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Escravo : a verdade escondida sobre nossa

identidade em Cristo
Traduzido do original em inglês
Slave : the hidden truth about your identity in Christ
Copyright ©2010 by John McArthur

Publicado originalmente em inglês por Thomas


Nelson, Nashville, TN, USA

Copyright © 2011 Editora Fiel


1a Edição em Português: 2012
1a Reimpressão: 2014

Todos os direitos em língua portuguesa reservados


por
Editora Fiel da Missão Evangélica Literária
PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR
QUAISQUER MEIOS, SEM A PERMISSÃO
ESCRITA DOS EDITORES, SALVO EM BREVES
CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Presidente: James Richard Denham III Presidente


Emérito: James Richard Denham Jr.
Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Valdir Pereira
dos Santos Revisão: Elaine Regina Oliveira dos
Santos eBook: Heraldo Almeida Capa: Rubner Durais

ISBN: 978-85-8132-236-0

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SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Prefácio
1. Uma Palavra Oculta
2. História Antiga, Verdade Eterna
3. O Escravo Bom e Fiel
4. O Senhor e Mestre (Parte 1)
5. O Senhor e Mestre (Parte 2)
6. Nosso Senhor e Nosso Deus
7. O Mercado Escravo do Pecado
8. Preso, Cego e Morto
9. Salvo do Pecado, Escravizado Pela
Graça
10. De Escravos a Filhos (Parte 1)
11 . De Escravos a Filhos (Parte 2)
12. Pronto a Encontrar-se com o
Mestre
13. As Riquezas do Paradoxo
Apêndice: Vozes da História da
Igreja
Editora Fiel
PREFÁCIO

D epois de mais de cinquenta anos


traduzindo, estudando, ensinando,
pregando e escrevendo sobre o Novo
Testamento, pensei ter suas verdades muito bem
identificadas e compreendidas — especialmente
no escopo da Teologia do Evangelho do Novo
Testamento. De fato, clarificar o evangelho sempre
foi a mais importante e constante ênfase dos meus
escritos — desde “O Evangelho Segundo Jesus, Com
Vergonha do Evangelho, Guerra Pela Verdade, Crer é
Difícil, até os incontáveis sermões e artigos, nestes
anos todos. Apesar de todo este esforço, uma
perspectiva profunda e abrangente, a mesma que
prevalece e é crucial em todo o evangelho, escapou
de mim e de quase todos.
Somente após a primavera de abril de 2007,
em um voo noturno para Londres, enquanto lia
Escravo de Cristo, de Murray J. Harris, foi que
compreendi que havia uma tradução encoberta,
realizada por tradutores do Novo Testamento em
inglês, a qual obscureceu uma preciosa, poderosa e
esclarecedora revelação do Espírito Santo. Não há
dúvida de que este encobrimento não foi
intencional — pelo menos inicialmente. Ainda
assim, seus resultados têm sido dramaticamente
sérios.
Uma ocultação na tradução em inglês do
Novo Testamento? Seria verdade? Quais as
consequências disto? Ninguém descobriu isto
antes de Harris, em 1999?
Não demorou muito para encontrar alguém
que já havia notado isto - Edward Yamauchi, em
seu artigo intitulado “Escravos de Deus”, publicado
em 1966 no Boletim da Sociedade Teológica
Evangélica. Por que não houve resposta ao seu
artigo? Como pôde uma verdade tão
essencialmente relacionada, não somente à
integridade da tradução, mas também ao ensino
do Novo Testamento e sobre nosso
relacionamento com Cristo, ter sido
propositalmente encoberta e ignorada?
Também, tenho descoberto, em minhas
viagens ao redor do mundo, que há muitos outros
tradutores importantes que seguiram o exemplo
da tradução em inglês e mantiveram esse
acobertamento. Contudo, há alguns que traduzem
a palavra corretamente.
Sendo assim, esta revelação não está oculta
aos meus irmãos em Cristo em lugares como a
Rússia, Romênia, Indonésia e nas Filipinas. Mas,
por que está oculta em inglês? Não tenho dúvida
de que esta ocultação permanente de um elemento
essencial da revelação do Novo Testamento tem
contribuído muito para a confusão que há no
ensino e prática do evangelho. Na verdade, eu me
pergunto se esta não foi a razão de sentir a
necessidade de escrever tantos livros para
clarificar o evangelho. Se esta realidade fosse
conhecida, teria sido necessário qualquer um
daqueles livros?
Conforme comecei a cavar com profundidade
nesta jóia enterrada do evangelho, seu esplendor
penetrante começou a dominar meu pensamento e
minha pregação. Toda vez e em todo lugar em que
eu abordava este assunto, a reação era a mesma —
espanto e deslumbre.
Durante esse mesmo período, fui solicitado a
escrever um livro sobre as “doutrinas da graça” que
fosse fiel aos Reformadores. Seria realmente
necessário mais um livro? Quem poderia melhorar
o que escreveram Calvino, Lutero, os Puritanos
Ingleses, Edwards ou Spurgeon? Eu, certamente
que não! Não teria esperança em acrescentar algo
às obras claras, completas e duradouras, já escritas
nos temas do evangelho por teólogos do passado e
do presente. Então, lutei para encontrar uma
razão para escrever algo novo, considerando o que
já tem sido escrito - Até que encontrei esta
ocultação.
Embora todos aqueles nobres teólogos da rica
tradição Reformada da verdade do evangelho
tenham tocado este assunto, nenhum deles trouxe
plenamente à luz do sol esta jóia oculta.
Esta é a razão deste livro. Conforme você o lê,
oro para que enxergue as riquezas de sua salvação
sobre um prisma radicalmente novo.

John MacArthur
1
UMA PALAVRA OCULTA
E u sou Cristão”
O jovem rapaz não disse nada mais,
perante o governador Romano, mesmo
tendo sua vida em jogo. Seus acusadores o
pressionavam novamente, buscando fazê-lo
tropeçar ou forçá-lo a negar a fé. Porém, mais uma
vez ele respondeu com a mesma sentença curta:
“Eu sou Cristão”.
Era a metade do Século Segundo, durante o
reinado do Imperador Marco Aurélio.(1) O
cristianismo era ilegal, e em todo o Império
Romano os crentes enfrentavam ameaças de
prisão, tortura ou morte. A perseguição era
intensa, especialmente no sudeste da Europa,
onde Sanctus, um diácono de Viena, havia sido
preso e levado a julgamento. O jovem foi
repetidamente ordenado a renunciar a fé que
professava. Mas ele não se deixava dissuadir. “Eu
sou Cristão”
Não importava o que lhe era perguntado, sua
resposta era sempre a mesma. De acordo com
Eusébio, o historiador da igreja primitiva, Sanctus
“se cingiu contra (seus acusadores), com tal
firmeza, de forma a nem mesmo dizer o seu nome,
nação ou cidade a qual pertencia, nem se era
escravo ou livre, mas dava a mesma resposta a
todas as questões, na língua romana: Eu sou
Cristão.”(2)
Quando finalmente ficou óbvio que não diria
nada mais que isto, foi condenado a severa tortura
e à morte pública, no anfiteatro. No dia de sua
execução, foi forçado a passar por duas fileiras de
homens munidos de açoites, foi submetido a feras
selvagens e atado a uma cadeira de ferro em brasa.
Com estas coisas, seus acusadores intentavam
fazê-lo desistir, convencidos de que sua resistência
sucumbiria ante a dor do tormento. Mas, como
Eusébio relata, “Mesmo assim, eles não ouviram
uma só palavra de Sanctus, exceto a confissão que
ele balbuciara desde o começo”.(3) Suas palavras na
hora da morte manifestavam um compromisso
imortal. Sua contínua expressão se repetiu
durante todo o julgamento: “Eu sou Cristão.”
Para Sanctus, toda a sua identidade —
incluindo seu nome, cidadania e estatus social —
estava em Jesus Cristo. Assim, melhor resposta
não poderia ser dada às questões que lhe faziam.
Ele era um cristão, e esta designação definia tudo
a seu respeito.
Esta mesma perspectiva foi compartilhada
por muitos outros, na igreja primitiva. Alimentou
os seus testemunhos, fortaleceu suas resoluções e
confundiu seus opositores. Quando eram presos,
estes corajosos crentes confiantemente
respondiam assim como Sanctus, com uma
afirmação sucinta de sua lealdade a Cristo. Como
um historiador explicou sobre os primeiros
mártires:

Eles (respondiam) a todos os questionamentos (com) a curta,


mas abrangente resposta — “Eu sou Cristão”. Vez após outra,
eles causavam não pouca perplexidade em seus julgadores, pela
obstinação com que aderiram à breve profissão de fé. A
questão era repetida — “Quem és?” e eles respondiam:
“Eu já disse que sou cristão; e, aquele que assim afirma, já deu
nome a seu país, sua família, sua fé e tudo o mais.”(4)

Seguir a Jesus Cristo era a suma de sua


inteira existência.(5) No momento em que a
própria vida estava em grande risco, nada mais
importava, além de identificarem a si mesmos com
Ele.
Para estes crentes fiéis, o nome “cristão”
significava muito mais do que apenas uma
designação religiosa. Antes, definia tudo a respeito
deles, inclusive como viam a si mesmos e o mundo
ao seu redor. Este selo ressaltava seu amor pelo
Messias crucificado, juntamente com sua
prontidão em segui-Lo, não importando o quanto
custasse. Demonstrava, também, a transformação
integral que Deus produzira em seus corações e
testemunhava que foram feitos completamente
novos em Cristo. Eles morreram para seu antigo
modo de vida e nasceram de novo na família de
Deus. Ser cristão não era simplesmente um título,
mas, sim, ter um modo de pensar inteiramente
novo — de modo a haver sérias implicações na
forma com que viviam, e, em última análise, na
forma com que morriam.
O que significa ser um cristão?
Para os primeiros mártires era bem obvio o
real significado de ser um cristão. No entanto,
pergunte hoje o que isto significa e obterá uma
variedade de respostas, mesmo daqueles que
identificam a si mesmos com este selo.
Para alguns, ser “cristão” é primariamente
algo cultural e tradicional, um título nominal,
herdado da geração anterior, um efeito final de
algo que envolve evitar certos comportamentos e,
ocasionalmente, frequentar uma igreja. Para
outros, ser cristão é em grande parte uma questão
política, um dever de defender os valores morais
em praça pública ou, talvez, preservar tais valores,
retirando-se completamente de certo local público.
Ainda outros definem cristianismo em termos de
experiência com uma religião do passado, uma
crença geral em Jesus, ou um desejo de ser uma
boa pessoa. No entanto, todos estes conceitos
estão tristemente aquém do que de fato significa
ser um cristão, na perspectiva bíblica.
Curiosamente, os seguidores de Jesus Cristo
não foram chamados de “cristãos” antes de dez a
quinze anos, após o início da igreja. Antes disso,
eram simplesmente conhecidos como discípulos,
irmãos, crentes, santos, e seguidores do Caminho
(um título derivado da referência que Cristo fez de
si mesmo, em João 14.6, como “o caminho, a
verdade e a vida”). De acordo com Atos 11.26, foi
em Antioquia da Síria que “foram os discípulos,
pela primeira vez, chamados cristãos” e, desde este
tempo, o selo se fixou.
O nome foi inicialmente cunhado por
descrentes, como uma tentativa de zombar
daqueles que seguiam o Cristo crucificado.(6) Mas,
o que começou como algo ridículo, logo se tornou
um emblema de honra. Ser chamado “cristãos” (em
grego — Cristianoi), era ser identificado como
discípulo de Jesus e ser associado com Ele, como
leal seguidor. De modo semelhante, os da casa de
Cesar referiam a si mesmos como Kaisarianoi (os
de Cesar), a fim de mostrar sua profunda lealdade
ao Imperador Romano. Diferentemente dos
Kaisarianoi, contudo, os cristãos não prestavam
sua lealdade final a Roma ou a qualquer outro
poder; sua dedicação total e adoração eram
reservadas a Jesus Cristo apenas.
Assim, ser um cristão, no verdadeiro sentido
da palavra, significa ser um seguidor incondicional
de Jesus Cristo. Como o próprio Senhor disse em
João 10.27: “As Minhas ovelhas ouvem a Minha
voz; eu as conheço, e elas Me seguem” (ênfases
acrescentadas). O nome sugere muito mais que
uma associação superficial com Cristo. Antes,
requer uma profunda afeição por Ele, fidelidade a
Ele e submissão à sua Palavra. “Vós sois Meus
amigos, se fazeis o que eu vos mando” — Disse
Jesus aos seus discípulos no cenáculo (João
15.14). Anteriormente, Ele já havia dito à
multidão que se reunia para ouvi-Lo: “Se vós
permanecerdes na Minha palavra, sois
verdadeiramente Meus discípulos” (João 8.31); e
disse em outro lugar: “ Se alguém quer vir após
Mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua
cruz e siga-Me” (Lc. 9.23; cf João 12.26).
Quando nos designamos como cristãos,
proclamamos ao mundo que tudo a nosso respeito,
inclusive nossa própria identidade, encontra-se em
Jesus Cristo, porque temos negado a nós mesmos,
para segui-Lo e obedecê-Lo. Ele é o nosso Salvador
e Soberano, e nossas vidas se centralizam em
agradá-Lo. Reivindicar este título significa dizer
como o Apóstolo Paulo: “O viver é Cristo, e o
morrer é lucro” (Fp. 1.21).
Uma palavra que muda tudo
Desde a primeira menção em Antioquia, o
termo “Cristão” se tornou o selo predominante
para aqueles que seguem a Jesus. É uma
designação apropriada, porque foca corretamente
no ponto central da nossa fé: Jesus Cristo. No
entanto, ironicamente, a palavra aparece apenas
três vezes no Novo Testamento — duas vezes no
livro de Atos e uma vez em 1 Pedro 4.16.
Além do nome cristão, a Bíblia usa uma série
de outros termos para identificar os seguidores de
Jesus. As Escrituras nos descrevem como
estrangeiros e forasteiros, cidadãos do céu e
luzeiros para o mundo. Somos herdeiros de Deus e
co-herdeiros com Cristo, membros de seu corpo,
ovelhas de seu rebanho, embaixadores em seu
serviço, e amigos ao redor da sua mesa. Somos
chamados a competir como atletas, a lutar como
soldados, a permanecer como ramos na videira, e
mesmo a desejar a sua Palavra, como os bebês
recém-nascidos anseiam por leite. Todas estas
descrições, cada uma em sua forma singular, nos
ajudam a entender o que significa ser um cristão.
Entretanto, a Bíblia usa uma metáfora com
mais frequência que qualquer uma destas. É uma
figura de linguagem que você pode não esperar,
mas é absolutamente crítica para a compreensão
do que significa seguir a Jesus.
É a figura de um escravo.
Vezes seguidas, nas páginas das Escrituras, os
crentes são referidos como escravos de Deus e
escravos de Cristo.(7) De fato, enquanto o mundo
exterior os chamava de “Cristãos”, os crentes
primitivos repetidamente referiam a si mesmos,
no Novo Testamento, como escravos do Senhor.(8)
Para eles, as duas ideias eram sinônimas. Ser
cristão era ser escravo de Cristo.(9)
A história dos mártires confirma que isto era
precisamente o que eles queriam dizer, quando
declaravam aos seus perseguidores: “Eu sou
Cristão”. Um jovem chamado Apphianus, por
exemplo, foi aprisionado e torturado pelas
autoridades romanas. Durante todo o seu
julgamento, ele apenas respondia que era um
escravo de Cristo.(10) Embora tenha sido
finalmente sentenciado à morte e afogado no mar,
sua fidelidade ao Senhor nunca vacilou.
Outros mártires da igreja primitiva
responderam de forma similar: “Se eles
consentissem em ampliar sua resposta, a
perplexidade dos magistrados apenas aumentaria,
pois pareciam falar enigmas insolúveis. ‘Eu sou um
escravo de Cesar’ eles diziam, ‘mas sou um cristão
que recebeu sua liberdade do próprio Cristo’; ou,
de forma antagônica: ‘Eu sou um homem livre e
escravo de Cristo’; de modo que, por vezes, era
necessário chamar o oficial apropriado (o curador
civitatis) para apurar a verdade sobre sua condição
civil.”(11)
Todavia, o que provou ser confuso às
autoridades romanas, fazia perfeito sentido aos
mártires da igreja primitiva.(12)
Sua identidade pessoal havia sido
radicalmente redefinida pelo evangelho. Tenham
eles sido escravos ou livres nesta vida, todos foram
libertos do pecado; e, ainda que comprados por um
preço, todos se tornaram escravos de Cristo. Isto é
o que significava ser um cristão.(13)
O Novo Testamento reflete esta perspectiva,
ordenando os crentes a se submeterem a Cristo
completamente, não apenas como servos
contratados ou empregados espirituais — mas
como quem pertence inteiramente a Ele. Somos
ordenados a obedecê-Lo sem questionar, e a segui-
Lo sem reclamar. Jesus Cristo é o nosso Mestre —
um fato que reconhecemos, toda vez que o
chamamos de “Senhor”. Somos seus escravos,
chamados a obedecê-Lo e honrá-Lo, com
humildade e de todo o coração.
Hoje em dia, não ouvimos muito nas igrejas
este conceito. Para o cristianismo contemporâneo,
esse linguajar não passa de uma terminologia da
escravidão.(14) O que se fala hoje é de sucesso,
saúde, riqueza, prosperidade e a busca da
felicidade. Geralmente ouvimos que Deus ama as
pessoas incondicionalmente e deseja que eles
sejam tudo aquilo que eles querem ser. Ele deseja
cumprir suas vontades, esperanças e sonhos.
Ambição pessoal, auto-satisfação, auto-
gratificação — tudo isto se tornou parte do
linguajar do cristianismo evangélico — e parte do
significado de ter um “relacionamento pessoal com
Jesus Cristo”. Ao invés de ensinar o evangelho do
Novo Testamento, no qual os pecadores são
chamados a se submeterem a Cristo, a mensagem
contemporânea é exatamente oposta: Jesus está
aqui para cumprir todos os seus desejos.
Comparando-O a um assistente pessoal ou
“personal trainer”, muitos frequentadores de igreja
falam de um Salvador pessoal, que está ansioso
para realizar suas propostas e ajudá-los em suas
necessidades de auto-satisfação ou realização
pessoal.
O entendimento do Novo Testamento sobre o
relacionamento com Cristo não poderia ser mais
oposto. Ele é o Mestre e o Dono. Nós somos sua
possessão. Ele é Rei, o Senhor e o Filho de Deus.
Nós somos seus súditos e subordinados.
Em uma palavra, somos seus escravos.
Perdida na Tradução
Nas Escrituras, a descrição que prevalece
sobre o relacionamento dos cristãos com Jesus
Cristo é a relação escravo/mestre.(15) No entanto,
faça uma leitura ocasional no Novo Testamento
em inglês, e você não encontrará tal
relacionamento.
A razão para isto é simples e também
chocante: a palavra grega para escravo foi
encobertada por uma má tradução em quase todas
as versões em inglês, seja retrocedendo para a
versão King James ou para a Bíblia de Genebra,
que a antecedeu.(16) Embora a palavra escravo
(doulos no grego) apareça 124 vezes no texto
original(17), é traduzida corretamente apenas uma
vez, na versão King James. A maioria das nossas
traduções modernas faz apenas um pouco melhor
que isso.(18) O fato quase parece uma conspiração.
Em vez de traduzir doulos como “escravo”,
estas traduções consistentemente a substituem
pela palavra servo. Ironicamente, a língua grega
possui pelo menos meia dúzia de palavras que
podem significar servo. A palavra doulos não é
uma delas.(19) Toda vez que ela é usada, tanto no
Novo Testamento quanto na literatura grega
secular, o seu significado é sempre e apenas
“escravo”. De acordo com o Dicionário Teológico
do Novo Testamento, que é a maior autoridade
sobre os significados dos termos gregos na
Escritura, a palavra doulos é usada exclusivamente
“para descrever o status de um escravo ou uma
atitude correspondente a de um escravo”.(20) O
dicionário observa ainda que:
O significado é tão inequívoco e completo em si mesmo, que é
desnecessário dar exemplos dos termos individuais ou traçar a
história do grupo... A ênfase aqui é sempre em “servir como
escravo”. Daí, temos um serviço que não é uma questão de
escolha para quem o presta, o qual ele tem que prestá-lo, quer
goste quer não goste, visto que está sujeito, como escravo, a
uma vontade alheia, à vontade de seu dono. [O termo
enfatiza] a dependência do escravo ao seu senhor.

Embora seja verdade que os deveres de um


escravo e os de um servo possam ter coisas em
comum, até certo ponto, há uma distinção chave
entre os dois: os servos são contratados; escravos
são propriedade de alguém.(21) Os servos têm a
liberdade de escolher para quem trabalhar e o que
realizar. A ideia de servidão preserva certo nível de
autonomia e direitos pessoais. Escravos, por outro
lado, não têm liberdade, autonomia nem direitos.
No mundo Greco-Romano, os escravos eram
considerados como propriedade, ao ponto que,
perante a lei, eram vistos como objetos, não como
pessoas.(22) Ser escravo de alguém, significava ser
sua possessão, sujeito a obedecer suas vontades,
sem hesitação ou questionamentos.(23)
Qual a razão para que as traduções inglesas
modernas consistentemente errassem na tradução
da palavra doulos, quando o seu significado é
inconfundível em grego? Há, pelo menos, duas
respostas para esta questão.
Primeiro, devido aos estigmas ligados à
escravidão na sociedade ocidental, é compreensível
que os tradutores quisessem evitar qualquer
associação entre o ensino bíblico e o tráfico de
escravos do Império Britânico e da era Colonial
Americana.(24) Para o leitor mediano de hoje, a
palavra escravo não evoca imagens da sociedade
Greco-Romana, mas sim descreve um sistema
injusto de opressão, o qual foi finalmente
encerrado pelo governo parlamentar, na
Inglaterra, e pela guerra civil, nos Estados Unidos.
Com a finalidade de evitar uma confusão potencial
e uma imagem negativa, os tradutores modernos
substituíram a palavra escravo pela palavra servo.
Segundo, de uma perspectiva histórica, no
final dos tempos medievais era comum traduzir
doulos pela palavra servus,(25) do latim. Algumas
das primeiras traduções em inglês, influenciadas
pela tradução latina da Bíblia, traduziram doulos
por “servo”, por ser esta uma tradução mais
natural de servus. Somando-se a isto, na Inglaterra
do século XVI, o termo escravo era geralmente
usado para descrever alguém acorrentado ou
encarcerado. Sendo esta uma ideia bastante
diferente da Greco-Romana sobre a escravidão, os
tradutores das primeiras versões em inglês (como
a Bíblia de Genebra e King James) optaram por
uma palavra que entendiam melhor representar a
escravidão Greco-Romana em sua cultura. E essa
palavra era servo. Estas primeiras traduções
continuam a exercer significativo impacto nas
versões modernas em inglês.(26)
Entretanto, qualquer que seja a razão por trás
da mudança, algo significativo se perdeu na
tradução, quando doulos foi traduzido por “servo”,
em vez de “escravo”. O evangelho não é apenas um
convite para que alguém se torne um associado de
Cristo; antes, é uma ordenança para que se torne
seu escravo.
Redescobrindo Esta Palavra
Oculta
A ênfase bíblica sobre a escravidão a Deus
está ausente na maioria das páginas das traduções
em inglês. Mas, esta verdade, que está oculta em
nossas versões modernas, era central para os
apóstolos e para a geração de crentes que os
sucederam.
Os líderes primitivos, como Inácio (que
morreu cerca do ano 110 d.C) e seus cooperadores,
viam a si mesmos como “companheiros escravos”
de Cristo.(27) Policarpo (69-155) instruiu os
Filipenses: “Atai as vossas vestes e servi como
escravos de Deus, em reverente temor e verdade”.
(28) O livro “O Pastor de Hermas” (escrito no
século segundo) alerta os seus leitores que “ há
muitos [atos perversos] dos quais os escravos de
Deus devem se abster”.(29) O escritor do quarto
século, conhecido como Ambrosiaster, explicou
que “aquele que é liberado da [Lei Mosaica] ‘morre’
e vive para Deus, tornando-se seu escravo,
comprado por Cristo.”(30) Agostinho (354-430)
simplesmente fez à sua congregação esta pergunta
retórica: “O vosso Senhor não vos merece ter como
seus escravos confiáveis?”(31) Em outro momento,
repreendeu os que exibiam orgulho tolo: “Vós sois
criaturas, reconhecei o Criador; sois escravos, não
desdenheis de vosso Mestre”.(32) O antigo
expositor bíblico João Crisóstomo (347-407)
consolou os que se encontravam em cativeiro
físico, com estas palavras: “ nas coisas
relacionadas a Cristo, tanto [os escravos quanto os
mestres] são iguais: e assim como és escravo de
Cristo, também é o teu mestre.”(33)
Mesmo na história mais recente, e, apesar da
confusão causada pelas traduções em inglês,
eruditos de renome e pastores têm reconhecido a
realidade deste conceito vital.(34) Ouça as palavras
de Charles Spurgeon — o grande pregador
britânico do século XIX:

Onde a nossa Versão Autorizada [King James] suaviza como


“servo”, a palavra é na verdade “escravo”. Os primeiros santos
se deliciavam em considerar a si mesmos como absoluta
propriedade de Cristo, comprados por Ele, possuídos por Ele, e
estando totalmente ao seu dispor. Paulo foi além, ao se
regozijar por ter em si as marcas de seu Mestre, e proclama:
“Ninguém me moleste; porque eu trago no meu corpo as marcas
de Jesus”. Aí estava o fim de todo o debate: Ele pertencia ao
Senhor, e as marcas dos flagelos, das varas e das pedras eram o
grande sinal do Rei, o qual marcava o corpo de Paulo como
propriedade de Jesus, o Senhor. Agora, se os santos do passado
se gloriavam em obedecer a Cristo, eu oro para que você e
eu...possamos perceber que nosso primeiro objetivo na vida é
obedecer ao nosso Senhor.(35)

O pastor Escocês Alexander Maclaren, um


contemporâneo de Spurgeon, repetiu estas
mesmas verdades:

A verdadeira posição para o homem, então, é a de ser escravo


de Deus . . . .Submissão absoluta, obediência incondicional, da
parte do escravo; e, da parte do Mestre, possessão absoluta, o
direito sobre a vida ou a morte, o direito de utilizar-se de
todas as suas posses. . . . o direito de emitir ordenanças sem
uma razão, o direito de esperar que estas ordenanças sejam
realizadas prontamente, sem hesitação, meticulosa e
completamente — estas coisas são inerentes à nossa relação
com Deus. Bem-aventurado é o homem que tem aprendido que
tais coisas assim o são, e que as aceitaram como sua glória
maior e como segurança para uma vida mais abençoada! Pois,
irmãos, tal submissão, absoluta e incondicional, a fusão e
absorção da minha vontade na Sua vontade é o segredo de
tudo aquilo que torna o ser humano magnífico, nobre e feliz . . .
. No Novo Testamento, estas posições de escravo e mestre são
transferidas aos cristãos e a Jesus Cristo.(36)

Ao passo que estas vozes da história da igreja


tornam o assunto bastante claro, nossa escravidão
a Cristo tem implicações radicais, quanto ao modo
que pensamos e vivemos. Fomos comprados por
um preço. Pertencemos a Cristo. Somos parte de
um povo de sua própria possessão. E a
compreensão destas coisas muda tudo a nosso
respeito, a começar por nossas perspectivas e
nossas prioridades.
O verdadeiro Cristianismo não se trata de
acrescentar Jesus à minha vida. Em vez disto,
trata-se de devotar-me completamente a Ele,
submetendo-me inteiramente à sua vontade e
procurando agradá-Lo, acima de todas as coisas.
Isto demanda morrer para mim mesmo e seguir ao
Mestre, não importando o custo. Em outras
palavras, ser um cristão é ser um escravo de Cristo.
Nas páginas a seguir, examinaremos a grande
profundidade desta palavra oculta, e no processo
descobriremos a diferença de transformação de
vida que ela produz.
(1) Marco Aurélio reinou de 161 dC. a 180 dC. A intensa
perseguição aqui descrita ocorreu por volta do ano de 177 dC.
(2) Eusebius, Church History, 5.1.20, citado em Philip Schaff,
Nicene and Post-Nicene Fathers, 2nd ser. (Grand Rapids: Eerdmans,
1971), I:214. (Daqui para frente, Nicene and Post-Nicene Fathers
será citado como NPNF.)
(3) Ibidem.
(4) J. Spencer Northcote, Epitáfios das Catacumbas ou
Inscrições Cristãs em Roma, durante os Quatro Primeiros
Séculos (London: Longman, Green & Co., 1878; repr.,
Whitefish, MT: Kessinger Publishing, 2007), 139.
(5) Tal era a atitude de Inácio, um pastor da Antioquia e
discípulo do Apóstolo João. Ao ser condenado à morte em
Roma (por volta do ano 110 dC), Ignácio escreveu: “Não que eu
queira meramente ser chamado de cristão, mas de fato o quero
ser. Sim, se eu provar que o sou (sendo fiel até o fim), então
poderei receber esse nome. . . . Vem, fogo; atravesse, lutando
com feras, torcendo os ossos, mutilando os membros,
esmagando meu corpo todo, torturas cruéis do demônio — tão
somente me deixe ir para Jesus Cristo!” (Ignatius, Epistle to
the Romans, 3, 5, 6, citado por Cyril C. Richardson, Early
Church Fathers [Louisville, KY: Westminster John Knox Press,
1953], 104–5).
(6) Como o apóstolo explica, em 1 Coríntios 1.23, a ideia de um
Cristo crucificado era “escândalo para os judeus, loucura para
os gentios.” Os que seguiam a Jesus (tendo sido rotulados de
cristãos) eram denunciados como hereges, pelos Judeus
incrédulos e ridicularizados como tolos pelos Gentios ascéticos.
(7) A palavra Hebraica para escravo, ‘ebed’ pode se referir a
uma escravidão literal a uma pessoa (um mestre). Mas também
é usada de forma metafórica, para descrever os crentes (mais
de 250 vezes), denotando seus deveres e privilégio em obedecer
o Senhor celestial. O uso da palavra grega “doulos”, no Novo
Testamento, é semelhante. Ela pode igualmente se referir à
escravidão física. Contudo, também é aplicada aos crentes,
denotando seu relacionamento com o Mestre divino — pelo
menos 40 vezes (cf. Murray J. Harris, Slave of Christ [Downers
Grove, IL: InterVarsity Press, 1999], 20–24). Um adicional de
mais de 30 passagens no N.T, usando a expressão ‘doulos’ para
ensinar verdades sobre a vida cristã.
(8) Veja, por exemplo, Romanos 1.1; 1 Coríntios 7.22; Gálatas
1.10; Efésios 6.6; Filipenses 1.1; Colossenses 4.12; Tito 1.1;
Tiago 1.1; 1 Pedro 2.16; 2 Pedro 1.1; Judas 1; e Apocalipse 1.1.
(9) De acordo com a International Standard Bible Encyclopedia
(daqui para frente chamada de ISBE), alguns comentaristas têm
proposto que o termo “cristão” significa, literalmente, “escravo
de Cristo.” Por exemplo, “Deissmann (Lict vom Osten, 286)
sugere que Cristão significa escravo de Cristo, assim como
Cesariano significa escravo de Cesar” (John Dickie, “Christian,”
em James Orr, ed., ISBE [Chicago: Howard-Severance
Company, 1915], I:622).
(10) Stringfellow Barr, The Mask of Jove (Philadelphia:
Lippincott, 1966), 483.
(11) Northcote, Epitaphs of the Catacombs, 140.
(12) Karl Heinrich Rengstorf, under “δοῦλος,” por Gerhard
Kittel, ed.; Geoffrey Bromiley, trad., Theological Dictionary of
the New Testament, vol. 2, observa que, “Na Igreja primitiva, a
formula [escravo de Deus ou escravo de Cristo] assumiu um
novo fôlego de vida, sendo usada cada vez mais por Cristãos
que assim se auto designavam (cf. 2 Clem. 20,1; Herm. m. 5, 2,
1; 6, 2, 4; 8, 10, etc.)” (Grand Rapids: Eerdmans, 1964, 274).
(13) Em carta do Segundo século, das igrejas de Lyons e Viena
às igrejas da Ásia e Frígia, os autores anônimos começaram a
designar a si mesmos como “escravos de Cristo” (Eusebius,
Ecclesiastical History, 5.1–4). Eles continuaram a descrever a
perseguição generalizada que suportaram, incluindo o martírio
que muitos dentre eles experimentaram.
(14) Conforme Janet Martin Soskice esclarece, “Termos
referentes aos cristãos como ‘escravos de Cristo’, ou ‘escravos
de Deus’, que gozavam de certa popularidade nas Epístolas
Paulinas e na igreja primitiva, agora são raramente usados,
apesar de sua base bíblica, pelos cristãos contemporâneos, que
têm pouca compreensão ou simpatia para com a instituição da
escravidão e as figuras de linguagem que ela gera.” (The Kindness
of God: Metaphor, Gender, and Religious Language [New York: Oxford
University Press, 2007], 68).
(15) Por exemplo, Rengstorf nota a preeminência “no NT da
ideia que os cristãs pertencem a Jesus como seus δοῦλοι
[escravos], e que suas vidas são, assim, oferecidas a Ele, como o
“Senhor ressurreto e exaltado” (Theological Dictionary of the
New Testament, s .v. “δοῦλος” 2:274).
(16) Mesmo antes, John Wycliffe e William Tyndale traduziram
a palavra doulos no Grego com a palavra “servo.”
(17) De acordo com Harris, “esta palavra [doulos] ocorre 124
vezes no Novo Testamento, e sua forma composta syndoulos
(‘co-escravo’) dez vezes” (Slave of Christ, 183). A forma verbal
também ocorre outras oito vezes.
(18) Duas exceções a isto são The New Testament: An American
Translation (1923), de J. Goodspeed’s, e a versão Holman
Christian Standard (2004), as quais consistentemente
traduzem doulos como “escravo.”
(19) Cf. Harris, Slave of Christ, 183.
(20) Rengstorf, Theological Dictionary of the New Testament, s .v.
“δοῦλος,” 2:261.
(21) Como Walter S. Wurzburger explica, “Ser um escravo de
Deus . . . envolve mais que apenas ser seu servo. Os servos
conservam seu status de independência. Eles têm somente
tarefas específicas e responsabilidades limitadas. Os escravos,
por outro lado, não têm direitos para com seus donos, porque
são considerados sua propriedade.” (God Is Proof Enough [New
York: Devora Publishing, 2000], 37).
(22) Considerando a escravidão Romana, em particular, Yvon
Thébert observou que o escravo “era igualado com sua função e
era, para o seu mestre, o que o boi era para o homem pobre: um
objeto animado que ele possuía. A mesma ideia é uma
constante na lei Romana, na qual o escravo é frequentemente
associado a outras partes do patrimônio e vendido pelas
mesmas regras que regulavam uma transferência de uma
porção de terra; ou, então, eram incluídos com as ferramentas
ou animais em uma herança. Acima de tudo ele era um objeto,
algo sem valor. Ao contrário do trabalhador assalariado, não era
feita qualquer distinção entre sua pessoa e seu trabalho” (“The
Slave,” 138–74 em Andrea Giardina, ed., The Romans [Chicago:
University of Chicago, 1993], 139).
(23) John J. Pilch, no título: “Slave, Slavery, Bond, Bondage,
Oppression,” em Donald E. Gowan, ed., Westminster
Theological Wordbook of the Bible (Louisville, KY: Westminster
John Knox Press, 2003), 472, observa que “o substantivo Grego
doulos é um subdomínio do campo semantico ‘controle, regra’ e
descreve alguém que é completamente controlado por algo ou
alguém.”
(24) Ibidem, 474. O autor aponta que “a escravidão no mundo
antigo não tinha praticamente nada em comum com a
escravidão experimentada e praticada no Novo Mundo dos
séculos 17 e 18. Seria distorcer a interpretação da Bíblia, a
tentativa de impor o entendimento da escravidão recente para
compreender o ensino de seus livros.”
(25) Cf. Harris, Slave of Christ, 184.
(26) Para um olhar intrigante sobre a relutância dos primeiros
tradutores de inglês da Bíblia em traduzir doulos como
“escravo”, veja o que escreveu Edwin Yamauchi, no “Slaves of
God,” Boletim da Sociedade Teológica Evangélica 9/1 (inverno
de 1966): 31-49. Yamauchi mostra que, ao final do século 13,
“a escravidão desapareceu do noroeste da Europa. . . A
escravidão, portanto, era conhecida pelos ingleses do século 17,
pelo menos no início desse século, não como uma instituição
conhecida e aceita, mas sim como um fenômeno remoto” (p.
41). O conceito que tinham de “servo” fora moldado por seu
conhecimento de servidão, pela qual o trabalhador estava
vinculado à terra em que lavrava. Embora o escravo tivesse
obrigações para com seu proprietário, seus serviços só
poderiam ser vendidos quando a própria terra fosse vendida.
Como contraste, a “escravidão” em suas mentes evocava “o caso
extremo de um cativeiro em grilhões” (p. 41), uma imagem de
crueldade que, compreensivelmente, queriam evitar. Mas,
assim fazendo, diminuiram involuntariamente a força da
expressão bíblica real. Nas palavras de Yamauchi, “Se tivermos
em mente o que a escravidão significava para os antigos, e não o
que significa para nós ou para os teóricos do século 17, vamos
obter uma compreensão mais elevada de muitas passagens no
Novo Testamento” (43) . Veja também Harris, Slave of Christ,
184
(27) Cf. Epístola aos Filadelfos, 3; Epístola aos Magnésios, 2;
Epístola à Esmirna, 12.
(28) Policarpo, Carta aos Filipenses, 2,em Bart D. Ehrman, trad.
The Apostolic Fathers (Harvard, 2003), 1:335.
(29) Shepherd of Hermas, Exposition on the Eighth
Commandment, 38.3–6, em ibidem., II:270. Este é apenas um
dos inúmeros exemplos em que Hermas usou a frase “escravo
de Deus.”
(30) Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, 81.3:
28.21–23, citado nas notas críticas sobre o Comentário de
Agostinho aos Gálatas, por Eric Plumer (New York: Oxford
University Press, 2003), 30n153.
(31) Agostinho, “Sermon 159,” em John E. Rottelle, trad.,
Sermons (Hyde Park, NY: New City Press, 1992), 124.
(32) Agostinho, Homilies on the Gospel of John 1–40, Homily 29,
trad. por Edmund Hill (Hyde Park, NY: New City Press, 2009),
495.
(33) João Crisóstomo, Homilies on First Corinthians, Homily 19.5–
6 (on 1 Cor. 7:22–23), citado em Schaff, NPNF, 12:108–9.
(34) Ver apêndice para citações adicionais da história recente
da igreja.
(35) Charles Spurgeon, “Eyes Right,” sermão no. 2058, no
Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim
Publications, 1974), 34:689.
(36) Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture, the
Acts, comentando sobre Atos 4.26, 27, 29 (n.p.: BiblioLife,
2007), 148–49.
2
HISTÓRIA ANTIGA
VERDADE ETERNA
P ara entendermos completamente o uso da
palavra escravo no Novo Testamento,
precisamos partir de uma perspectiva
histórica, considerando a prática da escravidão na
era Greco-Romana.
A escravidão era uma estrutura social
bastante difundida, no primeiro século do Império
Romano. Na verdade, era tão comum que sua
existência como instituição jamais era seriamente
questionada por qualquer um.(1) Escravos de toda
idade, gênero e etnia constituíam uma importante
classe socioeconômica na Roma antiga. Cerca de
um quinto da população do império era de
escravos, totalizando por volta de 12 milhões, no
limiar do primeiro século d.C.(2) Não era de se
admirar que toda a economia romana fosse
altamente dependente de um considerável grupo
de trabalhadores, qualificados e não qualificados.
A princípio, a população de escravos romanos
procedeu das conquistas militares. Conforme o
império expandiu suas fronteiras, capturou um
grande número de pessoas que foram, como
consequência, vendidas como escravos. Mas, no
primeiro século, a maioria dos escravos herdou sua
posição na sociedade, por nascer no regime da
escravidão.(3) A maior parte deles, portanto, nunca
havia conhecido a liberdade.
Para muitos dos escravos a vida era difícil,
especialmente para os que trabalhavam nas minas
ou em fazendas. Esses escravos “rústicos”
geralmente viviam distantes da cidade em que
seus proprietários residiam, sob a supervisão de
um capataz ou gerente. Porém, havia muitos
escravos que viviam nas cidades, trabalhando ao
lado de seus mestres, como parte da família. Para
esses escravos “urbanos”, a vida era muitas vezes
consideravelmente mais fácil.(4)
Dependendo de sua formação e das
necessidades do seu mestre, os escravos
trabalhavam em diversas funções — tanto dentro,
quanto fora da casa. Desde professores a
cozinheiros, de lojistas a médicos, os escravos
eram envolvidos em uma variedade de ocupações.
Em um relance na rua, seria difícil distinguir quem
era escravo ou não. Não havia essencialmente
qualquer diferença nas vestimentas; nem havia
significantes diferenças nas responsabilidades.
Qualquer ramo de trabalho que uma pessoa livre
pudesse realizar, o escravo também o poderia.
Os escravos domésticos recebiam maior
honra que outros escravos, por trabalharem mais
próximo de seus mestres. Como membros da
família, eles eram envolvidos em toda parte da
vida familiar, desde cuidar dos filhos do seu
mestre até gerenciar a casa, ou mesmo administrar
seus interesses comerciais. Um escravo maldoso
representava um grande perigo, e podia causar
sérios danos ao bem-estar de seu dono.
Entretanto, um escravo fiel e diligente era um
maravilhoso benefício para o seu senhor. O
escravo fiel poderia vislumbrar a possibilidade de
receber sua liberdade algum dia — uma
recompensa que os senhores geralmente
ofereciam, para motivar seus escravos a
realizarem, deliberadamente, o que deles era
esperado.
A escravidão também oferecia uma certa
proteção social e econômica àqueles cujos senhores
eram gentis e respeitados. Os escravos não
precisavam se preocupar em saber de onde viria a
próxima refeição, ou se teriam ou não um lugar
para ficar. A única preocupação que tinham era a
de realizar os interesses de seu dono. Em troca,
seu senhor cuidava de suas necessidades. Além
disso, se um amo fosse um homem de prestígio ou
um membro da comunidade com grande poder, tal
como um oficial do governo, seus escravos também
haveriam de ser respeitados, devido ao
relacionamento com ele. Grande honra seria dada
aos escravos de alguém tão altamente considerado
pela sociedade romana.
Dito isto, devemos ser cautelosos em não
apresentar uma impressão demasiadamente
romântica sobre a escravidão do século primeiro.
Ser um escravo significava ser propriedade de
alguém, era estar totalmente, e em todas as coisas,
subjugado ao seu dono. O filósofo grego
Aristóteles definiu o escravo como um ser humano
que era considerado um objeto de possessão,
alguém que pertencia completamente a outra
pessoa.(5) A Roma antiga via os escravos da mesma
maneira: “Em princípio, o escravo não tinha
direitos, tampouco status legal; ele era um bem
pessoal de seu dono.”(6) Como resultado, um
escravo “poderia ser tratado e considerado como
uma peça da propriedade. Ele estava
[completamente] à mercê do seu possuidor, sem
quaisquer direitos“.(7)
Então, a experiência de alguém como escravo
dependia, em última análise, das exigências e
generosidades de seu mestre. Os escravos de
senhores abusivos e temperamentais suportavam
uma vida de miséria.(8) Mas, para os escravos de
senhores razoáveis e agradáveis, a situação poderia
ser exponencialmente melhor.(9) Como o professor
de História, Scott Bartchy, esclarece: “A única coisa
que os escravos do primeiro século tinham
completamente em comum era o fato de
pertencerem a um dono. A experiência de alguém
na escravidão dependia, quase que inteiramente,
dos costumes da família de seu proprietário, dos
tipos de negócios, da classe social a que seu mestre
pertencia e do próprio caráter do seu senhor.”(10)
A escravidão no mundo romano era tão
diversa quanto a quantidade de donos de escravos.
Quer os escravos trabalhassem na cidade ou no
campo; quer se tornassem capatazes,
administradores da casa ou qualquer outra coisa;
quer acabassem ganhando ou não sua liberdade;
quer fosse positiva ou negativa a qualidade de sua
existência diária — tudo repousava nas mãos de
seus senhores. Cada dono definia a natureza da
vida de seu escravo. Da parte deles, os escravos
tinham somente um objetivo: agradar ao seu
senhor em tudo, através de sua leal obediência a
ele.
Fora do Egito
Com esse pano de fundo cultural Greco-
Romano é que Jesus e seus discípulos falaram
sobre a escravidão, usando-a como ilustração para
descrever a vida cristã. Mas, para entendermos
completamente esta metáfora do Novo
Testamento, também precisamos considerar
brevemente a escravidão, tal como era no Israel do
Velho Testamento.
A palavra hebraica para escravo — ebed,
aparece no Antigo Testamento 799 vezes como
substantivo e outras 290 vezes como verbo.(11)
Embora a “ideia mais básica de ‘ebed refira-se a
escravo”(12), seu significado fundamental
novamente se perde, na maioria das traduções em
inglês. A versão King James, por exemplo, nunca
traduz “ebed” por “escravo” — optando traduzir
por “servo” ou “criado”, na grande maioria das
vezes.(13) Contraste-a, porém, com a Septuaginta,
uma tradução grega do Velho Testamento,
anterior ao tempo de Cristo. Ela traduz ‘ebed’ com
a estrutura de doulos, ou escravo, mais de 400
vezes!(14) Os rabinos eruditos que produziram a
Septuaginta entendiam exatamente o que
significava a palavra ‘ebed’, o que explica por que a
palavra escravo era tão proeminente naquela
tradução. Para os Judeus dos dias de Jesus, que
estavam familiarizados, tanto com o Velho
Testamento Hebraico quanto com a Septuaginta
em Grego, seria impossível perder o uso repetitivo
que a Bíblia faz da imagem figurativa do escravo.
A escravidão fez parte da história de Israel,
desde os seus primórdios como nação. Mesmo
antes de Isaque nascer, em Gênesis cap.15, Deus
revelara a Abraão que seus descendentes um dia
haveriam de experimentar grande sofrimento
como escravos, em uma terra estranha. A prévia da
aflição que estava por vir aconteceu apenas três
gerações mais tarde, quando José, o bisneto de
Abraão, foi vendido por seus irmãos como escravo.
Mas, o que os irmãos de José intentaram como
mal, Deus transformou em bem, elevando o antigo
escravo a um posto de poder político e usando-o
para salvar da fome as vidas de milhões. Ao final,
José se reconciliou com seus irmãos e se reuniu
com seu pai, Jacó. Todos os seus familiares se
mudaram para o Egito, onde se estabeleceram em
uma região chamada Gósen.
Apesar de, inicialmente, serem recebidos com
honra, os descendentes de Jacó (ou Israel, como
Deus o renomeou, em Gênesis 35) terminaram por
ser escravizados pelos egípcios. O primeiro
capítulo de Êxodo explica que:
“se levantou um novo rei sobre o Egito, que não conhecera a
José. . . E os egípcios puseram sobre eles feitores de obras, para
os afligirem com suas cargas. . . os egípcios, com tirania, faziam
servir os filhos de Israel e lhes fizeram amargar a vida com
dura servidão, em barro, e em tijolos, e com todo o trabalho no
campo; com todo o serviço em que na tirania os serviam (vv.
8,11,13-14)”.

