam do real, tornam-se mais abstratas e borradas por
conta das sobreposições e da velocidade baixa de captura. Assim
como nos outros exemplos citados, o cinema produzido em “Eile”
é efêmero e se aproxima dos efeitos artesanais produzidos pelos
primeiros cinemas e pelos chamados Liquid Light Shows, em que
líquidos coloridos em movimento – água, leite, óleo e tintas – eram
colocados dentro de recipientes de vidro sobre retroprojetores.

188 Rodrigo Gontijo

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Em “Tabuleiro: 2 ou + pretextos poéticos” (2014), os artistas Aline
Santini, Dudu Tsuda, Edith Derdyk, Lua Tatit e Rodrigo Gontijo
propõem uma articulação performática entre cinema em circuito
fechado, música, artes plásticas e dança. Com uma instalação com-
posta por 96 empilhamentos de papel de alturas variadas, uma nova
topografia é criada para a movimentação da performer, que provoca
instabilidades nos deslocamentos por esse inóspito território. O
espaço é mapeado por quatro câmeras com visão infravermelho
que registram a movimentação do corpo, juntamente com de-
senhos criados ao vivo e cordas e martelos do piano que vibram
e ecoam durante a execução da trilha sonora. O vídeo promove
outros pontos de vista, muitas
vezes com a sobreposição de dois
ou mais planos com transparên-
cias em intensidades diferentes,
que em camadas estratificadas ge-
ram uma multiplicação da visão.

10

“Eile” e “Tabuleiro” propõem interferências aos deslocamen-


tos habituais de objetos e performer produzindo novos arranjos e
habilidades com movimentos desnaturalizados e únicos que só
podem existir mediados por softwares de edição em tempo real.
Vislumbramos outras maneiras do corpo estar e se mostrar em cena.

Conclusão
O cinema em circuito fechado atualiza a origem da palavra
vídeo, que está ligada ao ato de olhar, uma visão que acontece no
presente. Segundo Philippe Dubois, a palavra video, sem acento,
é no latim a conjugação do verbo “ver” na primeira pessoa do
presente. Videre significa “ver”, e video, “eu vejo”.

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Nessa prática artística que se constrói de maneira urgente,
imediata, simultânea, observamos produções intensas e cheias de
vigor que vêm ganhando novos espaços em mostras de artes visuais,
cênicas, performáticas e de dança contemporânea, apontando, assim,
para novas formas de experiência que configuram e reconfiguram
as relações entre performance e audiovisual.

imagens
1 “Sky TV”, Yoko Ono, 1966.
2 “TV Buddha”, Nam June Paik, 1974.
3 “Video Surveillence Piece”, Bruce Nauman, 1970.
4 e 5 “El Agitador Vórtex”, Cristina Blanco, 2014.
6 e 7 “House in Asia”, Señor Serrano, 2014.
8 e 9 “Eile”, Yroyto, 2009.
10 “Tabuleiro: 2 ou + pretextos poéticos”, Aline Santini, Dudu Tsuda, Edith Derdyk,
Lua Tatit e Rodrigo Gontijo, 2014.

referências bibliográficas
CARLSON, Marvin. Performance – uma introdução crítica. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
DUBOIS, Phillippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FÉRAL, Josette. Performance e performatividade: o que são os estudos
performáticos? In MOSTAÇO, Edélcio; BAUMGÄRTEL, Stephan;
COLLAÇO, Vera; (orgs.) Sobre performatividade. Florianópolis: Letras
Contemporâneas, 2009.
FISCHER-LICHTE, Erika. Estética de lo performativo. Madrid: Abada, 2011.
GONTIJO, Rodrigo. Filmes em atos performáticos – do cinema expandido
ao live cinema. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). O ensaio no
cinema. São Paulo: Hucitec, 2015.
_______. Obras e procedimentos – uma análise dos cinemas ao vivo. TECCOGS
– Revista Digital de Tecnologias Cognitivas (PUC-SP) -- n. 6, 2012.
KELLEIN, Thomas. Yoko Ono: between the sky and my head. Colônia: Verlag
der Buchhandlung Walther König, 2008.
LEE, Sook-Kyung. Nam June Paik. Londres: Tate Publishing, 2010.

190 Rodrigo Gontijo

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entrevistas
do VJ ao
live cinema
um breve recorte do audiovisual
expandido no Brasil

VJ, live cinema, videomapping e perfor- específicos na cena do audiovisual


mances audiovisuais ao vivo. A partir de expandido. Assim surgiu uma conversa
quatro entrevistas com artistas e pesqui- com Raimo Benedetti, Eduzal, Roberta
sadores, traçamos aqui um breve panora- Carvalho e Patrícia Moran, que comen-
ma da cena do audiovisual brasileiro, que tam sobre campos de atuação que se
começa no final dos anos 1990, no âmbito complementam, cada qual com sua lin-
do entretenimento, consolida-se no início guagem e inserção em circuitos distintos.
do século XXI, em que parte dela se torna Os coletivos foram fundamentais
atrativa ao mercado, enquanto outra para o fortalecimento da cena do VJ no
ganha espaço e legitimidade em festivais Brasil. Eduzal, ex-integrante do Bijari,
e galerias. Trata-se de um percurso longo, desenvolveu trabalhos comerciais tão
cheio de atravessamentos, com uma intensos quanto suas obras autorais,
cena muito forte no eixo Rio-São Paulo, sempre com a mesma desenvoltura. Já o
porém com festivais e focos de pesquisa artista Raimo Benedetti, por meio de suas
e resistência em diversas cidades do oficinas de vídeo experimental, realiza
Brasil. Organizado em três eixos princi- performances audiovisuais estruturadas
pais, este texto funciona como uma espé- a partir de uma baixa tecnologia, muitas
cie de introdução para aqueles que se vezes conectadas a procedimentos
aproximam desse campo e um espaço de do pré-cinema e do primeiro cinema.
memórias de um território já estabelecido Fugindo do eixo Rio-SP, temos a Roberta
com sua própria história. Carvalho, artista paraense, idealizadora
A convite do grupo AVXLab, orga- e curadora do Amazônia Mapping, um
nizadores do “Cinema e seus Outros”, festival que se preocupa com a forma-
detectamos alguns pesquisadores e ção de público na região Norte. E para
artistas que representam expoentes amarrar tudo isso, trazemos um olhar
acadêmico da pesquisadora Patrícia
Moran, uma das primeiras pessoas a
1 Nota dos Organizadores: caberia citar
coletivos que surgiram no início dos anos 2000, escrever sobre a cena do VJ no Brasil,
mesmo período em que o Bijari iniciava suas legitimando uma prática artística que
apresentações ao vivo, como o Embolex (SP), já foi vista com muita desconfiança.
Media Sana (Recife), o Feito a Mãos, que viria a
se apresentar com o nome FAQ (Belo Horizon-
te), ou o MM Não é Confete (SP), entre outros. Rodrigo Gontijo

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ONDE TUDO COMEÇOU criada a Trakitana, que o Alex Marinho,
Patricia Moran Eu acho que as que era um dos sócios, mentores do
humanidades são muito mal traba- grupo e engenheiro, desenhou pra
lhadas no Brasil e aí, em função disso, mim, e fez um dispositivo que tinha
poucos cursos te dão a noção de que uma câmera ao vivo e que eu poderia
a arte é um lugar possível de existên- fazer uma manipulação de imagens em
cia. Eu fiz dois vestibulares, o primeiro tempo real. E ali a gente bolou vários
foi Fisioterapia, o segundo, História, esquemas e acabou constituindo a
e em História eu achei o audiovisual. Trakitana do jeito que ela é mesmo, no
O cinema, na época, era o cinema de formato de um table top.
película, antes do vídeo, e aí, como Eu achei aquela experiência interes-
você não vai filmar, é difícil, você sante e comecei a desenvolver esse
começa fazendo mostra. E eu sem- trabalho com a Trakitana, que até
pre tive esse interesse, entendeu? Na hoje eu desenvolvo. Envolve o vídeo
verdade, né, eu, como pessoa que é de analógico, a manipulação de hardware.
Belo Horizonte, na faculdade em que E aí, quando eu fui um pouco crista-
eu estudei, na FAFICH, Faculdade de lizar, transformar aquilo num trabalho
Filosofia e Ciências Humanas, tinha um pessoal, coincidiu com o convite do
grupo muito grande de pessoas que MAM em 1999 pra dar aula de um cur-
lidavam com artes. Todo mundo fazia so chamado “Videoclip experimental”,
tudo, então, assim, eu fiz backing- que acabou virando o “Vídeo experi-
-vocal, fanzine, escrevia sobre rock’n mental”, que é o curso no qual eu pude
roll, assistia filme, sabe? A cidade era levar essa experiência da Trakitana
pequena o suficiente pra você ver tudo pra dentro da sala de aula, dividir com
e não perder nada. De repente, uma o grupo. Como que a gente poderia
amiga comprou uma câmera de vídeo constituir uma linguagem? Eu encon-
VHS, aliás, é até engraçado, a primeira trei um campo fértil pra criação, pra
vez que ela comprou, o pai comprou ação coletiva, estudantes que têm uma
na Europa, então era PAL e aí era disponibilidade. Pra mim se criou uma
aquela confusão... conclusão... aí, cê condição ideal, até hoje me mantenho
sabe? Começa... E o [Instituto] Goethe satisfeito, ativamente produzindo den-
tinha uma câmera VHS... aos poucos tro desse contexto. Ao longo desses
você vai mexendo... anos eu tive o privilégio de ter pessoas
incríveis e de muitas áreas; acho que
Raimo Benedetti Em 95, mais ou são mais de mil aluno.
menos, eu comecei a trabalhar no
grupo de circo Nau de Ícaros como Eduzal A gente era amigo da facul-
videomaker, fazendo os registros dos dade e falava de fazer uns trampos junto,
espetáculos, fazendo teaser, esse tipo de fazer uma cenografia. Começamos a
de coisa, e fui incorporado no grupo. fazer cenografia antes de ter o Bijari. Aí
Passei a fazer um espetáculo chamado o negócio foi tomando um volume, foi
“Quase Uma ”, e pra esse espetáculo foi crescendo, foi uma coisa orgânica,