Quando os Israelitas clamaram a Deus por


socorro, Ele os livrou de uma forma espetacular e
sobrenatural. Os relatos sobre a vida de Moisés, a
sarça ardente, as dez pragas, a Páscoa e a
passagem do Mar Vermelho são assuntos clássicos
da Escola Dominical. Porém, não devemos deixar
que a familiaridade com estas histórias nos
distraia a atenção do deslumbrante assombro que
sucedeu. O Egito, a potência mundial de então, foi
sistematicamente desmantelado sob a
impressionante ira de Deus, enquanto Ele,
gloriosamente, demonstrava sua majestade e
libertava o seu povo.
Todavia, o êxodo do Egito não deu aos
Israelitas autonomia completa. Ao contrário, os
inseriu em um tipo diferente de escravidão.
Aqueles que antes haviam sido propriedade de
Faraó, tornaram-se possessão do Senhor. “Sereis a
minha propriedade peculiar dentre todos os
povos” — Deus disse a eles, enquanto se
acampavam ao pé do Monte Sinai (Êx. 19.5). Mais
tarde, Ele diz a Moisés: “Porque os filhos de Israel
são meus escravos; meus escravos são eles, os
quais tirei da terra do Egito. Eu sou o SENHOR,
vosso Deus” (Lv. 25.55). O povo hebreu foi
libertado de um dono para servir a outro. Deus
seria o seu Rei soberano, e eles seriam seus súditos
leais. O êxodo não os resgatou completamente da
escravidão, mas apenas da escravidão a Faraó.
Agora eles eram escravos de Deus: “O êxodo
representou um evento histórico, que formou a
base para Israel compreender que era escravo de
Deus”. Inclusa nesta compreensão estava a
obrigação de servir a Deus em obediência leal e
rejeitar todos os demais... Chamar a si mesmo um
Israelita, seria o mesmo que chamar-se escravo de
Deus”.(15)
Infelizmente, ao longo da história de Israel,
com frequência os Judeus se esqueciam de que Ele
era o seu Mestre. Em vez de obedecer e honrar a
Ele somente, repetidas vezes flertavam com a
idolatria e rebelião contra o Senhor. Deus
respondia por permitir que as nações vizinhas os
conquistassem e oprimissem. Se seu povo não
estivesse disposto a ser seu escravo, tornaria a ser,
novamente, escravo de seus inimigos.(16)
O livro de Juízes conta os detalhes dos
repetidos fracassos de Israel neste aspecto. No
entanto, apesar da infidelidade da nação, Deus
permaneceu fiel. Ele sempre esteve pronto a
libertar seu povo, quando clamavam a Ele, em
sincero arrependimento. Mesmo após a monarquia
ser estabelecida em Israel, o povo continuava
resistindo a ser escravo de Deus, com um coração
verdadeiro. O caminho idólatra da nação levou o
povo a ser completamente removido da terra
prometida, culminando com o exílio Babilônico.
Depois de ser resgatado do Egito há séculos, o
povo de Deus, em quase sua totalidade, achou-se
novamente em cativeiro.(17) E, mais uma vez, o
Senhor haveria de libertá-los (cf. Esdras 9.9).
Neemias, o homem que Deus usou para trazer
de volta um remanescente de Judeus à terra
prometida, compreendia este ponto. Quando
clamou ao Senhor por perdão e libertação em favor
do povo, iniciou sua oração com estas palavras:
‘Ah! Senhor, Deus dos céus, Deus grande e temível, que
guardas a aliança e a misericórdia para com aqueles que te
amam e guardam os teus mandamentos! Estejam, pois, atentos
os teus ouvidos, e os teus olhos, abertos, para acudires à oração
do teu [escravo (‘ebed’)], que hoje faço à tua presença, dia e
noite, pelos filhos de Israel, teus [escravos (‘ebedi’)]; e faço
confissão pelos pecados dos filhos de Israel, os quais temos
cometido contra ti; pois eu e a casa de meu pai temos pecado
(Neemias 1.5–6).(18)

Neemias terminou sua oração relembrando as


palavras de Moisés e pedindo a Deus para,
novamente, salvar o povo ao qual, séculos antes,
Ele havia “redimido por [seu] grande poder e por
[sua] forte mão” (v. 10).
Desde o êxodo até o exílio e após, a
identidade corporativa de Israel como escravos de
Deus era uma parte integrante da história da
nação. Muitos dos heróis de Israel, incluindo
Abraão, Moisés, Josué, Davi, Elias e os profetas,
são especificamente referidos como seus escravos.
(19)
Mas a compreensão da escravidão no Velho
Testamento não era apenas uma questão de
identidade nacional. A instituição também existia
como parte da vida diária no antigo Israel. Embora
os israelitas pudessem vender a si mesmos à
escravidão por causa de dívida, devido à
insolvência financeira, eles deveriam ser tratados
como os servos que eram contratados sob a lei
mosaica (cf. Lv. 25.35-43).(20)
Os escravos não Judeus, por outro lado,
“eram vistos e tratados como um bem ou uma peça
do mobiliário (cf. Lv. 25.44–46)”(21), sendo estes
adquiridos por captura, compra ou nascimento de
pais escravos. Nos termos da Lei, a estes escravos
domésticos eram garantidas certas proteções e,
portanto, eram tratados melhor do que em outras
sociedades próximas, no Oriente contemporâneo.
(22) Contudo, assim como em Roma, eles eram
principalmente “considerados um investimento
financeiro; sendo que os escravos improdutivos ou
desobedientes poderiam esperar punição (cf. Êx.
21.20-21).”(23)
Embora estas duas instituições não fossem
definitivamente idênticas, a escravidão do Israel
do Antigo Testamento compartilhava certas
similaridades com a de Roma do primeiro século.
Em particular, escravos estrangeiros podiam ser
comprados e, portanto, possuídos como
propriedade; eles eram inteiramente submetidos à
vontade de seu mestre; eram recompensados ou
punidos com base em seu desempenho e poderiam
permanecer como escravos por tempo indefinido.
(24) Assim como todos os escravos do mundo
antigo, suas vidas se caracterizavam pelo “conceito
de total dependência, de perda de autonomia e do
senso de pertencer inteiramente a outro”.(25)
Os Homens do Mestre
Quando os apóstolos usavam a figura do
escravo, tanto em suas pregações quanto ao
escrever o Novo Testamento, estavam
completamente cientes do seu significado, em
termos da história judaica e também da cultura
romana.(26) Do ponto de vista da história de
Israel, ser um escravo de Deus significava
identificar-se com aqueles que estavam no Monte
Sinai e que, com nobres intenções, declararam:
“Tudo o que o Senhor falou faremos” (Êx. 24.3).
Além do mais, significava estar alinhado com
notáveis homens de fé, tais como Abraão, Moisés,
Davi e os profetas — líderes espirituais que
exemplificavam submissão total à vontade e à
Palavra de Deus. Do ponto de vista da cultura do
primeiro século, a escravidão servia como uma
imagem apropriada do relacionamento do crente
com Cristo — de completa submissão e sujeição ao
seu mestre. Em ambos os casos, ser um escravo era
estar sob a completa autoridade de outros.
Implicava rejeitar a autonomia pessoal e abraçar a
vontade alheia. O conceito não requeria maior
explicação, porque a escravidão era lugar comum e
vigorava por séculos a fio.
Quando o Apóstolo Paulo referiu a si mesmo
como um “escravo de Cristo” e “escravo de
Deus”(27), seus leitores sabiam exatamente o que
ele queria dizer. Certamente, isto não tornou a
declaração menos chocante. No contexto Greco-
Romano, como em cidades às quais Paulo escreveu,
a liberdade pessoal era valorizada, a escravidão era
denegrida e a escravidão auto-imposta era
escarnecida e desprezada.(28) Mas, para Paulo, cuja
única ambição era ser agradável a Cristo, não
poderia haver mais adequada referência de si
mesmo.(29) Sua vida girava em torno do Mestre.
Nada mais importava, inclusive sua agenda
pessoal.
Os demais escritores do Novo Testamento
fizeram ressoar a mesma devoção sincera de Paulo
ao Senhor. Tiago não se vangloriou por ser meio-
irmão de Jesus; ao contrário, chamou a si mesmo
de “Tiago, [escravo] de Deus e do Senhor Jesus
Cristo” (Tg. 1.1). Mais adiante, em sua carta,
instruiu seus leitores com estas palavras
familiares: “Atendei, agora, vós que dizeis: Hoje ou
amanhã, iremos para a cidade tal, e lá passaremos
um ano, e negociaremos, e teremos lucros... Em
vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, não só
viveremos, como também faremos isto ou aquilo”
(4.13, 15). Tais palavras nos remetem fortemente
ao relacionamento escravo/senhor. Os escravos
não podiam ir aonde quisessem ou fazer o que
desejassem. Eles eram obrigados a seguir a
vontade do seu mestre.
Pedro, Judas e João, todos, igualmente,
referiam a si mesmos como escravos, obrigados a
fazer o trabalho do Senhor.(30) Estes homens eram
companheiros do nosso Salvador e líderes da igreja
primitiva. Afinal de contas, eles poderiam ser
considerados, e justamente, como elite espiritual.
Contudo, estavam felizes em se identificarem
como escravos.
Quando examinamos o Novo Testamento,
logo vemos que o termo “escravo de Cristo” não
era reservado para crentes de baixo nível ou para
neófitos espirituais. Os Apóstolos, prontamente,
tomaram o título para si, e também o usaram para
se referirem a outros no ministério.(31)
Não é de surpreender, portanto,
encontrarmos a figura do escravo sendo usada
com frequência em todas as epístolas, em
referência à vida cristã. A escravidão era uma
metáfora muito adequada, como um historiador
explica:
A experiência da escravidão era uma [ilustração] perfeita para
as pessoas dos tempos antigos. Assim como o escravo, o
[cristão] convertido experimentava a violenta força psicológica
da mudança pessoal, a desonra social por voltar as costas à
cultura tradicional e familiar, e a alienação por perder
completamente sua identidade passada, obtendo um novo
nome, tendo que aprender uma nova língua, adquirir nova
visão de mundo e formar novos laços de parentesco.(32)

A palavra doulos, ou escravo, também é usada


no livro de Apocalipse, para descrever o eterno
relacionamento do crente com o Senhor. Tanto no
início quanto no final do livro, somos informados
de que esta revelação foi dada por Deus “para
mostrar aos seus [escravos] as coisas que em breve
devem acontecer” (Ap.1.1). No cap. 7.3, os
convertidos que fazem parte dos 144.000 são
chamados “os [escravos] do nosso Deus”. São
feitas referências, com a palavra escravo, aos
profetas, em 10.7, assim como aos mártires, em
19.2. Mas, somente ao final do livro, todos os que
creem são descritos como escravos de Deus, em um
sentido coletivo. Em Apocalipse 22.3-4, uma
passagem que descreve as glórias do estado eterno,
diz assim: “Nunca mais haverá qualquer maldição.
Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os
seus servos [douloi — escravos, literalmente] o
servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte
está o nome dele.” A gloriosa realidade é que, por
toda a eternidade como seus escravos, você e eu, e
todos os crentes de toda a história da
humanidade, adoraremos com alegria e
exaltaremos o nosso Mestre celestial — o Rei dos
reis e Senhor dos senhores.

(1) Junto com estas linhas, Dale B. Martin, Slavery as Salvation


(New Haven: Yale University Press,1990), 42, escreveu, “A
instituição da escravidão, em si, nunca foi realmente
questionada. Os escravos devem ter se ressentido pelo
cativeiro, mas, quando tiveram a oportunidade, adquiriram
escravos para si mesmos. Quando eram libertos, simplesmente
subiam um degrau no sistema, tornando-se senhores e
senhoras de escravos, levando consigo seus dependentes.
Quase ninguém, inclusive os escravos, pensava em organizar a
sociedade de uma forma diferente”.
(2) Murray J. Harris, Slave of Christ (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1999), 34. Segundo a International
Standard Bible Encyclopedia, “Nas cidades grandes, como
Roma, Corínto, Éfeso e Antioquia, cerca de um terço da
população era de escravos legalizados, e outro tanto havia sido
escravo anteriormente” (S. S. Bartchy, “Servant; Slave,” in
Geoffrey W. Bromiley, ed., ISBE, vol. 4 [Grand Rapids:
Eerdmans, 1988], 420).
(3) S. Scott Bartchy, First-Century Slavery & 1 Corinthians 7.21
(Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2002), 71.
(4) Keith Bradley, Slavery and Society at Rome (Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 1994), 58. Bradley explica: “Por
motivos legais, os Romanos dividiram os escravos em duas
categorias — os que pertenciam à família da cidade, família
urbana, e os que pertenciam à família rural, família rústica. A
divisão foi baseada na suposição de que o proprietário típico de
escravos mantinha uma ou mais residências na cidade,
abastecidas com escravos domésticos, e possuíam propriedades
no campo, lavradas, ao menos em parte, com o trabalho
escravo.”
(5) Aristóteles, A Política, 1.254a7. W. W. Buckland, em The
Roman Law of Slavery, observou que “o escravo romano não
possuía os atributos que a análise moderna tem como essencial
para a personalidade. Dentre as quais, a capacidade por direitos
é uma delas, e isto o escravo romano não tinha” (Union, NJ:
Lawbook Exchange, 2000, 3).
(6) Pierre Grimal, The Civilization of Rome, trad. W. S.
Maguinness (London: George Allen, 1963), 499.
(7) Michael Grant, The World of Rome (New York: World
Publishing, 1960), 116.
(8) Falando sobre abusos da escravidão durante esse tempo,
Dale B. Martin, em Slavery as Salvation, explica que, “durante o
início do império, do tempo de Augustus até o final do Segundo
Século, milhões de seres humanos devem ter vivido em
humilhação e miséria, servindo às necessidades e caprichos, aos
prazeres e temperamentos de outros seres humanos. . . . Os
proprietários tinham o direito de prender, torturar ou matar
seus escravos. Na literatura da época, depara-se
continuamente com a opinião de que a vida do escravo é a pior
que se possa imaginar” (xiii).
(9) Harold Mattingly, Roman Imperial Civilisation (New York:
Norton & Co., 1971), 177. Mattingly explica que “as maldades
[e abusos] da escravidão deviam ser, de fato, minimizadas pela
bondade entre os mestres e os escravos nascidos na casa.”
Nesta linha de pensamento, Peter Jones e Keith Sidwell, eds.,
in The World of Rome (New York: Cambridge University Press,
1997), citam exemplos de lealdade e amizade que, por vezes, se
desenvolviam entre os escravos e seus mestres generosos
(231–32).
(10) Bartchy, First-Century Slavery e 1 Coríntios 7.21, 68.
(11) Claus Westermann, “‫”דבע‬, em Theological Lexicon of the Old
Testament, Ernst Jenni and Claus Westermann, eds., Mark
Biddle, trad., vol. 2 (Peabody, MA: Hendrickson, 1997), 822.
Westermann observa que “na esfera social, ‘ebed’ comumente
indica para o escravo do Antigo Testamento.”
(12) Walt Kaiser, “‘ābad” em Theological Wordbook of the Old
Testament, Gleason L. Archer, R. Laird Harris, e Bruce K. Waltke,
eds. (Chicago: Moody, 1980), 2:639.
(13) Segundo o Léxico de Strong, a Versão Autorizada traduz a
forma substantiva de ‘ebed como “servo” 744 vezes, “criado” 23
vezes, “serviçal” 21 vezes, “servidão” 10 vezes.
(14) A Septuaginta (LXX) usa doulos para traduzir a forma
substantiva de ‘ebed 314 vezes. Além disso, a forma verbal de
doulos (douleuo) é usada para traduzir a forma verbal de ‘ebed
114 vezes. Ao todo, a LXX traduz ‘ebed com alguma das formas
de doulos 428 vezes. Cf. Eugene Carpenter, “‫ ”דבע‬em William
Van Gemeran, ed, New International Dictionary of Old
Testament Theology and Exegesis (Grand Rapids: Zondervan,
1997), 3:306. (de agora em diante, New International
Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis será
mencionado como NIDOTTE.)
(15) John Byron, Slavery Metaphors in Early Judaism and
Pauline Christianity (Tubingen, Germany: J. C. B. Mohr, 2003),
50–51. Veja também I. A. H. Combes, The Metaphor of Slavery
in the Writings of the Early Church (Sheffield, England:
Sheffield Academic Press, 1998), 43–44.
(16) Cf. Lev. 26.13–17; Deut. 28.58–68; 2 Cr. 12.8.
(17) Eugene Carpenter, no NIDOTTE (“3:306 ”‫)דבע‬, mostra a
conexão entre o cativeiro Babilônico e o Êxodo: De maneira
completamente oposta à libertação divina no Êxodo, Ele
escravizará (‘bd) Israel aos seus inimigos (Jer. 17.4).
(18) A palavra para “escravo” nestes versos é ‘ebed no
Hebraico, e é traduzida com as formas de doulos (ou “escravo”)
na Septuaginta Grega. Assim, é melhor traduzida por “escravo”,
em Inglês, e não por “servo.”
(19) Cf. Juízes 2:8; 1 Reis 18.36; 2 Reis 18.12; Sl. 89.3, 105.2;
Is. 48.20; Ez. 38.17; Dn. 9.11. Estes versículos são traduzidos
com algumas formas de doulos na Septuaginta. Karl Heinrich
Rengstorf, em “Doúlos,” no Theological Dictionary of the New
Testament Abreviado em Um Volume (Gerhard Kittel and
Gerhard Friedrich, eds.; Geoffrey Bromiley, trad. [Grand
Rapids: Eerdmans, 1985], 183), acrescenta que a forma verbal
de “douleúein” na LXX é o termo mais comum para o serviço de
Deus, não somente em atos isolados, mas em total
compromisso…. Por esta razão,. . . . doúloi é um título de honra
quando conferido a figuras tão proeminentes como [as listadas
acima]. O oposto de douleúein é desobediência.”
(20) J. Albert Harrill, no título “Slave” no Eerdmans Dictionary
of the Bible (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), observa que, às
vezes, estes salvaguardas Mosaicos eram ignorados. Ele
escreveu: “Embora tenham sido escritas para reduzir e, talvez,
até mesmo para acabar com a escravidão da dívida, essas leis
Deuteronomistas aparentemente passaram despercebidas,
visto que a dívida da escravidão de companheiros Hebreus
continuaram a ser comum em todo o período bíblico (2 Reis 4.1;
Amós 2.6; 8.6; Mq. 2.9)” (David Noel Freedman, ed., 1232).
(21) Harris, Slave of Christ, 28.
(22) Cf. Lev. 25.6; Ex. 20.10; 21.26–27. Harris observa que,
“em comparação com outras sociedades Orientais próximas,
naquele tempo, os regulamentos que regiam a escravidão em
Israel (principalmente em Êx 21, Lev. 25. e Dt. 15) eram mais
humanos” (Slave of Christ, 28).
(23) John Byron, Slavery Metaphors, 40–41. Byron observa que
o débito escravagista, a escravidão no templo e a escravidão
estatal também eram praticados no Israel antigo, além da
escravidão doméstica.
(24) William J. Webb, “Slavery,” Dictionary for Theological
Interpretation of the Bible, ed. Kevin Vanhoozer (Grand
Rapids: Baker Academic, 2005), 751. Webb observa que, no
Israel antigo, os escravos estrangeiros eram considerados
propriedade (Ex. 12.44; 21.20–21, 32; Lev. 22.11); eles não
eram libertados a cada sete anos (Lev. 25.39–46); e seus donos
tinham a permissão de espancá-los, contanto que não os
matassem (Ex. 21.20–21). I. A. H. Combes observa ainda que,
“pela lei, o escravo Hebreu deveria ser libertado após um certo
tempo, enquanto que o Gentio poderia continuar escravo
perpetuamente” (The Metaphor of Slavery, 38).
(25) Harris, Slave of Christ, 45.
(26) Por exemplo, observando a dupla influência da teologia do
Antigo Testamento e cultura greco-romana no pensamento de
Paulo, Pedro Garnsey explica que “Paulo era um teólogo cristão
mergulhado nas escrituras judaicas e na lei. Ele também
absorveu ideias da filosofia clássica, mesmo que em segundo
plano e de forma atenuada. Essas influências, ao se fundirem
com a experiência do próprio histórico de Paulo e sua percepção
do contexto social e ideológico, produziram uma mistura
distinta, que é a teoria escravagista Paulina.” (Ideas of Slavery
from Aristotle to Augustine [New York: Cambridge University
Press, 1996], 186).
(27) Ver Rm 1.1; Gl 1.10; Fl.1.1; Tito 1.1. Dale B. Martin, em
Slavery as Salvation, dá uma explicação importante sobre como
o uso que Paulo faz do termo “escravos de Cristo” fora baseado
não apenas em entendimento do Antigo Testamento israelita
sobre a escravidão a Deus, mas também (e principalmente) em
uma compreensão greco-romano da escravidão.(xvi).
(28) Karl Heinrich Rengstorf escreveu: “Os gregos têm um forte
senso de liberdade. Dignidade pessoal consiste em liberdade.
Há, portanto, uma aversão violenta à escravidão. O serviço
pode ser prestado ao Estado, mas por livre escolha. A
escravidão é desprezada e rejeitada” 183).
(29) Cf. 2 Co. 4.5; 5.9.
(30) Cf. 2 Pe. 1.1; Judas 1; Ap. 1.1.
(31) Cf. Atos 4.29; 16.17; Cl. 1.7; 4.12; 2 Tm. 2.24.
(32) J. Albert Harrill, Slaves in the New Testament (Minneapolis:
Fortress Press, 2006), 32. Anteriormente, Harrill esclareceu
que “a figura do escravo fornece uma linguagem poderosa e
convincente, através da qual, articula a formação da
comunidade cristã e como ela se define, precisamente porque
os primeiros cristãos compartilhavam com toda a sociedade
“pagã” o mesmo conjunto de pressupostos culturais,
literalmente banaliza e cria estereótipos sobre o escravo.” (31–
32).
3
O ESCRAVO BOM E FIEL
A verdade da Palavra de Deus é sempre
contracultural, e a ideia de se tornar um
escravo não é, com certeza, uma exceção.
Na verdade, é difícil imaginar um conceito mais
desagradável à sensibilidade moderna do que o da
escravidão. A sociedade ocidental, em particular,
dá um elevado valor à liberdade pessoal e
liberdade de escolha. De modo que, apresentar as
boas novas em termos de relacionamento
escravo/mestre é contrário a tudo o que a nossa
cultura mais preza. Tal abordagem é controversa,
confrontadora e politicamente incorreta. Contudo,
é precisamente a forma com que a Bíblia fala sobre
o que significa seguir a Cristo.
A Escravidão, no Ensino de
Jesus
Ao apresentar o evangelho através das lentes
da escravidão, estamos seguindo o exemplo do
próprio Jesus. Nosso Senhor não defendeu nem
denunciou a instituição da escravidão, como
existia em seus dias. Mas, encontrou nela uma
perfeita analogia, para ilustrar certas verdades a
respeito do evangelho e o reino de Deus. Como um
estudioso explica:
Jesus rotineiramente evocava a figura do escravo em seus
ensinos. . . . Para os comentaristas modernos, a figura de
escravos e de escravidão, antes e acima de tudo, é geralmente
uma linguagem metafórica. Para Jesus, os escravos e a
escravidão faziam parte do tecido da vida cotidiana. Jesus
contava com a figura do escravo em seu discurso, não por que o
jargão da escravidão fizesse parte de sua herança retórica ou
filosófica, mas porque os escravos faziam parte do cotidiano no
mundo em que ele viveu: seja cozinhando, colhendo grãos ou
absorvendo golpes.(1)

Jesus extraiu muitas de suas ilustrações e


parábolas do mundo escravo de seus dias.(2) Em
seus ensinos, os escravos poderiam estar
trabalhando nos campos, colhendo os produtos da
vinha, fazendo os convites para um casamento,
supervisionando as tarefas de casa ou prestando
assistência em ocasiões especiais para a família.(3)
Qualquer que fosse a menção específica, Cristo
repetidamente usava a imagem da escravidão
como a melhor analogia para esclarecer as
profundas realidades espirituais.
A partir dos ensinos de Jesus(4), aprendemos
que os escravos não são maiores que o seu mestre,
nem ficam íntimos dos planos de seus mestres.
Eles devem prestar contas ao mestre sobre como
usam os recursos deles, mesmo em sua ausência.
São também responsáveis pelo modo como tratam
seus companheiros escravos e estão sujeitos à
punição considerável, se forem impiedosos com
outros. Espera-se que os escravos obedeçam e
honrem ao seu mestre, sem qualquer reclamação; e
o escravo fiel será honrado por seu serviço
diligente. Além disso, o escravo pode esperar ser
tratado, pelos de fora, da mesma maneira com que
seu mestre o é. Se seu mestre é tratado com
desprezo, o escravo não deve esperar para si um
tratamento melhor.
Jesus também usou a linguagem do mundo
escravo para definir a realidade do que significa
segui-Lo. O discipulado, assim como a escravidão,
implica uma vida de total abnegação; uma humilde
disposição em relação a outros; uma devoção, com
coração sincero, dirigida somente para o Mestre;
uma inclinação a obedecer, em tudo, aos seus
mandamentos; um desejo de servi-Lo em sua
ausência, e uma motivação que deriva de saber que
Ele está sendo agradado.(5) Embora tenham sido,
anteriormente, escravos do pecado, os seguidores
de Cristo recebem liberdade espiritual e descanso
para suas almas, através de seu relacionamento
salvífico com Ele.(6)
Com o pano de fundo histórico da escravidão,
o chamado do nosso Senhor ao sacrifício pessoal
se torna ainda mais vívido.(7) A vida de um escravo
era de completa rendição, submissão e serviço ao
mestre — e as pessoas dos dias de Jesus
reconheceriam imediatamente o paralelo. O
convite de Cristo para segui-Lo era um convite
para aquele mesmo tipo de vida.
Tornando Isto Algo Pessoal
Em todo o Novo Testamento, os crentes são
repetidamente chamados a abraçar a perspectiva
daqueles que pertencem a Cristo, e, portanto, em
amor submeterem-se a Ele como Mestre. Esta
perspectiva tem sérias implicações na forma com
que nós, crentes, pensamos e agimos. Considere,
por exemplo, os cinco paralelos seguintes entre o
cristianismo bíblico e a escravidão do primeiro
século.

PROPRIEDADE EXCLUSIVA
Como vimos no capítulo 2, a lei romana
considerava os escravos como “uma propriedade
em absoluto controle de um dono.”(8) Os servos
contratados, assim como os empregados da
atualidade, podiam escolher seus mestres e
podiam parar de trabalhar, caso quisessem, mas os
escravos não tinham escolhas. Fossem eles
vendidos à escravidão ou nascidos assim, os
escravos pertenciam inteiramente ao seu
possuidor.
O Novo Testamento suscita este tema, ao
explicar tanto o passado pecaminoso do crente
quanto o seu relacionamento presente com Cristo.
(9) Embora tenhamos nascido escravos do pecado,
tendo herdado de Adão uma condição de
escravidão, fomos comprados por Cristo, por sua
morte na cruz.(10) Fomos comprados por preço;
portanto, não estamos mais sob a autoridade do
pecado. Ao contrário, estamos sob a posse
exclusiva de Deus.(11) Cristo é nosso novo Mestre.
(12) Como Paulo fala em Romanos: “Graças a Deus
porque, outrora, escravos do pecado, contudo,
viestes a obedecer de coração à forma de doutrina
a que fostes entregues; e, uma vez libertados do
pecado, fostes feitos [escravos] da justiça” (Rm.
6.17–18).
Como cristãos, somos parte de “um povo
exclusivamente seu” (Tito 2.14), tendo-nos
juntado à multidão daqueles que “são de Cristo
Jesus” (Gl. 5.24) e que O adoram como nosso
“Senhor no céu” (Cl. 4.1). Assim como os escravos
do primeiro século recebiam novos nomes de seus
senhores terrenos,(13) também cada um de nós
receberá um novo nome de Cristo. Ele mesmo
prometeu, em Apocalipse 3.12, ao que vencesse:
“Gravarei também sobre ele o nome do meu Deus,
o nome da cidade do meu Deus, a nova Jerusalém
que desce do céu, vinda da parte do meu Deus, e o
meu novo nome.”
Os crentes, no estado eterno, servirão o
Senhor como seus escravos, para sempre. “e na sua
fronte está o nome dele” (Ap. 22.4). A imagem é
inevitável, como um comentarista explica: “
‘Escrever o nome sobre’ alguma coisa é uma
expressão figurativa comum em Hebraico, para
denotar que se tomou posse absoluta de algo e a
tornou completamente sua”.(14) Receberemos o
nome de Cristo, porque seremos eternamente sua
possessão exclusiva.

SUBMISSÃO COMPLETA
Ser um escravo não significava apenas
pertencer a alguém, mas também estar sempre
disponível para obedecer, em tudo, àquela pessoa.
O único dever do escravo era cumprir os desejos do
mestre; e o escravo fiel era desejoso de assim o
fazer, sem hesitação ou queixas. Afinal, “os
escravos não tinham outra lei, a não ser a palavra
de seu senhor; não possuíam qualquer direito
pessoal; eles eram absoluta possessão de seu
mestre, e sujeitos a prestar-lhes inquestionável
obediência.”(15)
Com base nesta imagem, repetidas vezes o
Novo Testamento conclama os crentes a fielmente
obedecerem ao Mestre. Como explica um autor:
Assim como Cristo é o Senhor, o cristão é um escravo, devendo
obediência sem questionamento. Paulo compara, explícita e
literalmente, a vida espiritual com a escravidão (e.g.Cl. 3.22-
24), fala de marcas de escravo, selo da possessão de Cristo, e
elabora em detalhe a concepção do cristão, como tendo sido
comprado e pertencendo ao seu Senhor: “não sois de vós
mesmos...porque fostes comprados por preço”. Estar vivo,
afinal, significa trazer “fruto para o meu trabalho” — o
escravo existe somente para trabalhar! (I Co. 6.9,20; Fp. 1.22).
Assim representada, a consagração é uma completa submissão
moral à reivindicação absoluta de Cristo e seu direito de
propriedade.(16)

A submissão ao senhorio de Cristo — uma


atitude do coração que se exercita na obediência a
Ele — é a marca característica daqueles que são
genuinamente convertidos. 1 João 2.3 é claro
neste sentido: “sabemos que o temos conhecido
por isto: se guardamos os seus mandamentos”.
Como seus escravos, espera-se de nós “a
obediência” a Jesus Cristo (1 Pe. 1.2) e que
apresentemos “os [nossos] corpos por sacrifício
vivo, santo e agradável a Deus, que é o [nosso]
culto racional” (Rm. 12.1), e a [guardarmos] os
seus mandamentos e [fazermos] diante dele o que
lhe é agradável” (1 Jo. 3.22). “Porque fostes
comprados por preço”, disse Paulo aos Coríntios,
“agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo”
(1Co. 6.20). E acrescentou: “Portanto, quer
comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer,
fazei tudo para a glória de Deus” (10.31).
Aqueles que professam pertencer a Cristo,
mas persistem em padrões de desobediência,
traem a realidade da profissão que fazem. O
Apóstolo João declara: “Se dissermos que
mantemos comunhão com ele e andarmos nas
trevas, mentimos e não praticamos a verdade” (1
Jo 1.6). Isto é especialmente verdade quanto aos
falsos mestres, os quais o Novo Testamento
descreve como “escravos da corrupção” (2 Pe 2.19)
e como quem serve não ao Senhor Jesus Cristo, “e,
sim a seu próprio ventre” (Rm. 16.18). Estes são
“homens ímpios, que transformam em
libertinagem a graça de nosso Deus e negam o
nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo”
(Judas 4; cf. 2 Pe 2.1). O verdadeiro homem de
Deus, em contraste, é “o [escravo] do Senhor” que
faz de si mesmo “útil ao seu possuidor, estando
preparado para toda boa obra” (2 Tm. 2.24, 21).

DEVOÇÃO SINGULAR
A vida de um escravo, na época do Novo
Testamento, pode ter sido difícil, mas era
relativamente simples. Os escravos tinham um
alvo principal: realizar o desejo de seu mestre. Em
áreas nas quais lhes eram dados comandos diretos,
era exigida sua obediência; nas áreas em que não
eram dados comandos diretos, eles precisavam
encontrar formas de agradar seu mestre o melhor
que pudessem. Este tipo de dedicação focada, que
marcou a escravidão do primeiro século, também
caracterizou o cristianismo bíblico. Como os
escravos, também devemos ser dedicados, só e
totalmente, ao nosso Mestre. O que deve ser nossa
maior preocupação está resumido nas palavras de
Cristo: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo
o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu
entendimento e de toda a tua força” (Marcos
12.30). Tal devoção exclusiva torna impossível
servir a Deus e a outros senhores ao mesmo
tempo. Não podemos, simultaneamente, servir a
Deus e ao dinheiro; adorar o verdadeiro Deus e aos
ídolos; ou viver de acordo com o Espírito e com a
carne.(17)
Em tudo devemos fazer “o que é agradável
diante dele” (Hb. 13.21). Esta era a motivação por
trás das palavras aos Coríntios: “É por isso que
também nos esforçamos, quer presentes, quer
ausentes, para lhe sermos agradáveis” (2 Co. 5.9).
Os crentes devem viver “para o seu inteiro agrado”
(Cl. 1.10), andar de modo a “viver e agradar a
Deus” (1 Ts. 4.1), e fazer aquilo que é “agradável a
Deus” (Rm. 14.18). Somos chamados a buscar a
sua glória em tudo que fazemos, desejando nos
conduzir de um modo digno de seu nome.(18) Em
última instância, a única coisa que importa é a
aprovação e a recompensa do Mestre. Para o
escravo fiel, esta é uma motivação suficiente.

DEPENDÊNCIA TOTAL
Como participante da família do seu senhor,
os escravos eram completamente dependentes dos
mestres nas necessidades básicas da vida,
incluindo alimentação e abrigo. Suas refeições
normalmente consistiam de milho, e por vezes
outros grãos ou pão. “Além de milho ou pão, o sal
e óleo também eram comumente providos. Nem
carne, nem vegetais faziam parte da dieta regular
dos escravos, mas, ocasionalmente, quando o figo
e outras frutas não eram abundantes, recebiam
uma pequena quantidade de vinagre, peixe salgado
ou azeitonas.”(19) Em relação à habitação, os
escravos domésticos viviam usualmente com seus
mestres, seja em senzalas separadas ou, quando a
família era pequena, onde houvesse
disponibilidade de espaço.(20) Embora isso fosse
básico, da perspectiva atual tais provisões eram
geralmente adequadas. Além do mais, isto dava
uma vantagem significativa sobre os que não eram
escravos. Ao contrário das pessoas livres, os
escravos não precisavam se preocupar em achar
algo para comer ou um lugar para dormir. Visto
que suas necessidades eram supridas, eles podiam
se concentrar inteiramente em servir o seu mestre.
Mais uma vez, o paralelo com a vida cristã é
impressionante. Como crentes, podemos nos
concentrar nas coisas que Deus nos chamou a
fazer, confiando que Ele vai suprir nossas
necessidades. “Não vos inquieteis, dizendo: Que
comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos
vestiremos? Porque os gentios é que procuram
todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que
necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro
lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas
coisas vos serão acrescentadas.” (Mt. 6.31-33).
Aqueles cuja maior prioridade é agradar a Deus
podem estar certos de que Ele tomará conta deles.
(21)
Ninguém entendia este princípio melhor do
que o apóstolo Paulo. Como um “escravo de
Cristo”, ele havia desistido de tudo para servir o
seu Senhor. Seu ministério não foi fácil,
humanamente falando. Ele foi repetidamente
espancado, preso, posto em perigo e ameaçado de
morte. No entanto, e apesar de tudo, Deus sempre
o proveu com tudo de que ele precisava, para que
pudesse cumprir fielmente o seu ministério. “Não
andeis ansiosos de coisa alguma”, ele escreveu aos
Filipenses, “em tudo, porém, sejam conhecidas,
diante de Deus, as vossas petições, pela oração e
pela súplica” (4:6)
No mesmo capítulo, ele explica que aprendeu
o segredo de viver contente, não importando as
circunstâncias. Consequentemente, ele podia
declarar: “Tudo posso naquele que me fortalece”
(v. 13). O contentamento de Paulo resultava,
tanto por confiar em Cristo completamente,
quanto por avaliar corretamente suas
necessidades. Como ele esclareceu a Timóteo:
“Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos
contentes.” (1 Tm. 6:8).
Baseando-se em toda uma vida de confiança
no Mestre, Paulo podia seguramente dizer aos
Filipenses: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza
em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma
de vossas necessidades” (4.19). Ele havia
igualmente dito aos Coríntios: “Deus pode fazer-
vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo
sempre, em tudo, ampla suficiência,
superabundeis em toda boa obra” (2 Co. 9:8). O
próprio Paulo dependia de Cristo a cada dia,
descansando nas promessas de Deus para ele:
“Minha graça te basta, porque o poder se
aperfeiçoa na fraqueza” (2 Co. 12.9). Mesmo em
meio a circunstâncias aparentemente terríveis,
Paulo permaneceu confiante e grato.(22) O simples
fato de saber que estava aos cuidados do Mestre
tornou-lhe possível enfrentar qualquer
dificuldade. Como ele escreveu aos crentes em
Roma:

Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou


angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou
espada?...porque estou bem certo de que nem a morte, nem a
vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do
presente, nem do porvir, nem poderes, nem a altura, nem a
profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-
nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor”
(Rm. 8.35, 38–39).

Paulo podia listar todas estas ameaças


potenciais, a partir de sua experiência pessoal.(23)
Ele sabia, por experiência própria, que nenhuma
delas poderia afastar dele o amor do seu Mestre.