192 entrevistas

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a partir de uma demanda econômica e espaços de arte: o pouco acesso do
de trabalhos… Todo mundo ali era da público. E daí eu comecei a experimen-
FAU-USP, e começou a ter essa neces- tar vídeos que eu fazia sob a forma de
sidade de ter um lugar pra trabalhar, intervenção, pensando na colocação
porque a gente não tinha um lugar deles no espaço da rua, no espaço
grande, um galpão, não tinha um lugar urbano. E aí começou a coisa de utilizar
em que você podia entrar e fechar na o projetor, de experimentar a projeção
hora que quisesse. Se a gente tinha que em diferentes superfícies e de, também,
fazer umas coisas grandes, ia se encon- pensar nisso relacionado à cidade e a
trar na FAU, ficava o fim de semana lá, essa coisa de também trabalhar com o
não tinha telefone, não tinha comida, projetor. Mais ou menos em 2004 para
enfim, era USP, né? E aí a gente foi pra 2005 foi quando eu consegui ter melhor
um crescimento orgânico: começamos acesso a projetores, porque era uma
a fazer cenografia, aí não pagava bem, coisa meio rara em Belém, muito cara
aí fomos fazer design e web. E foi esse e tal… Comecei a conseguir empresta-
o começo, a gente começou a trabalhar do de instituições de arte que tinham
com os amigos de faculdade, fazia uns adquirido projetores, e isso me abriu
trampos juntos, e precisou alugar uma uma janela pra pensar a coisa da arte/
casa. Aí, na hora que foi para alugar tecnologia no meu trabalho e tentar
a casa, a gente chamou mais gente incorporar outros elementos dessa lin-
pra dividir o aluguel. Pra alugar a casa, guagem. E comecei a também perceber
começamos com dez pessoas, era os desafios de estar no Norte e traba-
tudo assembleia. A gente se chamou lhar com esse tipo de linguagem.
de “Bijari” porque a casa ficava na rua
Bijari, ali atrás da Vila Caxingui, no pé O PONTO DE VIRADA
do Morro do Querosene. Patricia Moran Acho que tem duas
coisas: uma primeira é que eu sempre
Roberta Carvalho Então, na verdade tive um lado pop, né? Pop, rock e ex-
eu comecei os meus percursos pela perimental, sabe? E eles não brigam. Eu
imagem a partir do texto, porque na acho que o VJ, principalmente no início,
adolescência eu tive um interesse ele trazia isso, sabe? É... um lado ex-
muito grande por literatura e comecei a perimental, um lado pop. Por exemplo,
estudar isso, inclusive entrei num curso a questão das projeções. Se a gente
de Letras. Comecei a experimentar for pensar, é de uma natureza muito
a poesia visual, usando a palavra e a diferente, mas, por exemplo, o Eder
imagem, isso em 2002, mais ou menos. Santos já fazia isso, de uma maneira
E, a partir disso, comecei uns traba- mais teatral, não é da mesma natureza,
lhos de fotografia e, enfim, comecei entendeu? E eu tive minha grande sor-
a ser selecionada em salões de arte te, e Belo Horizonte, de novo, foi muito
em Belém, comecei a migrar pro vídeo. a partir de Belo Horizonte, onde o povo
E tinha uma coisa que me deixava foi contaminado pelo vídeo... Foi, né?
um pouco reticente em relação aos Não sei como é que está agora... Tem

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dez anos que eu não moro lá mais, en- Raimo Benedetti O Redbull real-
tão nem sei como é que é... O pessoal mente foi um evento, uma espécie de
do Feito a Mãos (FAQ) estava tocando um turning point. Dá um protagonismo
aqui, fazia parte daquele evento do pra esse profissional, coloca ele em
Duva, o “Redbull Live Images”1, eu fui primeiro plano, e deu pra ver durante o
lá gravar pra eles e era uma cena que evento um direcionamento das múlti-
eu não conhecia, aliás, ela não existia, plas potencialidades que essa nova arte
né? Ela estava se constituindo... Eu vinha ali a oferecer. Nessa ocasião, eu
achei uma loucura no dia. Eu estava trabalhei com imagens pré-gravadas,
acabando meu doutorado, tem umas com uma manipulação muito simples,
paginazinhas disso no meu trabalho, mas com um potencial de som muito
e foi muito impressionante pra mim a forte. Eu dancei no meio do público.
experiência de ver. Porque, diferente Eu provoquei já com o meu corpo. E ali
do que a gente tem hoje em dia, foi foi uma cena que se formou naquele
algo bastante utópico do Duva, da Tati festival, uma cena muito interessante,
Lohmann, a maneira que eles monta- muito excitante de ver. Tantos projetos
ram. Eles tinham uma verba da Redbull, diferentes sob o mesmo guarda-chuva,
né? E fizeram o trabalho movidos por e todos eles tendo em comum esse
paixão, por ideologia, por constituir protagonismo do produtor audiovisual
uma cena, sabe? Eu tô falando isso em primeiro plano. Eu lembro que logo
porque o galpão estava muito bem depois da minha apresentação veio o
montado. Você tinha uma quantidade Alexis, já com uma tonelada de equi-
grande de projetores. A diferença de pamento. Ele veio com um carrinho
escala entre as telas me impressionou de obras, com um monte de PCs, e o
muito. Porque isso alterava a qualida- trabalho dele era hipersincronizado
de do movimento, a relação da gente com o beat da música. Ele colocou um
com o movimento, o entendimento da bate-estaca marcando as imagens. E o
velocidade. Me deu um negócio... pra meu era completamente diferente. Eu
mim foi a grande motivação, enten- levei duas fitas mini-DV que eu colo-
deu? Acho que também por causa da cava em dois decks e ia fazendo uma
heterogeneidade das propostas. Ali fusão, acelerando entre elas, e usando
estava o Palumbo, o Spetto, o Feito a os próprios recursos da mesa, que já
Mãos, o próprio Duva, o Embolex, o estava lá instalada, disponível pra todo
Bijari, o Raimo. mundo, como uma forma de manipula-
ção. Então o Redbull teve essa força de
mostrar essas múltiplas potencialidades.

1 Nota dos editores: “Redbull Live Images” foi


um evento criado em 2002, por Luiz Duva, Ta-
Eduzal Era um campo bem louco que
tiana Lohmann e Fabiana Prado, que aglutinou estava abrindo e tinha toda a possibi-
vários expoentes de um período embrionário lidade ali. Todo mundo ali no Bijari já
da cena dos VJs, que logo depois seguiriam ca-
minhos distintos, em aproximação com outras
dominava as ferramentas, fazia o de-
formas do audiovisual ao vivo. sign, fazia a coisa em flash, tinha essa

194 entrevistas

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noção da animação, e aí partimos pro Roberta Carvalho Comecei a sentir
VJ... O primeiro trampo significativo os desafios e isso me motivou. O grupo
assim foi mesmo o “RedBull Live de artistas e parceiros com que eu fui
Images”, que juntou todo aquele crescendo junto, a gente sempre foi
movimento, que pegou uma geração muito de arregaçar a manga e fazer.
nascente, que tava começando, dando A gente tinha que fazer as nossas
os primeiros passos, aí... o Redbull coisas acontecerem, então a gente
pegou essa cena e deu esse cará- criava projetos, aprendemos a cons-
ter do mundo da arte pra essa cena truir projetos, enfim… Aprendemos a ser
que antes tinha. Porque antes era VJ, o “artista-etc.”… Aprendemos a fazer
era balada, era outra onda, música desde a criação dos trabalhos até a
eletrônica e entretenimento. A gente produção pra poder viabilizar a nossa
pode dizer que a gente foi muito bem- arte. Aí, em 2007, surgiu o Symbiosis,
-sucedido em fazer essa cena colar. meio que nesse caminho de experi-
Tanto é que hoje toda empresa que mentação de superfícies diversas da
vai fazer alguma coisa precisa encher cidade, pois Belém é uma cidade muito
de projetor, tem que fazer transmissão arborizada e foi um caminho inevitável
simultânea, um monte de telas, tem experimentar também nessa superfí-
que ter animação, tem que ter ceno- cie, mas foi muito a partir de uma falta
grafia, tem que ter isso, ter aquilo… A de espaço. Nessa época eu tinha um
gente acabou de ter Olimpíadas [2016], projeto chamado “Futuro do Pretérito”,
que, por corte de verba, foi totalmente que falava sobre os palimpsestos da
baseada em videomapping e projeção. cidade. E aí eu fui fazer uma apresen-
Tanto a abertura quanto o final, por tação desse trabalho a convite de uma
falta de gente, não tinha dinheiro pra associação, da Fotoativa, e daí não
gente [equipe], pra figurino, pra ade- tinha superfície, não tinha prédio, era
reço. Então encheram de projetores, um vão de um museu lá, que é a Casa
trouxeram 110 projetores do Japão (a das Onze Janelas, que tinha uma árvore
Panasonic trouxe, aproveitou e vendeu na frente, e aí eu decidi experimen-
metade aqui). Então, todos os video- tar com o projetor, fiz uma série de
mappings foram feitos por brasileiros, testes e comecei a experimentar nesse
todo o conteúdo brasileiro, toda a suporte. Mas já me impressionavam, e
operação. Só a operação pra ligar os impressionava as pessoas também, as
media servers, pra afinar os projetores, possibilidades dessa “tela”. Comecei
é que foi feita pelo pessoal de fora. a experimentar com partes do meu
Mas, em termos de conteúdo, geração corpo, com pessoas da minha relação
de conteúdo, foi totalmente brasileira. também. Até que em 2010 para 2011 eu
Teve alguma direção de arte, foi meio ganhei um prêmio da Funarte, “Prê-
híbrido, o Bijari fez algumas telas, o mio Amazônia Legal”, era um prêmio
Spetto com o United VJs operacionali- pequeno, e assim eu consegui viabilizar
zou toda essa operação da abertura, o um equipamento e decidi fazer alguma
Batman [Zavareze] fez o encerramento. coisa do outro lado do rio, na Ilha do

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Combú, que é uma ilha de ribeirinhos. que é que é isso? Uma bobagem. Lá a
Atravessei, fiz umas oficinas com as gente consegue reconhecer o misti-
crianças e montei essa ação, que são cismo, a fragilidade. Um Zé Agripino
as imagens mais conhecidas do proje- de Paula, com quem ele andava, um
to, que são esses ribeirinhos e tal. E aí maluco... Então, o Brasil não faz esses
o projeto ganhou uma outra dimensão, cruzamentos. As coisas são isoladas.
que é essa coisa da estética relacional. Então o que eu tenho feito atualmente
Até então, eu nem conhecia outras é uma série de entrevistas. Quando
referências de artistas que experimen- eu comecei a fazer essa pesquisa, em
tavam sobre árvores, de uma maneira 2002, eu já tinha feito algumas… Eu
diferente da minha, mas usavam isso estou querendo, junto da Ana Carvalho
como superfície. E daí eu entendi e do Marcos Bastos, fazer um esforço
que a singularidade do projeto está no sentido de criar um site de língua
nessa relação. Está na compreensão portuguesa, no primeiro momento. Em
dessa relação com essas pessoas, de um primeiro momento, lança em por-
torná-las visíveis, as questões delas, tuguês, no segundo momento, arruma
porque, de certa forma, elas são “invia- um patrocínio pra fazer a tradução da
bilizadas” dentro da cidade de Belém. parte escrita pro inglês. Pra gente ter
isso em inglês, porque aí a gente está
PROJETOS ATUAIS no mundo, entendeu?
Patricia Moran Eu tenho uma dívida
para comigo mesma e para com as Raimo Benedetti A história do pré-ci-
pessoas [dessa cena]. Eu venho pes- nema começa pra mim justamente pelas
quisando nos últimos não sei quan- aproximações que essas mídias ances-
tos anos... Estou querendo fazer um trais têm com o cinema experimental no
“fechamento” e um balanço… Porque quesito do desregramento, no quesito
não existe uma América Latina. Pode do cinema fora da tela, na questão da
existir um Hélio Oiticica, que viveu em precariedade ou do minimalismo... O
Nova Iorque. Não existe Brasil. A gente meu sonho de consumo realmente é ser
não existe. A gente não existe e a lanternista, que trabalha com a projeção
gente não fala sobre a gente. A gente de imagens e tendo ao lado dela um
não desiste e a gente fica disputando discurso que tenha um fundo historio-
territorialidade de conhecimento. E a gráfico. Tentando fazer isso de modo
gente não publica… O brasileiro não que o espectador perceba, durante
dá conta de gostar de um brasileiro, aquela apresentação, que na verdade
sabe? Você tem que gostar de um Brian eu estou emulando com tecnologia
Eno, né? Ou do Paik [Nam June], sabe? nova, com uma nova roupagem, um
Não interessa se aquela ideia do Brian tipo de espetáculo que existe ances-
Eno é relacionada, inclusive, com um tralmente e de modo documentado
pé muito forte em uma perspectiva desde o século XVII. Hoje o meu projeto
zen budista. O Brian Eno pode ser zen artístico é: como é que eu posso, por
budista, o Aguilar, “Ah! Não pode!”. O meio de performances, criar espetácu-

196 entrevistas

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los luminosos que tenham essa figura essa história, editou e projetou. A gente
do performer atuando em tempo real, montava nas ruas, criando o percurso.
manipulando imagens, num espetáculo Já existiam algumas pautas que a gente
de live cinema, e que possa, junto com queria, “a origem das mulheres”, “como
ele, trazer a força desse conhecimento, elas foram parar na zona”, “a natureza
dessa história? Que é essa história, um da profissão do sexo”, “o que era ser
pouco esquecida, que ainda não chegou uma boa profissional”, “as condições
às academias, que tem uma produção de trabalho”, “a condição de saúde da
historiográfica mais ou menos recente mulher”, “a condição de doença”. O
etc. Quero me juntar a esses pesquisa- importante nesse trabalho, e uma coisa
dores que estão no mundo fazendo, só que procuramos para nortear, é escutar
que fazendo de modo artístico tam- os “fantasmas” dos bairros, trazer esses
bém. Trazer isso para dentro do palco. “fantasmas” da cidade.
Não só na produção do conhecimento,
pelo conhecimento acadêmico, pela Roberta Carvalho A partir disso eu
escrita de texto, livro, atividades em comecei a pensar em fazer da Amazô-
que eu também venho me dedicando, nia um espaço de discussão e circula-
mas também artisticamente, como ção de arte e tecnologia. Eu tive vários
performer mesmo. encontros nesse caminho; por exemplo,
eu tive a possibilidade muito cedo de
Eduzal De um ano pra cá, eu montei ser assistente em alguns projetos, a
com a minha esposa, a Julieta Benoit, partir de um escritório de design que
o LigaLight, em que fazemos trabalhos eu tinha em sociedade com uma outra
de projeção móvel. Isso começou com artista, que na verdade era um ateliê.
a história de um carrinho de projeção O design era uma forma de a gente se
que se chama Bólido Luminoso, que é financiar e se manter na cidade, porque
um carro de projeção móvel, multimídia, não dá pra viver de arte em Belém…
que tem som também, e a gente anda E aí a gente atendeu na época, como
pela cidade sem fios, com uma bateria designer, o Vivo Arte.mov2, que foi um
que alimenta todo o sistema elétrico. projeto que o Lucas [Bambozzi] era
No ano passado, a gente fez um traba- curador e tal. E foi uma forma também
lho bem bacana que se chamou “As- de entendimento de como a arte/
falto Selvagem ”. Nós fomos para Belo tecnologia, no caso desse projeto do
Horizonte, em uma residência, e fica- Lucas, tratava a questão das mídias
mos hospedados na “zona” por um mês, móveis e mídias locativas. Como a arte/
no centro, na rua Guaicurus. E aí nós tecnologia poderia circular e como as
fizemos um trabalho de documentação coisas poderiam acontecer na cida-
da memória oral da prostituição de de também. E aí eu criei esse festival
rua de Belo Horizonte. A gente entre-
vistou 11 mulheres de diferentes faixas 2 Versão do festival Vivo Arte.mov realizada
em 2010 em Belém. O festival aconteceu de
etárias, diferentes tempos de vivência 2006 a 2012, com curadoria de Lucas Bambozzi,
na “zona”, e aí então a gente montou Marcos Bastos e Rodrigo Minelli.

197

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p
A
alguns anos depois, que é o festival
Amazônia Mapping, que apesar do
nome Amazônia Mapping é um festival
que agrega não só o videomapping
mas outras possibilidades da imagem
projetada inserida no espaço urba-
no. Não necessariamente projeções
mapeadas, é uma contradição que eu
trago pro festival, tanto que no ano
passado a gente fez um trabalho só
com espelhos, desenho e sol, que é
projeção, mas é completamente low-
-tech, enfim… Então foi meio que esse o
caminho de entender que a arte/tecno-
logia pode ser um suporte pra imagina-
ção, pra criação poética e pra inserção
disso na cidade.


Entrevistas realizadas por Rodrigo
Gontijo em agosto de 2017.

198 entrevistas

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processos
AVXLab

processos
AVXLab

processo
AVXLab
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sobre os
processos

A existência do AVXLab é uma deriva A qualidade do resultado atingi-


de diversos esforços, ideias e experiên- do vem confirmar a existência dessa
cias realizadas ao menos desde 20131 identidade estética, técnica e teórica
no sentido de fomentar o desenvol- que congrega os distintos ramos do au-
vimento do audiovisual expandido diovisual expandido; ao mesmo tempo,
brasileiro, e reflete também toda uma tornou evidente o quão trabalhoso é
trajetória dos seus organizadores e promover um espaço laboratorial verda-
participantes para o desenvolvimento deiro em que o evento ou resultado final
dessa cena cultural e artística. de uma obra acontece em função do
Como em toda a primeira edição, processo criativo, em que o experimento
esse projeto trouxe uma grande dose dê oportunidade ao erro, possibilitan-
de experimentação na formatação de do arriscar-se para além das fórmulas
sua metodologia. Seu resultado – conhecidas “do que dá certo” e que tão
ilustrado pelas fotos que seguem este usualmente regram aquelas “novidades”
texto – apresenta um embrião, com criadas para atender às demandas de
bastante personalidade, de um projeto última hora dos eventos da indústria do
que representa a amplitude das ex- espetáculo e do entretenimento.
pressões audiovisuais que buscamos Para adiante, parece evidente que
congregar e fortalecer. o AVXLab deve incorporar a postura
Nesse processo, os cinco artistas laboratorial e assumir a natureza de
residentes convidados realizaram três algo em contínua experimentação. Essa
obras: “Arapuca”, “CONTEXST - Context qualidade implica uma posição proposi-
Shapes Content” e “Protocolo”, cada tiva, de disputa e de mediação – princi-
um abordando um universo particular palmente a nível estrutural – junto aos
do audiovisual expandido. Tais univer- espaços e instituições consolidados.
sos contextualizaram e representaram A maioria dos colaboradores desta
o viés de cada tema abordado durante publicação participaram também da
os três dias de seminário. Esses temas edição do AVXLab de junho de 2017 no
estão respectivamente aprofundados CCSP e figuram no registro fotográfico
nas três sessões da primeira parte des- do projeto a seguir neste capítulo e no
te livro: “A experiência Física”, “De volta site http://avxlab.org.
ao essencial” e “O espaço informacio-
nal em dados”. Demétrio Portugal

1 Ano em que aconteceram os primeiros encon-


tros de articulação do ALTav - Rede do Audiovisual
Expandido (http://altav.org). Fotos: Miguel Salvatore.

200 processos AVXLab

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montagem

Acima, recepção do seminário e do


espaço expositivo do AVXLab no
CCSP. Abaixo e ao lado, processo
de criação da obra “Contexst” com
Mirella Brandi e Muep Etmo, e assis-
tência de Camille Laurent.