RESPONSABILIDADE PESSOAL
Em tudo que faziam, os escravos do primeiro
século prestavam conta inteiramente aos seus
senhores. Afinal de contas, a avaliação do mestre
era a única coisa que importava. Se o mestre
estivesse satisfeito, o escravo igualmente se
beneficiaria. Uma vida inteira de fidelidade
poderia até mesmo ser, eventualmente,
recompensada com uma alforria, ou liberdade.
Mas, se o mestre estivesse insatisfeito, o escravo
poderia esperar uma disciplina adequada,
geralmente algo severo, como açoites. Punições
mais extremas, que incluíam “crucificação, quebrar
ossos, amputações, betume quente, cadeias no
pescoço e estiramento na mesa”(24) eram raras,
mas permissíveis pela lei romana. Um sistema
forte como este, de recompensas e punições,
proviam um poderoso estímulo para que os
escravos trabalhassem com afinco e procedessem
bem.
Da mesma forma, os crentes devem ser
impelidos pela certeza de que um dia estarão
diante de Cristo. O desejo de agradar ao Mestre é
intensificado por saber que “cada um de nós dará
contas de si mesmo a Deus” (Rm. 14.12). “Porque
importa que todos nós compareçamos perante o
tribunal de Cristo, para que cada um receba
segundo o bem ou o mal que tiver feito, por meio
do corpo” (2 Co. 5.10). Cada um de nós, como a
parábola do [escravo] diligente, retratada em
Mateus 25, anseia por ouvir o Senhor dizer
aquelas palavras de júbilo: “Muito bem, [escravo]
bom e fiel…entra no gozo do teu senhor” (vv
21,23). Somos encorajados, por saber que todos os
que perseverarem com fidelidade receberão “a
coroa da justiça, a qual o Senhor, reto juiz, ..dará…
a todos quantos amam a sua vinda” (2 Tm. 4.8).
No contexto da igreja primitiva, um número
significativo de cristãos servia como escravos
romanos. Paulo os encorajou, lembrando que, ao
servirem os senhores terrenos, em ultima análise
estavam servindo ao Senhor. Em tais casos, a
motivação para a obediência passou de um mero
incentivo terreno para uma recompensa celestial.
Aos escravos de Colossos, Paulo escreveu:
“[Escravos], obedecei em tudo ao vosso senhor
segundo a carne, não servindo apenas sob
vigilância, visando tão somente agradar homens,
mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor.
Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração,
como para o Senhor e não para homens, cientes de
que recebereis do Senhor a recompensa da
herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo.”
(Cl. 3:22–24; cf. Ef. 6.5–8).
Os senhores cristãos também precisavam
lembrar que possuíam um Mestre celestial. Paulo
continua, exortando aos senhores de escravos em
Colossos, com estas palavras: “Senhores, tratai os
[escravos] com justiça e com equidade, certos de
que também vós tendes Senhor no céu” (Cl. 4.1; cf.
Ef. 6.9).
Lembrar-se do Senhor no céu era uma força
poderosa para os primeiros cristãos — fossem
escravos ou livres. E, da mesma forma, isto deveria
também nos motivar. Não é realmente importante
que a nossa fidelidade seja recompensada nesta
vida. Um dia, estaremos diante de Cristo, para
sermos recompensados integralmente. Que dia
glorioso será aquele! Nas palavras de Charles
Spurgeon:

[Naquele dia], o Senhor concederá ao seu povo uma


recompensa abundante por tudo o que eles fizeram. Não que
mereçam qualquer recompensa, mas, primeiramente, Deus deu
a eles a graça de fazerem boas obras, depois tomou suas boas
obras como evidência de um coração renovado, e, então, deu a
eles a recompensa por aquilo que fizeram. Oh, que felicidade
será ouvi-Lo dizer: “Bem está, servo bom e fiel” — e entenderes
que trabalhastes para Cristo, enquanto ninguém o percebia, e
descobrires que Cristo avaliou toda a questão — em favor de
ti, que servistes ao Senhor, debaixo de falsas acusações — e,
finalmente, observares que o Senhor Jesus separou o joio do
trigo e sabia que eras um de seus amados. Ele, enfim, dirá:
“Entra no gozo do teu Senhor”; oh, que júbilo para ti haverá.
(25)

(1) Jennifer A. Glancy, Slavery in Early Christianity


(Minneapolis: Fortress Press, 2006), 129. Nos quatro
Evangelhos, por exemplo, tanto um centurião Gentio (Lc 7.2–
10) quanto um sacerdote Judeu (Mat. 26.51; Mc 14.47; Lc.
22.50; Jo. 18.10, 17–18, 26) são citados como sendo donos de
escravos.
(2) Karl Heinrich Rengstorf escreveu: “Nas parábolas isto
também é verdade, mas o compromisso total de douloi e a
reivindicação total de Kyrios servem para ilustrar o senhorio
incondicional de Deus e a responsabilidade incondicional dos
fiéis a ele” (Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, eds.; Geoffrey
Bromiley, trad. Theological Dictionary of the New Testament
Abreviado em Um Volume [Grand Rapids: Eerdmans, 1985],
s.v. “Doúlos,” 184).
(3) Cf. Mt. 13.27–28; 21.34–36; 22.3–10; 24.45; Mc 12.2–4;
13.34; Lc 14.17–23; 15.22; 20.10–11.
(4) Cf. Mt. 10.24; 18.23, 26–33; 24.45–50; 25.14–30; Lc. 6.40;
12.37–47; 17.7–10; 19.13–22; Jo.13.16; 15.15–20.
(5) Cf. Mt. 24.44–46; 25.21; Mc. 10.44; Lc. 6.46; 12.37; 14.26–
33; 16.13; Jo.14.15, 21.
(6) Ver Jo. 8.34, 36, e Mt. 11.28–30.
(7) Como Michael Card explica, “ ‘toma a sua cruz e siga-me’.
Esta era uma linguagem de escravos, vindas de Jesus, pois a
crucificação era o tipo de morte designada aos escravos (Mt.
10.38; 16.24)”. . . . ‘Tomai sobre vós o meu jugo,’ Jesus convida.
Tome o seu lugar juntamente com outros que estão se
escravizando por mim e pelo evangelho.” (A Better Freedom
[Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009], 23).
(8) Thomas Wiedemann, Greek & Roman Slavery (New York:
Routledge, 1988), 15.
(9) S. Scott Bartchy observou essa distinção entre escravos e
libertos: “Certamente que, se o liberto não firmasse um
contrato restritivo quanto ao preço de sua liberdade, ele estaria
em vantagem sobre os escravos, visto que podia anunciar que
estava determinado a cessar sua escravidão” (First-Century
Slavery & 1Corinthians 7.21 [Eugene, OR: Wipf and Stock
Publishers, 2002], 74).
(10) Rm. 5.18–19; Ef. 2.1–3; cf. 1 Pe. 1.18–19; Ap. 5.9.
(11) Rm. 6.14; 1 Co. 7.23.
(12) Cf. Leland Ryken, James C. Wilhoit, Tremper Longman III,
eds., “Slave, Slavery,” The Dictionary of Biblical Imagery (Downers
Grove, IL: InterVarsity Press, 1998), 797. O artigo observa que,
“na perspectiva bíblica, toda pessoa é sujeita à escravidão, ou ao
pecado ou a Deus”. John J. Pilch repete este pensamento em
“Slave, Slavery, Bond, Bondage, Oppression.” Ele observa que,
“na Bíblia, ninguém é realmente ‘livre’, mas é sempre escravo de
alguém.” Israel aceitou com gratidão este novo status de
‘escravos de Deus’. Paulo sugere o mesmo para os Cristãos.
(Donald E. Gowan, ed Westminster Theological Wordbook of
the Bible [Louisville: Westminster John Knox Press, 2003],
475–76).
(13) William Blair, An Inquiry into the State of Slavery amongst
the Romans (Edinburgh: Thomas Clark, 1833; repr., Detroit:
Negro History Press, 1970), 116. Blair explica que “os
proprietários, na primeira aquisicão de escravos, davam-lhes
nomes que pensavam ser adequados: os nomes dos escravos
comprados eram, mais comumente, tirados do nome de seu
país, ou do local de nascimento, ou de nomes comuns lá
utilizados, ou do local da compra; os escravos que haviam sido
tomados na guerra recebiam, não raro, o nome de seus
captores.”
(14) A. Plummer, The Revelation of St. John the Divine, The
Pulpit Commentary (repr., Grand Rapids: Eerdmans, 1978),
113.
(15) William Barclay, The Letters of James and Peter
(Louisville: Westminster John Knox Press, 2003), 39.
(16) Reginald E. O. White, Christian Ethics (Macon, GA: Mercer
University Press, 1994), 166. White é ex-diretor da Faculdade
Teológica Batista da Escócia.
(17) Cf. Mt. 6.24; Rm 7.5–6; 6.11–18; 1 Ts. 1.9.
(18) Cf. 1 Co. 10.31; Cl. 2.12; 3.17; 1 Ts. 2.12.
(19) Blair, An Inquiry into the State of Slavery, 95.
(20) Ver Jennifer A. Glancy, Slavery in Early Christianity, 45.
(21) Cf. Ryken,Wilhoit, and Longman, “Slave, Slavery,” The
Dictionary of Biblical Imagery, 798. O artigo observa que “a relação
escravo-mestre se assemelha à nossa com Deus, porque somos
chamados a prestar contas a ele. . . [da mesma forma] ele
também assume a responsabilidade para conosco: ‘Como os
olhos dos [escravos] estão fitos nas mãos dos seus senhores,
assim os nossos olhos estão fitos no SENHOR, nosso Deus, até
que se compadeça de nós.’ (Sl 123.2).”
(22) Cf. Atos 16.25; 1 Ts. 5.18.
(23) Para uma lista de provações que Paulo suportou pela causa
de Cristo, veja 2 Coríntios 11.23–33.
(24) Murray J. Harris, Slave of Christ (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1999), 42.
(25) Charles Spurgeon, “O Grande Julgamento,” sermão no.
1076, Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim
Publications, 1984), 18:587.
4
O SENHOR E MESTRE
[PARTE 1]
A té este ponto, consideramos a metáfora
bíblica quanto à escravidão, do ponto de
vista do escravo, focalizando a palavra
doulos e suas implicações na vida cristã. Neste
capítulo, voltaremos nossa atenção ao outro
aspecto do relacionamento escravo/senhor,
buscando entender o que a Bíblia quer dizer,
quando se refere a Jesus Cristo como nosso
“Senhor” e “Mestre” (ou kyrios em Grego). Vamos
iniciar, considerando a verdade que Ele é Senhor e
Mestre sobre sua igreja. Então, nos próximos dois
capítulos, aprofundaremos o estudo, considerando
o lugar de direito de Cristo como Mestre sobre
cada pessoa e cada coisa que existe neste universo.

Era manhã de 06 de julho de 1415. O maior


pregador de sua geração — e um dos principais,
em toda a história da igreja — enfrentava mais um
julgamento. Este seria, contudo, o último.
Ele já havia suportado sete meses de um
aprisionamento infundado. Embora lhe tivessem
prometido um tratamento seguro no trânsito de
seu julgamento, foi levado e jogado na prisão logo
que ali chegara. A princípio, ele foi posto em um
calabouço escuro e sombrio, próximo a um esgoto.
As condições eram tão repugnantes que logo ficou
muito doente, e teria morrido, se não o
realocassem. Mas, os trimestres subsequentes não
foram nada melhores. Logo se achou confinado a
uma torre alta de um castelo, constantemente com
grilhões nos pés, e mãos acorrentadas à parede,
todas as noites.
Embora fosse interrogado por várias ocasiões,
nunca lhe era dada oportunidade adequada para
defender-se e esclarecer os seus pontos. O
processo oficial contra ele, que começou em 05 de
junho, consistia nada mais do que um julgamento
simulado. Ao tentar explicar o que escrevera, sua
voz foi abafada pelos gritos furiosos de seus
acusadores, exigindo que seus livros fossem
queimados. Mesmo tendo apelado pela razão, por
sua consciência e, até mesmo, pela Palavra de
Deus, suas palavras foram completamente
desprezadas e ignoradas. Ele finalmente se calou,
sabendo que nada do que dissesse teria alguma
utilidade. E, mesmo o seu silêncio foi torcido por
seus inimigos, que o interpretaram como um
reconhecimento de culpa.
Assim, na manhã de 06 de julho, este
inocente homem de Deus foi conduzido à catedral,
para enfrentar a condenação final. Seus
acusadores o vestiram com vestes sacerdotais e
puseram em sua mão um cálice da ceia do Senhor,
mas apenas para ridicularizá-lo. Logo o despiram
daquelas vestimentas, retirando peça por peça,
como uma final demonstração simbólica de sua
excomunhão e vergonha pública.
Tendo sido rotulado como herege e
denunciado à corte, foi conduzido ao local de
execução — um campo fora da cidade. Ao recusar
novamente a se retratar, foi atado à estaca com
cordas molhadas, enquanto uma cadeia circundava
o seu pescoço. Aos seus pés, foram colocados
madeira, feno e gravetos, enquanto as provocações
de seus executores se misturavam com o
murmúrio da multidão curiosa. Logo o fogo foi
acesso e a fumaça começou a encher o ar. No
entanto, enquanto as chamas subiam ao seu redor,
este fiel mártir clamou, não em desespero, mas
com as palavras de um hino: “Cristo, Filho do Deus
vivo, tem misericórdia de nós; Cristo, Filho do
Deus vivo, tem misericórdia de mim; Tu, que
nasceste da Virgem Maria...” E quando ele
começou a cantar pela terceira vez, o vento soprou
a chama em seu rosto; e, assim, orando consigo
mesmo, movendo seus lábios e sua cabeça, ele
expirou no Senhor”.(1)
Contudo, as chamas acesas, naquele verão de
1415, foram pálidas em comparação ao fogo da
reforma, que foi propagada pela vida de John
Huss.(2) Sua influência já havia se estendido pela
Boêmia e outras partes do sacro Império Romano.
Pouco depois, haveria de se espalhar por uma
parte obscura da Alemanha, onde moldaria os
pontos de vista de um monge chamado Martinho
Lutero. Após descobrir os escritos de Huss, Lutero
exclamou: “Fiquei maravilhado e atônito. Eu não
podia entender por qual motivo queimaram um
tão grande homem, que explicava as Escrituras
com tanta gravidade e habilidade.”(3) Embora
separados por um século, Huss se tornaria um dos
maiores mentores de Lutero, ao ponto de o
próprio Lutero chegar a ser conhecido como o
“Huss da Saxônia.”(4)
Mas, por que a Igreja Católica Romana levou
John Huss à morte? Se ele era um nobre erudito e
hábil para ensinar a Escritura, o que provocou sua
condenação e execução?
Huss não iniciou sua vida em desacordo com
a igreja. Na verdade, desde a mais tenra idade ele
desejava se tornar padre. Nasceu por volta de
1370, em uma humilde família campesina, em
Husinec, na Boêmia.(5) Advindo desta extrema
pobreza, Huss buscou a vida de sacerdote, em
parte pelo encorajamento de sua mãe, mas,
principalmente, porque isto garantiria a ele uma
vida decente. Mais tarde, em 1402, ele foi
ordenado.
Quando jovem, ele estudou na Universidade
de Praga, onde obteve várias graduações: bacharel
em artes (em 1393), bacharel em teologia (em
1394) e mestre em teologia (em 1396). Em 1398,
começou a lecionar na universidade. Sua ascensão
foi tão rápida que, por volta de 1401, ele se tornou
deão da faculdade de filosofia e, por volta de 1402,
tornou-se reitor da universidade. Foi durante este
tempo que Huss foi grandemente influenciado
pelos escritos de John Wycliffe, o grande
Reformador Inglês, da geração anterior. Os pontos
de vista de Wycliffe, especialmente no tocante à
autoridade das Escrituras e à corrupção do
papado, deixariam uma marca indelével no
brilhante jovem Huss.
Logo após sua ordenação (e em acréscimo às
suas responsabilidades acadêmicas), Huss se
tornou pregador na Capela de Belém — a principal
igreja em Praga e um edifício que poderia conter
até três mil pessoas.(6) Ele pregou na língua
Boêmia, e não em Latim, uma prática que o
distinguiu e fez dele alguém extremamente
popular com o povo, e impopular com o clero.
Ensinar através das Escrituras causou um
impacto dramático em sua vida, a tal ponto que
ele começou a reconhecer a falência do sistema
Católico Romano. A respeito de sua transformação
espiritual, ele escreveu: “Quando eu era jovem, na
idade e na razão, eu também pertenci à tola seita
[do Catolicismo Romano]. Mas, quando o Senhor
me deu o conhecimento da Escritura, descartei
esse tipo de estupidez de minha mente tola.”(7)
Era este compromisso com a Bíblia que se tornaria
a marca de seu ministério. Em outro lugar, ele
afirmou: “Eu humildemente confio e me apego às
Santas Escrituras, desejando guardar, crer e
asseverar tudo o que ela contém, enquanto houver
fôlego em mim.(8)
Quando a Igreja Católica Romana autorizou a
venda de indulgências em Praga, Huss denunciou
publicamente a prática — o que acabou
conduzindo à sua excomunhão. Porém, mesmo
depois de censurado pelo papa, continuou
pregando na Capela Belém. Quanto mais pregava,
mais profundamente descansava na Bíblia, a qual
ele, sem margem de dúvida, proclamava ser a
autoridade final. Como disse um historiador:
Não era de admirar que a Capela Belém estivesse sempre
lotada. Seu púlpito não lidava com abstrações teológicas. A
espada do Espírito, que é a Palavra de Deus, na mão do
pregador era uma arma afiada, manejada com destreza, para
expor os pecados e os subterfúgios da consciência. Era a
Palavra de Vida oferecendo conforto e graça salvadora. Huss
foi um pregador à geração de sua época e às congregações que
se empenhavam em ouvi-lo. Suas mensagens queimavam, com
zelo pela religião pura e afinidade pelos homens. Ele era um
pregador de todo o coração. O principal mandamento de
Cristo, como ele lembrou ao bispo de Praga, era pregar o
evangelho a toda criatura; e quando foi ordenado pelo
arcebispo e pelo papa a não mais ocupar o púlpito, ele
solenemente declarou, em uma carta ao chefe dos oficiais civis,
na Boêmia, que não ousaria obedecer àquelas ordens, pois,
fazer isto seria ofender “a Deus e a sua própria salvação”(9)

Para fazê-lo parar, as autoridades


eclesiásticas passaram um decreto, no qual
nenhum cidadão receberia a comunhão ou seria
enterrado no terreno da igreja, enquanto Huss
continuasse pregando. Então, com a finalidade de
poupar o povo desta perda, ele finalmente cedeu.
Em 1412, retirou-se para o campo, onde estudou e
escreveu febrilmente.
A maior obra de Huss, De Ecclesia (A Igreja),
apresentava as suas maiores discórdias com o
sistema Católico Romano. Foi lida publicamente
em Praga, em 1413, e continha pontos de vista
radicais. Por exemplo, Huss ensinou que a igreja
era composta por todos os cristãos predestinados
de todos os tempos. Isto contrastava com a
posição oficial da Igreja Católica Romana, a qual
ensinava que “o papa é a cabeça e os cardeais o
corpo da Igreja”.(10) Os leigos comuns não eram de
fato membros, mas apenas comungavam com a
igreja verdadeira, através da Mesa do Senhor (que,
para eles, se limitava ao pão).
Em De Ecclesia, Huss também afirmou que a
autoridade da Bíblia é maior que a autoridade da
igreja. Esta era uma ideia igualmente radical
naqueles dias, na qual Huss fora introduzido por
John Wycliffe. Cem anos depois, Martinho Lutero
reproduziria esta mesma convicção.
Porém, a principal razão para John Huss ser
sentenciado à morte foi esta: ele ensinou que
Jesus Cristo, somente, é a cabeça da igreja. Huss
denunciou os sacerdotes, cardeais e papas
corruptos de seus dias, como desqualificados para
qualquer tipo de liderança espiritual,
argumentando que a verdadeira autoridade
pertence a Cristo e à sua Palavra. Assim, ele
exclamou: “Se as declarações papais concordarem
com a lei de Cristo, elas devem ser obedecidas. Se
discordarem, então os discípulos de Cristo devem
permanecer leal e corajosamente com Cristo,
contra toda e qualquer bula papal, e, se necessário,
suportar maldição e morte. Quando o papa usa
seu poder de uma forma não bíblica, não é pecado
resisti-lo, é uma ordem.(11) Resumindo os ensinos
de Huss, o historiador Matthew Spinka escreveu:
Em um sermão a respeito de Pedro, Huss afirma que a Igreja
não é fundada sobre ele [Pedro], mas “na base mais segura, que
é Cristo Jesus”. Como apoio à sua afirmação, ele cita a
passagem de Paulo: “Porque ninguém pode lançar outro
fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo”. O
papa, que usurpou este poder, não deseja ouvir que Cristo
perguntou a Pedro três vezes, antes de conceder-lhe as chaves,
se ele O amava. Somente depois de Pedro declarar seu amor
por Cristo, foi que Ele lhe pediu: “apascenta minhas ovelhas”.
No entanto, o papa e muitos sacerdotes não amam a Deus e
não apascentam as ovelhas; o que fazem, contudo, é arrebatar
as chaves, a fim de possuírem poder terreno.(12)

Tais “declarações atingiram em cheio a raiz da


autoridade da igreja,”(13) e, em resposta, Roma o
queimou em uma estaca.
Não é de surpreender que a característica
predominante em De Ecclesia “seja o tema de
Cristo como o único cabeça da Igreja. Ninguém,
nenhum mero homem, pode ocupar esta posição,
no mesmo sentido em que Cristo ocupa. Nenhum
apóstolo jamais reivindicou ser a cabeça da Igreja,
mas apenas servos do cabeça, Jesus Cristo.”(14)
Falando sobre os réprobos líderes Católicos
Romanos, Huss exclamou: “que se envergonhem os
discípulos do Anticristo, os quais, vivendo
contrários a Cristo, falam de si mesmos como
sendo o melhor e maior motivo de orgulho da
santa Igreja de Deus. Estes, poluídos pela avareza
e arrogância do mundo, são chamados
publicamente de cabeça e corpo da santa Igreja. De
acordo com o evangelho de Cristo, contudo, são
considerados os menores”.(15) No final da De
Ecclesia, ao fazer a conclusão de sua maior obra,
John Huss encerrou, agradecendo a Deus pelo fato
da vida da igreja não depender do papa, porque
Jesus Cristo é o seu verdadeiro Senhor e Mestre.
(16)
A Igreja Católica matou John Huss por ter
desafiado a autoridade papal, e ele fez isto ao
ensinar que Jesus Cristo, somente, é o cabeça da
igreja. Embora o papa e os cardeais quisessem para
si mesmos este status, Huss permaneceu convicto
e inabalado. E, através de suas pregações, os expôs
como usurpadores. Como um historiador
observou: “A carreira de Huss deu início ao
movimento de...insurgência contra a autoridade
absoluta do papa e da Igreja Católica Romana.”(17)
O compromisso de Huss, ao senhorio soberano de
Cristo e à supremacia de sua Palavra, custou-lhe a
vida. No entanto, Deus usou sua firmeza para
impactar a história da igreja para sempre.
Jesus Cristo: O Senhor da sua
Igreja
Os Reformadores Protestantes que
sucederam John Huss, compartilharam do mesmo
compromisso com o senhorio de Cristo. Isto pode
ser visto, muito claramente, nos princípios da
Reforma, em solus Cristus (“Cristo somente”) e sola
Scriptura (“A Escritura somente”). Os
Reformadores insistiam em que Jesus Cristo, e
não o papa, é o cabeça da igreja. Da mesma forma,
a Palavra de Cristo, e não o magisterium, é a
autoridade final de fé e prática.
Esta convicção era a principal motivação de
Martinho Lutero, para romper a comunhão com
Roma. Em “Conversas à Mesa”, Lutero explicou:

A principal razão de meu desentendimento com o papa foi esta:


o papa se vangloriou de ser o cabeça da igreja, e condenou todos
os que não estivessem debaixo de seu poder e
autoridade...Além disso, tomou sobre si o poder, o governo e a
autoridade sobre a igreja cristã, sobre as Santas Escrituras e
sobre a Palavra de Deus, [dizendo que], nenhum homem, além
dele, deve presumir expor as Escrituras; isto segundo os seus
conceitos ridículos, de forma que fez de si mesmo o senhor
sobre a igreja.(18)

A arrogância inerente ao papado(19) era tal,


que Lutero observou:

Estou persuadido de que, se São Pedro, em pessoa, pregasse


hoje sobre todos os assuntos da Santa Escritura e apenas
negasse a autoridade, poder e primazia do papa, e, digamos,
afirmasse que o papa não é a cabeça de toda a cristandade, eles
o levariam a ser enforcado. Sim, se o próprio Cristo estivesse
novamente na terra e pregasse, não há dúvida de que o próprio
papa o crucificaria outra vez.(20)
João Calvino levantou objeções similares,
observando que os sacerdotes estavam mais
preocupados em apoiar a autoridade do papa do
que honrar a Cristo ou sua Palavra. Eles não se
importavam que “a glória de Deus fosse violada
com blasfêmias escancaradas, desde que ninguém
levantasse um dedo contra o primado da Santa Sé
[o papa] e contra a autoridade da santa Igreja
Mãe.”(21) Como contraste, Calvino afirmou ser
“Cristo o cabeça da Igreja”(22), argumentando que
“a constituição do corpo [a Igreja] estará em um
estado correto, se simplesmente o Cabeça, que
supre os vários membros com tudo o que eles
possuem, for permitido, sem qualquer obstáculo,
ter a preeminência.”(23) Afinal de contas, ‘É a
vontade de Deus governar e defender sua Igreja,
pela mediação de seu Filho. Esta é a explanação
que Paulo dá em Efésios: que Cristo está assentado
“à direita” do Pai, e “para ser o cabeça sobre todas
as coisas, o deu à igreja, a qual é o seu corpo”...Pela
mesma razão, a Escritura geralmente se refere a
Ele como Senhor, porque o Pai lhe deu autoridade
sobre nós’.(24) Nem o papa, nem o concílio da
igreja podem arrebatar de Cristo esta autoridade:
“Visto que Ele é o cabeça da igreja, todos os que
foram ordenados a governar sobre a igreja estão
sujeitos a Ele.”(25)
Com os nomes de Huss, Lutero e Calvino,
poderíamos listar muitos outros líderes cristãos,
como o reformador Protestante John Knox, o
puritano Escocês Samuel Rutherford e o teólogo
Americano Jonathan Edwards. Estes crentes fiéis
recusaram reconhecer qualquer outro, além de
Jesus, como o Senhor da Igreja — seja qual fosse o
pretendente usurpador, um papa ou um rei.(26)
Resumindo a perspectiva protestante em sua
maneira inimitável, o renomado pregador Charles
Spurgeon declarou:
De todos os sonhos que já iludiram os homens e,
provavelmente, de todas as blasfêmias que já foram proferidas,
nunca houve outra que seja mais absurda e que mais cresça, em
toda sorte de males, do que a ideia de que o Bispo de Roma
possa ser o cabeça da igreja de Jesus Cristo. Não, estes papas
morrem! E como a igreja poderia viver, se sua cabeça estivesse
morta? O verdadeiro cabeça vive para sempre, e a igreja vive
nEle”(27)

Em um sermão intitulado “Jesus, Nosso


Senhor”, Spurgeon tornou a questão muito clara:

A Igreja de Deus, de uma forma toda especial, chama Jesus de


“nosso Senhor”, pois não há, nem pode haver, qualquer outro
cabeça da Igreja, exceto o Senhor Jesus Cristo. É uma terrível
blasfêmia, que qualquer homem sobre a terra chame a si
mesmo de vigário de Cristo e o cabeça da igreja, e é uma
usurpação dos direitos da coroa do Rei Jesus, que qualquer rei
ou rainha seja chamado de cabeça da igreja; pois a verdadeira
igreja de Jesus Cristo não pode ter outro cabeça além do
próprio Cristo. Sou grato que não haja outro cabeça sobre a
igreja da qual sou parte, a não ser o próprio Jesus Cristo, nem
ouso ser membro de qualquer igreja que consinta ter outra
liderança que não seja a dEle.(28)

Assim como Charles Spurgeon, os fiéis têm


preservado, ao longo da história da igreja e através
do Espírito Santo, uma sincera devoção ao
verdadeiro cabeça, Jesus Cristo. Somente Ele é
Senhor de sua igreja, e esta posição não pode ser
ocupada por outro. John Huss e os Reformadores
que o sucederam entenderam isto, o que acabou
sendo a razão de terem rompido com o corrupto
sistema Católico Romano. O resultado histórico
foi a Reforma Protestante.
Mas, quais são as implicações práticas do
senhorio de Cristo para nós, como crentes, na
igreja de hoje? E como seu senhorio se conecta ao
paradigma escravo/mestre, apresentado no Novo
Testamento? Vamos considerar estas questões nos
dois próximos capítulos. E, fazendo isto,
descobriremos o quanto esta verdade é central,
não apenas para compreensão da organização
corporativa da igreja, mas também da nossa
própria identidade individual como cristãos.

(1) Matthew Spinka, John Hus at the Council Constance (New York:
Columbia University Press, 1968), 233. O nome “Huss” às
vezes se escreve “Hus.”
(2) Para mais detalhes sobre a vida de John Huss, veja Allen W.
Schattschneider, Through Five Hundred Years (Bethlehem, PA:
Comenius Press, 1974); e Oscar Kuhns, John Huss: The Witness
(New York; Eaton and Mains, 1907).
(3) Martin Luther, Mon. Hus., vol. 1, prefácio, em Herbert Brook
Workman e Robert Martin Pope, eds., The Letters of John Hus
(London: Houder & Stoughton, 1904), 1.
(4) Roger Olson, The Story of Christian Theology (Downers Grove,
IL: InterVarsity Press, 1999), 349.
(5) Husinec é uma República Tcheca nos dias atuais. Seu ultimo
nome é derivado da cidade na qual ele nasceu. Ele abreviou para
“Huss” (ou “Hus”), que significava “Ganso” na linguagem da
Boêmia. Isto se tornou uma espécie de apelido para John Huss
e uma referência na história da Igreja (por Lutero e outros)
quanto ao “ganso que foi cozido”, em referência a ele e à sua
execução.
(6) A Capela foi propositalmente denominada “Bethlehem” ou
“Casa do Pão” porque era um lugar onde a pessoa comum
poderia prontamente ser alimentada da Palavra de Deus.
(7) Matthew Spinka, John Hus’ Concept of the Church
(Princeton, NJ: Princeton University Press, 1966), 10.
(8) 550 Years of Jan Hus’ Witness (Genebra: World Alliance of
Reformed Churches, 1965), 1–2.
(9) David S. Schaff, John Huss: His Life, Teachings and Death after
Five Hundred Years (Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers,
1915), 41.
(10) Spinka, John Hus’ Concept of the Church, 261.
(11) Ibidem, 121.
(12) Ibidem, 63.
(13) Schaff, John Huss, 225.
(14) Spinka, John Hus’ Concept of the Church, 259.
(15) Ibidem, 261, citando De Ecclesia, 33.
(16) Ibidem, 289.
(17) Schaff, John Huss, 302–3.
(18) Martinho Lutero, Conversas à Mesa, ed. e trad. William
Hazlitt (London: Bell & Daldy, 1872), 203–4.
(19) Deve ser notado que o Catolicismo Romano ainda ensina a
infabilidade e autoridade do papa sobre a igreja. O teólogo
Católico Ludwig Ott, em seus Fundamentos do Dogma Católico
(Charlotte, NC: Tan Books, 1974), explica a visão Católica:
“Como juiz supremo da Igreja, o Papa tem o direito de trazer
todo assunto legal da Igreja perante sua corte, e acatar apelos
em todas as disputas da Igreja. Ele mesmo não é julgado por
ninguém (CIC 1556; Prima sedes a nemine judicatur), porque não
há maior juiz na terra do que ele. Pela mesma razão não há
apelo a uma corte mais alta contra o Papa” (286).
(20) Lutero, Conversas à Mesa, 234.
(21) John Calvin, Institutes of the Christian Religion, 2 vols., trad.
John Allen (Philadelphia: Presbyterian Board of Education,
1921), 1:25.
(22) Ibidem, 1:155.
(23) John Calvin, Calvin’s Commentaries, 22 vols. (Grand Rapids:
Baker, n.d.), 21:198. Calvino comentou sobre Colossenses 2.19.
(24) Calvin, Institutes of the Christian Religion, 1:451–52.
(25) John Calvin, Calvin: Commentaries, ed. Joseph Haroutunian
(Louisville: Westminster John Knox Press, 1958), 362. Calvino
comentou sobre João 12.12–15.
(26) Por exemplo, a coroa Inglesa tentou exercer controle
absoluto sobre a igreja na Escócia, durante o século 17. Para
saber mais sobre a história desses eventos, consulte William G.
Blaikie, The Preachers of Scotland (Edinburgh: T & T Clark,
1888). Na página 97, Blaikie explica: “A tentativa do Estado em
forçar uma nova liturgia na Igreja, sob risco de prisão e altas
penalidades, mostrou a determinação de anular a autoridade de
Cristo e tiranizar Sua herança, mesmo na área mais sagrada da
adoração. Por força de reação, foi lançada sobre a Igreja a
afirmação mais completa das reivindicações de Cristo como
Cabeça da Igreja, e o glorioso privilégio da Igreja em seguir sua
Cabeça divina. “
(27) Charles Spurgeon, “O Cabeça da Igreja,” sermão no. 839,
Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim
Publications, 1982), 14:621. Em outros escritos, Spurgeon
observou que “Cristo não resgatou sua igreja com o seu sangue
para que o Papa pudesse entrar e roubar-Lhe a glória. Ele não
veio do céu para a terra e derramou o seu coração para comprar
o seu povo, para que um pobre pecador, um mero homem, seja
colocado num pedestal e seja admirado por todas as nações,
chamando a si mesmo de representante de Deus na Terra.
Cristo sempre foi o cabeça da igreja “(Charles Spurgeon,"Christ
Glorified,” Metropolitan Tabernacle Pulpit, 60:592).
(28) Charles Spurgeon, “Jesus Nosso Senhor” sermão no. 2806,
Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim Publications,
1977), 48:558.
5
O SENHOR E MESTRE
[PARTE 2]
O s heróis da história da igreja defenderam
Cristo como cabeça, não baseados em
uma opinião arbitrária, mas porque
entenderam esta verdade inequívoca revelada nas
Escrituras. Efésios 5.23 afirma que “Cristo é o
cabeça da igreja”, e Colossenses 1.18 reafirma que
“Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o
princípio, o primogênito de entre os mortos, para
em todas as coisas ter a primazia”. No primeiro
capítulo aos Efésios, Paulo explanou que Deus, o
Pai, “pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para
ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a
qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo
enche em todas as coisas” (vv. 22-23). Outro texto
fala sobre crescermos “em tudo, naquele que é a
cabeça, Cristo” (Ef. 4.15) e “não retendo a cabeça,
da qual todo corpo...cresce o crescimento que
procede de Deus.”(Cl. 2.19).
Porém, o que o Novo Testamento quer dizer,
quando fala de Cristo como o “cabeça da igreja”? A
palavra grega para “cabeça” (kephalē) designa
“primeiro ou posição superior”(1), ou “algo
supremo, principal, proeminente”.(2) Seu
significado se interpõe com a palavra Kyrios
(“Senhor”)(3) e “aponta para a posição ou status
superior de Cristo”(4). Dizer que Cristo é o cabeça
da igreja é o mesmo que afirmar que Ele é o Senhor
e Mestre sobre a igreja.
Nos tempos romanos, o “cabeça da família”
possuía “ poderes quase totais sobre os membros
da família, especialmente sobre os seus filhos
(inclusive os filhos adultos) e sobre os escravos”.(5)
Sendo nós participantes da “família da fé” e da
“família de Deus”(6), nossa fidelidade pertence ao
nosso Mestre, o “cabeça da família” (cf. Mt. 10.24-
25), a saber, Àquele a quem “toda autoridade..foi
dada no céu e na terra” (Mt. 28.18).
O Novo Testamento indica que o Pai deu sua
autoridade suprema a seu Filho, “ressuscitando-o
dentre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita
nos lugares celestiais, acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que
se possa referir não só no presente século, mas
também no vindouro” (Ef. 1.20-21).(7) Depois da
humilhação e morte de Cristo, “Deus o exaltou
sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de
todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre
todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e
toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor,
para glória de Deus Pai” (Fp. 2.9-11). Ele é o Rei
dos reis e Senhor dos senhores; sua exaltação será
eterna, e sua autoridade para todo o sempre.(8)
Como o profeta Daniel explanou: “Foi-lhe dado
domínio, e glória, e o reino, para que os povos,
nações e homens de todas as línguas o servissem; o
seu domínio é domínio eterno, que não passará, e
o seu reino jamais será destruído” (Dn. 7.14).
O maravilhoso testemunho das Escrituras é
que Jesus Cristo é “o Senhor de todos” (Rm.
10.12) e “o cabeça sobre todas as coisas” (Ef. 1.22),
e isto inclui o seu corpo, a igreja.(9)
Consequentemente, a igreja verdadeira é composta
daqueles “que em todo lugar invocam o nome de
nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co. 1.2). Enquanto
os falsos mestres rejeitam seu senhorio, ao menos
na prática, os ministros fiéis alegremente se
submetem à autoridade de Cristo e sua Palavra —
vendo a si mesmos como escravos, no serviço do
Supremo Pastor.(10)
Surpreendentemente, apesar do claro ensino
da Escritura e o testemunho fiel da história da
igreja Protestante, a maioria das tendências do
evangelicalismo contemporâneo combate o
senhorio de Cristo sobre sua igreja. Alguns destes
ataques são grosseiros e teológicos, como o
posicionamento do não-senhorio, do assim
chamado Movimento da Graça Livre (Free Grace
Movement). Este foi um movimento popular há
alguns anos passados, o que me levou a escrever O
Evangelho Segundo Jesus(11) (em 1988) e o
Evangelho Segundo os Apóstolos(12) (em 1993). O
ponto de vista do movimento torce a mensagem
do evangelho, alegando que nem o
arrependimento do pecado, nem a submissão a
Cristo exercem qualquer papel na fé salvadora. Ao
promover uma forma de “crença fácil”, os
defensores da Graça Livre negam, abertamente, a
necessidade do pecador em se arrepender do
pecado e confessar a Jesus como Senhor e Mestre,
no sentido bíblico de total submissão. Ao fazer
isto, ensinam um evangelho totalmente diferente,
“o qual não é outro”, mas uma tentativa óbvia de
“perverter o evangelho de Cristo” (Gl. 1.7).
Hoje, no entanto, as ameaças são muito mais
sutis, principalmente porque o movimento
evangélico contemporâneo tem perdido seu
interesse pela doutrina. O curso do
evangelicalismo predominante é direcionado por
preocupações pragmáticas, não por teológicas. Os
gurus do movimento de crescimento da igreja se
preocupam com o que atrai a multidão, e não com
aquilo que a Bíblia diz. Devido ao bem sucedido
apelo à carne não redimida, os pregadores da
prosperidade fazem do homem o mestre, como se
Cristo fosse um tipo de gênio da lâmpada —
obrigado a conceder saúde, prosperidade e
felicidade àqueles que enviam dinheiro o
suficiente. Mesmo em alguns círculos
conservadores, métodos mundanos pragmáticos
(incluindo humor crasso e discurso grosseiro), e
adaptações quase ilimitadas do que há de pior na
música mundana são defendidos calorosamente,
contanto que obtenham resultados visíveis. A
triste realidade é que a popularidade, não a
fidelidade a Cristo e à sua Palavra, tem se tornado
o novo padrão de medida e a atual marca da
ideologia do não-senhorio.
Como resultado, as Escrituras têm sido
sistematicamente substituídas por qualquer outra
coisa considerada mais relevante ou interessante.
O empreendedorismo do movimento
independente da igreja a tem tornado popular, ao
ponto de milhares de pretensiosos “cristos”
edificarem seus próprios impérios de mídia,
rotulando a si mesmos comoapóstolos e dando
nome de igrejas a suas organizações. Mas estes
ministérios magnatas não estão interessados em
edificar a igreja verdadeira, que é um fato
evidenciado por sua indiferença para com a
verdade proposicional, somado à sua ganância em
ganhar a simpatia do povo, tanto por
minimizarem a Palavra de Deus quanto o senhorio
de Cristo. Eles diluem o evangelho, encurtam
ainda mais seus ralos sermões e adaptam uma
estratégia de marketing para seu ministério. Ao
fazerem isto, rebelam-se contra Cristo!
O Senhor expressa seu governo em sua igreja,
à medida que a Escritura é pregada, explanada,
aplicada e obedecida. Diminuir o papel dominante
da Escritura na vida da igreja significa tratar o
Senhor da igreja como se sua revelação fosse
opcional. É nada menos que um motim. E a
gravidade de tal revolta não se pode medir. Um
ministério não bíblico, uma pregação não
expositiva e um ensino não doutrinal usurpam a
autoridade de Cristo como cabeça, silenciando sua
voz para com suas ovelhas. Este tipo de
abordagem devastadora afasta do corpo de Cristo
a mente de Cristo, produz indiferença para com
sua Palavra e extingue a obra do seu Espírito. E,
ainda, remove a proteção contra o erro e o pecado,
elimina a preeminência e a clareza, desfigura a
adoração, semeia a transigência, desvia a honra
devida ao verdadeiro cabeça da igreja, e o Senhor
não toma com agrado aqueles que roubam a sua
glória.(13)
Salvador Pessoal, Senhor
Pessoal
A inegável afirmação das Escrituras é que
Jesus Cristo é o Senhor da sua igreja, ainda que
muitos dentro das principais correntes do
evangelicalismo atual falhem em refletir esta
realidade em suas ações. Mas, o senhorio de Cristo
não é meramente um conceito corporativo, é
também algo altamente pessoal. Da mesma
maneira que, de maneira coletiva, Cristo é Senhor
de sua Igreja, ao mesmo tempo, necessariamente,
devemos reconhecer seu Senhorio sobre nós
mesmos e sobre todos os outros membros de seu
corpo.(14)
Na época romana, não era incomum que
dezenas, ou até mesmo centenas de escravos,
servissem ao mesmo senhor.(15) Como membros
da extensão familiar, eles prestavam contas ao
mesmo mestre, tanto como grupo quanto
individualmente. O mesmo é verdade em relação à
Igreja, onde Cristo é o cabeça, não meramente do
corpo como organismo, mas também de cada
crente, individualmente. Ele é tanto o Salvador
como, também, o Senhor de cada pessoa que o
invoca (Atos 2.21).
Quando chamamos Jesus de “Senhor”,
estamos claramente O reconhecendo como o único
Mestre. A palavra grega para “Senhor” é Kyrios,
que ocorre cerca de 750 vezes no Novo
Testamento. Seu significado fundamental é
“mestre” ou “dono”, o que faz dela o complemento
relativo da palavra escravo (doulos).(16) Como
Murray Harris explana:

Quando os crentes cantam ou fazem a confissão “Jesus é o


Senhor”, afirmam Sua absoluta supremacia, não apenas sobre
o universo físico e moral (Mt. 28.28; 1 Pe 3.22), não apenas
sobre a história humana (Rm. 9.5), não apenas sobre todos os
seres humanos (Atos 10.36; Rm.10.12), tanto vivos quanto
mortos (Rm. 14.9), não apenas sobre a igreja (Ef. 1.22), mas
também sobre nossas próprias vidas, como seus escravos
condescendentes. A questão simples, mas crucial, é que as duas
palavras “Senhor” e “escravo”, kyrios e doulos, são correlatas.
(17)