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Montagem da obra
“Protocolo ”. À direita,
Julia Rodrigues e Rayane
Vasconcelos; abaixo,
Augusto Santos e
Henrique Roscoe.

À esquerda,
montagem da obra
“Bony Ayax ”, com
Lucas Bambozzi,
Andrés Denegri e
Ihon Yadoya.

202 processos AVXLab

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obras dos residentes

ARAPUCA
Letícia Ramos

A instalação parte das investigações da artista


sobre o truque, a mágica e o ilusionismo. Nela,
projeções com técnicas holográficas instaladas
no jardim central do Centro Cultural São Paulo
se apresentam como relíquias eletrônicas de
uma experiência do futuro. Assim como as
armadilhas indígenas de mesmo nome encon-
tradas em matas e florestas para a captura de
animais, as esculturas suspendem na vegeta-
ção estranhas figuras eletrônicas.

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CONTEXST – CONTEXT SHAPES CONTENT
Mirella Brandi × Muep Etmo

Performance inédita, baseada em contextos


específicos, realizada ao vivo pela dupla de
artistas Mirella Brandi × Muep Etmo sobre con-
duções narrativas cinemáticas. A dupla utiliza
a luz e o som para gerar ambientes imersivos e,
assim, alterar a percepção de espaço-tempo e
recriar um lugar situado entre o real e o virtual.
É nesse lugar menos reconhecido que uma
partitura de sensações é arquitetada de modo
a envolver o espectador em uma experiência
audiovisual expandida, na qual o público é o
objeto central dessa narrativa.

204 processos AVXLab

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PROTOCOLO
Henrique Roscoe e Caio Fazolin

A instalação audiovisual generativa explora a


comunicação, o fluxo de informação e o controle.
Desenvolvida como parte do processo de resi-
dência do laboratório AVXLab, “Protocolo” é fruto
da pesquisa dos artistas Caio Fazolin e Henrique
Roscoe. Nessa colaboração inédita entre os dois
artistas, o evidenciamento de mecanismos de
controle por meio de sistemas digitais apresen-
ta-se como uma pequena sociedade composta
de microcomputadores que se relacionam
intermediados por regras rígidas de comuni-
cação. “Protocolo” propõe uma reflexão crítica
sobre o consumo tecnológico e informacional.

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206 processos AVXLab / ARAPUCA Letícia Ramos

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208 processos AVXLab / CONTEXST Mirella Brandi × Muep Etmo

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210 processos AVXLab / PROTOCOLO Henrique Roscoe e Caio Fazolin

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obras em diálogo

NATURA/CULTURA
Fernando Velázquez

“Natura/Cultura ” é uma série


iniciada em 2008 para pensar o
tempo e a difusa fronteira entre o
natural e o artificial. Da conjunção
desses tópicos em relação às nossas
habilidades perceptivas emerge a
pergunta: onde se situam os limites
entre a percepção e a ficção?

212 processos AVXLab

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BONY AYAX
Andrés Denegri

“Bony Ayax ” (2015) é um filme-ins-


talação com dois projetores super-8
que colocam em confronto uma
curta sequência fílmica. As imagens
registram o momento em que o ar-
tista vanguardista, pintor e fotógra-
fo argentino Oscar Bony (1941-2002)
atira com uma pistola 9 mm em
seus autorretratos fotográficos. Em
uma referência ao próprio suporte
fílmico, o tiro é o protagonista, em
um gesto de morte e destruição
que pode se ressignificar em um
instância criadora.

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seminário

O seminário, realizado em junho de


2017, aprofundou o diálogo sobre os
universos do audiovisual representados
pelas obras dos residentes.

214 processos AVXLab

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MESA 1
De Volta ao Essencial
Muep Etmo, Mirella Brandi,
Claudio Bueno, Lucia Koch
e Mario Ramiro. Lucas
Bambozzi [mediador]. MESA 2
Espaço Informacional
em Dados

Caio Fazoline, Henrique


Roscoe, Didiana Prata,
Fabio Malini e Javier Cruz
San Martín (Chile). Eduardo
Fernandes [mediador].

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MESA 3
A Experiência Física
Andrés Denegri (Argentina),
Fernanda Pessoa, Letícia
Ramos e Roberto Cruz.
Demétrio Portugal [mediador].

Mediadores: Lucas Bambozzi e


Demétrio Portugal. Ao lado,
Eduardo Fernandes (Eduzal).
Cordenadora: Tatiane Gonzalez.

216 processos AVXLab

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glossário

Novas expansões semânticas


O glossário que acompanha esta
publicação foi compilado e redigido
por Marcus Bastos para o Festival
Visualismo que ocorreu no Rio de
Janeiro em 2015.
No contexto do AVXLab, esse
conjunto de termos técnicos, alguns
deles ressignificados em função de
novas tecnologias e práticas, se mostra
pertinente como marco temporal de um
vocabulário que retrata a confluência
entre meios e indica novas expansões
semânticas, em novas abordagens, no-
vas sínteses e novas (des)construções.

“A arte contemporânea e os pro- Entre tantos detalhamentos que po-


cessos tecnológicos, muitas vezes deriam, cada um, gerar artigos ou livros
implicados em suas obras, movem-se inteiros, a opção por verbetes aposta
numa velocidade que nem sempre é em estabelecer um território comum, a
fácil acompanhar. Mesmo quem se- partir do qual podem ser debatidos, am-
gue bibliografias especializadas fica pliados, questionados, complementados,
em dúvida sobre certos conceitos, ou contrapostos etc. – talvez ao longo das
depara com palavras desconhecidas. próprias atividades do Visualismo.
O pequeno glossário elaborado Se é preciso começar de alguma
a seguir tenta cobrir algumas lacu- forma, que seja supondo que novos
nas, num ímpeto que tem algo de verbetes, novas abordagens, novas
didático, outro tanto de quixotesco sínteses e novas desconstruções são
e alguma possível clareza de que sempre mais importantes que os pontos
uma tarefa desse tipo tem grandes de fixação provisórios que às vezes as
chances de deixar novas lacunas riquezas de um campo demandam.”
ou estabelecer recortes meramente
provisórios. [...] Marcus Bastos, 2015

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Ao Vivo / Tempo Real: Ao vivo ou em ou em cima) que será usado em uma
tempo real são termos que se tornaram projeção em um edifício. O objetivo é
moeda corrente nos últimos tempos, ter uma imagem que serve de guia na
como consequência do uso frequente de criação de máscaras, recortes e demais
tecnologias que produzem um efeito decisões tomadas para articular o vídeo
de instantaneidade: alguém publica na projetado com os elementos arquite-
internet, e rapidamente várias pessoas tônicos que servem de superfície para
compartilham e/ou comentam; alguém a imagem. Para que o blueprint não
segue uma rota sugerida por um aplicati- contenha distorções, é necessário que a
vo que o ajuda a se deslocar pela cidade, lente ou objetiva da câmera fotográfica
e no meio do caminho uma informação seja equivalente à lente do projetor que
sobre o trânsito acompanha uma suges- será usado para enviar o sinal de vídeo.
tão de desvio; uma tragédia acontece em
um lugar distante, e minutos depois todos Cinema Experimental: A palavra expe-
já ouviram falar. Nesse contexto, surgiram rimental tornou-se parte do vocabulário
muitos trabalhos de arte que, como parte artístico como resultado dos diversos
do seu repertório estético, exploram as diálogos entre arte e ciência que ocor-
possibilidades de montagem ao vivo ou o reram em diferentes momentos. A ex-
uso de dados em tempo real. pressão cinema experimental é decor-
rente dessa longa história de criadores
Artemídia / Media Art: Termos como que divergem das normas vigentes em
artemídia ou media art resultaram do seu tempo. Ele é usado para falar de
crescente engajamento dos artistas uma série de filmes que não adotam os
com novas tecnologias. Especialmente a mesmos padrões de filmagem, narrati-
partir dos anos 1960, quando o número va, montagem, luz ou desenho de som
de tecnologias disponíveis aumentou de usuais na indústria cinematográfica.
forma mais rápida, as experiências de Enquanto esta procura repetir fórmu-
arte baseadas em tipos específicos de las de sucesso para garantir grandes
aparelhos multiplicaram-se, dando ori- bilheterias, o cinema experimental
gem a obras de arte que exploram su- supostamente estaria mais interessado
portes tecnológicos como os CD-ROMs, em renovar padrões de linguagem.
os ambientes 3-D e a computação
gráfica, entre outros. Diante da rapidez Cinema Expandido: No livro “Expanded
com que surgem novas tecnologias, às Cinema ”, Gene Youngblood afirma que
vezes foi usado o termo new media art os homens são condicionados por seu
para descrever desdobramentos dessas ambiente e que o “ambiente do homem
vertentes, além de outros mais específi- contemporâneo” é o que ele chama de
cos, como net art. rede intermídia — adivinhando, já nos
anos 1970, que o consumo de música, fil-
Blueprint (ou Guia de Mapeamento): mes e textos através de dispositivos (na
Foto feita com uma câmera no mesmo época, walkmans, TVs e terminais de video-
ângulo de foco do projetor (ao lado texto) viriam a se tornar rotina (hoje com

218 glossário

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celulares, tablets e computadores conec- Deriva / Psicogeografia: O filósofo Guy
tados à internet). A multiplicação e di- Debord, conhecido por criar a expressão
versificação de telas se intensificou desde sociedade do espetáculo, discute como
então. Hoje em dia, as pessoas se conec- os efeitos do ambiente geográfico (que,
tam a conteúdos audiovisuais em uma para ele, também inclui os espaços or-
intensidade inédita. É como se o mundo ganizados, como cidades e prédios) afe-
estivesse se transformando em uma tam as emoções das pessoas, eventual-
enorme superfície de projeção, como mente levando a uma banalização da
resultado das telas que todos carregam vida cotidiana. Para desautomatizar os
nos bolsos, ou que existem em salas de resultados desse processo, ele propõe
estar, no espaço público, em ambientes a prática da deriva: caminhar de forma
de lazer, nos escritórios, e assim por dian- “experimental”, em passagens rápidas
te, em uma lista potencialmente infinita. por ambientes variados, deixando-se
afetar pelas surpresas do percurso. As
Copyleft: Prática estabelecida pelos práticas de caminhada ganharam novo
usuários das redes para estimular a sentido com o surgimento das mídias lo-
reutilização dos conteúdos disponíveis cativas e dos processos de mapeamen-
(levando-se em consideração que as to da vida cotidiana que elas permitem.
tecnologias atuais permitem copiar,
colar e trocar arquivos com facilidade Ilha de Edição: Equipamentos capazes de
inédita). Ao contrário do direito autoral organizar de forma articulada o material
(copyright), o copyleft estimula uma bruto produzido por câmeras e grava-
ética de colaboração, compartilha- dores de som. É na ilha de edição que as
mento, gratificação, esforço coletivo diferentes cenas de um filme ou vídeo
e estabelecimento de bens comuns. ganham sua forma final para exibição. Os
Atualmente, no contexto do debate diferentes tipos de ilha de edição mudam
sobre novas formas de regulamen- a maneira como as pessoas montam seus
tação da propriedade intelectual produtos audiovisuais. As ilhas digitais
em ambientes de rede, a forma das mais conhecidas mantêm aspectos de
licenças ocupou o lugar das práticas suas versões antecedentes (moviola e
não regulamentadas de copyleft. Um sistema de edição linear), mas têm uma
exemplo é o Creative Commons (CC), maleabilidade de recursos cada vez
concebido pelo advogado Lawrence maior. A mudança mais radical resultante
Lessig, visando padronizar os modos do uso de computadores na produção
de circulação de conteúdos nas redes. audiovisual é o surgimento de programas
O CC estabelece tipos de atribuição que permitem editar som e imagem em
de direitos autorais e patrimoniais dos movimento, com capacidade de exibir os
conteúdos disponíveis na rede, contri- resultados — permitindo tanto a visuali-
buindo para fomentar uma cultura de zação quanto a exibição em tempo real.
circulação de conteúdo menos restrita Uma das etapas conhecidas da produção
que a gerada pelas práticas tradicio- de filmes e vídeos é a chamada renderi-
nais de direito autoral. zação, em que as decisões do editor sobre

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cortes, efeitos e características das cenas recidos com teclados de música que, em
em que trabalhou são consolidadas no vez de notas, emitem valores numéricos,
formato final para exibição. Nos compu- que podem ser usados para disparar
tadores mais recentes, e em certos pro- sons ou cenas ao vivo, aplicar efeitos
gramas que mudam a forma de organizar ou controlar a velocidade de certas
o material usado, esse processo torna-se sequências, além de uma série de outras
desnecessário, resultando em formatos de possibilidades (restritas à imaginação e
cinema ao vivo. aos limites das linguagens de progra-
mação usadas para essa finalidade). Há
Intervenção Urbana / Public Art: vários tipos de controladores, alguns
Engajamento dos artistas em espaços deles feitos pelos próprios artistas de
urbanos, para criar obras efêmeras que forma quase artesanal, com funciona-
procuram tensionar aspectos de uma mento específico para suas próprias
determinada região. É um tipo de obra necessidades.
site-specific, mas, em vez da construção
de estruturas, são propostas dinâmicas Live Act / Live Cinema / Live Visuals:
que atuam no lugar escolhido. Apesar de Conforme a expressão Ao Vivo / Em
não existir uma linha rígida de separa- Tempo Real, o termo live (ao vivo) tor-
ção, muitas vezes o termo site-specific nou-se difundido e onipresente hoje em
acaba associado a obras de maior porte dia. Essa tendência gera uma série de
e fisicalidade, ao passo que o conceito termos associados, como live act (que
de intervenção urbana remete a proces- pode ser traduzido livremente como
sos mais efêmeros e imateriais. Public “acontecimento ao vivo”), live cinema
art (arte pública ou arte no espaço pú- (cinema ao vivo) e live visuals (execução
blico, em tradução mais adequada) é um ao vivo de elementos visuais, para com-
conceito que assume um caráter mais por o ambiente em uma casa noturna
geral, que engloba os diferentes tipos ou o cenário de shows pop, peças de
de atuação artística na esfera pública. teatro e/ou espetáculos de dança).
Essas práticas têm em comum o uso de
Interfaces: O termo, que ficou conheci- equipamentos que permitem incorporar
do a partir das interfaces gráficas (GUI elementos gerados ou alterados em
– Graphic User Interface), com as quais tempo real a uma composição audiovi-
os usuários de computador se relacio- sual — câmeras que filmam elementos
nam para acessar os sistemas opera- do palco, microfones que capturam o
cionais, também pode estar associado a volume de certos sons e usam o resul-
dispositivos que expandem, para fora do tado para alterar efeitos previamente
computador, o acesso a recursos de ma- programados ou mesmo sensores que
nipulação de determinados softwares. É colhem informações de um espaço.
esse o caso de interfaces que permitem
controlar certas características de som Lumens, ANSI : Medida padronizada pelo
ou imagens em movimento, como os American National Standards Institute
controladores MIDI. São aparelhos pa- (ANSI) para aferir a saída de luz de

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projetores. Quanto maior o valor em ANSI culturas que os utilizam. Muitos desses
Lumens, maior a luminosidade, o que pensadores estudam a maneira como
nem sempre significa maior qualidade. essas mídias geram diferentes padrões
Um valor mais alto em ANSI Lumens sociais e culturais, conforme elas se
torna o projetor adequado para espaços tornam dominantes ou secundárias em
mais claros, porém características como determinadas épocas. É nesse contexto
contraste, capacidade de abertura de que surgem termos como cibercultura
lentes (equivalente ao termo inglês throw (época afetada pelo uso disseminado
distance) ou quantidade de pixels que dos computadores) ou cultura da mobili-
a tela apresenta (resolução) também dade (época afetada pelo uso amplo de
afetam o resultado final da projeção. celulares e tablets).

Mapeamento: Em função da popula- Mídias Interativas: Mídias que permi-


rização de tecnologias para consultar, tem escolhas por parte de seus usuá-
customizar ou mesmo criar mapas rios, que acabam influenciando o seu
(celulares com GPS, sites que permitem funcionamento. Não faz tanto tempo
anexar fotos a um ponto num mapa que a única forma de acessar certos
etc.), as práticas de mapeamento, antes conteúdos era baseada em formatos
restritas a especialistas, tornaram-se de transmissão unidirecional, como um
comuns entre pessoas de todos os tipos. programa de rádio em que a equipe da
No início desse processo, surgiram vá- empresa de comunicação escolhe o que
rios artistas interessados em explorar o vai ser veiculado ou um programa de
uso de diagramas, esquemas, mapas ou TV criado por uma produtora especia-
práticas de mapeamento em suas obras. lizada. Nesses casos, a única opção do
Um aspecto sensível das práticas de público era trocar de canal. Com os
mapeamento é que elas reúnem gran- computadores surgiram recursos como
des quantidades de informações sobre menus e links, que tornam os processos
pessoas, grupos ou lugares, o que pode de comunicação mais compartilhados.
ser usado de forma ideologicamente Existe uma grande polêmica entre
questionável ou polêmica. estudiosos do tema sobre quanto um
usuário de sites ou aplicativos pode
Mídias: Os especialistas em comuni- realmente interferir em seu conteúdo, ou
cação e tecnologia costumam usar o até que ponto ele apenas escolhe, como
termo mídia para se referir a certos nos tempos do rádio e da TV, embora
dispositivos de armazenamento de acesse um cardápio de escolhas
informação ou aparelhos reprodutores radicalmente maior. O tema da inte-
de conteúdos de texto, áudio, imagem ratividade também aparece de forma
ou vídeo, destacando, assim, o fato constante na arte do final do século XX ,
de que se trata de equipamentos que cada vez mais interessada em encontrar
permitem processos bastante com- formatos em que a participação do pú-
plexos, que influenciam amplamente a blico é parte da obra (geralmente com
forma como funcionam as sociedades e objetivo de democratizar os processos

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de criação ou questionar o lugar passi- Paisagem Sonora: O conceito de paisa-
vo do espectador). gem sonora surge em função de duas
circunstâncias praticamente simultâ-
Mídias Locativas / Artes Locativas: neas verificadas durante o século XX:
Mídias locativas são aquelas que a música contemporânea começou a
contam com recursos para localização trabalhar com o som gravado como ma-
de seus usuários (por exemplo: um terial e também houve um uso cada vez
GPS ou um telefone celular). O fato de maior desse recurso em outros campos
eles informarem as companhias que da arte. Alguns pesquisadores falam,
operam seu funcionamento, de forma por exemplo, de uma virada acústica,
ininterrupta, sobre o lugar onde seus como resultado do questionamento
usuários se encontram leva ao ques- da dominância do visual nas artes. O
tionamento das consequências éticas, resultado disso são experiências com
jurídicas ou filosóficas desses recur- som gravado, que remetem às caracte-
sos. O que significa estar acessível o rísticas dos locais onde foram colhidos.
tempo todo e ter seus passos registra- Muitas vezes, são sonoridades que não
dos, produzindo um rastro sobre tudo têm necessariamente um caráter explíci-
o que alguém fez, todos os lugares a to de composição musical, criadas para
que foi etc.? Diante dessas questões, execução em espaços específicos ou
um grupo de artistas interessados nos combinadas a outros acontecimentos.
efeitos do uso desses aparelhos criou
uma série de obras cujo objetivo era Performance: O conceito de performan-
problematizar esse mundo de aces- ce é elástico. Tanto em seu surgimento,
sibilidade ampla e irrestrita, e com no início do século XX, quanto em seus
facilidade de localização inédita – as desdobramentos posteriores, a partir
chamadas artes locativas. dos anos 1960, os domínios da perfor-
mance abrangem um universo diversifi-
Net Arte: Experiências de arte que cado. Em Entangled, Chris Salter resume
buscam explorar as possibilidades a questão de forma bastante completa:
criativas da internet e das demais “No contexto artístico, onde geralmente
tecnologias em rede. Em função de se percebe, a etiqueta performance foi
particularidades de cada contexto ou uma estratégia usada para descrever
ênfases e recortes estabelecidos por ações, happenings e eventos desdobra-
diferentes especialistas, pode-se in- dos no tempo, emergindo do contexto
cluir a net arte no campo mais amplo das artes visuais, desde os anos 1950
da artemídia, como uma vertente es- aos 1980. Predominantemente, mas não
pecífica, ou em diálogo com práticas exclusivamente, na América do Norte,
de rede anteriores à internet, como a Europa, Japão e América Latina, artistas
chamada arte telemática, que explora e movimentos [...] invadiram ou despre-
tipos de comunicação em rede mais zaram as galerias de paredes brancas
antigos (por exemplo, as conexões com práticas temporais ou corporais,
via satélite). ‘desmaterializando’ o objeto artístico”.