Kyrios e doulos são dois lados da mesma


relação. Ser um doulos era ter um mestre. Da
mesma forma, um kyrios, por definição, era o dono
de escravos. Assim, confessar Jesus como “Senhor”
é, simultaneamente, confessar que Ele é nosso
Mestre, e que nós somos seus escravos.
Na época do Novo Testamento, o kyrios tinha
total autoridade sobre a vida de seus escravos(18),
quer trabalhassem no campo ou na casa do mestre.
Ele poderia dar aos seus escravos qualquer tarefa,
como enviá-los em uma missão ou confiar a eles
sua propriedade durante sua ausência. Se eles
procedessem bem, o mestre poderia recompensá-
los, ou simplesmente não fazer nada, visto que
fizeram o que deles era esperado. Se falhassem, o
mestre poderia puni-los adequadamente, talvez
lhes infligindo severo castigo ou mesmo
vendendo-os, se assim o desejasse. A supremacia
completa do mestre sobre o escravo era tão
culturalmente enraizada, que Jesus a utilizou
como um clichê em seus ensinos, observando
ainda que nenhum escravo era maior que seu
kyrios.(19)
De forma significativa, o termo kyrios não
apenas se interpunha à palavra grega kephalē
(cabeça), mas era também sinônimo de
despotes(20), de onde deriva a palavra déspota. O
Novo Testamento usa a palavra déspota para se
referir tanto aos mestres humanos, quanto ao
Mestre divino(21). O termo em si, “originalmente,
se referia a um ‘dono’ ou ‘possuidor’ de pessoas ou
coisas dentro da casa — este sentido fica explícito
na palavra composta oiko-despotes, “o mestre da
casa”. Quando o termo é aplicado a Deus ou a
Jesus, dá ênfase a seu total direito de posse ou à
sua autoridade e poder.”(22)
É essencial entender o significado de kyrios e
seus sinônimos, porque isto torna evidente o que
significa ser um escravo de Cristo. Os leitores
atuais, separados por dois milênios do meio social
do antigo Império Romano, podem, facilmente,
deixar escapar termos do passado, como: “senhor”,
“mestre” e “escravo”, e não chegar a apreciar, com
profundidade, a verdade comunicada por estes
termos.(23)
Entretanto, para os que viviam no contexto
do primeiro século, não havia dúvidas sobre o que
significava chamar a si mesmo de escravo e chamar
outro de Senhor e Mestre.
Quando Paulo disse a seus leitores que “por
preço” eles foram “comprados” (I Co. 7.23), e que,
embora antes fossem “escravos do pecado”, mas
agora foram feitos “[escravos] da justiça” (Rm
6.17-18), eles sabiam exatamente do que ele
estava falando. A declaração de Paulo em
Romanos 14 certamente ressalta o ponto: “Porque
nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre
para si. Porque, se vivemos, para o Senhor
vivemos; se morremos, para o Senhor morremos.
Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do
Senhor” (vv. 7-8). Comentando sobre estes versos,
Murray Harris observou:

É notável a repetição tríplice de kyrios, no verso 8: o Senhor é o


foco central da vida do escravo; tudo é avaliado em termos do
prazer e lucro do seu Senhor. O poder absoluto é representado
em termos temporais — o Mestre, em sua bondade, reina
supremo, seja na continuação da vida de seu escravo ou no
evento de sua morte. Os crentes são de propriedade divina, um
investimento da vontade eletiva do Mestre, para Seu próprio
ganho.(24)
O escravo era completamente subserviente ao
mestre, vivendo em um “estado de absoluta
sujeição... sua própria identidade é imposta pelo
dono, que dá a ele o Seu nome.”(25)
Confessar com a sua boca “Jesus como
Senhor” (Rm. 10.9) significa, igualmente,
reconhecer a obrigação de obedecê-Lo em total
submissão. Sua vontade é absolutamente
soberana, e espera-se que seus escravos O
obedeçam, não importa o nível de sacrifício
requerido. Nesse contexto, as palavras de Cristo,
em Lucas 9.23, assumem todo o peso de seu
significado: “Se alguém quer vir após mim, a si
mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-
me”. Seguir o Mestre é não mais viver para si
mesmo e submeter-se completamente à Sua
vontade. Quem quiser ser seu discípulo, deve ser
também seu escravo. Aqueles que não se dispõem a
deixar tudo para segui-Lo, não são dignos dEle.
Como o próprio Senhor disse: “Quem ama seu pai
ou sua mãe mais do que a mim não é digno de
mim. Quem ama seu filho ou sua filha mais do que
a mim não é digno de mim, e quem não toma a sua
cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem
acha a sua vida perdê-la-á; quem, todavia, perde a
vida, por minha causa, achá-la-á” (Mt. 10.37-39).
Quando os escritores do Novo Testamento se
referiam a si mesmos como “escravos de Cristo”,
destacavam sua total submissão ao senhorio de
Jesus Cristo. Para o Apóstolo Paulo, isto envolvia
nada menos que uma vida de auto-sacrifício diário,
inteiramente vivida pela causa do seu Mestre.
Como um estudioso discorreu:

Visto que o escravo não era considerado legalmente uma


pessoa, não poderia possuir propriedades, e nem mesmo
exercia qualquer poder sobre si próprio. Ele só fazia o que lhe
era mandado fazer.
Em certa medida, isto indica a extensão da auto-entrega de
Paulo ao seu Senhor...Para Paulo, “o escravo de Cristo”, todos
os seus bens, tempo, ambições e propósitos eram submissos à
determinação de Cristo. Paulo não era diferente do escravo
comum: ele estava à disposição de seu Mestre. Da mesma
forma como um homem pode servir apenas a um mestre (Mt.
6.24; Lc 16.13), assim também suas responsabilidades eram
apenas para com seu mestre (Rm 14.4) — este era um
pensamento de alívio para aqueles que tinham sobre si o peso
das opiniões de outros.(26)

Assim, Paulo podia perguntar aos crentes


romanos: “Quem és tu que julgas o servo alheio?
Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas
estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o
suster” (Rm. 14.4). Ele podia dizer aos Filipenses
que “o viver é Cristo” (Fl. 1.21) e “o que, para mim,
era lucro, isto considerei perda por causa de
Cristo.” (Fl. 3.7). Aos Gálatas, Paulo podia
exclamar: “já não sou eu quem vive, mas Cristo
vive em mim” (Gl. 2.20); e aos Coríntios, podia
declarar que os que foram transformados pelo
evangelho “não [vivem] mais para si mesmos, mas,
para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2
Co. 5.15). Em outro lugar, ele exortou seus leitores
com estas palavras: “Acaso não sabeis... que não
sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por
preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso
corpo” (1 Co. 6.19-20).
Aos Colossenses, Paulo, da mesma forma,
destacou as implicações abrangentes do senhorio
soberano de Cristo: “E tudo o que fizerdes, seja em
palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor
Jesus” (Cl. 3.17), e dirigiu-se aos escravos daquela
congregação: “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de
todo o coração, como para o Senhor e não para
homens” (v. 23). Vez após vez, possivelmente mais
que qualquer outro tema, os escritos de Paulo
evidenciam uma compreensão íntima da relação
subserviente do crente para com Cristo — a saber,
que Jesus é o seu Mestre, e ele nada mais é que um
escravo.
(1) Timothy Friberg, Barbara Friberg, e Neva F. Miller,
Analytical Lexicon of the Greek New Testament (Grand Rapids:
Baker Books, 2000), 229. Para uma discussão detalhada sobre
o significado de kephalē, especialmente no que se relaciona aos
recentes debates no meio erudito evangélico, veja Wayne
Grudem, “The Meaning of κεφαλή (Head): An Evaluation of
New Evidence, Real and Alleged,” Journal of the Evangelical
Theological Society 44/1 (March 2001), 25.65.
(2) Carl Ludwig Wilibald Grimm, Greek-English Lexicon of the
New Testament, trad. Joseph Henry Thayer (Grand Rapids:
Zondervan, 1970), 345.
(3) kephalē significa mestre senhor. Colossians, Pillar New Testament
Commentary kephalē
(4) Ephesians, Expositor’s Bible Commentary
(5) Jennifer A. Glancy, Slavery in Early Christianity. O autor
discute o termo paterfamilias.
(6) Gl 6.10; Ef 2.19; 1 Tm 3.15; 1 Pd 4.17.
(7) Cf. Mt. 11.27; Jo 3.35; 17.2; At 2.36.
(8) Ap 5.12–13; 17.14; 19.16.
(9) Referências à Igreja como corpo de Cristo (soma), no Novo
Testamento, podem incluir um senso de nossa subserviência a
Ele como Seus servos. Murray Harris, em Escravo de Cristo
(Downers Grove, IL: Inter Varsity Press, 1999), explica: “A
palavra soma (‘corpo’) varia em significado na literatura grega,
de ‘cadáver’ a ‘pessoa’, com ênfase na parte fisica. Mas já no
terceiro século a.C, esta palavra, sem qualquer qualificativo, foi
usada para descrever um escravo (ver LSJ, 1749), que era visto
basicamente como um ‘corpo’, possuído por seu mestre e para
seu uso. Aristóteles (Pol. 125 4 16) foi além: ‘O escravo faz
parte do mestre, no sentido de ser um vivente, mas que vive à
parte de seu corpo” (111-12).
(10) Eg. 2 Tm. 2.24; 1 Pe. 5.3–4.
(11) Publicado em português pela Editora Fiel.
(12) Publicado em português pela Editora Fiel.
(13) Ver Is 42.8; 48.11; Ez 34.8–10; At 12.23.
(14) Referindo-se à reforma escocesa do século 17, William G.
Blaikie observou a relação integrante destas duas doutrinas,
apesar da perspectiva inversa: “Os homens daquela época,
como muitos agora, não levavam em consideração suficiente o
reconhecimento de Cristo como cabeça sobre suas vidas,
individualmente. Com todo ardor de suas almas, eles
associavam Seu senhorio a ser Cabeça sobre a Igreja como um
todo. Mas, repudiar uma coisa, era um crime e loucura tão
grande, quanto repudiar a outra. Negar Seu lugar, como Rei em
Sião, era colocar em perigo sua relação pessoal com Ele, tanto
quanto negar a Sua expiação ou sua mediação “(The Preachers
of Scotland [Edimburgo: T & T Clark, 1888], 98).
(15) Os autores explicam que “no Império [Romano], o número
de escravos domésticos aumentou consideravelmente, e, em
cada família de importância, havia escravos separados para
atender todas as necessidades da vida doméstica. Era
considerada uma afronta a um homem não manter um número
considerável de escravos.. . .Horácio (Sat i. 3, 12) parece falar
de dez escravos, como o número mais baixo que uma pessoa em
circunstâncias toleráveis deveria manter. . . [Enquanto que] um
liberto, no tempo de Augustus, o qual perdera muitas
propriedades nas Guerras Civis, deixou, ao morrer, 4116
escravos (Plin. HN xxxiii. § 135). Duzentos escravos não era um
número incomum para uma pessoa manter (Hor. Sat. I. 3, 11);
e Augustus havia permitido que até mesmo um exilado levasse
com ele vinte escravos ou libertos (Dio Cass Ivi. 27.)” (656-67).
(16) Em ambientes sociais, o termo poderia também servir
como uma saudação respeitosa (semelhante a “senhor”),
indicando a superioridade ou supremacia de quem está sendo
abordado. Sua conexão social primária, no entanto, era a
palavra doulos (“escravo”). Por definição, o kyrios é “o
possuidor e descartador de uma coisa [ou pessoa]; o
proprietário, aquele que tem o controle da pessoa, o mestre”
(Strong’s Enhanced Lexicon, vocábulo 2962). A partir de uma
perspectiva teológica, essa relação mestre/escravo é
inconfundível, quando kyrios é usado em referência à
divindade. Assim, Werner Foerster explica que “κύριος, então, é
utilizado, especialmente, na expressão de uma relação pessoal
do homem para com a divindade, seja na oração, agradecimento
ou voto, e como um correlato de δοῦλος na medida em que o
homem em questão descreve como κύριος o deus sob cujas
ordens ele permanece “ (Theological Dictionary of the New
Testament, unabridged, ed. Gerhard Kittel, trad. Geoffrey W.
Bromiley [Grand Rapids: Eerdmans, 1965], s.v. “κύριος”
3:1052). Da mesma maneira, Gottfried Quell observa que “na
esfera religiosa, kyrios é reservado para Deus” (Theological
Dictionary of the New Testament [abridged], s.v. “κύριος” 488).
(17) Harris, Slave of Christ, 90.
(18) Cf. Mt. 8.9; 13.27–28; 18.31–34; 21.34–36; 24.45–51;
25.23, 26–30; Mc. 13.34–35; Lc. 12.37; 14.16–24; 17.7–10.
(19) Mt. 10.24; cf. Jo. 13.16; 15.15, 20.
(20) De acordo com Werner Foerster, “No koine, δεσπότης
[despotes] e κύριος [kyrios] são, em grande parte, utilizados um
ao lado do outro. O κύριος é o proprietário de escravos e de
propriedades” (Theological Dictionary of the New Testament,
unabridged, s.v. “κύριος,” 3:1043).
(21) 1 Tm. 6.1–2; 2 Tm. 2.21; 2 Pe. 2.1; cf. Lc. 2.29.
(22) Harris, Slave of Christ, 111–12.
(23) Francis Lyall observou que “a relação de um escravo ao seu
dono, e de um escravo liberto ao seu antigo proprietário (seu
patrono), tinha aspectos e implicações que não estão presentes
em nossas mentes hoje. Para nós, o conceito de escravo tem
sido atenuado, pelo fato deles não existirem mais, no dia a dia
do mundo atual. A maioria pensa de forma romântica na
escravidão, quando leem sobre isso nas epístolas. Há um certo
charme singular em ser ‘um escravo de Cristo’, porque estamos
acostumados a falar de nós mesmos como ‘escravos’ apenas
metaforicamente. A realidade era bem diferente”. (Slaves,
Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles [Grand Rapids:
Academie Books, 1984], 28).
(24) Harris, Slave of Christ, 112. Quanto a esta passagem, ele
observa: “Em nenhum lugar do Novo Testamento o caráter
absoluto do senhorio do Senhor sobre seus douloi [escravos] é
retratado mais claramente do que em Romanos 14.7-8”.
(25) Thomas Wiedemann, Greek and Roman Slavery (New
York: Routledge, 1988), 1.
(26) Slaves, Citizens, Sons
6
NOSSO SENHOR E NOSSO
DEUS
A perspectiva de Paulo sobre o senhorio de
Cristo não era, certamente, uma
perspectiva exclusivamente dele. Como
vimos no Capítulo 2, os escritores do Novo
Testamento faziam constante referência a si
mesmos, e a seus irmãos na fé, como a escravos de
Cristo. Desde o momento em que eles fizeram a
confissão salvadora “Jesus é o Senhor”, não há
dúvidas de que Ele se tornou o Senhor de suas
vidas — de forma que estavam, em tudo, sujeitos a
Ele.
Mas os apóstolos compreendiam que Jesus
Cristo, sendo Deus encarnado, era muito mais que
qualquer kyrios terreno. Ele é Senhor sobre todo
outro senhor, e Rei sobre qualquer outro rei.(1)
Falando de forma sucinta, Ele é “o Senhor de
todos” (Atos 10.36), possuindo todo o peso da
autoridade divina, pois “nele, habita,
corporalmente, toda a plenitude da
Divindade...Ele é o cabeça de todo principado e
potestade” (Cl. 2.9-10). Ele está sentado “à direita
do Todo-Poderoso Deus” (Lucas 22.69), “e pôs
todas as coisas debaixo dos pés” (Ef. 1.22). Sobre
Ele, o autor de Hebreus escreveu: “Ele, que é o
resplendor da glória e a expressão exata do seu
Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do
seu poder, assentou-se à direita da Majestade, nas
alturas” (1.3). Jesus Cristo é o “nosso grande Deus
e Salvador” (Tito 2.13), o Verbo divino que se fez
carne,(2) e o Messias prometido, a respeito de
quem já havia sido predito: “seu nome será:
Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da
Eternidade, Príncipe da Paz” (Is. 9.6). O homem
nascido cego não estava errado por adorá-Lo,
depois de declarar: “Creio, Senhor” (Jo. 9.38). Nem
Tomé estava errado, ao se dirigir a Ele como
“Senhor meu e Deus meu” (Jo. 20.28). Ele é o
Grande Eu Sou;(3) seu trono “é para todo o
sempre” (Hb. 1.8) e “ o seu reinado não terá fim”
(Lc. 1.33). Consequentemente, quando os
escritores do Novo Testamento se referiam a
Cristo como Kyrios, eles não estavam apenas
ressaltando sua autoridade como Mestre, mas
também afirmando seu caráter glorioso como
Deus.
Quando o Novo Testamento foi escrito, o
nome Kyrios (“Senhor”) já era um título bastante
conhecido, atribuído a Deus. A Septuaginta (a
tradução Grega do Velho Testamento, utilizada
nos dias de Jesus) usava Kyrios para traduzir dois
nomes diferentes para Deus, em Hebraico —
Adonai e Yahweh. O título Adonai (da raiz adon)
significa, literalmente, “mestre” e corresponde à
palavra escravo (´ebed), em Hebraico; ele “denota
seu poder soberano”(4) e dá ênfase ao
relacionamento entre Deus, como Mestre, e seu
povo, como seus escravos (cf. Ml. 1.6). Quando
kyrios é usado para traduzir Adonai, na
Septuaginta, “dá ênfase ao fato que, como
Libertador do Egito, ou como Criador, Deus tem
um direito válido de exercer controle sobre seu
povo e sobre o universo. Ele é soberano, no sentido
absoluto.”(5) Mas a Septuaginta também usou
kyrios para traduzir Yahweh — o nome do Deus
da aliança. Devido ao respeito pelo terceiro
mandamento (Êx. 20.7), os Judeus se recusavam
até mesmo a pronunciar o nome Yahweh, para
que, de alguma forma, não o levassem em vão. Nas
orações e em seus sermões, eles usavam o nome
Adonai, em substituição. É provável que, por esta
razão, os tradutores da Septuaginta traduziam
Yahweh pela mesma palavra que usavam para
Adonai.(6) Qualquer que seja a explicação,
permanece o fato que kyrios era usada
consistentemente na Septuaginta, tanto para
Adonai quanto para Yahweh.(7) Os escritores do
Novo Testamento se basearam fortemente na
Septuaginta, citando-a com frequência, ao
mencionarem o Velho Testamento. Como
resultado, estavam bem familiarizados com a
dupla função da palavra kyrios, usada em
referência a Deus, significando “Mestre”
(equivalente a Adonai) e também como a versão
Grega do nome divino Yahweh.(8) Foi com estas
duas funções em mente que os apóstolos
atribuíram, com alegria, o título kyrios a Jesus
Cristo — Aquele a quem reconheciam ser tanto
Adonai, quanto Yaweh. O termo era amplo o
suficiente para “expressar o abrangente senhorio
de Jesus”, de forma que “passagens [da
Septuaginta]”, do Antigo Testamento, “que
falavam do κύριος [kyrios], poderiam se referir a
Jesus. Nele, Deus age conforme é dito sobre o
κύριος, no Antigo Testamento”.(9)
Os escritores do N.T., repetidamente,
enfatizavam a autoridade divina de Cristo e sua
igualdade a Deus, ao Lhe atribuir o nome kyrios.
(10) Para os cristãos da igreja primitiva, o título
kyrios indicava que Cristo não era apenas seu
Mestre absoluto, mas também o seu Deus. Quando
confessamos Jesus como Senhor, de forma
semelhante reconhecemos nosso dever de obedecê-
lo como Rei e adorá-lo como Deus.
Do mesmo modo que os santos do Antigo
Testamento viam a si mesmos como escravos de
Yahweh, também devemos ver-nos como escravos
de Jesus Cristo. Como um autor destaca:
A correspondência da absoluta exclusividade e posse sobre os
que nEle creem, está na total e única devoção destes a Ele.
Isaías 44.5 aponta que, após o exílio, alguns Judeus fiéis
diziam, sem qualquer vergonha: “Eu pertenço a Jesus”,
enquanto outros chegavam a escrever em suas mãos: “Sou de
Yahweh”, para indicar de quem eles eram escravos. A maioria
dos cristãos não traz quaisquer “marcas de Cristo” (Gl. 6.17),
como Paulo, mas eles devem poder dizer: “eu pertenço a Cristo”
(cf 1Co. 1.12), e devem, figurativamente falando, escrever
“Sou de Cristo” em suas mãos, para indicar de quem eles são
escravos.(11)
Em 1 Co. 12.3, o Apóstolo Paulo faz uma
declaração surpreendente: “ninguém pode dizer:
Senhor Jesus! Senão pelo Espírito Santo”.
Certamente, há muitos que professam apenas de
lábios o senhorio de Cristo, mas que nunca
experimentaram a obra vivificadora do Espírito
(cf. Mt. 7.21-23).
No entanto, reconhecer, genuinamente, o
senhorio de Jesus envolve tanto a disposição de
obedecê-Lo como Mestre, quanto um ardente
desejo de adorá-Lo como Deus. E isto acontece
somente em um coração transformado pelo
Espírito de Deus; o que explica a razão de uma
verdadeira conversão sempre incluir a confissão
sincera que Jesus é o Senhor.(12)
Por que me chamais “Senhor,
Senhor”?
Ao confessarem o senhorio de Cristo, os
crentes têm o dever de obedecê-Lo em tudo. Nesta
linha de pensamento, o Theological Dictionary of the
New Testament explica: “Com sua obra redentora,
Cristo tornou os crentes sua própria possessão e
lhes dá alvos que moldam suas vidas. Este novo
compromisso, que é um compromisso de retidão
(Rm. 6.19), santidade (1 Ts. 3.13) e novidade de
vida (Rm. 6.4), encontra expressão na descrição
dos cristãos como sendo os douloi [escravos] de
Cristo (1 Co. 7.22; Ef.6.6)”.(13) Os escravos de
Cristo devem ser “sempre abundantes na obra do
Senhor” (1 Co. 15.58), “provando sempre o que é
agradável ao Senhor” (Ef. 5.10), e sempre
buscando “compreender qual a vontade do
Senhor” (Ef. 5.17).(14) Por verem a si mesmos,
acertadamente, como “um povo exclusivamente
seu, zeloso de boas obras” (Tito 2.14), eles
obedecem à Palavra de Deus com avidez.(15) Eles
entendem e abraçam as implicações éticas de ser
um escravo de Cristo, sabendo que “os olhos do
Senhor repousam sobre os justos, e os seus
ouvidos estão abertos às suas súplicas, mas o rosto
do Senhor está contra aqueles que praticam males”
(1 Pe. 3.12). Como consequência, eles buscam uma
vida de santidade, desejosos de estarem aptos ao
serviço do Mestre.(16)
Como Paulo esclarece a Timóteo:

O firme fundamento permanece, tendo este selo: “O Senhor


conhece os que lhe pertencem. E mais: Aparte-se da injustiça
todo aquele que professa o nome do Senhor. Ora, numa grande
casa não há somente utensílios de ouro e de prata; há também
de madeira e de barro. Alguns para honra; outros, porém, para
desonra.
Assim, pois, se alguém a si mesmo se purificar destes erros,
será utensílio para honra, santificado e útil ao seu possuidor,
estando preparado para toda boa obra. Foge, outrossim, das
paixões da mocidade. “Segue a justiça, a fé, o amor e a paz com
os que, de coração puro, invocam o Senhor” (2 Tm. 2.19-22).

Como escravos da justiça, os crentes são


“devedores” (Rm. 8.12; cf 6.18), quanto a honrar a
Deus em seu modo de viver. No entanto, para
aqueles que pertencem a Cristo, a motivação para
obedecer a Deus é bem mais profunda do que um
mero dever. “Se me amais, guardareis os meus
mandamentos”, Jesus disse aos seus discípulos
(Jo. 14.15, ênfase acrescentada); e disse mais: “Se
alguém me ama, guardará a minha palavra” (v.
23). O Apóstolo João repetiu as palavras de Cristo
em suas epístolas: “Porque este é o amor de Deus:
que guardemos os seus mandamentos; ora, os seus
mandamentos não são penosos” (I Jo. 5.3); e “o
amor é este: que andemos segundo os seus
mandamentos” (2 Jo. 6). Cristãos genuínos são
caracterizados por um profundo amor por Cristo, e
esse amor, inevitavelmente, manifesta-se em
obediência.(17) Em contraste, aqueles que não
amam ao Senhor, tanto pelo que dizem quanto
pelo modo que vivem, evidenciam que não
pertencem a Ele.(18)
A única resposta correta ao senhorio de
Cristo é uma submissão incondicional, uma
obediência em amor e uma adoração ardente.
Aqueles que declaram com os lábios a sua
divindade e, no entanto, vivem em padrões de
desobediência impenitente, revelam a hipocrisia
de sua confissão. A esses se aplica, diretamente, o
peso terrível do questionamento de Cristo: “Por
que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que
vos mando? (Lc. 6.46). Como Ele alertou a
multidão, no final do Sermão do Monte, após
descrever os perigos da hipocrisia:
Nem todo o que me diz: Senhor; Senhor! Entrará no reino dos
céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos
céus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor!
Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu
nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos
muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade”
(Mt. 7.21-23).

É certo que, nem todos que afirmam conhecer


o Senhor, realmente O conhecem. Os que
verdadeiramente “são de Cristo Jesus crucificaram
a carne, com suas paixões e concupiscências” (Gl.
5.24), ao invés de andar na carne, agora andam
“no Espírito” (v. 25), sendo caracterizados por um
crescente desejo de obedecer à Palavra de Deus.
Como Jesus falou às multidões, em João 8.31: “Se
vós permanecerdes na minha palavra, sois
verdadeiramente meus discípulos”.(19) Afinal de
contas, “cada árvore é conhecida pelo seu próprio
fruto” (Lc. 6.44); e a genuína conversão é sempre
marcada pelo fruto do arrependimento, e pelo
fruto do Espírito.(20) A obediência, em amor, é a
marca evidente da salvação, de forma que estas
duas coisas são inseparáveis, como explica o autor
de Hebreus: “ [Jesus] tornou-se o Autor da
salvação eterna, para todos os que lhe obedecem”
(5.9).(21)
O restante do Novo Testamento emite alertas
similares a qualquer um que afirme pertencer a
Cristo e, ao mesmo tempo, persiste em um pecado
impenitente.(22) A primeira epístola de João é
particularmente clara a este respeito. Lá, João
escreveu: “Se dissermos que mantemos comunhão
com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não
praticamos a verdade” (1 Jo. 1.6). Depois,
acrescentou: “Filhinhos, não vos deixeis enganar
por ninguém; aquele que pratica a justiça é justo,
assim como ele é justo. Aquele que pratica o
pecado procede do Diabo... Todo aquele que é
nascido de Deus não vive na prática do pecado...
Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos
do Diabo: todo aquele que não pratica justiça não
procede de Deus, nem aquele que não ama a seu
irmão” (v. 3.7-10). Embora muitos se chamem de
“cristãos”, em última análise, a verdadeira
condição do coração de qualquer pessoa pode ser
vista pela forma com que ela vive. Como diz o
ditado: “As ações falam mais alto que as palavras”.
A profissão de fé que nunca se torna evidente
através de um proceder correto, nada mais é que
uma fé “morta” (Tg 2.17), não sendo melhor do
que a fé dos demônios (v. 19). Isto não quer dizer
que os verdadeiros crentes nunca tropeçam.
Certamente que sim. Todavia, o seu padrão de vida
é de contínuo arrependimento e crescente piedade,
conforme se desenvolvem em santificação e na
semelhança de Cristo.
Na Companhia do Rei
Ser um escravo de Jesus Cristo é a maior
bênção que se possa imaginar. Ele não é apenas
um Senhor generoso e gracioso, mas é também o
Deus do universo. Seu caráter é perfeito; seu amor
é infinito; seu poder, inigualável; sua sabedoria,
insondável; e sua bondade, incomparável.(23) Não
é de admirar, portanto, que nosso relacionamento
com Ele, como nosso Mestre, nos traga grande
benefício e honra. Na época romana, a experiência
de alguém como escravo dependia, quase que
inteiramente, da natureza de seu mestre. O
escravo de um mestre bom e benevolente podia
esperar ser bem tratado, e desfrutar de uma vida
segura e pacífica. Como esclarece um historiador:

A vida material de um escravo no mundo romano, assim como


em sociedades escravagistas posteriores, era determinada [em
grande parte]…pelo grau de responsabilidade com que o mestre
atendia suas obrigações materiais para com o escravo... Em
comparação com os pobres livres, portanto, os escravos, às
vezes, podiam ter alguma vantagem material - visto que, de
certa forma, eles tinham suas necessidades supridas, em
muitos aspectos eles gozavam de uma segurança em suas vidas
que os pobres livres, talvez, jamais conheceram.(24)

Da mesma forma com que os donos


maldosos, geralmente, tornavam insuportável a
vida para seus escravos, um mestre gracioso podia
tornar a situação agradável e, até mesmo,
desejável para os de sua convivência.(25) Tal
mestre evocava a lealdade e o amor de seus
escravos, conforme eles o serviam por devoção, e
não somente por dever. Além do mais, “o bom
proprietário se importava e cuidava de seus
escravos, durante a vida deles, até se aposentarem.
Ele não procurava se livrar do escravo que já não
fosse “útil”, devido à idade ou enfermidade. Dizer
que Deus é um bom “proprietário” de seus
“escravos” é tanto axiomático quanto
reconfortante”.(26)
Porque o Senhor é o nosso Mestre, podemos
confiar que Ele cuida de nós, em cada situação e
estágio de nossa vida. Mesmo nas circunstâncias
mais difíceis, Ele nos proverá de tudo o que
precisamos para sermos fiéis a Ele.(27) Não
devemos andar “ansiosos de coisa alguma” (Fp.
4.6), porque “sabemos que todas as coisas
cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu
propósito” (Rm. 8.28). Estamos certos em confiar
Nele completamente, pois Ele é soberano, não
apenas sobre nossas vidas, mas também sobre
tudo o que existe.(28) “ Porque ele tem dito: De
maneira alguma te deixarei, nunca jamais te
abandonarei. Assim, afirmemos confiantemente:
O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me
poderá fazer o homem? (Hb. 13.5-6).
Tais promessas têm sido o alicerce do nosso
conforto e a esperança para cada geração do povo
de Deus. Como Davi declarou, em seu Salmo mais
conhecido: “O Senhor é o meu Pastor; nada me
faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes.
Leva-me para junto das águas de descanso:
refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da
justiça por amor do seu nome. Ainda que eu ande
pelo vale da sombra da morte, não temerei mal
nenhum, porque tu estás comigo” (Salmo 23. 1-4).
Alguns versos adiante, ele conclui com esta
ressonante expectativa: “Bondade e misericórdia
certamente me seguirão todos os dias da minha
vida; e habitarei na Casa do Senhor para todo o
sempre (v.6)”. Somente um crente pode ter esta
indubitável esperança — uma confiança serena,
fundamentada no caráter gracioso do Mestre.
Viver sob a proteção e cuidado soberanos do
Senhor traz imensurável conforto, alegria e “a paz
de Deus, que excede todo entendimento” (Fp. 4.7)
Entretanto, as bênçãos de ser seu escravo vão além
de apenas ser suprido por Ele. Ser escravo de
Cristo é também uma posição de grande privilégio,
pois estamos na companhia de ninguém menos
que o Rei do universo. Obviamente, não há outro
maior que Ele para nos associarmos.
Aqui, pode ser novamente traçado um
paralelo com os escravos da antiga Roma. Nos
tempos do Novo Testamento, os escravos
obtinham seu status a partir da posição social de
seus mestres, de modo que “ser escravo de uma
pessoa importante conferia ao escravo certo
prestígio e poder — um status por associação”.(29)
Ser escravo de um mestre influente e bem
respeitado era, por si só, uma posição considerada,
ao ponto que os escravos chegavam a incluir os
nomes de seus proprietários em suas lápides.
Como Dale Martin discorre:
A informação sobre os nomes dos proprietários inscritos nas
lápides demonstra que os escravos estavam cientes de que sua
importância derivava de seus donos. Era frequente um escravo
mencionar o cargo de senador ou de cônsul do seu mestre, ou o
seu título (por exemplo, Primipilus, o centurião sênior da
legião). Nos anos 247 ou 248 d.C, um (provável) escravo
chamado Pragmateustes escreveu, em sua lápide de família,
que seu mestre fora “três vezes um Oficial Asiarca”. Em outra
lápide, Agathopous, um agente escravo, deixou de escrever os
nomes de sua esposa e filhos (se é que os tivesse), mas foi
cuidadoso em registrar o nome de seu mestre. Em cada um
destes casos, o escravo mencionou o status de seu proprietário
e se banhou na luz que dele refletia.(30)

Por reconhecer que sua posição social


derivava da reputação de seu proprietário, os
escravos Romanos, de bom grado, se associavam
com seus mestres — até mesmo nas inscrições de
suas lápides!
Afinal de contas, “denominar-se escravo de
alguém importante era um meio de reivindicar
status para si mesmo... Escravos e libertos não
hesitavam em se designarem como tais. Eles
usavam o termo [“escravo”] como um título e uma
oportunidade de se ligarem a pessoas mais
poderosas. E pareciam não se envergonhar da
escravidão, contanto que pudessem gozar deste
status por associação”.(31)
De uma perspectiva romana, não poderia
haver maior senhor do que o próprio imperador, o
que explica por que os escravos de Cesar eram
vistos em alta conta. “O escravo de um sapateiro
tinha pouco status, mas o escravo de um político
poderoso ou de um respeitado aristocrata poderia,
por sua vez, obter considerável poder e respeito. A
posição de um escravo de Cesar era ainda mais
elevada, gozando de poder e de um status
informal, rivalizando com importantes
provincianos livres.”(32) Ser um escravo pessoal de
Cesar significava estar em uma posição única de
influência e respeito: “O status singular do
imperador concedeu, a seus escravos e libertos,
uma posição privilegiada — a tais escravos era
permitido se casarem com as mulheres da cidade, e
o casal obtinha tal status, que pessoas se
voluntariavam a se arrolarem às suas famílias.
Evidências tiradas da literatura e de inscrições
lançam luz quanto às especializações nas tarefas
administrativas e familiares desses escravos e
libertos”.(33)
Porém, se era considerada uma honra ser
escravo de um dos Césares, é honra infinitamente
maior ser um escravo de Cristo — o Rei dos reis e
Senhor dos senhores! Seria de admirar que os
escritores do Novo Testamento zelosamente
atribuíssem a si mesmos e a outros o título de
“escravos de Cristo”? Isto não era apenas uma
afirmação de sua completa submissão ao Mestre;
era também uma declaração da posição
privilegiada que cada cristão goza, por estar
associado com o Senhor. Nenhuma afiliação
poderia ser maior que esta.
Como escravos, os crentes não têm glória em
si mesmos; mas, como membros da família de
Deus, somos notáveis, simplesmente devido à
nossa conexão com Ele. Sermos seus douloi é uma
honra incomparável.(34) Assim, o Apóstolo Paulo
pôde instruir seus leitores a que, se desejam se
gloriar, se gloriem somente no Senhor.(35)
Que alegria e privilégio é ser um escravo do
Rei eterno! Para sempre cantaremos seus louvores,
banhando-nos de sua glória radiante e O adorando
com corações cheios de reverência e amor. Seu
nome está acima de todos os outros e será escrito
sobre nossas frontes por toda a eternidade.(36)
Juntamente com os santos de todas as eras,
jamais cessaremos de nos maravilharmos com o
fato de que, apesar de nossas faltas e falhas, o
Senhor nos escolheu para si mesmo.(37) Não há
maior honra do que estar em companhia do Rei.
Portanto, exultamos com o salmista:
Vinde, cantemos ao SENHOR, com júbilo,
Celebremos o Rochedo da nossa salvação.
Saiamos ao seu encontro, com ações de graças,
Vitoriemo-lo com salmos.
Porque o SENHOR é o Deus supremo
E o grande Rei acima de todos os deuses...
Vinde, adoremos e prostremo-nos;
Ajoelhemos diante do SENHOR, que nos criou.
Ele é o nosso Deus,
E nós, povo do seu pasto
E ovelhas de sua mão.
(95.1-3, 6-7)

(1) Cf. Ap. 17.14; 19:16.


(2) Jo. 1.1; cf. 5.18.
(3) Jo. 8.58; cf. Ex. 3.14; Jo. 17.5, 24.
(4) Gottfried Quell, em Gerhard Kittel, ed.; e Geoffrey W.
Bromiley, trad., Theological Dictionary of the New Testament
(unabridged) (Grand Rapids: Eerdmans, 1965), s.v. “κύριος,”
3:1060. A contribuição de Quell está incluída no Grande
Dicionário de vocábulos de Werner Foerster (See chap. 5, n.
18.)
(5) Gottfried Quell, Theological Dictionary of the New Testament
Abridged in One Volume, Kittel and Gerhard Friedrich, eds.;
Geoffrey Bromiley, trad. (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), em
“Kyrios,” 491. Nestas mesmas linhas, John Byron observou: “O
fato de Deus chamar os Israelitas de “meu povo” é uma
reivindicação de propriedade que antecede e prevalece sobre
quaisquer reivindicações de Faraó. A recusa de Faraó em
concordar representa a sua rejeição da autoridade de Deus
sobre ele e sobre as pessoas que tem escravizado. O Egito sofre
com pragas, e o Rei do Egito continua determinado a não
entregar os escravos e, em vez disso, os oprime ainda mais (5,3-
21). . . . O evento do Êxodo representa a transferência de
propriedade de Israel, pelo rei do Egito, ao Rei do Céu - Deus. “(
Slavery Metaphors in Early Judaism and Pauline Christianity
[Tübingen, Alemanha: JCB Mohr, 2003], 49).
(6) Séculos depois, no século oito AD, os Massoretas,
semelhantemente, acrescentariam vogais de Adonai ao nome
divino Yahweh.
(7) Quell, Theological Dictionary of the New Testament (unabridged),
s.v. “κύριος,” 3:1058. Quell observa que “a palavra κύριος
[kyrios], ‘senhor,’ como nome para Deus na LXX [Septuaginta], é
uma tradução precisa apenas nos casos em que é usada para
[Adon] ou [Adonai] (em ketīb). Como regra geral, no entanto, é
usada como um termo equivalente ao nome divino
[Yahweh].”
(8) Exemplos de lugares onde kyrios é usado por Adonai incluem:
Mt. 9.38; 11.25; Atos 17.24; 1 Tm. 6.15; Ap. 4.11.
(9) Foerster, Theological Dictionary of the New Testament
(unabridged), s.v. “κύριος,” 3:1094.
(10) E.g. Mt. 7.21; 12.8; 22.44–45; John 1.23; 9.38; Rm. 14.9;
Atos 10.36; Fp. 2.10–11; 1 Co. 2.16; Hb. 1.10.
(11) Murray J. Harris, Slave of Christ (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1999), 113.
(12) Ver Romanos 10.9–13; cf. Atos 2.21; 16.30–31.
Comentando 1 Coríntios 12.3, Murray Harris observou: “O que
o apóstolo está dizendo é que, à parte do poder do Espírito
Santo em iluminar a mente e cativar a vontade, ninguém
consegue fazer esta simples confissão com entendimento e
compromisso” (Slave of Christ, 88–89).
(13) Karl Heinrich Rengstorf, em Gerhard Kittel e Gerhard
Friedrich, eds.; Geoffrey Bromiley, trad., Theological Dictionary of
the New Testament Abridged in One Volume, s.v. “doúlos,” 185.
(14) Cf. 1 Co. 7.32, 35; 8.6; Cl. 1.10; 3.22.
(15) Cf. Tg 1.21–25; 1 Pe. 2.9.
(16) Cf. Rm. 12.11; Cl. 2.6; 1 Pe. 1.16.
(17) 1 Co. 8.3; Ef. 6.24; 1 Pe. 1.8; cf. Mc 12.30; Jo. 21.15–17; 1
Jo. 2.3.
(18) 1 Co. 16.22; cf. Jo. 8.42; Rm. 8.9.
(19) Cf. Jo. 6.66–69; Mt. 24.13; Cl. 1.22–23; 1 Tm. 4.16; Hb.
3.14; 10.38–39; 1 Jo. 2.19.
(20) Lc 3.8; Gl. 5.22–23.
(21) Cf. Jo. 3.36; Rm. 1.5; 6.16; 15.18; 16.19, 26; 1 Pe. 1.2, 22.
(22) Rm. 8.9; 1 Co. 6.9–10; Ef. 5.5–6; Hb. 6.4–8; Tg 2.17–19.
(23) Jo. 10.11, 14, 28; Rm. 8.38–39; 11.33–36; 1 Co. 15.25–
26; 1 Pe. 1.19; 1 Jo. 3.3.
(24) Keith Bradley, Slavery and Society at Rome (Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 1994), 89, 92.
(25) Scott Bartchy dá exemplos da literatura romana antiga,
quanto à extrema crueldade e também da grande bondade
mostradas pelos senhores para com os escravos (First-Century
Slavery [Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers, 2002], 68–69).
(26) Francis Lyall, Slaves, Citizens, Sons: Legal Metaphors in the
Epistles (Grand Rapids: Academic Books, 1984), 38.
(27) Cf. Mt. 6.31–33; Fp. 4.19; 2 Co. 9.8.
(28) Cf. Mt. 28.18; Rm. 14.7–9; Ef. 1.20–23; Cl. 2.10; Tg 4.13–
15.
(29) Dale B. Martin, Slavery as Salvation (New Haven, CT: Yale
University Press, 1990), xxii.
(30) Ibidem, 18.
(31) Ibidem, 47.
(32) Ibidem, 48.
(33) Thomas Wiedemann, Greek and Roman Slavery (New York:
Routledge, 1988), 9.
(34) Rengstorf, Theological Dictionary of the New Testament
(abridged), s.v. “doúlos,” 183. Falando sobre a Septuaginta, o
autor observa: “A única coisa certa para o povo eleito é o serviço
exclusivo ao Senhor (Jz. 10.16; Sl. 2.11, etc.). Por esta razão,
doúloi é um título de honra, quando conferido a figuras de tanta
proeminência, como Moisés (Js. 14.7), Josué (Jz 2.8), Abraão
(Sl. 105.42), Davi (Sl. 89.3), e Jacó (representando Israel, Is.
48.20). O oposto de douleúein é desobediência.”
(35) 1 Co. 1.31; 2 Co. 10.17; Fp. 3.8.
(36) Fp. 2.9–11; Ap. 22.4
(37) Cf. Ef. 1.3–4; 1 Pe. 2.9; Tito 2.14.
7
O MERCADO DE ESCRAVO
DO PECADO
P ara entendermos, completamente, o que
significa se tornar um escravo de Cristo,
precisamos entender a nossa condição
anterior como escravos do pecado — o que é uma
realidade universal. É um bom começo lembrar-
nos de John Newton, o autor de “Graça
Maravilhosa” (Amazing Grace) — o hino mais
famoso já escrito na língua Inglesa. A letra fala de
um pecador que era perdido, cego e ímpio, antes
de ser achado e resgatado, sem qualquer mérito ou
esforço pessoal. Estas palavras, tanto profundas
como pessoais, capturam a miséria do pecado e, ao
mesmo tempo, a alegria da salvação. Expressam,
em poucos e curtos versos, a experiência do autor,
um homem cujo testemunho é um depoimento
marcante desta realidade: A graça maravilhosa de
Deus.
Newton nasceu em 1725, em Londres. Sua
biografia é uma das mais conhecidas da história da
igreja - como Deus transformou um marinheiro
blasfemo e traficante de escravos, em um pastor
piedoso e abolicionista influente. Mas, o que
muitos não sabem é que John Newton
experimentou o mercado de escravo do século
dezoito com perspectivas opostas. Ele não era
apenas o capitão de um navio britânico (um cargo
que ele, mais tarde, viria a lamentar
profundamente), mas também ele mesmo fora
escravo, sob o controle de um senhor cruel e
abusivo, por quinze meses, enquanto vivia na
África. Ter vivido a vida de escravo em primeira
mão, tanto como escravo quanto como mercador
de escravos, deu a Newton uma visão singular
sobre o mundo da escravidão — um entendimento
que o impactaria profundamente, tanto como um
reformador social quanto como teólogo.
Sua história se inicia em 1744, quando
Newton foi convocado, contra sua vontade, para a
Marinha Real Britânica e enviado para a Índia,
como marinheiro no navio HMS Harwich. Ele
estava acostumado com navios, porque seu pai era
capitão de navio mercador. Ainda assim, ele achou
seu tempo na marinha insuportável, em grande
parte por sua falta de subordinação e disciplina.
Assim que teve uma oportunidade para partir,
Newton não hesitou. O biógrafo Iain Murray
recorda esse evento:
Quando a esquadra, que se dirigia ao sul pelo Atlântico,
alcançou a Ilha da Madeira, Newton estava deitado de manhã
em sua rede; então, um aspirante a marinheiro chegou e cortou
a rede. Descontente, ele foi ao convés encontrar um amigo
marinheiro, para falar de sua transferência do Harwich para
um navio mercante. Ele descobriu que a escolta naval estava
precisando de mais dois marinheiros treinados e os estava
tomando de um certo mercador. Em troca, duas pessoas da
tripulação do Harwich deveriam ser oferecidas, mas apenas
um homem havia sido selecionado para tal, e Newton
compreendeu o que estava acontecendo. Imediatamente, rogou
que lhe fosse permitido juntar-se ao outro marinheiro que
estava para partir, e, provavelmente desejoso de livrar-se dele,
o capitão consentiu. Não mais que poucos minutos se
passaram, desde o momento em que acordou em sua rede até a
sua partida apressada, com apenas algumas roupas e um livro.
(1)

Desta forma, o jovem John Newton escapou


da marinha Britânica e também da longa viagem à
Índia. Tornou-se parte da tripulação de um navio
mercante, uma posição que ele conhecia bem, por
navegar com seu pai. No entanto, esta experiência
seria diferente, em pelo menos um aspecto
significativo, pois “ele não estava à bordo de um
navio qualquer, mas de um Navio de Guiné — um
navio escravo. Ele contava somente com dezenove
anos e não tinha idéia de que seu tempo neste
mercado escravo duraria nove longos anos,
vivendo experiências que moldariam e
transformariam sua vida para sempre”.(2)
Nos meses seguintes, o navio comprou
escravos pela costa da África ocidental, com o alvo
de transportá-los para as Índias ocidentais e para
a América, antes de retornar para a Bretanha. Mas
Newton não haveria de acompanhá-lo à América.
Depois de encontrar-se com um passageiro do
navio, um homem que se tornara rico com seus
negócios na costa da África, Newton decidiu
permanecer na África e trabalhar para ele.
Convenceu-se de que, assim como aquele homem,
ele acharia riquezas rápidas, se ficasse ali.
O que sucedeu, de acordo com o próprio
relato de Newton, foi o período mais miserável de
sua vida. Devido a uma série de eventos, inclusive
uma enfermidade grave, ele caiu no desprazer de
seu novo patrono e de sua senhora. Como
resultado, ele foi tratado como um escravo
desprezado, “destituído de comida e roupa,
deprimido a um grau além da miséria comum”(3)
— a tal ponto, que mesmo os nativos “se achavam
bons demais para falarem comigo”(4), disse ele.
Como Newton mais tarde recordou: “Eu me tornei,
de fato, embora não nominalmente, um cativo e
um escravo; fiquei deprimido até o mais baixo grau
da miséria humana.”(5)
Anos mais tarde, em uma de suas cartas, ele
refletiu sobre esta parte de sua vida:
Às vezes, eu tinha não pequena dificuldade para encontrar um
gole de água fresca, quando estava queimando de febre. Minha
cama era um capacho, colocado sobre uma prancha ou um baú,
e meu travesseiro era um tronco de madeira. Quando minha
febre me deixava e o apetite retornava, eu, de boa vontade,
comeria, mas não havia ninguém que me desse algo. Quando
estava levemente me recuperando [de minha enfermidade],
esta mulher (esposa de meu patrono), às vezes, vinha me
visitar, não por pena ou para me trazer alívio, mas para me
insultar. Ela me chamava de imprestável e indolente,
compelindo-me a caminhar, o que eu dificilmente conseguia
fazer; ela colocava seus atendentes a imitarem meus gestos,
baterem palmas, rirem e jogarem limões em mim; ou, se
escolhessem jogar pedras (o que penso ter sido o caso por duas
ou três ocasiões), ela não os repreendia. Mas, de maneira geral,
embora todos os que dependiam do favor dela precisassem
juntar-se a ela, em sua forma de tratamento, quando estavam
fora de sua vista, eu era tratado com piedade, ao invés de
zombaria, pelo mais [humilde] de seus escravos.(6)

Enquanto permaneceu na jornada no navio


com seu mestre, Newton continuou a receber tal
tratamento.

Quando ele [meu mestre] deixava a embarcação, eu era


trancado no convés, com uma porção de arroz como minha
ração diária; e, se ele permanecesse fora por mais tempo, eu
não tinha qualquer ajuda, até seu retorno. De fato, creio que
cheguei bem perto de morrer de fome, se não tivesse a chance
de pegar uns peixes de vez em quando... O meu único traje era
uma camisa, um par de calças, um lenço de algodão no lugar de
um chapéu, e um pano de algodão de cerca de dois metros, que
supria a falta de vestes para a parte superior. Assim vestido,
ficava exposto por vinte, trinta, ou talvez por quase quarenta
horas seguidas, com o mínimo abrigo, enquanto meu mestre
estava em terra. Até hoje eu sinto retornos de desmaios, pelas
dores violentas que então contraí. O frio excessivo e a
humidade que suportei naquela viagem, e isto logo após
recobrar de uma longa enfermidade, quase quebraram meu
físico e meu ânimo. Este último logo foi restaurado, mas os
efeitos no meu físico ainda permanecem comigo, como um
lembrete necessário do serviço e salário do pecado.(7)

Tal era sua condição — “vivendo em fome,


sede e nudez, somados à falta de tudo”(8) — que
Newton acabava se escondendo de qualquer
visitante em potencial. Ele se encontrava,
conforme suas próprias palavras, “com uma
aparência tão ruim que, quando um barco do navio
ia até a ilha, eu ficava envergonhado e me escondia
nas matas, longe dos olhares dos estranhos.”(9)
Um tempo depois, cerca de um ano, a situação de
Newton melhorou, quando seu mestre permitiu
que ele trabalhasse para um novo empregador.
Mas este acerto durou apenas alguns meses,
quando o jovem foi novamente retomado. “Por ter
muitos amigos que eram capitães de navios, seu
pai instou com os mercadores da costa da África
para conseguirem informações sobre seu filho.
Logo mais, em fevereiro de 1747, o capitão do
Greyhound o encontrou e o tomou à bordo.”(10)
Como Newton explica em suas cartas, “Assim, eu
fui repentinamente libertado de um cativeiro que
durou quinze meses”.(11)
Nesta altura, Newton ainda não era um
cristão. De fato, ele mantinha uma reputação de
excessiva profanidade e maldade, mesmo entre
seus companheiros marinheiros! Mas Deus tinha
seus olhos sobre Newton. Alguns meses mais
tarde, quando o Greyhound estava na rota para a
Irlanda, uma tempestade violenta fez aflorar aos
seus sentidos a sua rebeldia impenitente, e, num
momento de pânico, ele clamou a Deus por
misericórdia. O navio sobreviveu, embora como
que por milagre, e a tripulação conseguiu, depois,
trazê-lo de volta. Anos mais tarde, ao escrever
sobre esta experiência espiritual, Newton recordou
o seguinte:
[Eu fui] sinceramente tocado com o senso da misericórdia
imerecida que recebi, por ser trazido em segurança em meio a
tantos perigos. Senti muito pelo desperdício de minha vida
passada, e fiz propósito de imediata reforma...Eu reconheci a
misericórdia do Senhor em perdoar o passado, mas dependia,
principalmente, de minha resolução em proceder melhor no
tempo futuro. Eu não tinha qualquer amigo cristão, ou um fiel
ministro para me advertir que a minha força não era, em nada,
maior que a minha justiça... Portanto, considero ser este o
princípio do meu retorno a Deus, ou antes, o retorno dEle a
mim; mas não posso considerar ter-me tornado um crente (no
sentido completo da palavra) até um tempo considerável
depois.(12)

Quando Newton retornou para a Bretanha,


continuou a buscar o mercado escravo. De fato,
logo ele começou uma carreira como capitão de um
navio escravo. Dado ao que ele acabara de
experimentar, era difícil conciliar com a decisão de
buscar esta ocupação censurável. A consciência do
jovem marinheiro estava ainda insuficientemente
desenvolvida(13) (por seu próprio relato, ele não
era ainda um crente genuíno); o seu tempo na
África e a soma dos anos de experiência como
navegador conferiram a ele uma qualificação única
para este posto. Além disso, conseguir um serviço
estável como capitão do mar lhe tornava hábil a
buscar casamento com o amor de sua vida, a jovem
Polly. Entretanto, apesar de racionalizar o fato no
momento, tempos depois Newton olhou para trás,
ao seu envolvimento com o mercado escravo, com
profunda tristeza e vergonha.
Nos anos seguintes, ele liderou um total de
quatro expedições de escravos — a primeira como
imediato do navio mercante e as outras três como
capitão do seu próprio navio. Embora tenha feito o
melhor para “tratar com brandura os escravos aos
seus cuidados e considerar seu bem-estar e
comodidade,(14) Newton admitiu ficar “chocado
com um serviço que, em todo tempo, se
identificava com correntes, parafusos e
algemas.”(15) Mesmo durante este período em sua
vida, ele “geralmente pedia em suas orações que o
Senhor, a seu tempo, se agradasse em colocá-lo em
um chamado mais humano”.(16) Quando
problemas inesperados de saúde o forçaram a
parar de navegar, Newton ocupou um cargo na
alfândega do porto de Liverpool. Nove anos mais
tarde, ele seria ordenado como ministro, um
chamado que ele cumpriria fielmente, até aos
oitenta e dois anos de idade.
Em 1788, trinta e quatro anos depois de
deixar o mercado escravo, Newton o denunciou
publicamente (e desculpou-se por tomar parte
nele) em um panfleto intitulado “Pensamentos
sobre o Mercado Escravo”. O panfleto foi
amplamente lido, e contribuiu grandemente com o
movimento abolicionista britânico do final
daquele século. Nele, Newton escreveu: “Sou
devedor à minha consciência, quanto a
envergonhar-me publicamente nesta confissão, a
qual, embora sincera, chega muito tarde para
prevenir ou reparar a miséria e a maldade das
quais, anteriormente, eu fui cúmplice. Espero que
seja sempre um assunto de reflexão humilhante
para mim, o fato de eu ter sido um instrumento
ativo em um negócio sobre o qual, agora, meu
coração estremece.”(17)
Newton também pregou contra a escravidão e
buscou a abolição. Em um sermão de 1794, ao
recordar as mazelas sociais de seus dias, Newton
disse ao seu rebanho:
Eu seria inescusável, considerando-se a participação que tive,
anteriormente, nesse negócio, se nesta ocasião eu omitisse
mencionar o mercado escravo africano. Eu não coloco isto
entre os nossos pecados nacionais, porque espero e creio que a
grande maioria das nações deseja ansiosamente seu final. Mas,
até agora, interesses parciais e mesquinhos têm prevalecido
contra a voz da justiça, da humanidade e da verdade. Ainda
não se deu conta, o suficiente, desta perversidade. Se vocês
estão chocados, e isto por motivo justo, com o que têm ouvido
sobre as crueldades praticadas na França, ficariam talvez
muito mais chocados, se pudessem conceber inteiramente as
mazelas e misérias indissociáveis deste tráfico, o que eu
compreendi, não por ouvir dizer, mas por minhas próprias
observações, que são semelhantes em atrocidade e, talvez,
superiores em número, no curso de um simples ano, em
comparação a quaisquer das piores ações conhecidas na
França, desde o início da revolução.(18)

Alguns anos mais tarde, em 1797, ele disse


novamente à sua congregação: “Mais de uma vez
eu confessei envergonhado, neste púlpito, a
participação que há muito tive na escravidão
africana.”(19)
A influência de Newton, somada à sua
amizade com William Wilberforce, ajudaram a
causa dos abolicionistas na Bretanha a alcançar o
seu alvo. Em uma carta datada de 1805, o ancião
ministro expressou o seu apoio:
Devo expressar minha gratidão ao Senhor e oferecer meus
cumprimentos a vocês, pelo sucesso que, até aqui, Ele tem se
agradado em lhes dar, por seus incansáveis esforços pela
abolição do mercado escravo... Se eu, que estou a dois meses de
entrar nos meus oitenta anos de vida, viverei para ver a
realização desse trabalho, isto é conhecido apenas por Aquele
em cujas mãos estão os nossos tempos e nossos caminhos, mas
a esperança desta realização me trará, eu creio, satisfação
diária, conquanto que meu estado físico declinante seja
preservado.(20)

Em fevereiro de 1807, apenas dez meses


antes de Newton falecer, o Parlamento finalmente
aprovou o Ato do Mercado Escravo, tornando
aquele terrível mercado ilegal no Império
Britânico. O fato de que Newton tenha vivido para
ver esta notável vitória é um clímax adequado ao
seu legado. No epitáfio de Newton, o qual ele
deixou escrito, destacava seu profundo apreço a
quem ele devia todas as coisas — a graça
maravilhosa de Deus:
JOHN NEWTON,
Antes um Infiel e Libertino,
foi um Servidor de Escravos na África,
e, pela rica misericórdia de
nosso Senhor e Salvador
JESUS CRISTO,
preservado, restaurado, perdoado,
e designado a pregar a fé que,
por muito tempo,
procurou destruir.

Se alguém entendeu os horrores e os abusos


do mercado escravo do século dezoito, este foi
John Newton. Ele experimentou a escravidão de
ambos os lados — tendo vivido como escravo na
África e participado no tráfico, após voltar para
casa. Como ministro, ele escreveu sobre os abusos
da escravidão e, no final da vida, foi um
instrumento para trazer um fim ao tráfico escravo
Britânico. Os cristãos de hoje podem se regozijar,
no uso providencial que Deus fez de John Newton
— não apenas por salvá-lo de seu passado
pecaminoso, mas também por usá-lo (juntamente
com William Wilberforce e outros) para dar fim a
uma das maiores injustiças da história moderna.
Como Newton veio a reconhecer, o mercado
escravo Britânico-Americano de seus dias era
totalmente injusto e antibíblico. O rapto ou “o
roubo de homens”, sobre os quais repousava um
inteiro sistema social, é claramente proibido, tanto
no Antigo quanto no Novo Testamento (Ex. 21.16;
1 Tm. 1.10). Além do mais, o preconceito racial
engajado não tem lugar na igreja, onde todos os
crentes são co-participantes do corpo de Cristo (1
Co. 12.13; Gl. 3.28). Não é de admirar que,
conforme seus anos de ministério progrediam,
John Newton ficasse ainda mais desgostoso com
aquela instituição ímpia e com seu anterior
envolvimento com ela.
Contudo, o testemunho singular de Newton
lhe deu um senso de apreço pela misericórdia
resgatadora de Deus em sua vida. Suas
experiências passadas o ajudaram a entender o
que, de fato, significava ser um escravo do pecado
— ser oprimido sem misericórdia e explorado por
um mestre perverso. Mesmo ao final de sua vida,
na idade de setenta e cinco anos, Newton ainda
escreveu sobre seu “estado de impiedade e miséria
na África, a qual”, disse ele, “raramente sai de
meus pensamentos por duas horas seguidas”.(21)
Com frequência, ele refletia sobre a dura realidade
de sua própria escravidão, traçando paralelos, a
partir de sua experiência, com a realidade
espiritual da escravidão do pecado. Talvez não
haja paralelo mais marcante, pelo menos no século
recente, do que a impiedade cruel do tráfico
escravo Britânico-Americano e a dura opressão da
escravidão do pecado.
Através de suas letras e hinos, Newton
sempre contrastava a escravidão do pecado com a
redenção recebida por meio de Jesus Cristo. Ele
retratava a si mesmo, em sua condição de perdido,
como “o escravo voluntário de todo mal”(22) e
como “um escravo cego de Satanás”(23), o qual, se
Cristo não houvesse resgatado, “ainda estaria
cativo”.(24) Os hinos de Newton — que são cerca
de trezentos — ressoam com o glorioso tema da
libertação de sua própria iniquidade.(25) Embora,
antes, houvera sido um escravo da “loucura,
veneno e morte” do pecado, ele foi liberto pela
graça de Deus.
Newton lembrava o que era ser um
inconverso, ser um daqueles que “agem
controlados por Satanás,” atados por “correntes de
culpa e pecado”. Ele sabia que os não convertidos
são:
Por natureza, quão depravados,
Quão inclinados para o mal,
Suas vidas a Satanás, quão escravizadas,
E quão obstinada sua vontade.

Sua existência lamentável é “descuidada,


enquanto vivem no pecado, escravizados no poder
de Satanás”. Pois no “castelo do coração humano
[não convertido],”

[Satanás] reina,
E guarda em paz os seus bens.
A alma se agrada em usar suas cadeias
E não deseja soltura.

Mas Newton também sabia que

Jesus, [sendo] mais forte que ele,


Em sua hora apropriada,
Aparece para pôr seu povo em liberdade
Do poder do usurpador.

Newton se regozijava pelo fato que “Jesus


resgata os escravos de Satanás,” pois
Ele nos vê — escravos voluntários
Do pecado e do poder de Satanás;
Mas com braços estendidos Ele salva,
Em sua hora designada.
Fomos “libertos do pecado e das trevas”, pois
Jesus “nos libertou quando cativos”. Embora
estivéssemos mortos em nossos pecados, Deus nos
deu vida, de forma que “começamos, de fato, a
viver, quando [somos] livres do pecado e da
escravidão.”
Ao mesmo tempo, Newton também entendia
as implicações éticas de sua liberdade em Cristo.
Embora tivesse sido resgatado da rude opressão do
pecado, ele agora tinha um novo Mestre, o Senhor
Jesus Cristo. Mas, diferentemente do pecado — o
mais vil e cruel de todos os opressores — Cristo é
o Mestre perfeito, sendo justo, gracioso e bom.
Submeter-se à sua vontade é pura alegria.
Portanto, Newton podia exclamar:
Adeus mundo, Teu ouro é refugo que não reluz
Agora vejo a sangrenta cruz.
Jesus morreu para me libertar
Da lei, do pecado e de ti;
Com amor comprou minh´alma pra Si.
Senhor, aceita e exija o todo;
À Tua vontade eu tudo submeto,
Agora, não sou de mim mesmo, mas Teu.

Em outro lugar, escreveu:

Agora, Senhor, eu serei Teu somente,


Vem e toma posse do que é Teu;
Pois Tu me livraste,
E me libertaste do comando impiedoso de Satanás.
Veja todas as minhas forças que aguardam
Para serem utilizadas por Ti.

Assim,

A alma rebelde, que uma vez resistiu


a mais terna chamada do Salvador,
Regozija-se, agora, subjugada pela graça,
Para inteiramente servi-lO.
Tendo sido resgatado dos laços servis do
pecado, Newton estava ansioso para obedecer a
Cristo, com todo o seu coração. Em um hino
intitulado “Éramos escravos de Faraó,” Newton
comparou a libertação de pecado dos cristãos à
libertação de Israel do poder do Egito. Assim como
Faraó, o pecado é o mais severo dos senhores de
escravos. Mas os cristãos, assim como os Israelitas,
podem se regozijar por serem resgatados pela
graça de Deus.

Sob o jugo tirano de Satanás


Nossas almas há muito estavam opressas;
Até que a graça os rudes grilhões quebrou,
E deu ao cansado descanso.
Jesus, naquela importante hora,
Seu forte braço revelou;
Por preço e com poder Ele nos resgatou
E nos reivindicou para Si mesmo.
Agora, livres da servidão, do pecado, e da morte,
Andamos pelas sendas da sabedoria;
E desejamos empregar cada fôlego
Em admiração, amor e louvor.
Por tempos sem fim, esperamos com Ele habitar
Em longínquo mundo além;
E agora vivemos somente para contar
As riquezas do amor que Ele nos tem.

(1) Iain H. Murray, Heroes (Carlisle, PA: Banner of Truth, 2009),


90–91.
(2) Grant Gordon, “The Earlier Years of Newton and Ryland,”
1–10, em John Newton, Wise Counsel: John Newton’s Letters to John
Ryland Jr., ed. Grant Gordon (Carlisle, PA: Banner of Truth,
2009), 1.
(3) John Newton, An Authentic Narrative, ed. Richard Cecil
(Edinburgh: John Anderson, 1825), carta 5, 44.
(4) Ibidem, carta 5, 39.
(5) John Newton, The Works of John Newton, 4 vols. (New Haven:
Nathan Whiting, 1824), 4:553. Esta parte, em particular, vem
de um panfleto de Newton, intitulado: “Pensamentos sobre O
Tráfico Escravo Africano.”
(6) Newton, An Authentic Narrative, carta 5, 42–43.
(7) Ibidem, 43–44.
(8) Ibidem, carta 6, 47.
(9) Ibidem, 46.
(10) Iain Murray, Heroes, 92.
(11) Newton, An Authentic Narrative, carta 6, 51.
(12) Citado em Gordon, “Os Anos Anteriores de Newton e
Ryland,” 2.
(13) Refletindo sobre aqueles anos, Newton admitiu: “Durante
o tempo em que estava envolvido no tráfico de escravos, eu
nunca tive o menor escrúpulo quanto à sua legalidade “(The
Works of John Newton, 1:65).
(14) Citado em “Os Anos Anteriores de Newton e Ryland,”2.
(15) Newton, Authentic Narrative, carta 13, 96.
(16) Ibidem.
(17) Newton, The Works of John Newton, 4:533.
(18) John Newton, The Works of the Rev. John Newton: Completo em
Um Volume (London: Thomas Nelson, 1853), 860–61.
(19) Ibidem, 869.
(20) De uma carta datada de 5 de Junho de 1804, em Kevin
Belmonte, William Wilberforce: A Hero for Humanity (Grand Rapids:
Zondervan, 2007), 146.
(21) Newton, Wise Counsel, 380.
(22) Newton, The Works of John Newton (Whiting), 1:27, de uma
carta datada de 17 de janeiro de 1763.
(23) John Newton, “I Will Trust and Not Be Afraid,” Book III,
Hino 37, em Olney Hymns: In Three Parts (London: Thomas
Nelson, 1855), 289.
(24) John Newton, “The Legion Dispossessed,” Book I, Hino
92, em Olney Hymns, 105–6.
(25) As citações que seguem esta seção vêm de hinos de John
Newton, em Olney Hymns. Os hinos citados são: Book I: Hinos
109, 101, 118, 121, 122, 123; Book II: Hinos 21, 25, 29, 39,
56, 100; Book III: Hinos 76, 87.
8
PRESO, CEGO E MORTO
J á observamos algumas diferenças
significativas entre a escravidão do
imperialismo britânico do século 18, e a do
mundo romano do primeiro século. O que é mais
significante, a escravidão romana não era definida
por raça, de forma que os escravos do primeiro
século eram, geralmente, indistinguíveis dos
homens livres, tanto pela aparência quanto pelas
vestes. Além do mais, os escravos romanos
tinham, geralmente, a oportunidade de ganhar sua
liberdade e, então, tornarem-se cidadãos e, até
mesmo, mestres.
Além disso, os escravos de um bom mestre
gozavam de uma vida estável e relativamente
confortável, sendo que os escravos de pessoas
importantes, normalmente, possuíam certo grau
de prestígio próprio e influência. Escravos do
primeiro século podiam ser educados ou treinados
como especialistas em suas áreas, o que permitia
que exercessem sua função com a mesma
capacidade das pessoas livres. De fato, alguns
escravos até mesmo trabalhavam como médicos,
professores ou filósofos, a serviço de seus mestres.
Apesar de a sociedade romana nunca ter visto a
escravidão como coisa ideal, tal instituição não
carregava, de forma geral, o estigma que é
associado ao mercado escravo do século dezoito.(1)
No entanto, a literatura romana provê
exemplos de injustiças infligidas sobre escravos,
por senhores cruéis e injustos. Da mesma maneira
que as experiências de John Newton afetaram sua
perspectiva teológica,(2) relatos como estes deram,
aos cristãos do primeiro século, uma vívida
compreensão da dor e da miséria que advêm de
uma escravidão a um tirano impiedoso. O
professor de História S. Scott Bartchy nos dá um
exemplo:
Em seu discurso sobre a futilidade da ira, Sêneca relata que um
homem romano, livre e muito rico, chamado Vedius Pollio,
permitia que seus peixes carnívoros se alimentassem de
escravos. Certo dia, por descuido, um escravo quebrou um vaso
de cristal na presença de alguns convidados, entre os quais
Cesar Augustus. Vedius ordenou que o escravo fosse lançado
no lago dos peixes. Em resposta aos apelos do escravo, que
implorava por ajuda, Augustus mandou que todos os cristais
possuídos por Vedius fossem trazidos, quebrados e lançados no
terrível lago, ao invés do escravo.(3)

Este relato representa a exceção, não a regra,


e dá uma vívida ilustração da extrema crueldade
que os mestres maldosos podiam infligir sobre
seus escravos.
Com o tempo, as leis romanas começaram a
proteger os escravos de tais circunstâncias. Por
volta do ano 61 d.C, a Lex Petronia:
Proibia os donos a exporem seus escravos a lutar com bestas
feras, sem permissão do magistrado competente (aprovação
era dada apenas quando se podia comprovar uma conduta
muito má por parte do escravo). Antonius Pius, Imperador
durante a metade do segundo século d.C...anunciou que, se um
escravo se refugiasse em uma estátua do Imperador, o
governador da província deveria abrir um inquérito; se ele
fosse convencido da crueldade do dono, este deveria ser
forçado a vender todos os seus escravos.(4)

A necessidade de leis como esta indica que a


crueldade com escravos, de fato, ocorria no mundo
romano.(5) Os primeiros cristãos deveriam estar
bem cientes sobre os abusos que o escravo podia
sofrer nas mãos de um dono injusto. Muitos
crentes do primeiro século eram escravos(6), e
alguns deles eram sujeitos a tratamento injusto e
severo. À luz destas coisas, Pedro os instruiu: “sede
submissos, com todo o temor ao vosso senhor, não
somente se for bom e cordato, mas também ao
perverso;...sofrendo injustamente” ( 1 Pe. 2.18-19)
É com este pano de fundo cultural que o
Novo Testamento fala sobre a escravidão do
pecado e sobre o reino do pecado no coração
humano. O pecado é o mais vil e mais temível
mestre imaginável (cf. Gn 4.7) — uma realidade
que não se perderia para os crentes do primeiro
século.(7) Eles haveriam de, naturalmente, traçar
paralelos dos piores abusos em sua cultura,
entendendo o total subjugo que tal escravidão
impunha.
Como vimos no capítulo 2, eles também
podiam olhar para o Antigo Testamento buscando
ilustrações de tal opressão, sendo a principal a de
Faraó, no Êxodo. No primeiro século, não era
incomum pensar na redenção, em termos da
libertação de Israel do Egito.(8) Este
acontecimento é um paralelo natural com a
redenção do cristão em relação ao pecado. Da
mesma forma que Faraó foi um tirano brutal,
afligindo, diariamente, os trabalhadores israelitas
com severidade e amargura, “o pecado também é
um severo senhor de escravo, que usa
implacavelmente [seus escravos], mas falha em
oferecer qualquer real recompensa”.(9) Assim, quer
considerassem o mau tratamento dado aos
escravos de sua própria cultura ou a má situação
dos escravos israelitas no antigo Egito, os crentes
do primeiro século entenderiam prontamente a
figura da escravidão do pecado.
O pecado é um tirano cruel. É o poder mais
devastador e degenerador que já afligiu a raça
humana, de forma que a inteira criação “geme e
suporta angústias até agora” (Rm. 8.22). Ele
corrompe inteiramente a pessoa — infectando a
alma, poluindo a mente, corrompendo a
consciência, contaminando as afeições e
envenenando a vontade.(10) É o câncer destruidor
da vida e condenador da alma, que apodrece e se
alastra em todo coração humano não redimido,
como uma gangrena incurável.
Porém, os não crentes não são apenas
infectados pelo pecado; eles são escravizados por
ele. Jesus disse aos seus ouvintes, em João 8.34:
“Em verdade, em verdade vos digo: todo o que
comete pecado é escravo do pecado.” O Apóstolo
Pedro também descreveu os falsos mestres como
“escravos da corrupção, pois aquele que é vencido
fica escravo do vencedor” (2 Pe. 2.19). Utilizando a
mesma imagem, Paulo relembra os romanos que,
antes de serem salvos, eles eram “escravos do
pecado” (6.17). Todo ser humano, até o momento
da redenção, encontra-se sob o domínio das trevas
e do pecado. O não convertido é totalmente
corrompido pela escravidão de sua condição
decaída, e completamente incapacitado para livrar
a si mesmo.
O que não é de surpreender, a própria idéia
de escravidão absoluta (uma doutrina comumente
conhecida como “depravação total” ou “inabilidade
total”(11)) é repugnante ao coração humano
decaído. De fato, nenhuma doutrina é mais odiada
pelos não convertidos do que esta, e mesmo alguns
cristãos a acham tão ofensiva que a atacam
ardorosamente.(12) Embora a doutrina da
depravação total seja geralmente a mais atacada e
desprezada dentre as doutrinas da graça, é a
doutrina mais distintamente cristã, por ser
fundamental para uma compreensão correta do
evangelho (no qual Deus é quem dá o início a
todas as coisas e quem recebe toda a glória). A
negligência desta doutrina, pelo evangelicalismo
americano, tem resultado em todo tipo de erro,
inclusive no evangelho diluído e no pragmatismo
de atender a necessidade do ouvinte, presentes no
movimento de crescimento da igreja. Mas a
Escritura é clara: a menos que o Espírito de Deus
conceda vida espiritual, todos os pecadores são
completamente inaptos a mudar sua natureza
decaída, ou a resgatarem a si mesmos do pecado e
do julgamento divino. Eles não podem sequer dar
o início, nem realizar qualquer aspecto de sua
redenção. Mesmo as supostas “boas obras” que os
incrédulos fazem são como trapos de imundícia
diante de um Deus santo (cf. Is. 64.6). Compare
isto com qualquer outro sistema religioso, no qual
é dito às pessoas que, através de seus próprios
esforços, elas podem atingir certo grau de justiça e,
assim, contribuir para sua salvação — nada
poderia estar mais longe da verdade.
Uma das características dominantes da queda
humana universal é o engano do pecador sobre a
sua verdadeira condição. Motivados pelo orgulho,
a mente depravada pensa, a respeito de si mesma,
que é muito melhor do que realmente é. Mas a
Palavra de Deus retalha este engano como uma
espada afiada, diagnosticando os homens
pecadores como incuravelmente doentes, rebeldes
por natureza e incapazes de produzirem qualquer
boa obra espiritual.
Como escravos do pecado, todos os
incrédulos são hostis para com Deus e incapazes
de agradá-Lo em qualquer aspecto.(13) Sua total
incapacidade é ressaltada pelo fato de que eles não
estão apenas atados ao pecado — são também
cegos pelo pecado e mortos nele. Eles são
“obscurecidos de entendimento” (Ef 4.18) e não
podem compreender a verdade espiritual, porque
“o deus deste século [Satanás] cegou o
entendimento dos incrédulos, para que lhes não
resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo”
(2 Coríntios. 4.4).(14) Além do mais, os incrédulos
estão “mortos” em seus “delitos e pecados” (Ef.
2.1), “mortos” em suas “transgressões” (Cl. 2.13), e
mortos embora vivos (cf.1Tm. 5.6). Da mesma
forma que um cego não pode dar a si mesmo a
visão, ou um morto não pode conceder a si a vida,
assim também o pecador é totalmente incapaz de
conferir a si mesmo o entendimento espiritual ou
a vida eterna. Como Lázaro, deitado imóvel no
túmulo, a alma não resgatada permanece sem
vida, até que a voz de Deus lhe ordena: “Vem para
fora!”
Notando o paralelo entre a ressurreição de
Lázaro e o milagre da salvação, Charles Spurgeon
observou:

A ressurreição de Lázaro encabeça a série de milagres


maravilhosos com os quais nosso Senhor causou espanto e
instruiu o povo. Mas não erro em afirmar que, hoje em dia, o
Senhor faz constantemente a mesma coisa, no campo da mente
e do espírito. Porventura Ele não ressuscitou naturalmente os
mortos? Do mesmo modo Ele ainda levanta os mortos
espiritualmente! Porventura Ele não trouxe de volta um corpo
que já estava em corrupção? Do mesmo modo Ele ainda liberta
os homens de pecados abomináveis!(15)

A história de Lázaro não apenas demonstra o


poder divino de Cristo sobre a morte (tanto física
quanto espiritual), mas também ilustra a verdade
teológica inversa, ou seja, que os mortos não
podem se levantar. Sem a intervenção miraculosa
de Cristo, o corpo de Lázaro teria permanecido
sem vida no túmulo. Toda a raça humana é
composta por Lázaros.(16) Até que Deus
miraculosamente intervenha, eles permanecem
espiritualmente mortos, impotentes e
escravizados ao poder e corrupção do pecado, “não
tendo esperança e sem Deus no mundo” (Ef 2.12).
Como Spurgeon disse: “Através da queda e através
do próprio pecado, a natureza do homem se
tornou tão degradada, tão depravada e
corrompida que é impossível a ele vir a Cristo, sem
a assistência do Espírito Santo... A natureza do
homem é tão corrupta que ele não tem nem
vontade nem poder para vir a Cristo, a menos que
seja atraído pelo Espírito.”(17)
Para piorar as coisas, a Bíblia ensina que os
incrédulos amam sinceramente seu pecado. Eles
não são apenas totalmente incapazes de se
libertarem da sua corrupção, mas também são
obstinadamente indispostos a fazê-lo. Como Jesus
disse aos líderes religiosos de seus dias,
“Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a
vida eterna, e são elas mesmas que testificam de
mim. Contudo, não quereis vir a mim para terdes
vida” (João 5.39-40, grifo nosso). Tendo herdado
uma natureza decaída de Adão, os seres humanos
são pecadores, “por natureza, filhos da ira,” (Ef
2.3), caracterizados por corações duros, mentes
depravadas, consciências contaminadas e por
atitudes orgulhosas, coisas estas hostis para com
Deus.(18) Como o Senhor explicou aos seus
seguidores: “E dizia: O que sai do homem, isso é o
que o contamina. Porque de dentro, do coração
dos homens, é que procedem os maus desígnios, a
prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia,
a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora,
todos estes males vêm de dentro e contaminam o
homem” (Marcos 7.20-23).
Semelhantemente, Paulo descreveu a
condição do incrédulo, em Romanos 3.10-12,
enfatizando a indisposição do pecador em vir a
Deus:

Não há justo, nem um sequer,


Não há quem entenda,
Não há quem busque a Deus;
Todos se extraviaram, a uma se fizeram inúteis;
Não há quem faça o bem, não há nem um sequer.

Em vez de buscar a Deus e a sua justiça, os


pecadores não redimidos mudam, com prazer, “a
verdade de Deus em mentira” (Rm. 1.25), “os
quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram
à dissolução para, com avidez, cometerem toda
sorte de impureza” (Ef 4.19). Eles são amantes de
si mesmos, amantes do dinheiro, e mais amigos
dos deleites do que amigos de Deus (cf. 2 Tm. 3.2-
4), buscando saciar perpetuamente os desejos de
sua carne. Além disso, estão sob o controle e
domínio de Satanás, como Martinho Lutero
esclareceu em seu tratado “A Escravidão da
Vontade”:

Satanás é o príncipe deste mundo e, de acordo com os


testemunhos de Cristo e de Paulo, reina na vontade e nas
mentes dos homens que lhe são cativos e servos... é claramente
provado pelas escrituras, sem qualquer obscuridade ou sombra
de dúvida, que Satanás é, de longe, o mais poderoso e ardiloso
príncipe deste mundo; (como eu disse antes) sob o seu poder de
comando, a vontade humana, já não mais sendo livre ou
exercendo qualquer poder, mas sendo serva do pecado e de
Satanás, não pode desejar nada além do que seu príncipe
deseja. E ele não permitirá que o arbítrio do homem deseje
qualquer coisa boa — muito embora que, mesmo se Satanás
não reinasse sobre seu arbítrio, o próprio pecado do qual o
homem é escravo o endureceria o suficiente, para evitar que
desejasse o bem.(19)
Certamente que, aqueles que estão sob o
domínio de Satanás, irão partilhar com ele do
mesmo fim de destruição eterna. Embora o pecado
prometa satisfação e vida a seus escravos, sua
recompensa é, na realidade, exatamente o oposto -
miséria nesta vida e condenação na próxima.(20) A
realidade surpreendente é que, mesmo que o
pecador pudesse mudar a condição do seu coração,
o que a Escritura ensina ser impossível (Jr.13.23),
nenhum incrédulo jamais desejaria fazê-lo.
Deixado à sua própria razão natural e vontade, o
pecador não resgatado sempre irá escolher a
escravidão do pecado, em vez da obediência a
Deus. Até que o Senhor intervenha, o pecador não
é capaz, nem está disposto a abandonar seu
pecado e servir a Deus em justiça. Tanto sua razão
quanto sua vontade são totalmente corrompidas.
Lutero levanta esta questão, através de uma série
de perguntas retóricas:
O que pode, então, a razão [do pecador] propor, que seja justo,
sendo ela cega e ignorante? O que pode a vontade dele escolher
que seja bom, sendo ela maligna e impotente? O que pode a
vontade buscar,
Quando a razão nada pode propor, além das trevas de sua
própria cegueira e ignorância? E, sendo a razão assim errônea e
a vontade adversa, o que pode o homem [incrédulo] fazer ou
empreender, que seja bom!(21)