222 glossário

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A maleabilidade do termo faz com que informação entre seus usuários, em vez
ele seja usado de forma composta, em do envio centralizado a partir de um ca-
expressões como performance sonora, nal emissor. O termo rizoma remete ao
performance audiovisual e outras. pensamento de Deleuze e Guattari: um
“rizoma não começa nem conclui, ele se
Performance Audiovisual: A performan- encontra sempre no meio, entre as coi-
ce audiovisual é um tipo específico de sas, inter-ser, intermezzo [...]. Não existem
evento em que a composição com sons pontos ou posições num rizoma como se
e imagens em movimento assume um encontra numa estrutura, numa árvore,
papel central. Historicamente, a videoar- numa raiz. Existem somente linhas”.
te e a performance sempre estiveram
próximas, como nas obras de Nam June Realidade Aumentada / Realidades
Paik com Charlotte Moorman. Em função Mistas: Tecnologias que permitem a
do recente interesse renovado nas pos- “inserção” camadas virtuais no mundo
sibilidades da performance audiovisual físico. Os exemplos mais conhecidos
ao vivo, o termo teve um ressurgimento. são os aplicativos para telefones
Apesar da diferença entre termos como celulares, que permitem ouvir sons ou
live cinema e performance audiovisual acrescentar imagens e vídeos a lugares
não serem sempre claras, é possível aos quais esse conteúdo foi associa-
propor que o primeiro seja mais específi- do, ou óculos especiais que fazem
co, restrito apenas a formatos em que o as pessoas enxergarem informações
improviso ou o uso de elementos ao vivo enviadas por rede através de suas
fazem parte da obra. lentes. O efeito é o de mistura entre
o mundo que está diante dos olhos, e
Redes (Broadcast, Peer-to-Peer, camadas que acrescentam novos níveis
Rizomática): A palavra rede ganhou sua de informação. Por esse motivo, alguns
conotação mais conhecida a partir do especialistas no tema também utilizam
final do século XIX, quando começaram o termo realidade mista (procurando
a surgir sistemas que permitiam a co- enfatizar o efeito de embaralhamento
municação remota (telégrafo, telefone, entre o real e o virtual resultante).
rádio, TV). Os primeiros exemplos de rede
baseiam-se em formatos de transmissão Rider Técnico / Lista de Inputs e Outputs:
em que um sinal é enviado para um ou Imagem que organiza na forma de um
múltiplos receptores, o que os especia- diagrama os equipamentos necessários
listas no tema consideram um proces- para a execução de uma projeção, com
so de irradiação de informação. Os suas respectivas especificações técnicas.
formatos mais recentes de rede (internet, O rider técnico permite entender de
telefonia celular) têm uma modularidade forma rápida e visual quantos projeto-
maior, permitindo formas de irradiação res, controladores MIDI, caixas de som e
descentralizadas ou rizomáticas, que outros dispositivos serão usados, e como
deram origem às chamadas redes peer- eles serão conectados entre si. Geral-
-to-peer, baseadas na troca direta de mente, essa imagem vem acompanhada

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de uma lista de entradas e saídas, que metrôs ou portas de prédios, vigiando o
descreve o fluxo de sinais de áudio e comportamento dos que passam diante
vídeo — saindo dos computadores e de suas lentes, esse tipo de prática
instrumentos usados pelos artistas e torna-se mais visível e cotidiano (o que
músicos encarregados pela execução leva Deleuze a formular a ideia de que
da projeção, passando por roteadores, essas tecnologias criam uma sociedade
mesas de som e roteadores de sinal, do controle). Tecnologias mais recentes,
para chegar na superfície de projeção e como telefones celulares ou aplicativos
no PA que ficam visíveis para o público. de rede social, ampliam ainda mais essa
capacidade de monitorar a forma como
Site-specific [Obra Específica do Con- as pessoas se comportam. Por esta-
texto]: O conceito de site-specific surge rem distribuídas por todos os lugares,
no âmbito da land art — vertente artís- diminuindo a distância entre espaços
tica dos anos 1960 que propõe obras públicos e privados, elas podem ser
resultantes do diálogo de seus mate- entendidas como sistemas pervasivos
riais ou processos com o território e o — termo que acabou sendo adotado
entorno que ocupam. Enquanto pinturas em textos sobre o assunto em tradução
ou esculturas podem ser exibidas em direta do inglês pervasive (que significa
diferentes museus e galerias sem pre- penetrante, espalhado, difuso).
juízo para seu entendimento, as obras
site-specific são criadas em função de Videoarte: Práticas artísticas em que
um espaço ou ambiente específico, em o vídeo é o meio principal. As práticas
diálogo com aquele contexto. Ao traba- videográficas apresentam uma ambi-
lharem assim, os artistas dessa vertente guidade que, na época em que surgi-
pretendem questionar o espaço do ram, não tinham muitos precedentes.
museu e as instituições tradicionais de Para Phillippe Dubois, por exemplo, o
exibição de arte. O termo específico do vídeo se movimenta “entre a ordem da
contexto também se refere a questões arte e da comunicação, entre a esfera
do lugar nem sempre associadas à fisi- artística e a midiática — dois universos
calidade, envolvendo aspectos sociais, a priori antagônicos [...]. Nesta bifurca-
políticos, históricos etc., que afetam a ção, o vídeo ocupa uma posição difícil,
construção de uma obra. instável, ambígua: ele é a um só tempo
objeto e processo, imagem-obra e meio
Vigilância / Sistemas Pervasivos: de transmissão, nobre e ignóbil, privado
O tema da vigilância refere-se às e público. Ao mesmo tempo pintura e te-
formas que a sociedade inventa de levisão. Tudo isso sem jamais ser nem um
espionar seus próprios membros, com nem outro, tal é sua natureza paradoxal,
o objetivo implícito de excluir do con- fundamentalmente hesitante e bifronte.
vívio aqueles que fogem à média dos Convém aceitá-la como um fato e con-
comportamentos esperados. Com o au- siderar esta ambivalência de princípio
mento de câmeras portáteis apontadas não como fraqueza ou deficiência, mas
para espaços de circulação em bancos, como a força mesma do vídeo. A força

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proveniente do fraco”. Essa caracte- supressão do olho como único canal de
rística do termo faz com que ele seja apreensão sensória para a imagem em
usado muitas vezes de forma composta movimento. Nesse contexto, insere-se
(videoclipe, videocenário etc.). de modo radical a ideia do corpo em
diálogo com a obra, a ideia da obra de
Videoguerrilha: O conceito de filmes arte como processo e do ato artístico
de guerrilha refere-se a produções de como abandono do objeto”.
baixo orçamento, criadas em situações
geralmente desfavoráveis, o que pode Videointervenção: Intervenção urbana
inlcuir desde o cineasta Ed Wood à realizada com projeção de vídeo no
cinematografia queer. O termo acabou espaço público, em fachadas de prédios
ganhando vida autônoma, e perdeu o etc. Como resultado da portabilidade
caráter mais político original. Exemplos e do barateamento dos equipamentos,
dessa diversidade aparecem no uso esse tipo de prática deixa de depender
indiscriminado do termo — que aparece de negociações para ocupar lugares
no nome do coletivo ativista Guerrilla destinados à exibição de vídeo no espa-
News Network, na ideia (paradoxal) de ço público ou da construção de estru-
marketing de guerrilha ou no título da turas específicas e começa a acontecer
mostra de projeções “Videoguerrilha”, de forma espontânea e efêmera, às
realizada anualmente em São Paulo. vezes com princípios ativistas.

Videografismo: Práticas de identida- Visual Music: Um tipo de composição


de visual de um produto audiovisual que explora as possibilidades abstratas
ou canal de difusão, surgidas como da linguagem audiovisual, com grande
resultado das possibilidades que as ilhas ênfase nas relações possíveis entre som
eletrônicas oferecem de manipular o e imagem em movimento. Muitos traba-
material audiovisual ou de misturá-lo lhos de visual music buscam constituir
com tipografia, elementos gráficos ou experiências de sinestesia (fenômeno
animação. Vinhetas, aberturas de filmes neurológico que leva certas pessoas a
e programas de TV ou letreiros de apoio misturarem seus sentidos, associando
em um telejornal são exemplos. palavras a cheiros, toques a sabores,
cores a sons etc.).
Videoinstalação: A palavra refere-se
a obras de arte criadas na forma de Visualismo: Segundo o Wikidicionário:
ambientes compostos de elementos aptidão do que se dedica particular-
videográficos e arquitetônicos, que mente às sensações visuais; do que
oferecem ao público uma experiência representa as sensações como ima-
relacional. Em “Extremidades do Vídeo”, gens visuais. Neste projeto, refere-se
Christine Mello afirma que a “videoins- também a percepções intelectuais,
talação compreende um momento auditivas, de contextos e de estímulos
da arte de expansão do plano da ima- de vários tipos, associados ou deriva-
gem para o plano do ambiente e da dos da visualidade.