Certamente que a resposta é - Nada! A mente


contaminada e a vontade corrompida do coração
não convertido são capazes de escolher somente o
pecado. A alma não resgatada, portanto, “está
compulsivamente ligada a servir o pecado, e não
pode desejar nada de bom”.(22) À parte da
intervenção divina, o escravo do pecado
permanece em uma situação de total desamparo e
desesperança. Ele não somente é incapaz de se
libertar, como também usa com grande disposição
as correntes que o prendem.
(1) Nesta linha de pensamento, S. Scott Bartchy observa: “O
primeiro século d.C foi um tempo em que as condições de vida,
para aqueles em escravidão, estavam melhorando. A ação legal
e a opinião pública apoiavam um melhor tratamento para os
escravos. . . . A maioria dos escravos, no primeiro século,
nasceram nos domicílios de seus proprietários, e receberam
treinamento para tarefas pessoais e públicas de crescente
importância e sensibilidade. Eles foram tratados em
conformidade” (First-Century Slavery [Eugene, OR: Wipf and
Stock Publishers, 2002], 71).
(2) Em Sixty-Six Letters to a Clergyman and His Family (London:
Simpkin, Marshall, & Co., 1844), Newton reconheceu as
dificuldades que os escravos de senhores injustos teriam
sofrido, nos tempos do Novo Testamento: “Os serviçais, nos
tempos dos apóstolos, eram escravos. . . . Os serviçais de
mestres pagãos, sem dúvida, tinham muito a sofrer, ainda
assim o apóstolo esperava que esses pobres escravos
adornassem a doutrina de Deus, seu Salvador, e seguissem Seu
exemplo em todas as coisas “(160-61).
(3) Bartchy, First-Century Slavery, 69. No rodapé (n235), o autor
explica: “Esta é uma história incomum, que mostra não apenas
o lado chocante e terrível da escravidão, mas também o
interesse oficial em superá-la.” O autor passa a explicar que, da
simples perspectiva econômica, os mestres tinham muito mais
a ganhar por tratar bem seus escravos, que tratá-los
cruelmente.
(4) Ibidem, 71, n. 247.
(5) Para uma pesquisa nos escritos Greco-Romanos que
evidenciam a crueldade com que os escravos, por vezes, eram
tratados, veja Thomas Wiedemann, Greek & Roman Slavery (New
York: Routledge, 1988), 9–11, 167–87.
(6) Ver Efésios 6.5–9; Colossenses 3.22–25; Tito 2.9–10;
Filemom 1.15–16.
(7) Comentando Romanos 6, Leon Morris (em Romans, Pillar New
Testament Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1998], 261)
diz sobre os leitores de Paulo: “Eles estavam familiarizados com
a escravidão, e Paulo está argumentando a partir do fato bem
conhecido de que o escravo estava completamente à disposição
do seu mestre.... Para Paulo, o pressuposto básico é que todos
são escravos, antes que se tornem crentes em Cristo, não são
livres para fazer o que quiserem, pois estão sujeitos à
escravidão do pecado.”
(8) F. Büchsel, em “λυτρόω,” no Theological Dictionary of the New
Testament, editado por Gerhard Kittel e traduzido e editado por
Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), explica
que “a redenção, no uso judaico, é sempre a redenção de Israel
do domínio dos povos gentios, geralmente em referência ao
êxodo do Egito, mas também às muitas redenções da história
judaica; por exemplo, da opressão por Antíoco Epifânio IV”
(4:350). Para saber mais sobre a relação do Novo Testamento
entre os israelitas como escravos no Egito e descrentes como
escravos do pecado, ver John Byron, Slavery Metaphors in Early
Judaism and Pauline Christianity (Tubingen, Alemanha: J. C. B.
Mohr, 2003), 229.
(9) Lawrence O. Richards, Bible Reader’s Companion (Colorado
Springs: David C. Cook, 1991), 53.
(10) Ver Jeremias 44.15–17; João 3.19–21; Romanos 1.21; 2
Coríntios 7.1; Tito 1.15.
(11) É importante notar que a “depravação total” não significa
que todo pecador seja tão cruel ou depravado quanto possa ser.
Obviamente, não é esse o caso. Nem todo pecador é um
assassino em massa ou estuprador. Na verdade, alguns
pecadores parecem ser pessoas relativamente boas, em
comparação com outros. Mas a Bíblia é clara sobre a extensão
da queda de cada pecador. Não há nenhuma parte da natureza
ou do ser do pecador que não tenha sido completamente
maculada pelo pecado. Assim, quando falamos em “depravação
total”, estamos falando da total extensão em que cada pecador
tenha sido contaminado pelos efeitos do pecado. Essa
contaminação define o pecador como espiritualmente morto,
totalmente incapaz de responder positivamente à verdade
espiritual.
(12) Para ver mais sobre a doutrina da depravação total, leia
meus capítulos “The Sinner Neither Willing nor Able” (pp. 81–
98), em Proclaiming a Cross-Centered Theology (Wheaton, IL:
Crossway, 2009); e “Man’s Radical Corruption” (pp. 129–40),
em John Calvin: A Heart for Devotion, Doctrine, & Doxology (Orlando:
Reformation Trust, 2008).
(13) Ver Jeremias 13.23; Romanos 8.7–8; 14:23; Hebreus 11.6.
Nesta mesma linha, a Confissão de Fé de Westminster (cap. 9, §
3) afirma: O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu
totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem
espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem
natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é
incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo
preparar-se para isso.
(14) Cf. Jo. 8.43–44; 1 Co. 2.14. Satanás é o príncipe do
sistema perverso deste mundo (Jo. 12.31; 2 Co. 4.4;. Ef 2.2) e
pai de todos “os filhos da desobediência” (Ef. 5.6; Cf Mt 13.38;
1 Jo 3.10). Conhecido como “homicida desde o princípio” (Jo.
8,44), “o pai da mentira” (Jo. 8.44), o “maligno” (Jo. 17.15; 1
Jo 5.19; Cf Mt 13.19), e o “filho da perdição” / “filho da
destruição” (Jo. 17.12; 2 Ts 2.3), ele “anda em derredor, como
leão que ruge, procurando alguém para devorar” (1 Pe 5.8.).
Embora o Diabo apareça como um anjo de luz (2 Co. 11.14),
alegando oferecer satisfação em troca da conformidade com
suas exigências (ver Mateus 4.8-10), suas tentações são nada
mais do que flechas de fogo de destruição espiritual (Ef. 6.16 ;
cf 1 Jo 2.15-17).
(15) Charles Spurgeon, “Desatando Lázaro,” sermão no. 1776,
Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim Press,
1985), 30:219.
(16) Sobre este ponto, o autor Duane Edward Spencer
observou: “Assim como Lázaro nunca teria ouvido a voz de
Jesus, nem teria jamais ido até Jesus, sem que primeiro lhe
tivesse sido dada a vida por nosso Senhor, assim também, todo
homem, morto em seus delitos e pecados, deve primeiro
receber de Deus a vida, antes que possa vir a Cristo. Visto que
os homens mortos não podem desejar receber a vida, mas
podem ser ressuscitados dentre os mortos apenas pelo poder
de Deus, assim também o homem natural não pode, por seu
próprio (mítico) ‘livre arbítrio’, desejar ter a vida eterna (cf.
João 10:26-28)” (Spencer, Tulip: The Five Points of Calvinism in the
Light of Scripture [Grand Rapids: Baker], 28).
(17) Charles Spurgeon, “Human Inability,” New Park Street Pulpit,
4 vols. (London: Alabaster and Passmore, 1859), 4:138.
(18) Quanto à natureza pecaminosa do homem, ver Salmo 51.5;
Romanos 3.23; 5.12, 15–17; 1 Coríntios 15.21. Quanto aos
efeitos da corrupção do pecado, ver Salmo 143.2; Jeremias
17.9; Romanos 1.28; 5.10; 8.7; Efésios 2.1–3; 4.18; Tito 1.15;
3.1–3.
(19) Martinho Lutero, On the Bondage of the Will, tradução por
Henry Cole (London: T. Bensley, 1823), 293, 295. Cf. Gl. 4.8;
Ef. 2.2
(20) Cf. Ez. 18.4; Mt. 5.29; Rm. 6.23; 8.13; Gl. 6.8; Tg. 1.15;
Ap. 20.10–15.
(21) Lutero, On the Bondage of the Will, 320.
(22) Ibidem, 125. Nesta seção, Lutero mostra a falácia do uso
que Erasmus faz do termo “livre arbítrio”. No processo, Lutero
evidencia seu próprio entendimento da depravação total.
9
SALVO DO PECADO,
ESCRAVIZADO PELA GRAÇA
É da escravidão do pecado que Deus salva
seus eleitos, resgatando-os do domínio das
trevas e os transferindo como seus
próprios escravos para o reino de seu Filho (Cl
1.13). Quando amávamos a mais nada, além de a
nós mesmos e ao nosso pecado, Deus nos amou
primeiro, de forma a podermos responder a Ele em
fé.(1) Como o Apóstolo João afirma: “Nisto
consiste o amor: não em que nós tenhamos amado
a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu
Filho como propiciação pelos nossos pecados....
Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1
João 4.10, 19). Ao salvar-nos da escravidão do
pecado, Deus iniciou e completou todas as coisas.
Se não fora por sua intervenção proposital, ainda
estaríamos irremediavelmente presos ao pecado.
É importante notar que, nos tempos
romanos, os escravos não escolhiam seus mestres;
pelo contrário, o mestre escolhia seus escravos.
Este ponto é perfeitamente claro, pelas descrições
sobre o antigo mercado Romano, onde os escravos
eram inteiramente submetidos às opiniões e
decisões dos compradores potenciais.(2) Conforme
Lyall explica:
Visto que os escravos eram considerados como “coisas”, um
mero objeto comercial, eles podiam ser comprados e vendidos
ou, ainda, ser transferida sua titularidade a outro
proprietário, sem que pudessem dizer qualquer coisa a
respeito. A transferência de um escravo era uma questão
técnica, mas era geralmente ocasionada por uma transação. É
interessante, portanto, encontrarmos dois exemplos desta
figura em 1 Coríntios, uma carta endereçada à igreja em uma
cidade que hospedou um importante mercado escravo. Em 1
Coríntios 6.20 e 7.23, lemos que “fomos comprados por
preço...” Na questão do escravo e de sua compra, [o significante
é que] a vontade do escravo era coisa totalmente sem
importância.(3)
No mercado escravo Romano, as decisões
quanto ao futuro do escravo repousavam somente
nas mãos do comprador, não a quem estava sendo
vendido. Semelhantemente, a Bíblia ensina que
Deus escolheu seus escravos por sua própria
vontade soberana, independente e eletiva. De fato,
Ele os elegeu para serem seus escravos antes que
nascessem, e mesmo antes que o mundo fosse
criado.(4)
Como escolhidos por Deus, os crentes foram
comprados “com o seu [de Cristo] próprio sangue”
(At. 20.28),(5) predestinados a serem libertos da
escravidão do pecado e introduzidos na família de
Deus.(6) Ele nos buscou, mesmo que não tenhamos
procurado por Ele, e nos atraiu a si mesmo,
arrebatando-nos das garras e da condenação do
pecado. Assim como Paulo, fomos “conquistado[s]
por Cristo Jesus” (Fp. 3.12), tornando-nos seus
voluntários cativos, seus prisioneiros contentes, e
participantes do povo de sua possessão exclusiva.
(7)Somos aqueles que a Ele pertencem, não porque
O escolhemos, mas porque fomos escolhidos por
Ele.
Porém, diferentemente do mercado escravo
romano, onde os escravos eram selecionados com
base em suas qualidades positivas, como força,
saúde e aparência física, Deus escolheu seus
escravos com plena compreensão de suas
fraquezas e falhas. “Não foram chamados muitos
sábios segundo a carne, nem muitos poderosos,
nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário,
Deus escolheu as coisas loucas do mundo para
envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas
do mundo para envergonhar as fortes” (1Co. 1.26–
27). De fato, por sua misericórdia Ele nos elegeu
para a salvação, apesar de nós mesmos, salvando-
nos, não por causa de qualquer bondade inerente a
nós, mas de acordo com seus próprios propósitos
eternos e por amor de sua glória.
O Novo Testamento é repleto de exemplos
que mostram Deus elegendo e iniciando a obra da
salvação. Em João 15.16, Jesus disse a seus
discípulos: “Não fostes vós que escolhestes a mim;
pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos
designei para que vades e deis fruto, e o vosso
fruto permaneça; a fim de que tudo quanto
pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda.”
Em Atos 2.39, Pedro enfatizou que a promessa da
salvação se estendia a “quantos o Senhor, nosso
Deus, chamar.” Atos 13.48 reporta que, em
resposta ao trabalho missionário de Paulo entre os
gentios, “creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna.” Alguns capítulos
depois, vemos que Lídia veio a crer apenas depois
que “o Senhor lhe abriu o coração para atender às
coisas que Paulo dizia” (Atos 16.14). Em cada caso,
foi Deus que fez o trabalho de escolher, chamar,
apontar e abrir o coração. Este é ainda o caso,
sempre que uma alma é salva, pois o novo
nascimento sempre acontece, não pela “vontade
da carne, nem da vontade do homem, mas de
Deus” (João 1.13).
A vontade de Deus na salvação é singular,
não dependendo de nada mais que sua
ininfluenciável e livre escolha. Portanto, o Espírito
Santo opera onde Ele quer; o Filho dá vida a quem
Ele quiser; e, a menos que o Pai os atraia, os
incrédulos não podem vir a Cristo.(8) Quando
estávamos presos em nossos pecados, o Filho nos
libertou (João 8.36). Quando estávamos cegos
pela incredulidade, Deus “resplandeceu em nosso
coração, para iluminação do conhecimento da
glória de Deus, na face de Cristo” (2 Co. 4.6).
Quando estávamos mortos em nossos delitos e
pecados, Ele “nos deu vida juntamente com Cristo”
(Ef. 2.5). Foi Ele quem iniciou cada aspecto da
obra da salvação em nossos corações, de modo que
não podemos levar, absolutamente, qualquer
crédito por ela.(9) Toda a glória pertence a Ele.
Na salvação, o Deus triuno age
soberanamente sobre aqueles a quem Ele quer
resgatar, concedendo vida a corações mortos e
vista a mentes obscurecidas. A salvação, então,
“não depende de quem quer ou de quem corre, mas
de usar Deus a sua misericórdia” (Rm. 9.16). Assim
como não escolhemos nascer, no sentido físico,
também não escolhemos nascer do alto (João 3.3–
8). Você e eu cremos no evangelho, não porque
éramos mais sábios ou mais justos que qualquer
outro, mas porque Deus graciosamente interferiu,
abrindo nossos corações para guardar sua Palavra
e nela crer. Não há espaço para orgulho sutil de
nossa parte, apenas gratidão; O trabalho de
redenção de pecadores é exclusivo de Deus, o que
significa que somente Ele recebe todos os louvores.
Certamente que a doutrina da eleição
soberana não nega nem contradiz a
responsabilidade do pecador, em deixar o pecado e
confiar em Cristo como Salvador e Senhor.(10) O
evangelho convida todos os homens à fé e ao
arrependimento. Mas, como vimos, o coração
pecaminoso odeia a Deus e, se lhe for dado
escolher, sempre escolherá o pecado. Felizmente, a
graça soberana de Deus inclui não somente o dom da
salvação, mas também a fé penitente, necessária para
receber esse dom.(11) Assim, enquanto pecadores
são totalmente responsáveis por rejeitarem o
evangelho, somente Deus merece o crédito pela
salvação dos crentes, tendo Ele mesmo iniciado,
completado e providenciado tudo, inclusive os
meios pelos quais os crentes são capazes de
responder ao evangelho. Como Richard Baxter tão
vividamente expressou: “Então, que no chão do inferno
seja escrito “Merecido”, mas que na porta do céu e da
vida se escreva “Dom Gratuito”.(12)
O Apóstolo Paulo destacou, repetidas vezes, a
realidade da predestinação divina em suas
epístolas, mencionando tanto a eleição de Deus
quanto Sua chamada eficaz.(13) Paulo encorajou os
Tessalonicenses, por exemplo, com estas palavras:
“Entretanto, devemos sempre dar graças a Deus
por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus
vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela
santificação do Espírito e fé na verdade, para o que
também vos chamou mediante o nosso evangelho,
para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus
Cristo”(2 Ts. 2.13–14, grifo acrescentado).
Em suas cartas a Timóteo e a Tito, o Apóstolo
até mesmo citou a obra eletiva de Deus como um
incentivo para sua resistência própria. Ele disse a
Timóteo: “Tudo suporto por causa dos eleitos” (2
Tm. 2.10) e, semelhantemente, esclareceu a Tito
que ele era um escravo de Deus e Apóstolo de
Cristo “para promover a fé que é dos eleitos...”
(Tito 1.1). Paulo também se incluiu no grupo dos
eleitos de Deus, mencionando que Deus “nos
chamou com santa vocação; não segundo as
nossas obras, mas conforme a sua própria
determinação e graça que nos foi dada em Cristo
Jesus, antes dos tempos eternos” (2 Tm. 1.9).
Paulo não estava sozinho em seu
entendimento sobre a obra de eleição de Deus na
salvação. Outros escritores do Novo Testamento
enfatizaram esta mesma realidade. O autor de
Hebreus afirmou que Cristo morreu, a fim de que
“recebam a promessa da eterna herança aqueles
que têm sido chamados” (9.15). Tiago disse que
nossa salvação foi “segundo o seu querer,” quando
Ele “nos gerou pela palavra da verdade” (Tg 1.18).
Pedro escreveu sua primeira epístola “aos eleitos,
segundo a presciência de Deus Pai, em santificação
do Espírito, para a obediência e a aspersão do
sangue de Jesus Cristo” (1 Pe. 1.1–2).(14) João se
referiu a uma senhora como “eleita” (2 João 1.13).
De igual modo, Judas abriu sua carta com estas
palavras: “aos chamados, amados em Deus Pai e
guardados em Jesus Cristo,” (v. 1).
O coro retumbante da Escritura reitera esta
conclusão inescapável: Deus é quem escolhe ter
“misericórdia de quem quer e também endurece a
quem lhe apraz” (Rm. 9.18). Ele dá início e
também completa a obra da salvação para aqueles
que Ele predestinou na eternidade passada. Ele os
chama a Si mesmo, concedendo-lhes fé e
arrependimento e os redimindo da escravidão do
pecado. Consequentemente, com razão os crentes
são designados como “eleitos que ele escolheu”
(Mc 13.20), pois não poderíamos tê-Lo amado, a
não ser que Ele nos amasse primeiro. Mas, de que
forma Deus resgata esses escravos do pecado, os
quais Ele escolheu para si mesmo? O Novo
Testamento responde essa pergunta com a
doutrina da redenção — um conceito que, de igual
modo, empresta a imagem tanto do mercado
escravo romano quanto do êxodo de Israel, da
escravidão no Egito.
A Escritura usa duas palavras gregas para
transmitir a verdade da redenção.(15) A primeira é
agorazō, a qual, juntamente com seu relativo
composto exagorazō, significa “comprar” ou
“adquirir”. A palavra se deriva de agora, com o
significado de “mercado”, e se refere à compra ou
transação, “especialmente à compra de um
escravo, com vistas à sua libertação”.(16) Usada
figurativamente, seu significado era “baseado na
analogia da lei religiosa que, na realidade, conferia
liberdade a um escravo comprado por uma
divindade”.(17) De uma perspectiva teológica,
refere-se à compra espiritual da redenção, na qual
um preço era pago para comprar e tirar pecadores
da escravidão. Assim, no Novo Testamento, é
mencionado que “Cristo comprou seus discípulos,
fazendo deles, como foi dito, sua propriedade
particular... Foi dito também que Ele os comprou
para Deus, derramando o seu sangue”.(18)
O outro termo grego para redenção é lytroō (e
suas formas relativas), referindo-se,
especificamente, ao “dinheiro do resgate [pago]
pela alforria dos escravos”.(19) Quanto àqueles
“vendidos sob a escravidão do pecado” (Rm. 7.14),
uma categoria que inclui todos os descendentes
decaídos de Adão, a redenção é o único meio de
resgate do domínio condenatório do pecado.
Somente aqueles que foram comprados por um
preço, sendo resgatados através da morte
substitutiva na cruz,(20) podem se regozijar, por
saberem que foram totalmente perdoados. Pela
graça de Deus, por causa do sacrifício expiatório de
Cristo, eles foram libertados do pecado, de Satanás
e da morte.(21) Como o autor de Hebreus afirma, o
Filho de Deus veio “para que, por sua morte,
destruísse aquele que tem o poder da morte, a
saber, o diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da
morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a
vida” (2.14–15).
O tema glorioso da redenção — que os
crentes foram comprados por nosso Senhor pela
morte — ecoa em todo o Novo Testamento.(22) No
entanto, diferentemente dos escravos dos tempos
romanos, “não foi mediante coisas corruptíveis,
como prata ou ouro, que [fomos] resgatados do
[nosso] fútil procedimento” (1 Pe. 1.18), nem
fomos redimidos “por meio de sangue de bodes e
de bezerros” (Hb. 9.12). Pelo contrário, nossa
redenção é o próprio Cristo,(23) “o qual a si mesmo
se deu por nós, a fim de remir-nos de toda
iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo
exclusivamente seu, zeloso de boas obras.” (Tito
2.14). Como sua possessão, nós, que éramos
anteriormente escravos do pecado, agora somos
escravos de um novo Senhor e Mestre.
Nossa redenção em Cristo resulta na
libertação e no perdão do pecado. Não somos
apenas liberados das amarras do nosso mestre
anterior; somos também isentados das
consequências mortais do pecado — a saber, a
eterna ira de Deus. Como Paulo exclamou em
Romanos 8.1-2: Agora, pois, já nenhuma
condenação há para os que estão em Cristo Jesus.
Porque a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus,
te livrou da lei do pecado e da morte.” Por
estarmos nEle, todos os nossos pecados —
passados, presentes e futuros — foram
“perdoados, por causa do seu nome” (1 João 2:12).
(24)
Salvos do Pecado,
Escravizados pela Graça
O dom da redenção, proveniente de Deus,
traz salvação da opressão e das consequências do
pecado — e, algum dia, da própria existência do
pecado. De agora em diante, não precisamos mais
temer nosso mestre anterior nem temer a ira de
Deus.(25) Cristo derrotou o pecado e Satanás na
cruz, e também suportou o total castigo da ira de
Deus, por todos os que nEle creem. Sua morte nos
libertou do pecado, da condenação e do medo.(26)
Contudo, não devemos pensar que nossa
redenção nos deu, de alguma forma, uma licença
para pecar. De fato, o oposto é a verdade.(27)
Quando éramos escravos do pecado, estávamos
“isentos em relação à justiça” (Rm. 6.20). Mas,
agora que fomos comprados por preço, fomos
“feitos [escravos] da justiça” (v.18), “libertados do
pecado, transformados em [escravos] de Deus”
(v.22).(28) Fomos libertados do pecado, o que
significa que estamos livres para obedecer, viver
retamente e buscar a santidade. Somos escravos de
Cristo; “porém, é aí que acontece o fato mais
maravilhoso e marcante: Ser escravo de Jesus
Cristo é ter verdadeira liberdade.”(29) Murray
Harris observou:

Um dos paradoxos do cristianismo é que a liberdade conduz à


escravidão e a escravidão conduz à liberdade. Assim que a
pessoa é libertada por Cristo da escravidão do pecado, ela
entra em uma nova e permanente escravidão a Cristo. De fato,
uma escravidão é terminada exatamente para permitir que a
outra escravidão comece. Enquanto esta emancipação acontece
individualmente, os indivíduos que são libertos não são
simplesmente “escravos de Cristo” isolados. Formam agora
uma ampla comunidade de “companheiros-escravos”,
pertencentes ao mesmo Mestre, que comprou sua liberdade, e
são inteiramente comprometidos a obedecê-Lo e agradá-Lo.
(30)
Ao contrário do pecado, Cristo é o Mestre
perfeito — um ponto que já discutimos em
detalhes. Mas não é possível exagerar ao falar
deste contraste, pois não há coisa mais gritante. O
pecado é o mais cruel e injusto de todos os
senhores, enquanto Cristo é o mais amável e mais
misericordioso. O fardo do pecado é pesado e
repugnante, o jugo de Cristo “é suave” e seu “fardo
é leve” (Mt.11.30). O pecado prende seus escravos
nas trevas e na morte; Cristo traz luz e vida a
todos aqueles que foram vivificados “juntamente
com ele” (Cl. 2.13). O pecado desvia, engana e
destrói; Cristo é “o caminho, a verdade e a vida”
(Jo. 14.6). Ao passo em que a escravidão do
pecado consiste em tudo que é odioso, prejudicial,
temeroso e desprezível, a escravidão a Cristo
implica tudo o que é bom, glorioso, jubiloso e reto.
Servir a Deus “sob a graça” é uma experiência
libertadora, tão diferente quanto possa ser, em
relação à escravidão ao pecado. E não apenas há
uma grande diferença no caráter entre as duas
formas de serviço; há também grande diferença
entre os finais aos quais essas duas formas
conduzem. O pecado paga um salário aos seus
servos, sendo este o salário da morte. Deus não
paga meros salários aos que O servem — Ele lhes
dá algo melhor e mais abundante. Em sua graça,
Ele dá vida eterna como um dom gratuito —
aquela vida eterna que a eles pertence, devido a
sua união com Cristo.(31)
A escravidão a Cristo, portanto, não é
liberdade para pecar, mas libertação do pecado —
liberdade para viver como Deus deseja, em verdade
e em santidade (cf. 1 Pe. 1.6). “A liberdade do
cristão não é liberdade para que ele ou ela faça o
que deseja fazer, mas liberdade para obedecer a
Deus, de boa vontade, alegre e naturalmente.”(32)
Afinal, para os crentes “o pecado não será mais o
senhor de suas vidas, porque outro senhor tomou
posse deles, a saber, Cristo.”(33) Como um
comentarista explica: “Liberdade em Cristo não é
um convite a um egocentrismo suntuoso. Os
libertos em Cristo se tornaram escravos da retidão.
Suas vidas não são sem alvo e sem propósito.
Foram livres do pecado para se darem
integralmente a causas de valor... Os libertos não
vagam em um vácuo moral. Eles são escravos da
justiça.”(34) Liberdade verdadeira começa quando
cessa a escravidão ao pecado; e a escravidão ao
pecado cessa apenas quando nos tornamos
escravos de Deus. Mas, como ainda veremos nos
próximos capítulos, não somos apenas escravos de
Deus; somos também seus cidadãos, amigos e
membros de sua família. Tudo isto é possível
porque Ele nos escolheu e nos chamou para si
mesmo, nos redimindo da nossa escravidão ao
pecado e nos conferindo vida eterna, através de
seu Filho.
No capítulo 7, vimos a vida e teologia de John
Newton — um homem que entendeu tanto os
terrores da escravidão do pecado quanto as
alegrias da obediência incondicional a Cristo.
Como observamos, a compreensão de Newton
sobre esta profunda verdade se refletiu nos muitos
hinos que ele escreveu.
Outro famoso escritor de hinos,
contemporâneo de Newton, foi Charles Wesley.
Poeta prolífico, Wesley escreveu mais de seis mil
hinos, muitos dos quais ainda cantamos hoje. O
quarto verso de um de seus hinos mais conhecidos,
“And Can it Be?” (Quem pode o seu amor contar?),
sumariza a gloriosa realidade da redenção do
pecado, efetuada por Deus, juntamente com o
subsequente dever do crente em obedecer a seu
novo Mestre.

Há muito meu espírito aprisionado jazia,


Firmemente atado ao pecado e
Às trevas da [minha] natureza;
Teus olhos difundiram um ligeiro raio —
Eu acordei — no calabouço inflamado com a luz;
Minhas correntes caíram, meu coração foi
liberto,
Eu me levantei, caminhei e segui a Ti.

O hino conclui com a verdade ressonante da


gloriosa esperança que todos os redimidos
compartilham em Cristo.

Nenhuma condenação agora eu temo;


Jesus, e tudo nEle, é meu;
Vivo Nele estou, meu Cabeça vivente e
Vestido com a justiça divina;
Com ousadia me aproximo do trono eterno
E reivindico a coroa que, por meio de Cristo, é
minha.
(1) Passagens como João 4.10; Atos 11.17–18; Efésio 2.8;
Filipenses 1.29; 2 Pedro1.1; 2 Timóteo 2.25 e Tito 3.5 indicam
que a fé salvadora e penitente é um dom de Deus, não um
produto do esforço humano.
(2) Keith Bradley explica que, sem emitirem qualquer opinião,
os escravos “pareciam, em sua maioria, ter suportado os
procedimentos em silêncio” (Slavery and Society at Rome
[Cambridge University Press, 1994], 56).
(3) Francis Lyall, Slaves, Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles
(Grand Rapids: Academie Books, 1984), 38–39.
Adicionalmente, Murray J. Harris faz uma ligação entre 1
Coríntios 6.20 e 7.23 e “o conceito do Antigo Testamento sobre
a ‘aquisição da redenção da parte de Deus’ para o povo de
Israel, após a escravidão no Egito (e.g., Êx. 6.6; Sl. 74.2),
tornando-se seu tesouro e possessão (Êx. 19.5–6; Dt. 26.18;
Ml. 3.17)” (Slave of Christ [Downers Grove, IL: Intervarsity
Press, 1999], 122).
(4) Cf. Rm. 9.11; Ef. 1.4; 2 Ts. 2.13; 2 Tm. 1.9; Tito 1.2.
(5) Ver também 1 Pe. 1.18–19; Ap. 5.9; 14.4.
(6) Cf. Gl. 6.10; Ef. 2.19; Hb. 3.6; 1 Pe. 2.5; 4.17
(7) Cf. Rm. 16.7; 2 Co. 2.14; Ef. 3.1; Cl. 4.10; 2 Tm. 1.8; Tito
2.14; Fm. 1.9, 23; e 1 Pe. 2.9. O termo “companheiros de
prisão”, em Romanos 16.7, Colossenses 4.10 e Filemom 23 é,
literalmente, “companheiros prisioneiros de guerra.” É provável
que Paulo estivesse dizendo isto em um sentido figurado, para
incluir a si mesmo e a esses homens como companheiros cativos
no serviço de Cristo. (cf. Harris, Slave of Christ, 117).
(8) Jo. 3.7; 5.21; 6.44, 65; cf. Mt. 11.27.
(9) Cf. Fp. 1.6 e 1 Co. 1.29–31.
(10) Cf. Ez. 18.23, 32; 33.11; Jo. 3.18,19, 36; 5.40; 2 Ts. 2.10–
12; Ap. 22.17.
(11) Tanto a fé (Ef. 2.8) quanto o arrependimento (2 Tm. 2.25)
são dons de Deus.
(12) Richard Baxter, The Saints’ Everlasting Rest, citado por John
MacArthur, The Glory of Heaven (Wheaton, IL: Crossway, 1996),
171.
(13) Cf. Rm. 8.29–30, 33; Ef. 1.3–11; Cl. 3.12; 1 Ts. 1.4.
(14) A palavra presciência não se refere a uma simples
consciência do que vai acontecer no futuro, mas uma
predeterminação do que vai acontecer. Ela fala de
planejamento, não simplesmente de observação (cf. Jr 1.5;
Atos 2.23). Nesse contexto, indica que Deus pré-planejou e
predestinou a relação de cada cristão com Ele.
(15) O Evangelical Dictionary of Theology (EDT) explica que a
redenção é “transmitida no Novo Testamento pelo termo
agorazo e pelo grupo de palavras Lyo. Estes termos têm em conta
o contexto de uma operação de mercado com referência à
aquisição de bens ou à libertação de escravos. Ao utilizar essas
palavras, os escritores do Novo Testamento procuraram
representar a atividade salvífica de Jesus em termos que
transmitem libertação da escravidão. A maioria destas palavras
inferem libertação do cativeiro, por meio de um preço pago pelo
resgate” (R. David Rightmire, “Redeem, Redemption,” in EDT,
Walter A. Elwell, ed. [Grand Rapids: Baker, 1996], 664–65).
(16) W. E. Vine, comentando sobre “agorazō,” no Expository
Dictionary of New Testament Words, (Old Tappan, NJ: Fleming H.
Revell Company, 1966), 263.
(17) William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, comentando sobre
“agorazō” em A Greek-English
Lexicon of the New Testament (Chicago: Chicago University
Press, 1969), 12.
(18) Carl Ludwig Wilibald Grimm, comentando sobre “agorazō,”
no Greek-English Lexicon of the New Testament, trad. Joseph Henry
Thayer (Grand Rapids: Zondervan, 1970), 8. Cf. Jo 179–10; 1
Co. 6.20; Gl. 3.13; Ap. 5.9; 14.3–4.
(19) Arndt e Gingrich, comentando sobre “λύτρον” em A Greek-
English Lexicon of the New Testament, 483.
(20) Cf. Mt. 20.28; Mc 10.45; 1 Co. 6.20; 7.23; 2 Co. 5.21; Cl.
2.14; 1 Tm. 2.6.
(21) Devemos ter cuidado para não forçar a metáfora do
resgate, como a concluir que Cristo pagou algum tipo de resgate
para o pecado ou a Satanás, a fim de libertar os escravos do
pecado. Cristo morreu para Deus, de forma que Sua morte
substitutiva apaziguou a ira de Deus e satisfez a justiça de
Deus, provendo plena expiação para os pecados daqueles por
quem Ele morreu. F. Büchsel, comentando sobre “λύτρον’, no
Theological Wordbook of the New Testament, editado por
Gerhard Kittel, e traduzido e editado por Geoffrey W. Bromiley
(Grand Rapids: Eerdmans, 1967) (IV, 344), observa que não há
“dúvida quanto a ser Deus o destinatário do resgate. Jesus
serve a Deus com sua morte, e Deus inexoravelmente requer o
sofrimento de Seu Filho. Deus o castiga. Qualquer possibilidade
de que Satanás possa receber o resgate é, portanto, descartada.
. . . [Os pecadores devem] ser libertados do endividamento para
com Deus.”
(22) E.g., Rm 3.24; Ef 1.7; Cl 1.14.
(23) 1 Co. 1.30; cf. Mt. 26.28.
(24) Cf. Ef. 4.32, Cl. 2.13. Embora não estejamos mais sob o
poder do pecado (Rm 6.14-19), a realidade é: pelo fato de que a
nova criação está presa à carne humana não redimida, ainda
vamos lutar com o pecado nesta vida (Rm 7.21-24; 1 Jo 1.8),
até a plena redenção do corpo (Rm 8.18-23). A obra redentora
que Cristo faz na salvação nunca precisa ser repetida - a
expiação e a justificação são completas nesse ponto. No
entanto, todos os que foram purificados pela justificação
graciosa de Deus precisam de lavagem constante, no sentido
vivencial, enquanto lutam contra o pecado na carne e crescem
em santificação. Como o Senhor disse a Pedro: “Quem já se
banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais,
está todo limpo” (Jo. 13.10). Assim, somos chamados a,
regularmente, confessarmos os nossos pecados (1 Jo. 1.9),
pedindo o perdão da limpeza diária, que restaura a intimidade
espiritual e a condição de nossa utilidade aos seus níveis
máximos (cf. Mt. 6.12, 14-15). Ao estarem prontos a confessar
e abandonar o pecado, os crentes podem banhar-se nas bênçãos
espirituais profundas, tanto da redenção do pecado quanto da
comunhão com Deus, que desfrutam através de Cristo (1 Jo
1.3;... Cf Hb 10.19), enquanto aguardam a redenção total da
presença do pecado, em glória.
(25) Cf. 1 Co. 15.56–57; 1 Jo. 4.17–18.
(26) Cf. Jo. 8.34–36; Rm. 8.15, 33–34; Hb. 2.14–15.
(27) Cf. Rm. 6.1–2, 15. F. Büchsel descreve a ética cristã que
acompanha a fé salvadora dos redimidos: “Aceitar o perdão de
Jesus é aceitar o dom daquele que, em obediência voluntária,
fez de toda sua existência, de sua vida e morte, uma oferenda a
Deus, de modo que aqueles que aceitam seu perdão não têm
descanso, até que rendam a mesma obediência a Deus" (s.v.
“λυτρόω,” no Theological Dictionary of the New Testament
[unabridged], 4:348).
(28) Comentando Romanos 6.18, Douglas Moo escreveu, “O
verbo na passiva aqui (como nos versos 17 e 22) chama atenção
novamente para a iniciativa de Deus” (The Wycliffe Exegetical
Commentary, Romans 1–8 [Chicago: Moody Press, 1991], 419). 29.
James Montgomery Boice, Romans, 4 vols. (Grand Rapids:
Baker, 1991), 2:690.
(29) James Montgomery Boice, Romans, 4 vols. (Grand Rapids:
Baker, 1991), 2:690.
(30) Harris, Slave of Christ, 153.
(31) F. F. Bruce, Romans, Tyndale New Testament Commentary (repr.
Grand Rapids: Eerdmans, 2002), 133.
(32) Moo, The Wycliffe Exegetical Commentary, Romans 1–8, 415.
Moo acrescentou: “Uma pessoa nunca está livre de um mestre,
e os não cristãos que pensam serem livres estão sob uma ilusão
criada e mantida por Satanás. A escolha com que as pessoas são
confrontadas não é: ‘Devo manter a minha liberdade ou desistir
e me submeter a Deus?’, mas, sim: ‘Devo servir ao pecado, ou
devo servir a Deus?’ ”
(33) C. E. B. Cranfield, The Epistle to the Romans, 2 vols.
(Edinburgh: T&T Clark, 1975), 1:319. Na página 321, o autor
observa que o uso que Paulo faz da metáfora da escravidão
“expressa o total pertencimento, a total obrigação e total
responsabilidade que caracterizam a vida sob a graça, com um
vigor e vivacidade que nenhuma outra imagem parece ser capaz
de igualar.”
(34) Leon Morris, The Epistle to the Romans, Pillar New Testament
Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 264.
10
DE ESCRAVOS A FILHOS
[PARTE 1]
J á discutimos as doutrinas da graça em
alguns detalhes e vimos a forma com que a
Escritura usa a figura do escravo para
ilustrar estes temas gloriosos. A doutrina da
depravação total é notada no fato de os não
crentes serem escravos do pecado. Eles não
desejam, nem não são capazes de livrarem a si
mesmos do domínio do pecado em cada área de
suas vidas. A menos que Deus intervenha, eles
estão desesperançosamente cativos do pecado e
sob o domínio das trevas, caminhando para a
destruição eterna.
A doutrina da eleição soberana ensina que
Deus, em sua misericórdia infinita, escolheu salvar
aqueles pecadores sobre os quais depositou seu
amor na eternidade passada. Mesmo quando
estávamos em inimizade com Ele, Deus nos
buscou, atraindo-nos a Ele, por sua graça
irresistível. Ele nos resgatou do pecado,
transformou nossos corações e nos transportou
para o Reino de seu Filho. Embora uma vez
tenhamos sido escravos do pecado, agora somos
escravos de Cristo e escravos da justiça. Se
fôssemos deixados ao nosso próprio raciocínio
decaído, você e eu jamais escolheríamos a Deus.
Mas, de acordo com a sua grande misericórdia, Ele
nos escolheu — dando início e completando a
tudo o que era necessário para a nossa salvação.
A doutrina da redenção pessoal também foi
trazida da linguagem do mercado escravo nas
Escrituras, no qual se retrata uma transação
comercial. A morte de Cristo na cruz, de fato, paga
a penalidade pelo pecador eleito, redimindo-o do
pecado e o resgatando da ira de Deus. Nos tempos
romanos, o mestre pagava apenas pelos escravos
que ele estava comprando. Da mesma maneira, os
benefícios salvíficos da obra redentora de Cristo se
aplicam apenas àqueles que Deus escolheu para si
mesmo. Tendo sido comprados por preço - o
precioso sangue de Cristo, os crentes são sua
possessão pessoal.
Em tudo isto, como crentes, não podemos
levar qualquer crédito. Estávamos completamente
presos pelo pecado, quando Deus interferiu, por
sua própria vontade soberana e nos resgatou, com
base na obra redentora de Cristo. Deus não apenas
nos salva do pecado, mas também nos promete
guardar-nos para Ele — completando a obra que
em nós começou, na conversão, até culminar na
glorificação.(1) Esta promessa de proteção de Deus
ao seu povo, conhecida como perseverança dos
santos (e também como a segurança eterna do
crente), garante que, aquele que Ele escolheu na
eternidade passada, será salvo no presente e
glorificado no futuro. Paulo descreveu o processo,
em Romanos 8.30: “E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses
também justificou; e aos que justificou, a esses
também glorificou.” Os escravos que Ele resgatou
do pecado e comprou para si mesmo permanecerão
em sua casa para sempre.
É este último ponto — a nossa permanente
posição na família de Deus, que examinaremos nas
próximas páginas. Como já vimos, quando Deus
resgata os não crentes do pecado, Ele faz deles
seus próprios escravos. Contudo, Ele não para aí.
Na salvação, os redimidos não se tornam apenas
seus escravos, mas também seus amigos (João
15.14-15), cidadãos de seu reino, e, de maneira
ainda mais notável, filhos adotivos em sua família.
Os crentes foram transformados de escravos do
pecado em filhos e filhas da justiça. O patriarca da
igreja do quarto século, João Crisóstomo, se
maravilhou muitos séculos atrás:

Primeiramente, há a libertação do pecado, depois ocorre a


transformação em escravos da justiça, que é melhor que
qualquer liberdade. Pois o que Deus fez foi o mesmo que se
tomasse um órfão, o qual fora levado por selvagens ao país
destes, e não apenas o libertasse do cativeiro, mas se tornasse
como um pai para ele e o elevasse a uma posição de dignidade.
Foi isto que aconteceu em nosso caso. Pois não ocorreu que
Deus apenas nos tenha livrado de nossas antigas maldades; Ele
também nos conduziu a uma vida como que de anjos. Ele nos
abriu o caminho para desfrutarmos o melhor da vida,
entregando-nos à proteção da justiça e matando nossos
antigos males, colocando o nosso velho homem à morte e nos
dando vida eterna.(2)
UM PAI PARA O ÓRFÃO
George Müller tinha cerca de trinta anos,
quando ele e sua esposa, Mary, começaram seu
ministério com os órfãos em Bristol, Inglaterra.
George havia começado a pastorear em Bristol,
alguns anos antes (em 1832), e agora ele e Mary
abriram seu próprio lar para crianças carentes.
Como o biógrafo Arthur T. Pierson descreveu, “o
coração amoroso de Müller estava voltado para a
pobreza e miséria em todos os lugares, mas,
especialmente, para as crianças desprovidas de
ambos os pais.”(3)
A obra que começara com um número inicial
de trinta órfãos, rapidamente se expandiu. Outros
orfanatos foram providenciados, e um número
adicional de cem órfãos foram admitidos. Mas a
necessidade era ainda maior. Então, em 1849, foi
construído outro edifício que podia hospedar
trezentos órfãos. Por volta de 1870, havia cinco
grandes edifícios, abrigando um total de duas mil
crianças. Em uma época em que os órfãos
tomavam parte de cerca de 60 por cento da vida de
crime na Inglaterra,(4) o ministério de Müller
salvou milhares de jovens, tirando-os da rua e
evitando que acabassem na prisão. O mais
importante, porém, era que a ênfase de seu
evangelismo repousava no fato de que muitas
daquelas crianças creram no evangelho e foram
salvas do pecado e de suas consequências eternas.
Como explicou seu biógrafo, “a principal esperança
de Müller era ser um meio de saúde espiritual para
aquelas crianças”. No entanto, “ele tinha a alegria
de ver como Deus usou aqueles orfanatos também
para a promoção do bem-estar físico de muitos, e,
não poucas vezes, para inteira renovação de seus
corpos fracos e doentes.”(5) Naquela obra, George
Müller não era motivado apenas pela compaixão
por crianças desprovidas, mas também por uma
profunda convicção que estava arraigada nas
doutrinas da graça. Ele tinha por volta de vinte e
cinco anos, quando começou a examinar
seriamente estas profundas realidades bíblicas —
inclusive a depravação total do homem e a eleição
soberana de Deus na salvação. A princípio, ele as
rejeitou inflexivelmente. Como recordou mais
tarde: “Antes deste período, eu havia sido muito
contrário às doutrinas da eleição, expiação
limitada e a perseverança dos santos; a tal ponto
que... eu me referia à eleição como uma doutrina
demoníaca.”(6) Mas, conforme o jovem Müller
começou a examinar as Escrituras, seu
entendimento mudou dramaticamente. O que
antes parecia a ele “doutrinas demoníacas”, logo se
tornaram verdades preciosas: Eu me voltei para a
Palavra e li o Novo Testamento desde o início, dando
especial atenção a estas verdades. Para meu grande
espanto, vi que as passagens decisivas sobre a eleição e
a perseverança dos santos eram cerca de quatro vezes
mais do que aquelas que, aparentemente, eram contra
estas verdades; e mesmo estas poucas passagens, ao
examiná-las logo depois disto, serviram para me
confirmar nas doutrinas acima.(7)
Dessa forma, George Müller veio a crer “que o
Pai nos escolheu antes da fundação do mundo...e
que também apontou todos os meios pelos quais
[nossa redenção] veio a acontecer... e que o Filho, a
fim de nos salvar, cumpriu a lei e suportou o
castigo por nossos pecados, ... e que somente o
Espírito Santo pode nos ensinar sobre a condição
da nossa natureza, mostrar-nos a necessidade de
um Salvador e nos capacitar a crer em Cristo”.(8)
Após investigar com profundidade a Palavra de
Deus, ele então abraçou de todo o coração as
doutrinas da depravação total, eleição
incondicional, graça irresistível, expiação limitada
e a perseverança dos santos.
A maior parte da oposição inicial de Müller a
estas doutrinas resultava de sua concepção
errônea de que elas fariam seu zelo evangelístico
diminuir. Para sua surpresa e grande alegria, o
efeito foi exatamente o oposto. Como resultado,
ele pôde dizer: No decorrer do tempo…agradou,
então, a Deus mostrar-me as doutrinas da graça, de
uma forma que eu não havia visto antes. No princípio
eu as odiei, “Se isto fosse verdade, eu não poderia fazer
absolutamente nada na salvação de pecadores, visto
que tudo depende de Deus e da obra do seu Espírito.”
Mas, quando aprouve a Deus revelar-me estas
verdades e meu coração foi conduzido a tal estado que
pude dizer: “Não estou contente em simplesmente ser
um martelo, um machado ou uma serra nas mãos de
Deus; mas considerarei uma honra ser tomado e usado
por Ele de alguma forma; e, se pecadores forem
convertidos por minha instrumentalidade, do mais
íntimo de minha alma darei a Ele toda a glória”; o
Senhor me concedeu ver os frutos em abundância;
pecadores foram convertidos em grande número, e
desde então Deus tem me usado de uma forma ou de
outra, em seu serviço.(9)
A compreensão de Müller sobre estas
doutrinas bíblicas e reformadoras serviu, mais
tarde, para fortalecer seu andar pessoal com Deus.
Ao refletir sobre sua santificação progressiva, ele
observou: Quanto ao efeito sobre mim, por crer nestas
doutrinas, sou constrangido a afirmar, para a glória de
Deus, que, embora eu ainda seja excessivamente fraco,
e ainda não esteja tão morto para os desejos da carne, e
para a cobiça dos olhos, e para a soberba da vida
quanto eu poderia e deveria estar, contudo, pela graça
de Deus, tenho andado mais perto dEle, desde aquele
período. Minha vida não tem sido tão inconstante, e
posso dizer que tenho vivido mais para Deus do que
antes.(10)
Abastecido por uma nova compreensão da
graça de Deus na salvação, George Müller se
encaminhou a um ministério profundo e
sacrificial. Ao longo de sua vida, ele iria
supervisionar os cuidados com cem mil órfãos na
Inglaterra do século XIX, provendo suas
necessidades e os educando, ao ponto de ser
acusado de dar àquelas crianças uma condição
mais elevada do que lhes seria natural na vida.
Como um guerreiro de oração fervorosa, ele nunca
solicitou fundos para suas casas de órfãos, mas
levava todos os seus pedidos diretamente ao
Senhor. Como um evangelista itinerante, um
trabalho que ele, de fato, começou com a idade de
setenta anos, viajou de forma árdua e vagarosa por
mais de 200 mil milhas, pregando nos Estados
Unidos, Austrália, Índia, China, Japão e dezenas
de outros países. Em tudo isso, o coração de
Müller foi cativado por um desejo incansável de
servir e glorificar o seu Senhor. Tendo sido
resgatado da escravidão do pecado, ele era agora o
escravo voluntário de Jesus Cristo. Como D.
Martyn Lloyd-Jones observou: Uma afirmação que
o grande George Müller, certa vez, fez de si mesmo
parece ilustrar isto claramente. Ele escreve o seguinte:
“Houve um dia em que eu morri, definitivamente
morri; morri para George Müller e suas opiniões,
preferências, gostos e vontades; morri para o mundo,
sua aprovação ou censura; morri para a aprovação ou
para as acusações, até mesmo de meus irmãos e
amigos; e, desde então, tenho me dedicado apenas a me
mostrar aprovado para Deus”. Esta é uma afirmação
que deve ser profundamente ponderada.(11)
A respeito deste trabalhador incansável pela
causa do evangelho, “foi observado de forma
comovente em seu funeral que, naquela última
noite, pela primeira vez, ele confessou estar se
sentindo fraco e cansado do seu trabalho nesta
jornada terrestre.(12) Na manhã seguinte, um
pouco antes das sete horas, Deus o levou ao lar
celestial. Seu último sermão, pregado alguns meses
antes, focava muito apropriadamente sobre a
esperança da ressurreição futura. Seu texto foi 2
Coríntios 5.1: “Sabemos que, se a nossa casa
terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos da
parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos,
eterna, nos céus.” Revestido com a certeza desta
esperança e confiante na graça soberana de Deus,
George Müller entrou em seu descanso eterno em
10 de março de 1898. Da perspectiva teológica,
George Müller é notável, não apenas por seu
compromisso com as doutrinas da graça, mas
também pelo modo com que estas doutrinas o
motivaram a orar, evangelizar e a cuidar de outros.
Ele entendeu que era um escravo de Cristo e foi
fiel em viver esta verdade.
Mas o ministério de Müller também serve, em
pequena escala, como ilustração de outra grande
realidade espiritual. Sua compaixão pelas crianças
desamparadas retrata a bondade e o amor que
Deus derrama sobre aqueles a quem Ele salva. As
crianças que Müller resgatou das ruas da
Inglaterra não tinham qualquer sustento, proteção
ou futuro, além da expectativa de uma vida de
dificuldades e crimes. Ainda assim, ele as trouxe
sob seus cuidados e servia para elas como um
segundo pai — embora nada pudessem oferecer a
ele em troca. Da mesma maneira, Deus resgata
pecadores da opressão e da miséria do pecado. Ele
troca seus trapos de imundícia por vestiduras de
retidão, recebe-os em sua casa, convida-os à sua
mesa e lhes promete um futuro glorioso.
De Escravos a Filhos
É uma verdade por demais grandiosa para se
compreender, que Deus, em sua graça, nos livra do
pecado e nos torna seus escravos. Que privilégio é
conhecermos e obedecermos ao Mestre celestial!
Como observamos no capítulo 6, a dignidade de
um escravo provinha do poder e posição de seu
dono. Nos tempos antigos, os escravos do rei eram
os mais respeitados de todos. Pertencemos ao Rei
dos reis — o próprio Deus. Não pode haver maior
honra que esta. E, além disto, o Senhor concedeu
uma distinção ainda maior àqueles que pertencem
a Ele.
Ao nos libertar da miséria do pecado, Deus
não apenas nos recebe como seus escravos, mas
também nos acolhe em sua casa e nos faz
membros de sua própria família. Ele não apenas
nos resgatou, nos comprou, nos aproximou a Ele e
nos acolheu; Ele também nos adotou, e, como
consequência, transformou aqueles que antes
eram filhos da ira (Ef. 2.3) em filhos e filhas da
justiça. Tudo isto foi possível através da obra
redentora de Cristo, que é o “filho unigênito”
(João 3.16) e “o primogênito entre muitos irmãos”
(Rm. 8.29; cf. Ap. 1.5).(13)
O próprio termo “adoção” traz, em si, a ideia
de compaixão, bondade, graça e amor. Mas, para
se entender claramente as nuances da metáfora do
Novo Testamento, serve de grande ajuda
voltarmos novamente nossa atenção para a Roma
antiga.(14) Embora a adoção formal de escravos
fosse, de certa forma, algo incomum, era permitido
pela lei Romana(15), e, de fato, ocorria em certas
circunstâncias.(16) A natureza extraordinária desta
prática torna o amor adotivo de Deus por nós
ainda mais notável - que Ele tenha feito o
inesperado, por adotar todos os seus escravos
como seus próprios filhos(17) e nos nomeado como
seus herdeiros (Rm 8.17). Na Roma antiga, o ato
de adoção conferia imediatamente a liberdade ao
outrora escravo, posicionando-o,
permanentemente, na família de seu mestre.(18)
Assim também, como filhos adotivos de Deus,
fomos libertados da escravidão do pecado. E,
acima de tudo, podemos descansar seguros, por
sabermos que nos foi dado um lugar permanente
na família de Deus.
A adoção, nos tempos romanos, significava
um novo começo: a entrada em uma nova família,
de forma que todos os laços de família anteriores e
obrigações eram quebrados. O processo de adoção
consistia de vários procedimentos específicos. O
primeiro passo era interromper completamente o
relacionamento social da criança adotada e a
ligação legal à sua família natural. O segundo, era
torná-lo um membro permanente de sua nova
família.(19) Além disso, qualquer dívida financeira
anterior era erradicada, como se nunca houvera
existido.(20) Para que a transação fosse legalizada
formalmente, requeria-se a presença de sete
testemunhas de boa reputação. Se necessário, o
depoimento destas testemunhas refutaria
qualquer desafio potencial à adoção, após a morte
do pai do órfao.(21) Uma vez completada a adoção,
o novo filho ou filha estaria inteiramente sob o
cuidado e controle do novo pai. O pai anterior não
mais teria autoridade sobre seu antigo filho. Nas
famílias romanas, a autoridade do paterfamílias
(“pai de família”) era final e absoluta. Sua
autoridade se estendia aos adotados de sua casa, a
partir do momento da adoção. Como um erudito
explica: “Daquele momento em diante, o
paterfamílias passava a ter, sobre o seu novo
“filho”, o mesmo controle que tinha sobre seus
descendentes naturais. Ele era dono de todos os
bens e aquisições do adotado, controlava seus
relacionamentos e tinha o direito de
disciplinar.”(22) Tal imagem certamente reforça a
instrução do Novo Testamento, quanto a “como se
deve proceder na casa de Deus” (1 Tm. 3.15).(23)
Também explica as alusões bíblicas sobre a
disciplina paternal de Deus: “que filho há que o pai
não corrige?” (Hb. 12.7).
Entretanto, ao contrário dos pais terrenos,
que são propensos à raiva e aspereza, Deus é um
pai perfeito. Além do mais, devido à nossa posição
em Cristo, Deus agora nos vê e nos trata como Ele
faz com seu próprio Filho — com amor infinito.
(24) O Pai não pode dar a não ser o melhor ao seu
Filho. Da mesma forma, Ele não dará senão o seu
melhor àqueles que estão em Cristo — o que nos
leva a saber que “todas as coisas cooperam para o
bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados segundo o seu propósito.” (Rm. 8.28).
Um estudioso esclarece: “Conquanto não se possa
eliminar a diferença que há entre Jesus, como o
único Filho de Deus, e os crentes, como filhos e
filhas de Deus (cf. João 20.17), no entanto, em um
sentido real e espiritual, os crentes se tornam
irmãos e irmãs de Jesus, bem como irmãos uns dos
outros.(25) O autor de Hebreus expõe desta
maneira: “Pois, tanto o que santifica como os que
são santificados, todos vêm de um só. Por isso é
que ele não se envergonha de lhes chamar irmãos”
(2.11). E ainda: “Cristo, porém, como Filho, [era
fiel] em sua casa; a qual casa somos nós, se
guardarmos firme, até ao fim, a ousadia e a
exultação da esperança” (3.6).
Paulo estava bem ciente dos costumes
Romanos de adoção, e, de igual modo, tinha-os em
mente quando usava a linguagem da adoção em
suas epístolas. Em Gálatas 4, ele enfatiza que
aqueles que eram anteriormente escravos do
legalismo Judaico foram agora libertos, através da
adoção da graça:

Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, ...


para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que
recebêssemos a adoção de filhos. E, porque vós sois filhos,
enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que
clama: Aba, Pai! De sorte que já não és escravo [do legalismo da
Lei Mosaica], porém filho; e, sendo filho, também herdeiro por
Deus” (vv. 4-7).

Em Romanos 8.14-17, o apóstolo tem uma


posição semelhante, desta vez enfatizando que a
adoção nos liberta da escravidão do pecado e do
medo da morte(26):

Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos
de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão [do
pecado], para viverdes, outra vez, atemorizados, mas
recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos:
Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que
somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também
herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com
ele sofremos, também com ele seremos glorificados.
Estas duas passagens destacam verdades
importantes sobre a adoção dos crentes na família
de Deus. Embora fôssemos, anteriormente,
escravizados ao pecado e à condenação da Lei,
fomos permanentemente libertados, através da
nossa adoção na família de Deus. Como filhos
adotivos, desfrutamos do profundo privilégio de
um relacionamento íntimo com nosso Pai celestial,
a quem clamamos com afeição infantil: “Abba!”
Uma expressão de carinho familiar, Abba é
um termo informal Aramaico para “Pai.” Expressa
ternura, dependência e uma segurança infantil,
destituída de qualquer ansiedade ou medo. O
próprio Jesus usou o termo no Jardim do
Getsêmani, quando derramou seu coração ao Pai
(Mc 14.36). O fato de podermos nos dirigir ao Pai
da mesma maneira que Jesus fez, ressalta a
realidade magnífica da nossa adoção. Sermos
considerados “herdeiros de Deus e co-herdeiros
com Cristo” é uma verdade notável que jamais
deveríamos menosprezar.
E pensar que nós, que antes éramos escravos
do pecado, súditos de Satanás e filhos da
desobediência, somos, agora e para sempre,
escravos de Cristo, cidadãos do céu e filhos de
Deus — tal é o gozo e a maravilha da salvação!
Como inimigos de Deus, nem mesmo merecíamos
ser seus escravos, No entanto, Ele fez de nós seus
escravos e seus filhos. Como Alexander Maclaren,
o grande pregador Escocês, explanou: “Se somos
escravos, então somos filhos e herdeiros de Deus,
por meio de Jesus Cristo.”(27)

(1) Jo. 6.39; 10.27–29; Fp. 1.6; Rm. 8.38–39.


(2) João Crisóstomo, Homilies on Romans, 11, citado por Gerald
Bray, ed., Romans, Ancient Christian Commentary on Scripture
(Downers Grove, IL: InterVarsity, 1998), 170.
(3) Arthur Tappan Pierson, George Müller of Bristol (London:
James Nisbet & Co., 1899), 116.
(4) Baseado nos relatos de E. C. Tufnell, inspector das escolas
paroquiais em 1853–54, citado por Laura Peters, Orphan Texts
(New York: Manchester University Press, 2000), 9.
(5) Pierson, George Müller of Bristol, 226.
(6) George Müller, A Narrative of Some of the Lord’s Dealing with
George Müller, Written by Himself, Jehovah Magnified. Addresses by
George Müller Complete and Unabridged, 2 vols. (Muskegon, MI:
Dust and Ashes, 2003), 1:46.
(7) Ibidem, 1:46.
(8) George Müller, The Life of Trust (New York: Thomas Y.
Crowell, 1898), 70.
(9) Müller, Narrative, 1:752.
(10) Ibidem, 1:46.
(11) D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos No Sermão do Monte,
(Editora Fiel)
(12) Pierson, George Müller of Bristol, 290.
(13) O termo primogênito, quando aplicado a Jesus Cristo, não
implica que ele foi criado (como algumas seitas afirmam). Em
vez disso, na cultura judaica e na greco-romana, o
“primogênito” era o filho de posição mais elevada, a quem era
dado o direito de herança, quer tenha nascido primeiro ou não.
Assim, o título de “primogênito” significa “classificação mais
alta” ou “preeminente”.
(14) Para uma argumentação a respeito de por que a lei
romana, ao invés da grega, está por trás de grande parte da
linguagem de adoção no Novo Testamento, ver Francis Lyall,
Slaves, Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles (Grand Rapids:
Academie Books, 1984), 95–99.
(15) Cf. Lyall, Slaves, Citizens, Sons, 125–26. Embora a adoção,
em geral, fosse bastante comum, a adoção formal de escravos,
em particular, era muito mais rara. Informalmente, qualquer
escravo alforriado via o seu antigo mestre, ou seja, aquele que o
libertou - como uma figura paterna ou patrono (cf. James S.
Jeffers, The Greco-Roman World of the New Testament [Downers
Grove, IL: InterVarsity Press, 1999], 239). Visto que Deus nos
libertou da escravidão do pecado, esta analogia também pode
ser aplicada ao crente. Contudo, a linguagem da adoção no
Novo Testamento assume o processo legal formal, em que
todos os privilégios da filiação e herança são oficialmente
conferidos.
(16) Cf. William W. Buckland, A Text-Book of Roman Law
(Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1963), 127–28.
Brian J. Dodd, em The Problem with Paul (Downers Grove, IL:
InterVarsity, 1996), dá exemplo de um menino macedônio
chamado Vitalis, que nasceu na escravidão, mas foi mais tarde
libertado e adotado por seu proprietário (97).
(17) O Novo Testamento se refere aos crentes como filhos de
Deus em várias ocasiões (e.g. Gl. 3.16, 26, 29; Ef. 5.1, 8; Fp.
2.15; 1 Ts. 5.5; Hb. 2.10; 12.5–11; 1 Jo. 3.1–3).
(18) Assim lemos na introdução a The Institutes of Gaius and
Justinian: “A adoção de escravos por seus senhores lhes dá a
sua liberdade” (T. Lambert Mears [Clark, NJ: Lawbook
Exchange, 2005], xxxvii).
(19) Francis Lyall explica que “houve duas etapas no processo
de ‘adoptio’ (adoção). A primeira foi a destruição do antigo
potestas, o poder paternal do pai ‘anterior’. A segunda etapa foi
o estabelecimento do poder paternal do ‘novo’ pai. . . .
Posteriormente o adotado estava sujeito à autoridade e direção
de seus novos paterfamilias em todos os assuntos” (Slaves,
Citizens, Sons, 86–87).
(20) Cf. Everett Ferguson, Backgrounds of Early Christianity (Grand
Rapids: Eerdmans, 2003), 65–66.
(21) Embora as adoções romanas tivessem a principal intencão
de beneficiar o novo pai (fornecendo-lhe um herdeiro
apropriado), o foco do Novo Testamento recai sobre como a
adoção beneficia os crentes, destacando o maravilhoso caráter
da provisão graciosa de Deus (cf. James C. Walters, “Paul,
Adoption, and Inheritance,” pp. 42–76 em Paul in the Greco-
Roman World, ed. J. Paul Sampley [Harrisburg, PA: Trinity Press,
2003], 58).
(22) Lyall, Slaves, Citizens, Sons, 83.
(23) Cf. Gl. 6.10; Ef. 2.19–22; 1 Pe. 4.17.
(24) Como J.I.Packer explica: “O status adotivo dos crentes
significa que, em e por Cristo, Deus os ama como ama o seu
Filho unigênito e irá compartilhar com eles toda a glória que é
de Cristo agora” (Concise Theology [Wheaton, IL: Tyndale House,
1993], 167).
(25) Andreas J. Kostenberger com David W. Jones, God,
Marriage, and Family (Wheaton, IL: Crossway, 2004), 150. O
ponto é explicado por Walter Elwell: “A adoção deixa claro que a
nossa filiação é conferida a nós de forma distinta da filiação de
Cristo, que é inerente” (The Shaw Pocket Bible Handbook [Wheaton,
IL: Harold Shaw, 1984], 346).
(26) Como John Byron observou, “A noção de adoção, em
[Romanos] 8.15 não é feita para contrastar com a escravidão
como tal, mas com um determinado tipo de escravidão, ou seja,
o pecado” (Slavery Metaphors in Early Judaism and Pauline
Christianity [Tubingen, Germany: J. C. B. Mohr, 2003], 228).
(27) Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture, the Acts
(n.p.: Bibliolife, 2007), 149.
11
DE ESCRAVOS A FILHOS
[PARTE 2]
N as duas últimas décadas, uma miríade de
novos livros têm documentado a alegria
e a maravilha da adoção.(1) Mesmo uma
rápida leitura sobre as experiências dos pais
adotivos e das crianças adotadas é o suficiente
para aquecermos o coração. Caso após caso, órfãos
que se encontram em situações desesperadoras são
resgatados por pessoas que se preocupam
profundamente com eles, ainda que nunca os
tenham conhecido antes. Os candidatos a pais,
ansiosos para demonstrar amor e compaixão a
uma criança indefesa, preenchem centenas de
formulários e viajam milhares de quilômetros,
para tornar sua família completa. Embora o
processo demore meses, tudo muda para a criança
em um momento, quando o juiz, finalmente, o
declara como herdeiro legal dos seus pais adotivos.
Se a criança permanecesse no orfanato ou aos
cuidados de pais naturais, mas negligentes e
abusivos, o desfecho da história poderia ser
trágico. Porém, agora, pela intervenção daqueles
que eram antes estranhos, um menino ou menina
recebe um lar todinho novo, permeado com o amor
de uma família e com esperança de um futuro. Tal
é o milagre da adoção.
O Novo Testamento utiliza a alegria e a
maravilha da adoção humana como uma analogia
para descrever o amor paternal de Deus por nós.
Éramos espiritualmente órfãos, sob a cruel
opressão do pecado e de Satanás. Como a
Escritura descreve, éramos “filhos da ira” (Ef. 2.3),
“filhos da desobediência” (Ef. 2.2; 5.6), “escravos
do pecado” (Rm. 6.7), e seguidores “do diabo”,
nosso pai (João 8.44). Não tínhamos outro lar,
além deste mundo, nenhum protetor, mas sim
satanás, e nenhum futuro, mas sim o inferno. Se
tivéssemos sido deixados nesse estado,
morreríamos em nossos pecados e pereceríamos
eternamente. “Mas Deus, sendo rico em
misericórdia, por causa do grande amor com que
nos amou, e estando nós mortos em nossos
delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —
(pela graça sois salvos (Ef. 2.4-5). Com alto custo
para si mesmo, Deus interferiu para resgatar-nos
do pecado e trazer-nos à comunhão com Ele.
Naquele momento, o Juiz do universo nos
declarou justos, tendo nos revestido com a
perfeição imaculada de Cristo Jesus.(2) Ele nos fez
seus escravos, trouxe-nos ao seu reino e nos
recebeu em sua família. Tal é o milagre da adoção
espiritual.
A Adoção e o Antigo
Testamento
Como vimos no capítulo anterior, a doutrina
da adoção, no Novo Testamento, começa a ganhar
vida quando entendemos os procedimentos legais
do primeiro século, em Roma. Mas, da mesma
forma que a metáfora da escravidão, precisamos
também considerar a história do Israel antigo e
reconhecer o pano de fundo teológico que o Antigo
Testamento fornece para o Novo Testamento.
Fazendo isso, descobriremos a riqueza profunda
que nos é acrescentada com o entendimento
dessas figuras bíblicas.
Uma das primeiras adoções relatadas no
Antigo Testamento foi a de Moisés(3), cuja vida foi
poupada, quando sua mãe o fez flutuar Rio Nilo
abaixo, em uma cesta à prova d’água. Quando a
filha de Faraó veio ao rio e o encontrou, teve pena
dele. Miriam, a irmã de Moisés, que vinha
observando tudo de perto, ofereceu-se a encontrar
uma ama adequada para o bebê; e a filha de Faraó
concordou. Como resultado, Moisés retornou à sua
mãe biológica, até que tivesse idade suficiente para
viver no palácio. Naquele momento, ele foi levado
“à filha de Faraó, da qual passou ele a ser filho”
(Ex 2.10). Assim, Moisés, o filho de escravos, se
tornou parte da família real no Egito (cf. Atos
7.20-21).
Ester é outro exemplo notável de adoção, no
Antigo Testamento. Quando seus pais morreram,
ela foi acolhida por Mordecai, seu primo mais
velho. Ele tomou conta dela como um pai, fazendo
tudo para cuidar de seu bem-estar (cf. Ester 2.5-
11). Mesmo depois de se tornar rainha, Ester
continuou a buscar direção e encorajamento
paterno em Mordecai.
Um dos relatos mais tocantes do Antigo
Testamento é o de Mefibosete, o qual, para todos
efeitos, foi adotado pelo Rei Davi.(4) Mefibosete
era o filho aleijado de Jônatas, o amigo mais
chegado de Davi, e único sobrevivente dos
descendentes do Rei Saul. Depois de saber de
Mefibosete, Davi o convidou para ceiar
regularmente na mesa real. Ele também deu a ele a
terra que previamente pertencia a seu avô Saul (2
Sm. 9.1-13). Visto que a adoção de Mefibosete por
Davi foi motivada por nada mais que o amor
gracioso, sua atitude nos dá um vislumbre do
amor adotivo de Deus pelos crentes. No caso, foi
Davi quem tomou toda a iniciativa. Ele procurou
Mefibosete e o recebeu no palácio. E isto ele fez
mesmo sendo Mefibosete neto e herdeiro de Saul,
o rei anterior de Israel e maior perseguidor de
Davi. Como aleijado, Mefibosete não poderia fazer
nada para retribuir a Davi ou oferecer-lhe qualquer
serviço significativo. Até mesmo o nome de
Mefibosete, que significa “coisa vergonhosa”,
salienta o fato que ele era um banido. Mas Davi o
trouxe à sua família, convidou-o à sua mesa e
ainda lhe concedeu como herança uma terra a que
ele não tinha direito legal.
Que quadro magnífico de nossa adoção
espiritual por Deus. Nós não O estávamos
buscando; ainda assim, Ele nos encontrou e nos
salvou. Éramos seus inimigos; e Ele nos fez seus
amigos. Nada podíamos oferecer-Lhe em troca;
mas Ele nos deu uma herança que não
merecíamos. Tudo isto é nosso, pela graça, através
da fé em seu Filho unigênito, Jesus Cristo. A todos
os crentes, Deus declara: “Eu vos receberei, serei
vosso Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas” (2
Co. 7.17-18).
O Apóstolo Paulo estava familiarizado com
cada um destes relatos do Antigo Testamento. Ele
também sabia que a adoção de escravos, em
particular, ocorria não somente em Roma, mas
também na antiga sociedade judaica.(5) Em tais
circunstâncias:
“um escravo adotivo era sempre considerado um membro
verdadeiro da família, e seu nome era registrado como tal, não
apenas nos registros familiares, mas também juntamente com
os outros membros da família, nos arquivos da cidade; e o livro
no qual era assim registrado era chamado, em Jerusalém, o
“Livro da Vida” ou o “Livro dos Vivos”. Assim também, os
nomes de todos que foram adotados pelo Senhor estão
registrado no Livro da Vida, na Jerusalém celestial; e a beleza
disto está em que é na família do Rei, não na de um mendigo,
que este adotivo é registrado; e ele é tão bem-vindo à mesa
quanto o próprio rei.”(6)

De modo significativo, a adoção de escravos


foi ilustrada, corporativamente, pela própria
nação de Israel. No Êxodo, esta nação foi libertada
da escravidão no Egito e adotada por Deus. Como
um especialista no Antigo Testamento, Paulo
citava prontamente passagens como Êxodo 4.22,
Deuteronômio 14.1-2, 32.5-6, e Oséias 1.10, 11.1
— textos que descrevem os Israelitas como filhos
adotivos de Deus.(7) Paulo entendia que, assim
como “Israel foi liberto do controle de Faraó para
servir a Deus, o crente foi libertado do controle do
pecado para servir a Deus. Ambos são declarados
por Deus como [seus] filhos.(8) Da mesma forma
como Israel foi adotado por Deus (Rm 9.4), os
crentes foram recebidos como filhos em Sua
família.(9)
Tendo a cidadania Romana e o treinamento
rabínico, não é de surpreender que Paulo tenha
extraído a imagem da adoção tanto das práticas
Romanas quanto Judaicas.(10) Toda esta imagem
salienta a riqueza da metáfora da adoção,
especialmente à luz do status anterior do crente,
como inimigo de Deus e escravo do pecado.
Poderia haver maior honra ou privilégio do que ser
um filho adotivo de Deus? “A adoção nos traz
todos os benefícios de um filho, inclusive o direito
de nos aproximarmos a Deus em oração; e nos
assegura do amor e proteção de Deus. Contribui
com a segurança de que fomos salvos.”(11) Não é
de admirar que Paulo tenha exclamado, em Efésios
1.3-5: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda
sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em
Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da
fundação do mundo, para sermos santos e
irrepreensíveis perante ele; e em amor nos
predestinou para ele, para a adoção de filhos, por
meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de
sua vontade.”
Na eternidade passada, Deus escolheu,
graciosa e soberanamente, cada crente para ser
parte de sua família. Como “seus herdeiros,
segundo a esperança da vida eterna” (Tito 3.7),
passaremos toda a eternidade em alegre adoração
e íntima comunhão com o Deus que nos salvou.
Como Davi exultou, no Salmo 16.5: “O Senhor é a
porção da minha herança e o meu cálice.” Nosso
futuro indizível também inclui um aspecto
singular de nossa adoção — a ressurreição de
nossos corpos, em um estado glorificado e livre do
pecado. Paulo observou isto, quando escreveu o
seguinte, em Romanos 8.23: ...nós, que temos as
primícias do Espírito, igualmente gememos em
nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a
redenção do nosso corpo.”(12)
Na visão registrada no livro de Apocalipse, o
Apóstolo João ouviu “grande voz vinda do trono,
dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os
homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos
de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes
enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não
existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor...
O vencedor herdará estas coisas, e eu lhe serei
Deus, e ele me será filho.” (21.3-4,7). Que
promessa gloriosa é esta!
Na Família Para Sempre
Um dos aspectos mais reconfortantes da
doutrina da adoção é que ela fala de uma relação
permanente. Nesse sentido, a doutrina bíblica da
adoção “é análoga ao ato de um tribunal da
atualidade, pelo qual um marido e uma mulher se
tornam pais adotivos de filhos que não eram de
sua descendência natural.”(13) Quer esteja em
pauta a adoção moderna ou a doutrina bíblica da
adoção, a mudança de status permanece.(14)
Enquanto a relação mestre/escravo possa ser
temporária, a relação pai/filho não é. Como Jesus
se dirigiu aos Fariseus incrédulos, salientando a
natureza axiomática desta realidade: “O escravo
não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre”
(João 8.35). No contexto, Jesus estava alertando
os Fariseus (que pensavam serem filhos de Deus,
através de Abraão), que eles eram, na realidade,
escravos do pecado (v. 34) e imensamente
necessitados de libertação através do Filho de
Deus (v.36). Assim como é verdadeiro para todos
os que são escravos do pecado, o futuro deles seria
transitório e sombrio. Só através da fé em Cristo
eles poderiam ser livres do pecado e, uma vez
livres, poderiam ser adotados na verdadeira
família de Deus — trocando algo temporário por
uma posição eterna.
A doutrina da adoção estabelece a realidade
que os crentes, uma vez salvos, são salvos para
sempre. Um estudioso, comentando sobre o uso
que Paulo faz da figura da adoção, explicou: “Este
termo importante ‘adoção’ tem uma relação com a
justificação, quanto a ser declarativo e forense
(visto que é um termo legal). A Adoção confere
uma posição objetiva, como faz a justificação: da
mesma forma que a justificação, é uma declaração
que não se repete. Tem validade permanente.
Assim como a justificação, a adoção repousa no
amoroso propósito da graça de Deus.”(15)
O conhecido pregador Britânico, D. Martyn
Lloyd-Jones, abordou o mesmo ponto, quando
escreveu: “Se Deus o adotou em sua família, se
você é um filho de Deus, seu destino é seguro, é
certo... é uma garantia. Se Deus me tomou em sua
família, eu não sou apenas filho, sou um herdeiro;
e nada, nem ninguém, jamais me roubará essa
herança.”(16)
Se nossa adoção não fosse permanente,
teríamos grande razão em temer. Nosso pecado
poderia ainda nos condenar. Porém, “em contraste
com este sentimento íntimo de temor diante de
Deus, o justo juiz, está o sentimento de paz e
segurança diante de Deus, nosso Pai celestial; tal
senso é produzido pelo Espírito de Deus no
coração do cristão.” Paulo dificilmente teria
escolhido um termo melhor que ‘adoção’, para
caracterizar esta paz e segurança.”(17) Assim, o
ponto de Paulo em Romanos 8.15 é que o espírito
de adoção lança fora o espírito de temor que procede
da escravidão do pecado.(18) O Espírito Santo
testifica com nosso espírito que somos filhos de
Deus (v.16), e, se temos o Espírito Santo, temos o
inquebrável selo que garante nossa futura herança.
(19) Além disso, a “adoção não depende de

qualquer mérito de nossa parte, mas, sim, de um


favor imerecido. Tudo se resume na graça.”(20)
Nada fizemos para obtermos nossa adoção na
família de Deus, e, tampouco, nada podemos fazer
para perdê-la.
Pouco depois, em Romanos 8, Paulo salientou
a permanência de nossa adoção. Nos versos 29-31,
ele explanou que todos quantos Deus justificou,
Ele também glorificou; nenhum deles se perderá.
Nos versos 32-34, ele encorajou os crentes com a
verdade que nenhuma acusação feita contra os
eleitos de Deus jamais prosperará, porque tudo foi
perdoado através de Cristo. Finalmente, nos
versos 35-39, o apóstolo observou que
absolutamente nada poderá separar os filhos de
Deus de seu amor eterno. Com a nossa adoção
completa, nossa segurança na família de Deus está
estabelecida para sempre. A maravilhosa realidade
da adoção é que é dado aos crentes “um lugar na
família de Deus, tão eterno e seguro quanto seu
Filho unigênito.”(21)
O restante do Novo Testamento ecoa a
verdade que os crentes, uma vez salvos, estão
salvos para sempre. Esta doutrina, conhecida
como a segurança eterna dos crentes ou
perseverança dos santos, mencionada por mim no
capítulo anterior, ensina que “todos os que são
verdadeiramente nascidos de novo serão
guardados pelo poder de Deus, e irão perseverar
como cristãos até o final de suas vidas, e que
apenas os que perseverarem até o fim são, de fato,
nascidos de novo.”(22) Em outras palavras, o
verdadeiro crente jamais perderá sua salvação.
Uma vez adotado na família de Deus, ele se torna
um filho de Deus para sempre.(23) Por outro lado,
aqueles que professam ser salvos mas acabam
caindo, demonstram que sua profissão de fé nunca
foi genuína (1 João 2.19).
A segurança de nossa salvação é afirmada em
muitos textos bíblicos. Em João 6.39-40, Jesus
prometeu que não perderá nenhum, de todos os
que o Pai lhe deu, e que no último dia Ele
ressuscitará “todo homem que vir o Filho e nele
crer.” Em João 10.27-29, nosso Senhor faz uma
declaração semelhante: “As minhas ovelhas ouvem
a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu
lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e
ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que
meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do
Pai ninguém pode arrebatar”. Vez após outra,
aqueles que creem em Cristo, e abandonam o
pecado, e de todo o coração confiam nele, recebem
a promessa incondicional da vida eterna.(24)
Os crentes podem, então, ser descritos como
aqueles para os quais não resta “nenhuma
condenação” (Rm 8.1). Eles foram selados com o
Espírito Santo, representando o caráter
irrevogável da garantia divina. Eles são “guardados
pelo poder de Deus” (1 Pe. 1.5), de forma que
“aquele que começou [neles] a boa obra há de
completá-la até ao Dia de Cristo Jesus (Fp.1.6).
Por esta razão é que Paulo podia orar pelos
Tessalonicenses: “O mesmo Deus da paz vos
santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e
corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis
na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é o que
vos chama, o qual também o fará (1 Ts. 5.23-24).
Paulo repetiu estas palavras em sua segunda carta
à mesma igreja: “O Senhor é fiel; ele vos
confirmará e guardará do Maligno” (2 Ts. 3.3).
Judas igualmente concluiu sua epístola com esta
doxologia triunfante: “Ora, àquele que é poderoso
para vos guardar de tropeços e para vos apresentar
com exultação, imaculados diante da sua glória, ao
único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus
Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e
soberania, antes de todas as eras, e agora, e por
todos os séculos. Amém! (vv. 24-25).
Promessas como estas sublinham o que já
aprendemos com nosso estudo sobre a adoção. Por
terem se tornado parte da família de Deus, os
crentes serão salvos eternamente. Como o autor
de Hebreus escreveu sobre Cristo, nosso
Advogado: “Por isso, também pode salvar
totalmente os que por ele se chegam a Deus,
vivendo sempre para interceder por eles (7.25; cf 1
João 2.1).
Embora a salvação do crente seja uma
garantia, a doutrina da segurança eterna jamais
deve ser uma desculpa para pecar (Rm 6.1). Não
fomos libertos do pecado para permanecermos
nele. Ao contrário, fomos libertos para que
pudéssemos andar “como filhos da luz” (Ef. 5.8),
sendo “imitadores de Deus, como filhos amados
(v.1). Além do mais, somos filhos de um novo Pai,
sujeitos a sua autoridade e compelidos, embora
pelo amor, a obedecer aos seus mandamentos.
Voltando à nossa primeira metáfora, somos
escravos da justiça.
Por outro lado, aqueles que persistem em
pecado impenitente demonstram que nunca foram
verdadeiramente adotados na família de Deus, não
importa o que professem (1 João 2.4-5).
Inevitavelmente, os verdadeiros filhos de
Deus manifestarão os traços de caráter de sua
nova família. Além disso, tendo sido resgatados do
pecado e adotados por Deus, seus corações são
cheios de gratidão e amor pelo Pai que os salvou.
Conforme John Gill, teólogo do século dezoito,
explicou:
Nada tem tendência maior para promover a santidade de
coração e de vida do que as promessas absolutas de Deus, com
respeito à graça e à glória, à segurança da adoção, à certeza da
perseverança até o fim e ao gozo seguro da vida eterna... Quão
ilógico e irracional é o homem que pensa ser filho de Deus e
acredita que perseverará até o fim, mesmo estando entregue a
todo tipo de pecado.(25)
Simultaneamente Filhos e
Escravos
A maravilhosa doutrina da adoção nos
assegura que, como crentes em Jesus Cristo,
somos, agora e para sempre, membros plenos da
família de Deus. Pense nisto! O Filho unigênito de
Deus tomou a forma de escravo (Fp. 2.7), para que
escravos do pecado pudessem se tornar escravos
da justiça e filhos de Deus! Como Alexander
Maclaren explica:

O Servo-Filho nos torna escravos e filhos … E se vocês se


confiarem a Ele, derem seus corações e pedirem que Ele
governe suas vidas, Ele o fará. Ele os dirigirá, e vocês
abandonarão sua falsa liberdade, a qual é servidão, e tomarão
a sabedoria sóbria, a qual é a obediência; então Ele os levará a
compartilhar de Suas [bênçãos] e gozo de seu serviço; e então
seremos capazes de dizer: “Minha comida e minha bebida é
fazer a vontade daquele que me enviou”; e, dizendo isto com
sinceridade, teremos a chave para todos os prazeres.(26)