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Visualização de Dados: Corresponde o que deu origem a festivais e mostras
a formas de organizar, através de pro- especializadas. O fenômeno é comum
cessos digitais, grandes quantidades em várias grandes cidades, como
de informação por meio de elementos Melbourne, Berlin ou Nova Iorque, e
visuais (gráficos, tabelas, diagramas). se desenvolve de acordo com as parti-
Como reação ao recente excesso cularidades locais. Existem casos curio-
informacional, a visualização de dados sos, como o de São Paulo, em que a lei
busca auxiliar o gerenciamento e a Cidade Limpa, ao proibir publicidade
compreensão da quantidade de dados de grande escala no espaço público,
que cresce exponencialmente e gera também freou os usos artísticos dos
um problema semelhante ao do exces- painéis eletrônicos.
so de lixo e as consequentes práticas
de reciclagem. Videomapping: Um desdobramento
das práticas ligadas aos usos não
VJ / Video Jockey: O termo surgiu em publicitários das telas urbanas (urban
clubes noturnos de Nova York que, na screens) é o chamado videomapping,
passagem dos anos 1970 para os anos em que projetores potentes são apon-
1980, passaram a ter programação de tados para fachadas de prédios ou
vídeo, em decorrência do surgimento de outras estruturas urbanas de grande
equipamentos vendidos a baixo custo porte, seja para projetar em empenas
por emissoras de TV que começavam a cegas, seja para criar composições
renovar sua base tecnológica. O termo que dialogam com sua arquitetura, sua
foi proposto em analogia ao DJ. Mais história ou o contexto de seu entorno.
recentemente, o termo VJ ganhou um
sentido mais amplo, como resultado do Wikimaps: Mapas on-line feitos com
surgimento de notebooks que permitem tecnologias colaborativas (conheci-
a manipulação ao vivo de cenas curtas, das como Wiki). Podem ser editados
loops, trechos de filmes e grafismos. coletivamente, com informações com-
Como resultado, surgiu uma segunda partilhadas sem atribuição de direito
geração de profissionais dedicados autoral, e engajamento no interesse
a criar elementos audiovisuais para comum. Ao contrário dos mapas cria-
projeção em clubes, festas, eventos e dos por empresas privadas, buscam
festivais especializados. um consenso sobre as informações
disponíveis. Um aspecto importante de
Urban Screens: São telas urbanas no mapas, e de plataformas Wiki em geral,
espaço público (da velha TV no bar da é seu caráter público. As informa-
esquina aos painéis eletrônicos com ções disponíveis não geram perfis ou
conteúdo geralmente associado a registros de atividades — que podem
anunciantes). Como resultado da dis- ser usados à revelia de seus usuários
ponibilidade desse tipo de equipamen- para as mais diversas finalidades, que
to, vários artistas se interessaram por vão do levantamento de tendências de
explorar outros usos (não publicitários), marketing à vigilância.

226 glossário

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biografia dos
participantes
desta publicação,
seminário, mostra e
processo laboratorial

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Andrés Denegri É artista visual e trabalha Eduardo Fernandes (Eduzal) Foi fundador
predominantemente com cinema, vídeoinstala- do Coletivo Bijari e atua junto ao Colabora-
ções e fotografia. Professor da Universidade Na- tório e ALTav. Tem extensa carreira como VJ,
cional de Três de Fevereiro, codiretor da Bienal em que atuou em festivais mainstream (Skol
da Imagem em Movimento – BIM e curador de Beats, Nokia Trends, Motomix, Heineken Green
cinema e vídeo do Museu de Arte Moderna Session, SWU) e alternativos (on-off, Satyria-
de Buenos Aires. [p. 09, 142-153, 202, 213, 216] nas, DF_Depois das Fronteiras, instante, entre
outros). [p. 10, 191-198, 216]
Caio Fazolin Artista audiovisual, progra-
mador e VJ (Micra). Bancos de dados, linhas Fabio Malini Professor na Universidade
de códigos e sistemas computacionais são Federal do Espírito Santo, onde coordena o
a fonte para a pesquisa que se desdobra Labic (Laboratório de Estudos sobre Imagem e
em performances audiovisuais generativas, Cibercultura), e é pesquisador de ciências de
instalações imersivas e interativas, e grandes dados, redes sociais e comunicação política.
projeções urbanas. [p. 205, 211, 215] Especializou-se na produção de visualizações
de grafos a partir de megadados (big data)
Christine Mello Pesquisadora, crítica e sobre relações políticas estabelecidas em
curadora no campo de arte e tecnologia. redes sociais. [p. 215]
Possui pós-doutorado em Artes Plásticas
pela ECA-USP e doutorado em Comunica- Fernanda Pessoa Cineasta e artista visual
ção e Semiótica pela PUC-SP. É professora com mestrado em Cinema e Audiovisual
do mestrado em Artes Visuais da Fundação pela Université Sorbonne Nouvelle, trabalha
Armando Alvares Penteado e da Faculdade principalmente com instalações fílmicas a
Santa Marcelina, onde coordena o grupo de partir do uso de foundfootage e películas
pesquisa arte&meios tecnológicos. Em 2002, cinematográficas, além de cinema documental
foi curadora de net art da representação e experimental. [p. 216]
brasileira para a 25ª Bienal de São Paulo.
[p. 09, 119-134, 225] Fernando Velázquez Artista multimídia, é
mestre em Moda, Arte e Cultura. Suas obras
Claudio Bueno Artista visual, pesquisa- estão em coleções públicas e privadas do
dor e curador, doutor em Artes Visuais pela Brasil e do exterior. Participou de exposições
ECA-USP com a tese intitulada “Campos de como “The Matter of Photography in the Ame-
Invisibilidade”. Suas práticas se desdobram ricas” (Stanford University, 2018) e a Bienal do
a partir da experiência do corpo e seus Mercosul (2009). Obteve o Prêmio Sergio Motta
atravessamentos pelos espaços, relações de Arte e Tecnologia (Brasil, 2009), 2008 Cultu-
e tecnologias. [p. 08,47–63, 215] ras (Espanha), entre outros. [p. 08, 83-93, 212]

Demétrio Portugal Pesquisador e gestor cultu- Gabriel Menotti Crítico e curador indepen-
ral. Seu trabalho busca a criação de platafor- dente. Professor no Departamento de Comu-
mas e projetos que potencializem o desen- nicação da UFES. É doutor por Goldsmiths,
volvimento de expressões e cenas artísticas University of London, e pela PUC-SP. Escreveu
contemporâneas, como a cena do audiovisual “Através da Sala Escura: Espaços de Exibição
expandido no Brasil. É um dos iniciadores da Cinematográfica e Vjing” (Intermeios, 2012) e
MatilhaCultural (2008-2013) e da rede ALTav, “Movie Circuits: Curatorial Approaches to Ci-
e cocurador do AVXLab. nema Technology” (AUP, no prelo). Em 2017-18,
[p. 09, 163-170, 200, 216] foi fulbright visiting scholar na Universidade de
Wisconsin-Milwaukee. [p. 09, 135-141]
Didiana Prata Designer gráfica, mestre pela
FAU-USP. Pesquisa o design e a poética das Giselle Beiguelman Pesquisa a preservação
narrativas visuais das redes a partir de estra- de arte digital, arte e ativismo na cidade em
tégias de apropriação de banco de dados. É rede e as estéticas da memória no século XXI.
membro do grupo Estéticas da Memória no Desenvolve projetos de intervenções artísticas
séc. XXI (FAU-USP) e sócia da Prata Design. no espaço público e com mídias digitais. Pro-
[p. 215] fessora da FAUUSP desde 2011 (onde coordenou

228 biografia dos participantes

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o curso de Design). É autora de várias publica- Mirella Brandi Artista multimídia e designer
ções sobre o nomadismo contemporâneo e as de luz. Italiana, sediada entre São Paulo e
práticas da cultura digital. [p. 08, 73-81, 121] Berlim, pesquisa a luz como linguagem au-
tônoma na condução de narrativas. Interage
Henrique Roscoe Artista digital, músico e com as áreas de dança, música, ópera, teatro,
curador. Trabalha na área audiovisual desde artes visuais, entre outras. Parte do duo de
2004, explorando caminhos da arte genera- luz e som “Mirella Brandi × Muep Etmo” desde
tiva e visual music, investigando as relações 2006, realizando pesquisas continuadas com
entre som, imagem e narrativas abstratas parceiros no Brasil e na Europa. [p. 08, 23, 25-
simbólicas. [p. 08, 95-107, 202, 205, 211, 215] 40, 201, 204, 209 , 215]

Javier Cruz San Martín Desenvolvedor de Mirella Brandi × Muep Etmo (Duo) Juntos, explo-
visualizações de dados e diretor de projetos ram através da imagem e do som sua capacidade
na Reddrummer em São Paulo, formado como narrativa e de transformação perceptiva em ins-
designer industrial da Universidad de Chile, talações e performances imersivas, desde 2006.
mestre em Educação e Comunicação de Mu- Mirella Brandi é artista multimídia e designer de
seus pela Universidade de Zaragoza, Espanha, luz e Muepetmo é músico, compositor e engenhei-
músico e programador autodidata. [p. 215] ro de som. [p. 23, 35, 38, 201, 204, 209, 215]

Letícia Ramos Artista visual com o foco de Muepetmo É artista multimídia, músico e en-
investigação em criação de aparatos fotográ- genheiro de som formado pela SAE (Institute
ficos para a captação e reconstrução de movi- Audio Engineer) e músico residente do CVA
mento. Suas obras já foram expostas em espa- (Conservatorium Van Amsterdam). Há treze
ços artísticos como Tate Modern, Parque Lage, anos desenvolve um trabalho continuado com
Museu Coleção Berardo, Instituto Tomie Ohtake a artista Mirella Brandi, sobre narrativas de
e CAPC – d’Art Contemporain (Bordeaux), entre imersão a partir da luz e do som. [p. 23, 25-27,
outros. [p. 09, 154-160, 203, 207, 216] 31, 35, 38, 201, 204, 209, 215]

Lucas Bambozzi Artista e curador indepen- Patricia Moran Historiadora, mestre e dou-
dente, professor no curso de Artes Visuais na tora em Comunicação e Semiótica. É professo-
FAAP e doutorando na FAU-USP, com pesquisa ra do programa de pós-graduação em Meios
envolvendo campos informacionais em espaço e Processos Audiovisuais da USP. Pesquisadora
públicos. Seus trabalhos já foram mostrados de performances audiovisuais em tempo real,
em mais de 40 países. É um dos iniciadores do tema sobre o qual tem diversas publicações
Festival arte.mov (2006-2012), do Labmovel e experiência artística, com destaque para
(2012-2016), do ALTav, e cocurador do AVXLab. temas como vídeo, documentário, cinema,
[p. 07-10, 13-23, 121, 172, 178, 197, 202, 215, 216] tecnologia digital e produção. [p. 10, 191-198]

Lucia Koch É artista multimídia, com obras Raimo Benedetti Videoartista, atua como
que exploram as relações entre arte e arquite- professor, produtor e montador de filmes cine-
tura, produzindo alterações na luz ambiente matográficos. Seu curso de vídeo experimental
de espaços institucionais ou domésticos. É tem passagem por várias instituições renoma-
mestre em artes visuais pela UFRGS e doutora das do Brasil, como MAM-SP e MIS, e também
em Poéticas Visuais pela ECA-USP. na Espanha, como Fundació La Caixa, entre
[p. 08, 64-71, 215] outras. Como artista, participou de festivais
como RedBull Live Image, ON-OFF e FILE, entre
Mario Ramiro Artista multimídia e professor outros. [p. 10, 191-198]
do departamento de Artes Visuais da ECA-
-USP, ex-integrante do grupo de intervenções Roberta Carvalho Artista visual nascida em
urbanas 3NÓS3. Sua produção reúne interven- Belém do Pará. Formada artista pela UFPA.
ções urbanas, redes telecomunicativas, escul- Desenvolve trabalhos na área de imagem,
turas, instalações, fotografia e arte sonora. intervenção urbana e videoarte. Já participou
[p. 08, 41–45, 215] de várias exposições, coletivas e individuais,
no Brasil, França, Espanha e Martinica.
[p. 10, 191-198]

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Roberto Cruz Pós-doutorando pelo Pro-
grama Interunidades em Estética e História da
Arte da USP. É curador da Coleção Itaú Cul-
tural de Filmes e Vídeos de Artistas, consultor
da Enciclopédia de Cinema do Itaú Cultural e
diretor executivo da SAC – Sociedade Amigos
da Cinemateca. [p. 09, 109-118, 216]

Rodrigo Gontijo É artista, pesquisador e


professor no Centro Universitário SENAC.
Desenvolve projetos de cinema ao vivo, insta-
lações e documentários. Seus trabalhos, cole-
tivos e individuais, já foram apresentados em
diversos países e premiados pela Associação
Paulista dos Críticos de Arte (APCA – 2005
e 2008) e Festival de Gramado (2005).
[p. 09, 10, 183-190, 191-198]

Tanya Toft Ag Curadora dinamarquesa,


pesquisadora doutorada, teórica urbana,
palestrante e precursora da observação
artísticas de arte-mídia no ambiente urbano,
especialmente em relação às condições de
mudança e inovação estética da mídia – em
arte, arquitetura, tecnologias, interfaces,
cultura digital, ciência e ambientes reais e
artificiais. [p. 9, 171-182]

Tatiane Gonzalez Mestre em Sociologia


pela UNICAMP e pesquisadora independente
de arte, tecnologia e política. Coordenada
os trabalhos de pesquisa de conteúdo para
projetos audiovisuais da Indague e atua como
gestora de projetos culturais. [p. 216]

230 biografia dos participantes

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© Lucas Bambozzi
© Demétrio Portugal

Grafia segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde 2009.

Agradecemos a todos aqueles que gentilmente cederam os direitos sobre as


obras aqui publicadas.

Todos os esforços foram realizados para encontrar, identificar e creditar os


detentores dos direitos autorais e patrimoniais contidos neste livro. Caso tenha
havido alguma omissão involuntária de dados e informações relativos à autoria
e à titularidade, por favor, contate a editora que se compromete a inclui-los em
edições futuras.
O conteúdo deste material deve ser interpretado de acordo com o contexto
social, cultural e histórico da época em que foi veiculado, respeitando a
legislação então vigente no período.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

O Cinema e seus outros : manisfestações expandidas


do audiovisual / organização Lucas Bambozzi e
Demétrio Portugal ; [coordenação Gabriela
Longman]. — 1. ed. — São Paulo : Equador :
AVXLab - Laboratório de Audiovisual Expandido, 2019

Vários autores.
ISBN: 978-85-68212-06-6

1. Cinema 2. Linguagem audiovisual


I. Bambozzi, Lucas. II. Portugal, Demétrio.
III. Longman, Gabriela.

18-17249 CDD-302.234

Índices para catálogo sistemático:


1. Cinema : Linguagem audiovisual : Meios de
comunicação : Sociologia 302.234
Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

Todos os direitos desta edição reservados à Giro Edições e Projetos Culturais Eireli
São Paulo, SP – Brasil
www.editoraequador.com.br

1a- edição
1a- impressão

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Sobre o projeto AVXLab: O AVXLab é um laboratório de metodologias e experimentação de
linguagens expandidas do audiovisual brasileiro, uma iniciativa que nasceu de integrantes do ALTav
(Rede Audiovisual Expandido) para atuar na produção de projetos voltados à experimentação e
à geração de conhecimento, que valorizam não apenas as apresentações finais, mas colocam o
processo e a pesquisa de criação como parte fundamental de uma obra.
http://AVXLab.org

Este livro foi publicado pela Editora Equador em coedição com o AVXLab por ocasião do seminário,
mostra e residência artística, apresentados no Centro Cultural São Paulo de 9 a 11 de junho de 2017
graças ao investimento e correalização da Spcine / Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
O AVXLab é um projeto organizado por participantes do ALTav - Rede Audiovisual Expandido.

Saiba mais sobre


este livro e o
AVXLab.
http://avxlab.org

Esta publicação foi composta em Lemur e Sabon


Next, sobre os papéis offset e couchê 90 g/m².
Impressa pela Gráfica Ipsis em agosto de 2019
para a Editora Equador.

participante: correalização:

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“A cena artística audiovisual é múltipla, complexa e “À medida que a era da televisão chega ao fim e a di-
potente! Reunindo um time ímpar de artistas e pensado- mensão reestruturante da internet predomina, as novas
res, o AVXLab organiza o debate sobre as fronteiras e gerações crescem acostumadas a digerir imagens em
singularidades dessa produção, numa publicação que é movimento. Desde o formato tradicional de um filme aos
peça-chave para articulação do setor.” streamings de vídeo e algoritmos que geram simulações
O cinema e seus outros traz uma
Solange Farkas – criadora e diretora da visíveis em computadores, dispositivos móveis ou de
Associação Cultural Videobrasil (SP). perspectiva sobre o audiovisual proporções urbanas, a imagem em movimento influencia

que se expande para além dos o cinema nosso imaginário e afeta nosso modo de comunicação.
Os autores deste livro reuniram uma série de ensaios
“Uma contribuição sensível a uma literatura nacional, por paradigmas industriais do cinema e seus excepcionais que nos ajudam a navegar por esses fluxos

outros
vezes escassa, sobre as ações das tecnologias no campo transbordantes de imagens que nos cercam e acom-
e da televisão, constituindo novos
das artes, com impactos diretos em nossa sociedade no panham diariamente; um guia para o cinema em suas
âmbito pós-digital. As materialidades e imaterialidades meios, formatos, processos, fluxos múltiplas facetas.”
continuam no centro da nossa relação com o mundo. Esta Emilio Álvarez – codiretor fundador do LOOP
e circuitos criativos. lucas bambozzi e

o cinema e seus outros


obra nos convoca a um olhar atento para uma saída ao Festival e Screen Projects Barcelona (Espanha).
estado de sono profundo, na busca da percepção dos demétrio portugal
rastros e fissuras que estão representados nas diversas
(org.)
temporalidades da produção de imagens do ‘real’. E que “Neste livro instigante, artistas, curadores e pesquisa-
imagens são essas?!” dores nos mostram os múltiplos fluxos que atravessam
Tadeus Mucelli – pesquisador de arte e tecnologia o cinema, transformando-o em um espaço complexo –
e curador da Bienal de Arte Digital (MG). topológico, trans-histórico, interstício entre imagens em
movimento, arte contemporânea e redes de comunicação
– que não para de desafiar o pensamento.”
“Cinema é zona instável. Sempre foi. É o que lemos aqui André Parente – artista e professor da UFRJ (RJ).
em textos que nos deslocam da experiência habitual
como espectadores inertes das salas para a ideia de uma
imagem movente que nos anima desde a exuberância das “[Tanto] o próprio cinema como seu outro fazem parte do
pinturas de Lascaux em variações de meios e modos a mesmo: um cinema de possibilidades. O cinema é outra
nos alcançar no invisível.” coisa. O que se estende e se expande, o que não cabe no
Katia Maciel – artista, poeta e professora recipiente, aquele que excede. Neste livro, então, fala-se
da UFRJ (RJ). 212066 do que vai além. Resistência: vinte e sete artistas, acadê-
micos, pesquisadores, trazem questões sobre o audiovi-
sual expandido. Resistência: são todos do sul da América
“As diferentes interfaces e formas de apresentação que e propõem um saber compartilhado. Resistência: a palavra
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ocorrem no cinema expandido representam um importante se torna um livro. […] Desconstruir, legitimar práticas, dar
indício das mudanças tecnológicas e sociais na percepção voz e palavra. Criar ‘outras’ histórias do sul.”
9

da arte contemporânea. Compartilho aqui minha grati- Gabriela Golder – artista e codiretora da BIM –
dão aos criadores por acossar os limites do audiovisual Bienal da Imagem em Movimento (Argentina).
nas suas experiências cinemáticas e também aos autores
deste livro por sua manifestação e mediação em torno das
conquistas de nosso segmento na última década.”
Daniela Arriado – diretora da Screen City Biennial
(Noruega).

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