Em Cristo, já não somos filhos da ira e da


desobediência, mas filhos da justiça, submetendo-
nos ao nosso Pai celestial, cujo caráter santo
somos chamados e capacitados a imitar.(27)
Através de Cristo, fomos libertos. Já não somos
escravos do pecado e do medo da morte, nem da
condenação da lei.(28) Mas fomos feitos escravos
de Deus, em Cristo, para a justiça.(29) Tal é a
verdadeira liberdade. Assim, somos, ao mesmo
tempo, filhos e escravos. Estas duas realidades não
são mutuamente excludentes — muito embora as
metáforas sejam diferentes.(30) Para sempre
seremos parte de sua família. Para sempre
estaremos em seu glorioso serviço (Ap. 22.3).
(1) Uma fonte recomendável para este assunto é Russell D.
Moore’s Adopted for Life (Wheaton, IL: Crossway, 2009).
(2) No Novo Testamento, há uma estreita ligação entre a
justificação (a declaração da nossa justiça em Cristo) e a adoção
(sermos inseridos na família de Deus). Como J.I. Packer
explicou: “A justificação é a benção básica, em que a adoção está
fundada; a adoção é a bênção suprema, para a qual a
justificação abre o caminho” (Concise Theology [Wheaton, IL:
Tyndale House, 1993], 167).
(3) Antes de Moisés, Abraão fez de Eliezer seu herdeiro (Gn
15.2) - alguns analistas acreditam que isto incluía algum tipo de
adoção. Abraão pode ter também adotado seu sobrinho Ló (de
acordo com Josephus, Antiquities, I.7.1). Da mesma forma,
Jacó adotou Efraim e Manassés, seus netos através de José (Gn
48.5). Ao fazer isso, fez deles os pais de duas das tribos de
Israel.
(4) Embora a adoção formal, no sentido de uma instituição
legal, não existisse entre os antigos hebreus, o Antigo
Testamento inclui vários “casos de princípios básicos de
adoção, embora não formais ou de cunho técnico.” (William
Hendrickson, Romans, New Testament Commentary [Grand Rapids:
Baker, 1981], 259). Neste sentido, Mefibosete foi adotado por
Davi.
(5) Cf. Catherine Hezser, Jewish Slavery in Antiquity (Oxford
University Press, 2005), 138–39.
(6) John Gadsby, Slavery, Adoption, and Redemption (n.p.: Primitive
Baptist Publishing House, 1865), 34.
(7) Cf. James M. Scott, Adoption as Sons of God (Tubingen,
Germany: J. C. B. Mohr, 1992). Por vezes, 2 Samuel 7.14
também é interpretado desta maneira.
(8) John Byron, Slavery Metaphors in Early Judaism and Pauline
Christianity (Tubingen, Germany: J. C. B. Mohr, 2003), 228.
(9) Nesta mesma linha, Russell D. Moore escreveu: “Muitas
vezes nós assumimos que os gentios são os filhos “adotados”
por Deus, e os judeus são os filhos “natos”. Mas Paulo diz que
Israel foi adotado também (Rm 9.4). De Israel, Deus disse certa
vez: “A tua origem e o teu nascimento procedem da terra dos
cananeus; teu pai era amorreu, e tua mãe, hetéia.” (Ez 16:3). Os
israelitas eram, antes, também gentios. Deus lembra a Israel
que Ele o encontrou “numa terra deserta e num ermo solitário,
povoado de uivos” (Dt 32.10). Israel era “um bebê abandonado,
revolvendo-se em seu próprio sangue na beira da estrada” (Cf.
Ez. 16.5-6). (Adopted for Life, 30).
(10) William Hendrickson explicou essa influência dupla sobre
o uso que Paulo faz da metáfora da adoção, desta forma:
“Quando em Rm. 8.15 e Gl. 4.5 Paulo usa o termo ‘adoção’, a
palavra e a posição legal foram emprestadas da prática romana,
mas sua essência provém da revelação divina no Antigo
Testamento” (Romans [Grand Rapids: Baker, 1991], 259. Cf.
Douglas J. Moo, The Epistle of Romans, New International
Commentary on the New Testament [Grand Rapids: Eerdmans,
1996], 501, daqui para frente designado como NICNT). Embora
os comentaristas discordem sobre o que era mais importante
na mente de Paulo (se a adoção romana ou a judaica), essas
duas não eram mutuamente excludentes - e é provável que
Paulo (tanto como um cidadão romano quanto um rabino
treinado) absorveu este linguajar de ambos os mundos. Como
Rupert Davies afirmou: “Ambos os costumes, judeus e
romanos, estavam, sem dúvida, em mente” (The Westminster
Dictionary of Christian Theology, ed. Alan Richardson and John
Bowden [Philadelphia: Westminster Press, 1983], s.v.
“Adoption,”5).
(11) James M. Boice e Philip G. Ryken, The Doctrines of Grace
(Wheaton, IL: Crossway, 2003), 151–52.
(12) Comentando este verso, Thomas R. Schreiner e Ardel B.
Caneday observaram: “Como cristãos, somos adotados na
família de Deus, ainda que não possamos experimentar a
consumação da nossa adoção até o dia da ressurreição” (The
Race Set Before Us [Downers Grove, IL: InterVarsity, 2001], 68).
É em parte por isso que Paulo usa a imagem da “herança,” já
que enfatiza as implicações futuras de uma realidade presente.
(cf. Douglas Moo, The Epistle to the Romans, NICNT, 504).
(13) Norman Shepherd, “Adoption” na Baker Encyclopedia of the
Bible, eds. W. A. Elwell e B. J. Beitzel (Grand Rapids: Baker,
1988), I:31.
(14) Em nossos dias, até mesmo no nível mais básico, a adoção
é amplamente entendida como um arranjo permanente. Como
um escritor secular manifestou, “A adoção é uma opção
permanente. Uma criança adotada tem os mesmos direitos e
privilégios legais do filho biológico. Adoção não é o mesmo que
dar abrigo ou ter a guarda; pois ambos são geralmente
temporários (como se supõe). Em vez disso, a adoção é para
sempre. De fato, muitas famílias adotivas referem a si mesmas
como ‘Famílias para Sempre’.” (Christine A. Adamec, The
Complete Idiot’s Guide to Adoption [Indianapolis: Alpha Books,
1998], 7).
(15) Everett F. Harrison, Romans, Expositor’s Bible Commentary
(Grand Rapids: Zondervan, 1996), 93. Emphasis added.
(16) D. Martyn Lloyd-Jones, Great Doctrines of the Bible
(Wheaton, IL: Crossway, 2003), 189.
(17) Moo, The Epistle to the Romans, NICNT, 500–1.
(18) Cf. Hb. 2.14–15; 1 Jo. 4.13, 18.
(19) Cf. 2 Co. 1.22; Ef. 1.13–14; 4.30.
(20) Herbert Lockyer, All the Doctrines of the Bible (Grand Rapids:
Zondervan, 1964), 203.
(21) Kenneth S. Wuest, Wuest’s Word Studies from the Greek New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 92.
(22) Wayne Grudem, Systematic Theology (Grand Rapids:
Zondervan, 1994), 788.
(23) Nas palavras de um catecismo do século 19, baseado no de
Westminster: “Como a perseverança deles flui da adoção? A.
Pelo fato que Aquele que os adotou como seus filhos é o seu Pai
eterno, Is. 9. 6, e, portanto, eles habitarão em sua casa para
sempre, João 7.35” (The Westminster Assembly’s Shorter Catechism
Explained [Philadelphia: William S. Young, 1840], 199).
(24) E.g., Jo. 3.36; 5.24; 6.47; 17.2, 12; 1 Jo. 5.13.
(25) John Gill, The Cause of God and Man (London: Thomas Tegg
& Son, 1888), 364–65.
(26) Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture, the Acts
(n.p., BiblioLife, 2007), 149, comentando Atos 4.26, 27, 29.
(27) Cf. Mt. 12.50; Jo. 12.36; Ef. 5.1,8; 2 Tm. 1.9; 1 Pe. 1.14–
16.
(28) Cf. Jo. 8.34–36; Rm. 8.15–17; Gl. 4.3–7; Hb. 2.15.
(29) Rm. 6.18; 1 Co. 7.23; Gl. 5.24; cf. Tg. 1.1; Rm. 1.1.
(30) Em João 15.15, durante o discurso no Cenáculo, Jesus
disse aos discípulos: “Já não vos chamo [escravos]. . . mas
tenho-vos chamado amigos.” À primeira vista, parece que Ele
estava eliminando completamente a metáfora do escravo. Mas
não é esse o caso, como fica evidenciado pelo fato de que os
discípulos continuaram referindo a si mesmos como “escravos
de Cristo”, muito tempo depois (por exemplo, Pedro em 2 Pe.
1.1 e João em Apocalipse 1.1). Além disso, Jesus define a
amizade como submissão a Ele: “Vós sois meus amigos se
fizerdes o que Eu vos mando” (João 15.14). Em João 15.15, o
ponto de Jesus era simplesmente que, ao revelar aos discípulos
tudo o que Ele estava fazendo, Ele não os tratava meramente
como escravos, mas também como amigos e confidentes (uma
vez que os escravos não têm acesso para saber o que o Mestre
está fazendo). Que Jesus vê os crentes como amigos e também
como escravos é apoiado por uma série de passagens do Novo
Testamento. (Ver também Harris, Slave of Christ [Downers Grove,
IL: InterVarsity Press, 1999], 144–6).
12
PRONTOS A ENCONTRAREM
O MESTRE
Q uando Lamon, um escravo de uma
fazenda na ilha Grega de Lesvos, ouviu
que seu mestre viria para uma visita, ele
imediatamente entrou em ação. “Lamon aprontou
a casa de campo do seu mestre para lhe agradar os
olhos inteiramente. Ele limpou as fontes, para que
tivessem água limpa, retirou o esterco do curral
para que o odor não os incomodasse e trabalhou
nos jardins internos, para que estes mostrassem
toda a sua beleza.”(1) Depois, Lamon instruiu seus
filhos “a engordarem os bodes o tanto quanto
possível, prevendo que o mestre certamente os
inspecionaria”. Nada poderia ser deixado ao acaso.
Embora Lamon e sua família tenham sempre
servido na propriedade do seu mestre, os riscos
eram maiores agora do que nunca. O mestre
estava vindo pessoalmente para inspecionar a
fazenda.
Imagine o pavor de Lamon, quando descobriu
que o jardim, as árvores frutíferas e as videiras
haviam sido destruídos por vândalos. O que o
mestre diria ao ver a devastação? Certamente que
Lamon seria severamente castigado e,
possivelmente, substituído. O mestre não visitava
o lugar com frequência, mas, quando o fazia, não
havia desculpas para a má administração.
A história de Lamon e sua família, escrita por
um autor dramático grego, por volta do século
segundo, é uma obra de ficção. No entanto,
captura, com precisão, a expectativa e a “ansiedade
que uma visita de inspeção pelo dono de escravo
poderia produzir, entre seus escravos.”(2) Para os
escravos rurais, que não viam seus mestres com
frequência, a chegada do mestre era especialmente
importante. Por muitos meses, ou mesmo anos,
eles seguiam a ordem de trabalho durante sua
ausência. E, então, no momento da visita,
receberiam ou a recompensa ou a repreensão por
seus esforços. Tudo dependia da aprovação do
mestre, quanto ao escravo ter sido, ou não,
diligente e sábio durante sua ausência.
O Retorno do Mestre
Em Mateus 25, Jesus pintou um quadro
semelhante aos discípulos. Ele começou a parábola
desta forma: “[O reino dos céus] será como um
homem que, ausentando-se do país, chamou os
seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu
cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada
um segundo a sua própria capacidade; e, então,
partiu... Depois de muito tempo, voltou o senhor
daqueles servos e ajustou contas com eles (vv.
14,15,19).”
Os escravos da história de Jesus eram
escravos urbanos — mordomos domésticos, a
quem foi dada a responsabilidade de gerenciar os
negócios do mestre durante sua ausência. Ainda
assim, a situação é semelhante àquela do escravo
rural, que estava ansioso pela chegada do mestre.
Em ambos os casos, o mestre se encontra ausente
por um longo período. Enquanto está distante,
espera que os escravos supervisionem seus bens e
aumentem suas rendas. Ao retornar, inspecionará
o trabalho e, consequentemente, irá louvá-los ou
puni-los.
Na parábola do nosso Senhor, dois dos
escravos se aplicaram diligentemente às suas
tarefas. Cada um deles dobrou a quantidade de
dinheiro que recebeu. Quando o mestre finalmente
retornou, ficou extremamente satisfeito com o
trabalho deles. Então, deu sua aprovação: “Muito
bem, [escravo] bom e fiel; foste fiel no pouco,
sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu
senhor (vv.21,23).
Entretanto, o terceiro escravo desperdiçou a
oportunidade de investir, escondendo sua porção
em um buraco no chão. O desprazer do mestre
ressoou em palavras de condenação: “[Escravo]
mau e negligente... Cumpria...que entregasses o
meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar,
receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe, pois, o
talento e dai-o ao que tem dez (vv.26-28).
Enquanto estas palavras ainda estavam tinindo
em seus ouvidos, o escravo indigno foi lançado
“nas trevas” exteriores, onde “haverá choro e
ranger de dentes” (v.30).
A imagem é clara. O mestre representa Cristo,
e sua ausência prolongada retrata o tempo entre a
ascensão de Cristo e sua segunda vinda. Os
escravos são os cristãos professos, que foram
encarregados como mordomos, com vários
recursos, habilidades, bênçãos e oportunidades.
Um dia, eles serão chamados para prestar contas
desta mordomia.(3)
Na parábola, logo fica claro que os dois
primeiros escravos representam os verdadeiros
crentes. Embora tenham recebido quantidades
diferentes de dinheiro para administrar, cada um
segundo a sua capacidade, ambos investiram
sabiamente, trabalharam diligentemente e
demonstraram sua fidelidade ao mestre. Da
mesma forma, a cada um dos crentes foram
confiadas diferentes habilidades e oportunidades.
Somos chamados a sermos fiéis com aquilo que
recebemos, sabendo que “cada um receberá o seu
galardão, segundo o seu próprio trabalho” (1 Co.
3.8). Ouvir nosso Mestre dizer: “Muito bem!” e nos
dar as boas-vindas ao céu será a maior recompensa
que poderemos receber. Sendo escravos fiéis nesta
vida, ainda maiores oportunidades nos serão
dadas para servir no céu. Isto está implícito no
paralelo que Jesus fez na parábola, em Lucas
19.11-27, onde o rei concede autoridade de
governo sobre partes de seu reino como
recompensa a seus escravos obedientes (vv. 17,
19). De forma semelhante, temos grande
expectativa de reinar com Cristo, como parte de
nossa recompensa celestial.(4)
O terceiro escravo representa alguém que
alega ser cristão, mas na realidade serve apenas a
si mesmo. Preguiçoso e tolo, ele desperdiçou as
oportunidades que lhe foram dadas. Sua resposta
ao mestre demonstrou que não possuía amor por
Ele ou por seus bens. Ele até mesmo acusou o
mestre de ser severo e exigente (v. 21), porém suas
ações mostraram não ser verdadeira esta alegação.
(5) Se ele temesse de fato o seu mestre, teria
trabalhado duro enquanto o mestre estava
ausente. Ao contrário disto, ele, preguiçosa e
egoisticamente, serviu a si mesmo, ao esconder no
chão, de forma irresponsável, o dinheiro do mestre
e se esquecer dele. Embora ele não tenha chegado a
desviar nenhuma quantia, suas atitudes ímpias
custaram muito ao mestre, visto que seu
investimento falhou em produzir qualquer lucro
que fosse. Isto evidenciou o fato que ele não era
meramente infiel; era também incrédulo — um
não crente que será, em última instância, lançado
no inferno.
As implicações são evidentes, especialmente à
luz da imagem escravo/mestre do primeiro século,
sobre a qual a história é construída. O Mestre se
encontra ausente, mas retornará em breve.(6) As
oportunidades são muitas, mas o tempo está
passando. Quando Ele chegar, julgará seus
escravos. Aqueles que demonstraram fidelidade a
Ele (portanto evidenciando conversão genuína)
serão recompensados com seu agrado e serão bem-
vindos ao céu. Aqueles que desperdiçaram os
recursos (portanto evidenciando a verdadeira
condição de seus corações) receberão a condenação
divina e o castigo.
Embora não saibamos quando o Mestre
retornará, sabemos de uma coisa com certeza: um
dia Ele voltará (Mc 13.33-37). Este simples fato
deveria nos motivar a uma maior santidade e
serviço.(7) Deveria também nos confortar e
entusiasmar, se estamos vivendo de forma
obediente. Um escravo apenas teme pelo retorno
do mestre se estiver sendo infiel. Mas para os
escravos cristãos, que trabalham com diligência e
servem bem, a chegada do Mestre é um momento
de grande celebração. Para eles, Sua chegada
representa a entrada em Seu gozo e o começo da
grande recompensa.
O Trono de Julgamento de
Cristo
A parábola dos talentos, em Mateus 25,
refere-se especialmente ao julgamento pelo Nosso
Senhor, em sua segunda vinda (cf. Ap. 11.18). Mas
a Escritura ensina que todos os crentes, de todas
as gerações da história humana, aparecerão diante
de Cristo. Ciente deste fato, o Apóstolo Paulo fez
disto o alvo de toda a sua vida: “para lhe sermos
agradáveis. Porque importa que todos nós
compareçamos perante o tribunal de Cristo, para
que cada um receba segundo o bem ou o mal que
tiver feito por meio do corpo” (2 Co. 5.9-10). Em
outra epístola, ele falou aos cristãos de Roma:
“todos compareceremos perante o tribunal de
Deus. Como está escrito: Por minha vida, diz o
Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e
toda língua dará louvores a Deus. Assim, pois,
cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus”
(Rm 14.12).
Seja pela morte ou pelo arrebatamento, todo
crente prestará contas ao Mestre celestial, para
avaliação e recompensa. Digo novamente, que o
escravo obediente nada tem a temer ao enfrentar o
seu Mestre. Como R.C.H. Lenski observou: “Aquele
que, como escravo de Cristo, submete sua vontade
a Ele em tudo o que faz ‘é agradável a Deus’ e
nunca precisará temer se postar em pé, diante do
trono do juízo”.(8)
Por outro lado, os crentes que gastam suas
vidas em buscas passageiras e sem valor deveriam
esperar a mínima recompensa de Cristo. Os
pecados de cada crente são, certamente, perdoados
para sempre, através da cruz; não se pode perder a
salvação. No entanto, aqueles que desperdiçam as
oportunidades dadas por Deus para o serviço
espiritual, um dia descobrirão que suas obras
consistem em nada mais que madeira, feno e
palha. Desprovidas de qualquer valor eterno, essas
obras não vão subsistir sob o fogo do escrutínio de
Deus (veja 1 Coríntios 3.12-15). O temor de
desagradar a Deus, contrabalançado pela
promessa de Sua recompensa, é uma motivação
poderosa para uma fidelidade duradoura. Da
mesma maneira que os escravos do primeiro século
prestavam contas aos seus mestres humanos, os
escravos de Cristo, definitivamente, prestarão
contas a Ele.
O Apóstolo Paulo usou a mesma figura,
quando falou diretamente com os escravos e com
seus donos humanos. Em Efésios 6.5-9, ele
escreveu:

“Quanto a vós outros, [escravos], obedecei a vosso senhor


segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso
coração, como a Cristo, não servindo à vista, como para
agradar a homens, mas como servos de Cristo, fazendo, de
coração, a vontade de Deus; servindo de boa vontade, como ao
Senhor e não como a homens, certos de que cada um, se fizer
alguma coisa boa, receberá isso outra vez do Senhor, quer seja
servo, quer livre. E vós, senhores, de igual modo procedei para
com eles, deixando as ameaças, sabendo que o Senhor, tanto
deles como vosso, está nos céus e que para com ele não há
acepção de pessoas”.

Todo crente, seja escravo ou livre, tem um


Mestre nos céus. Ele é um Juiz perfeito e
imparcial, e um dia cada um estará diante dEle,
para prestar contas.
A certeza desta realidade futura deu ousadia
a Paulo para pregar o evangelho sem se importar
com as consequências. Afinal, ele havia sido
designado a fazer isto, pela ordenança do próprio
Deus (Tito 1.3). Embora fosse geralmente
rejeitado e perseguido, Paulo se ocupava muito
mais em obedecer a seu chamado divino do que
ganhar a aprovação do homem. Só uma coisa
importava — agradar ao Mestre.
Quando era falsamente acusado, sua resposta
era simples: “Todavia, a mim mui pouco se me dá
de ser julgado por vós ou por tribunal humano;
nem eu tampouco julgo a mim mesmo. Porque de
nada me argúi a consciência; contudo, nem por
isso me dou por justificado, pois quem me julga é o
Senhor (1 Co. 4.3-4). Quando aprisionado e
esperando a morte, “seus pensamentos [eram]
consumidos pelo glorioso destino que aguarda o
‘escravo de Cristo.’”(9) Ao final de sua vida,
assentado só, em um calabouço romano, Paulo
ainda podia sorrir para o futuro. Palavras de
esperança invadiam sua perspectiva, pois ele
media o sucesso a partir do padrão celestial. Assim
sendo, escreveu a Timóteo: “Combati o bom
combate, completei a carreira, guardei a fé. Já
agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o
Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não
somente a mim, mas também a todos quantos
amam a sua vinda” (2 Tm 4.7-8).
Faça um contraste da vida de Paulo com
aqueles que gastam suas vidas em buscas vãs. No
livro “Não jogue sua vida fora”, John Piper fala de
um casal que se aposentou precocemente, para se
estabelecer na Flórida e viver seu final de vida
fazendo cruzeiros em seu Iate, jogando softball e
colecionando conchas. Em relação a este tipo de
vida, Piper comentou:

Eu pensei que só poderia ser uma piada. Uma paródia do sonho


americano. Mas não era. Tragicamente, era este o sonho:
chegar ao final de sua vida - sua única e preciosa vida dada por
Deus, e deixar com que a última grande obra de sua vida, antes
de prestar contas ao seu Criador, seja esta: jogar softball e
colecionar conchas. Imaginem o casal diante de Cristo, no
grande dia do julgamento: “Olha, Senhor; veja minhas
conchas!” Isto é uma tragédia. E as pessoas, hoje, estão
gastando bilhões de dólares para persuadir você a abraçar esse
sonho trágico. Contra isto, deixo meu protesto: Não compre
este sonho. Não desperdice sua vida.(10)
Esse é um alerta oportuno — especialmente
em nossa cultura direcionada pelo consumo — a
todos que desejam viver “sensata, justa e
piedosamente” (Tito 2.12). Como escravos de
Cristo, devemos andar “de modo digno da vocação
a que” fomos “chamados” (Ef.4.1). Nossa
obediência e serviço sacrificial nesta vida não
passarão despercebidos ou não recompensados
pelo nosso Senhor soberano.(11) Mesmo que nossa
fidelidade a Ele seja custosa e dolorosa, podemos
nos regozijar, por saber que “a nossa leve e
momentânea tribulação produz para nós eterno
peso de glória, acima de toda comparação (2 Co.
4.17). Nossa fé logo se transformará em vista, e
veremos nosso Mestre face a face. Naquele dia, que
alegria indescritível será poder ouvir suas palavras
graciosas de boas-vindas: “Muito bem, [escravo]
bom e fiel; entra no gozo do teu Senhor”.
Vivendo na Terra como
Cidadãos do Céu
Como vimos, o Novo Testamento usa uma
série de metáforas para destacar o status
transformado dos crentes em Jesus, inclusive a
figura do escravo e do filho. Fomos anteriormente
escravos do pecado, mas agora somos escravos de
Cristo. Antes éramos filhos da desobediência e da
ira, mas fomos adotados na família de Deus como
filhos da justiça. Mas há ainda uma outra figura de
linguagem que precisamos considerar —
especialmente ao refletirmos sobre o fato que
nosso lar verdadeiro está no céu. É a figura de um
cidadão.
Muito embora ainda não tenhamos estado lá,
somos cidadãos dos céus. Antes andávamos de
acordo com o príncipe deste mundo, mas com a
conversão fomos transferidos para o reino de
Cristo. Como resultado, não estamos mais
alinhados com o sistema deste mundo perverso,
para o qual nos tornamos estrangeiros e
peregrinos. Em vez disso, a nossa identidade
própria se encontra em nossa lealdade ao Rei dos
reis e em nossa afinidade com o seu povo.

DE ESCRAVOS A CIDADÃOS
Não era incomum, no primeiro século, que
um escravo romano eventualmente recebesse sua
liberdade e, como resultado, a cidadania.(12) Na lei
Romana, “a alforria formal, concedida por um
mestre que fosse cidadão romano, normalmente
resultava em concessão da cidadania ao ex-
escravo”.(13) Assim, os escravos de cidadãos
romanos, uma vez libertos, também se tornavam
cidadãos romanos.
Os escravos podiam ser postos oficialmente
em liberdade ou serem formalmente alforriados,
de duas maneiras principais. O proprietário podia
esperar até a sua morte para libertar seus escravos;
neste caso, ele fazia provisão para a sua libertação
em seu testamento final. Esta era conhecida como
“alforria por testamento” (testamenta). Ou, se um
mestre desejava libertar seus escravos enquanto
ele ainda estava vivo, empregaria a “alforria por
vara” (vindicta).(14) A alforria por vara envolvia
uma cerimônia simbólica, realizada diante do
magistrado civil local, em que “um terceiro
declarava que o escravo era um homem livre e o
tocava com uma vara (vindicta), rejeitando, assim,
a reivindicação de propriedade do dono. O
proprietário não oferecia qualquer defesa; e o
magistrado, então, dava ganho de causa em favor
do demandante e declarava o escravo como um
homem livre.”(15)
Embora o ex-escravo agora fosse liberto,
jamais era inteiramente independente daquele que
o libertou. Como Murray J. Harris explica: “Ele
ficava permanentemente devedor a prestar certos
serviços (operae) ao antigo mestre, que agora era o
seu benfeitor (patronus), realizando tarefas ao
antigo dono, em vezes e dias específicos, cada mês
do ano.”(16) Por outro lado, o benfeitor também
tinha certas obrigações para com o antigo escravo.
Se o ex-escravo estivesse extremamente
necessitado, o benfeitor deveria provê-lo de
comida e abrigo. Além disso, o benfeitor não
poderia testificar contra o homem liberto, diante
da corte criminal.(17) Somando-se a isto, um
mudança crítica sobre o relacionamento acontecia
no ponto da alforria: “Um escravo não possuía pai,
aos olhos da lei Romana; assim, ao ser libertado,
seu antigo mestre era reconhecido como seu pai
legal”.(18) Uma vez emancipado e recebida a
cidadania, o antigo escravo gozava de muitos
privilégios, inclusive do direito de comprar e
vender propriedades, casar-se com uma cidadã
romana e efetuar um testamento romano.(19) Em
geral, a cidadania romana significava ter direito de
votar, direito de manter uma propriedade e fazer
contratos, ser livre de torturas, ter proteções
especiais contra a sentença de morte e tratamento
igual perante a lei Romana”.(20) A mudança de
posição era tanto imediata quanto surpreendente.
“Esta mudança repentina e dramática de status
era um fenômeno notável. Da noite para o dia,
num estalar de dedos, por assim dizer, um
estranho se tornou genuinamente da família.(21)
A cidadania trazia consigo não apenas um
número de vantagens, mas também um senso de
responsabilidade cívica, inclusive a possibilidade
do serviço militar.(22) Em troca deste status
privilegiado, os cidadãos deveriam demonstrar
lealdade e obediência ao Estado: “O que, então,
implicava ser um cidadão romano? Em essência,
este status significava que o indivíduo vivia sob a
direção e proteção da lei Romana.”(23) Além disto,
no contexto romano antigo, a cidadania era muito
mais do que uma associação superficial com o país
de origem de alguém. Na verdade, era uma parte
integrante da própria identidade da pessoa:

O conceito de cidadania entre os antigos Gregos e Romanos era


mais profundo do que entre nós hoje. Nós podemos pensar na
existência humana e na vida como algo à parte da cidadania,
mas para o antigo membro de uma πόλις [polis] ou de uma
civitas [“cidade”], a cidadania era a vida e a vida era a
cidadania.
Isto explica por que Paulo podia usar a palavra πολιτεύεσθαι
[politeuesthai, “comportar-se como um cidadão”]
praticamente no sentido de “viver como” (Atos 23.1; Fp. 1.27;
cf. 3.20 πολίτευμα [politeuma, ‘cidadania’] ). A vida de uma
cidade é um desenvolvimento de uma vida mais primitiva da
comunidade de um vilarejo (κώμη, uicus). Uma πόλις
consiste, de fato, de um número de κωμαι [komai,
‘comunidades’], cada uma delas consistindo de um número de
famílias (οίκος, domus). A unidade era geralmente baseada no
parentesco sanguíneo.(24)

Em outras palavras, os relacionamentos


familiares, a partir dos quais as antigas
comunidades e vilas — e eventualmente as
cidades e as nações — surgiram, consolidaram a
lealdade dos cidadãos à sua pátria e aos seus
compatriotas. Ser um cidadão era, em um sentido
muito real, ser parte de uma família mais ampla.

O PARALELO COM A CIDADANIA


CELESTIAL
A figura da cidadania transmite uma série de
verdades importantes sobre a vida cristã —
especialmente à luz da escravidão e alforria do
primeiro século. Ao sermos declarados por Deus
como livres, no momento de nossa salvação, fomos
instantaneamente libertos do pecado e conduzidos
ao maravilhoso privilégio da cidadania total no
reino de seu amado Filho (Cl 1.13). Embora não
tenhamos obrigações para com nosso antigo
mestre (pecado/Satanás), temos o dever de servir
àquele que nos libertou, a saber, o próprio Cristo.
Ele é o nosso Benfeitor, e nós somos homens
libertos que pertencem a Ele.(25) E, assim como o
benfeitor não poderia apresentar acusação legal
contra o homem liberto que lhe pertencia, assim
também Cristo jamais condenará aqueles que são
seus.(26)
Embora antes fôssemos inimigos e
estrangeiros para Deus, agora somos cidadãos do
céu(27) e “concidadãos dos santos (Ef. 2.19). Não
estamos mais sujeitos às nossas paixões
pecaminosas; agora estamos sujeitos ao nosso Rei
celestial. Ele é simultaneamente nosso Mestre e
Benfeitor, e também nosso Príncipe soberano.
Certamente que nossa cidadania celestial não
se fundamenta apenas em nossa alforria do
pecado; agora estamos sujeitos ao nosso Rei
Celeste. Ele é ao mesmo tempo nosso Mestre,
nosso Benfeitor, nosso Pai e nosso Príncipe
soberano.
Sem sombra de dúvida, nossa cidadania
celestial se fundamenta não apenas em nossa
alforria do pecado, mas também na realidade de
nosso novo nascimento. Como Jesus explicou a
Nicodemos, em João 3.3, a entrada no reino de
Deus é concedida somente aos que “nasceram de
novo”, ou literalmente, “nasceram do alto”. É
através deste novo nascimento que os pecadores
são feitos filhos de Deus, pois Ele “nos gerou pela
palavra da verdade” (Tg. 1.18).(28) Aqueles que
nasceram de Deus são caracterizados por vencer o
mundo por meio da fé, mostrando amor aos
outros e demonstrando obediência ao Senhor.(29)
Portanto, somos cidadãos do céu, tanto por
emancipação quanto por nascimento, e tudo isto
pela graça. Como tais, gozamos de privilégio
infinito e também de grande responsabilidade.
Possuímos as inúmeras vantagens de conhecermos
a Deus, andarmos em seus caminhos, O adorarmos
e nos relacionarmos com Ele, como nosso Rei e
nosso Pai. A lei do céu é a nossa lei; os interesses
do céu são nossos interesses; os cidadãos do céu
são nossos concidadãos. Como embaixadores do
seu reino,(30) podemos viver esta vida com uma
confiança sobrenatural, que resulta de uma
mentalidade eterna. Conforme um autor explica:

O Cristão está sujeito à jurisdição do céu e possui privilégios


relativos a essa cidadania. Seu Estado de origem protegerá a
ele e aos seus interesses, intervirá em seu favor e determinará
seus direitos e deveres. Portanto, em um sentido, o cristão é
livre até certo ponto, e, em outro sentido, é completamente
livre das obrigações impostas pela lei local deste mundo, que é
sua residência temporária e o qual existe, afinal de contas, pela
permissão do poder dominante — o Céu.(31)

Por esta mesma razão, há uma


responsabilidade enorme que advém com o fazer
parte do reino de Cristo. Como seus súditos,
devemos representá-Lo adequadamente. Assim,
somos ordenados a viver “por modo digno de
Deus, que [nos] chama para o seu reino e glória” (1
Ts. 2.12). O autor de Hebreus escreveu
igualmente: “Por isso, recebendo nós um reino
inabalável, retenhamos a graça, pela qual sirvamos
a Deus de modo agradável, com reverência e santo
temor” (12.28).
Como cidadãos do céu, somos agora parte da
igreja de Cristo, Sua ekklesia. O termo em si
significa “aqueles que são chamados”, e
originalmente se referia aos cidadãos de uma
cidade que eram “chamados para guerrear pela
proteção da comunidade, e, a partir deste sentido,
passou a ser usado em referência à reunião de
cidadãos que se encontravam para conduzir os
assuntos da comunidade.”(32) Quando aplicamos
esta compreensão à ekklesia cristã, aprendemos
que “a igreja é o conjunto de cidadãos do céu,
reunidos mediante a convocação do cidadão
principal, para cuidarem dos negócios, por meio do
governo, dos assuntos da comunidade ou para
defender seus interesses.”(33) Simplificando, a
reunião corporativa dos crentes é uma assembléia
de cidadãos do céu e escravos de Cristo, unidos em
propósito e em amorosa lealdade ao seu Mestre e
Rei.
Nossa vida tem o mesmo significado que a
nossa cidadania. Nossas prioridades, paixões e
buscas foram todas mudadas, porque nossa
própria identidade foi transformada (Fp 1.21).
Assim como os santos do passado, não corremos
mais atrás dos prazeres passageiros deste mundo.
(34) Ao contrário, nossos olhos estão fixos no céu,
nosso verdadeiro lar, o lugar onde Cristo está.(35)
Seja através da morte ou pelo arrebatamento, logo
estaremos juntos a Ele para sempre.(36) Um dia,
estaremos em sua presença, como escravos diante
do Mestre. Um dia, nós nos curvaremos diante
dEle, como súditos diante do Rei. Como escravos e
como cidadãos, nós O serviremos e reinaremos
com Ele por toda a eternidade. O Apóstolo João,
em sua descrição final sobre o estado eterno,
enfatizou esta dupla realidade. Observando as
glórias que esperam por todo crente, ele escreveu:

Nela [na Nova Jerusalém], estará o trono de Deus e do


Cordeiro. Os seus servos [douloi — literalmente escravos] o
servirão, contemplarão a sua face, e na sua fronte está o nome
dele. Então, já não haverá noite, nem precisam eles de luz de
candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará
sobre eles, e reinarão [com Ele] pelos séculos dos séculos (Ap.
22.3-5)

(1) Citado no livro de Keith Bradley, Slavery and Society at Rome


(Cambridge University Press, 1994), 103.
(2) Ibidem., 103. O autor faz um paralelo desta peça de ficção
com os escritos de Pliny the Younger, demonstrando a precisão
da condição “psicológica desses escravos [a qual] é tomada da
realidade contemporânea” (105).
(3) Como W. D. Davies e Dale C. Allison Jr. explicaram, “Esta
parábola, à semelhança da que a precede, é repleta de símbolos
óbvios. O mestre é Jesus. Seus escravos representam a igreja
[visível], cujos membros receberam várias responsabilidades. A
partida do mestre é a partida de Jesus desta terra. O período
longo de ausência do mestre é a era da igreja. Seu retorno é a
parousia do Filho do Homem. A recompensa dada aos bons
escravos representa as recompensas celestiais dadas aos fiéis
no grande julgamento, e a alegria deles é a alegria do banquete
messiânico” (The Gospel According to Saint Matthew, vol. 3, ICC
[Edinburgh: T&T Clark, 2000], 402).
(4) Cf. Rm 5.7; 2 Tm 2.12; Ap. 2.26-27; 3.21.
(5) Ao comentar sobre todas as parábolas de Jesus que
envolvem escravos, Michael Card observou: “As parábolas de
Cristo sobre escravos nos ensinam que, acima de qualquer
dúvida, o Mestre não é um “homem severo”, mas sim alguém
com misericórdia imensurável, que cancela um débito de um
milhão de dólares com o acenar da mão. Ele é o Mestre que se
veste para servir e lavar os pés de seus escravos. Ele é o que
está disposto a sofrer e morrer com e pelos seus servos. Mas,
finalmente, e isto deve ser dito, Ele é um Senhor que espera
uma obediência simples e confiante, baseada não no valor da
recompensa, mas apenas no conhecimento de quem é nosso
Mestre” (A Better Freedom [Downers Grove, IL: InterVarsity
Press, 2009], 116).
(6) Daí a promessa do nosso Senhor em Ap. 3.11 e 22.12, 20.
(7) 1 João 2.28, 3.2–3; cf. Tito 2.11–13
(8) R. C. H. Lenski, Interpretation of Saint Paul’s Epistle to the
Romans 8–16 (Minneapolis, Augsburg Fortress, 2008), 843.
(9) Mark Edwards, “Paul, St.,” 542–43 na Encyclopedia of Ancient
Greece, ed. Nigel Guy Wilson (New York: Routledge, 2006).
(10) John Piper, Não Jogue Sua Vida Fora. (São Paulo. Ed. Cultura
Cristã).
(11) Mt. 5.12; 10.42.
(12) A autora Jane F. Gardner observa que esta prática era
singular na antiga Roma: “O fato causou comentário, tanto nos
tempos antigos quanto no tempo moderno, de forma que,
diferente do resto do mundo Greco-Romano, os romanos
normalmente concediam cidadania aos escravos, mediante sua
alforria”. (Being a Roman Citizen [New York: Routledge, 1993], 7).
(13) James Albert Harrill, The Manumission of Slaves in Early
Christianity (Tubingen: J. C. B. Mohr Siebeck, 1995), 171.
William D. Phillips, em Slavery from Roman Times to the Early
Transatlantic Trade (University of Minnesota Press, 1985), 30,
destaca exceções. Jennifer A. Glancy observa exceções
semelhantes, mas ao final conclui: “No entanto, muitos
escravos tiveram a sorte de passar pelo menos alguns anos
finais de suas vidas não apenas como pessoas livres, mas
também como cidadãos” (Slavery in Early Christianity
[Minneapolis: Fortress Press, 2006], 95).
(14) Um terceiro tipo de alforria (“alforria pelo censo”) só era
possível quando estava sendo feito um recenseamento Romano
e envolvia uma declaração, da parte do dono, que seu escravo
deveria ser contado não como escravo, mas como alguém que
fora liberto. Contudo, este método não estava mais em uso
durante os tempos do Novo Testamento. (Veja Scott Bartchy,
First-Century Slavery [Eugene, OR: Wipf and Stock Publishers,
2002], 92.)
(15) Gardner, Being a Roman Citizen, 9.
(16) Murray J. Harris, Slave of Christ [Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1999], 72. Neste ponto, Francis Lyall
acrescenta: “Existia uma diferença fundamental entre o que era
liberto e o nascido livre. O primeiro ainda era, em certo grau,
sujeito ao seu proprietário anterior — seu benfeitor” (Slaves,
Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles [Grand Rapids:
Academie Books, 1984], 43).
(17) Cf. Lyall, Slaves, Citizens, Sons, 44.
(18) James Jeffers, The Greco-Roman World of the New Testament
(Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1999), 239.
(19) Houve outros métodos informais de emancipação, embora
não tenham resultado na legalização da cidadania do outrora
escravo (cf. Harris, Slave of Christ, 72).
(20) Amy Chua, Day of Empire (New York: Doubleday, 2007), 45.
(21) Harris, Slave of Christ, 72. Nesta mesma linha, Keith
Bradley observa que “a alforria formal pressupunha que o
escravo era libertado e ao mesmo tempo recebia a cidadania
Romana — ou seja, era admitido imediatamente na
comunidade cívica Romana, o que era uma transformação
radical de status” (Slavery and Society at Rome, 155).
(22) Everett Ferguson, em Backgrounds of Early Christianity (Grand
Rapids: Eerdmans, 2003), explica que “sob a República [509 a.C
a 28 d.C.] a cidadania carregava certos deveres, especialmente a
possibilidade do serviço militar, mas sob o Principado [27 a.C a
284 d.C] tais direitos eram cada vez mais separados da
cidadania.” (63)
(23) Derek Benjamin Heater, A Brief History of Citizenship (New
York: New York University Press, 2004), 31.
(24) A. Souter, em Dictionary of the Apostolic Church, vol. 1, ed.
James Hastings (New York: Charles Scribner’s Sons, 1919), s.v.
“Citizenship,” 212.
(25) 1 Co. 7.22; cf. João 8.32, 36; Rm. 8.2, 12–14.
(26) Cf. Rm. 8.1, 33–34; Hb. 7.25; 1 João 2.1.
(27) Fp. 3.20; cf. 1 Pe. 2.11.
(28) Cf. João 1.12–13; 1 Pe. 1.3–4, 23.
(29) 1 João 2.29; 4.7; 5.4.
(30) Cf. 2 Co. 5.18–21; Ef. 6.19–20.
(31) Lyall, Slaves, Citizens, Sons, 63.
(32) Ibidem, 66.
(33) Ibidem.
(34) Cf. Hb. 11.16, 26; 1 João 2.16–17.
(35) Cf. Hb. 12.22–24; Cl. 3.1.
(36) Cf. 2 Co. 5.8; 1 Ts. 4.17.
13
AS RIQUEZAS DO PARADOXO
M esmo que nada na Bíblia seja
contraditório, muitas das verdades
mais profundas e instigadoras nos
parecem paradoxais. Considere, por exemplo, a
verdade que a salvação é gratuita e, ao mesmo
tempo, muito custosa; ou que, para ser
verdadeiramente rico, você deve ser pobre de
espírito; ou, para achar a vida, você deve perdê-la;
ou ainda, para ser sábio, você deve abraçar a
loucura do evangelho.(1) A Escritura ensina que
aqueles que choram serão consolados; aqueles que
dão, receberão; os que são menores serão os
maiores; os humildes serão exaltados; e os últimos
serão os primeiros.(2) Aprendemos, também, que
Deus transforma o mal em bem; que Ele é três em
um; e que Jesus Cristo, a segunda pessoa da
Trindade, é, ao mesmo tempo, completamente
Deus e completamente homem.(3) Estes são
apenas alguns dos grandes mistérios que a Bíblia
expõe.
A esta lista poderíamos, certamente,
acrescentar o ensino bíblico a respeito da
escravidão a Cristo. A metáfora da escravidão,
comumente associada ao desprezo, opressão e
abuso, foi gloriosamente transformada, em Cristo,
para significar honra, liberdade e bênção eterna!
Como um autor definiu:

Assim como a cruz, a escravidão é tanto um paradigma quanto


um paradoxo. A cruz, o mais excruciante e conhecido símbolo
de sofrimento e dor do primeiro século, passou a representar,
para os seguidores de Jesus, o único caminho para a paz e para
a vida. No mesmo sentido, a escravidão, que representa a total
negação da liberdade, torna-se, para os seguidores de Cristo, o
Salvador e Servo, o único meio para se alcançar a verdadeira
liberdade... [Jesus] veio em forma de escravo, não para nos
oferecer libertação da escravidão, mas para nos conceder um
novo tipo de escravidão, a qual é liberdade.(4)
Nos capítulos anteriores, consideramos a base
histórica e a base bíblica para este profundo
paradigma. Consideramos a diferença crucial entre
servos e escravos — notando que, enquanto os
servos são contratados, os escravos possuem um
dono. Os crentes não são meramente servos
contratados por Cristo; eles são seus escravos,
pertencentes a Ele como sua possessão. Ele é o
Senhor e Mestre, digno de lealdade inquestionável
e obediência absoluta. Sua Palavra é a autoridade
final sobre eles; sua vontade é sua ordem
derradeira. Ao tomarem sua cruz para segui-Lo,
morreram para si mesmos e podem agora dizer
como Paulo: “Estou crucificado com Cristo; logo, já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”
(Gl 2.20). Como o apóstolo explanou em outra
epístola: “E ele morreu por todos, para que os que
vivem não vivam mais para si mesmos, mas para
aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2 Co.
5.15).
Também já examinamos o ensino bíblico
sobre o senhorio de Cristo. Ele é nosso Senhor e
nosso Deus. Ele é o Rei sobre todo crente, sobre
sua igreja toda e sobre todas as coisas criadas.
Embora os não crentes rejeitem sua autoridade
nesta vida, chegará o dia em que “todo joelho” se
dobrará, “e toda língua” confessará “que Jesus
Cristo é Senhor” (Fp. 2.10). Também nós, um dia,
prestaremos contas a Ele, e Ele nos recompensará
por nossa fidelidade. Oh! quanto desejamos ouvir
aquelas palavras de bênção e louvor: “Muito bem,
[escravo] bom e fiel. Entra no gozo do teu senhor”.
Nosso estudo sobre a escravidão nos lembrou
que antes éramos os escravos mais miseráveis e
que pertencíamos ao dono mais cruel que se possa
imaginar — o pecado. Como membros de uma raça
humana decaída, estávamos presos, cegos e
mortos em nossa desobediência e rebelião. Deus
interviu, em meio ao nosso desamparo e
desesperança. Sendo rico em misericórdia, Ele nos
escolheu, nos amou e nos resgatou das garras do
dono anterior. Através da morte sacrificial de
Cristo, fomos redimidos do mercado escravo do
pecado. Deus nos limpou de nossa iniquidade,
revestiu-nos de sua justiça e nos acolheu em sua
casa para sempre.
Entretanto, o nosso Deus gracioso não parou
por aí. Ele não apenas nos fez escravos da justiça,
mas também cidadãos de seu reino, amigos ao
redor de sua mesa e, até mesmo, filhos adotados
em sua família. Agora, nós, que não éramos um
povo, nos tornamos o povo de Deus; nós, que
antes está vamos longe, “[fomos] aproximados
pelo sangue de Cristo” (Ef 2.13); nós, que não
tínhamos esperança, podemos aguardar, com
expectativa, a herança celestial que Ele prometeu a
todos que pertencem a Ele. Tal transformação
gloriosa é possível apenas porque o próprio Cristo
assumiu “a forma de [escravo]” (Fp. 2.7), de forma
que pudesse morrer para remir os escravos do
pecado e reconciliá-los com Deus. Em resposta,
nós louvaremos seu nome glorioso para sempre e
sempre, quando nos ajuntarmos ao coro celestial,
cantando: “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe
os selos, porque foste morto e com o teu sangue
compraste para Deus os que procedem de toda
tribo, língua, povo e nação... Digno é o Cordeiro
que foi morto de receber o poder, e riqueza, e
sabedoria, e força, e honra, e glória, e louvor” (Ap.
5.9,12).
Com certeza, nunca poderíamos esgotar as
realidades gloriosas da escravidão a Cristo, e, de
fato, nunca conseguiremos — pois, como vimos,
nós O adoraremos e O serviremos como seus
escravos por toda a eternidade (Ap. 19.5; 22.3).
Como a faceta de um diamante primoroso, cada
ângulo desta profunda metáfora bíblica acrescenta
uma nova dimensão, nova beleza e perspectiva.
Infelizmente, suas riquezas, em grande parte, se
perderam nas traduções, ao menos para os de fala
inglesa. Mas, para aqueles que estão desejosos de
cavar abaixo da superfície, aguarda-lhes um
tesouro teológico — um tesouro que destaca as
glórias de nossa salvação de uma forma notável.
As doutrinas da graça, todas tomam um
significado mais profundo, quando vistas pela
lente da escravidão, lente que era familiar aos
escritores do Novo Testamento e por eles usada
intencionalmente.
Na realidade, toda a vida deveria ser vista a
partir desta perspectiva. Como cristãos, somos
escravos de Cristo. Que diferença radical esta
verdade deveria fazer em nossas vidas diárias! Já
não vivemos para nós mesmos. Ao contrário,
temos o alvo de agradar o Mestre em todas as
coisas. Com isto em mente, vamos considerar, a
seguir, quatro paradoxos da escravidão a Cristo -
cada um deles traz uma nova dimensão sobre a
chamada gloriosa pela qual fomos chamados (Ef.
4.1).
A ESCRAVIDÃO TRAZ LIBERDADE
Por mais chocante e profundo que seja, a
Palavra de Deus ensina que a verdadeira liberdade
só pode ser encontrada através da escravidão a
Cristo. Embora pensem que são livres, todos os
incrédulos são, na realidade, escravos do pecado
— mantidos em cativeiro por sua lascívia e
enredados em suas transgressões. De fato, a Bíblia
indica apenas duas categorias de pessoas neste
mundo: aqueles que são escravos do pecado e os
que são escravos da justiça. Paulo contrasta estes
dois grupos em Romanos 6:
Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como [escravos]
para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois
[escravos], seja do pecado para a morte ou da obediência para a
justiça? Mas graças a Deus porque, outrora, escravos do
pecado, contudo, viestes a obedecer de coração à forma de
doutrina a que fostes entregues; e, uma vez libertados do
pecado, fostes feitos [escravos] da justiça (vv 16—18).
Como o apóstolo mostra nesta passagem, não
há tal coisa de absoluta independência moral.
Cada pessoa é um escravo — ou do pecado ou de
Deus. James Montgomery Boice enunciou esta
realidade com estas palavras:
Não há tal coisa de liberdade absoluta para ninguém. Nenhum
humano é livre para fazer tudo o que ele ou ela deseja fazer. Há
um Ser no universo, é claro, que é totalmente livre. E esse é
Deus. Mas todos os outros são limitados por ou escravizados a
algo ou alguém. Como resultado, a única questão significativa
nesta área é: A quem ou a que você está servindo? ... Visto que
você e eu somos seres humanos e não Deus, jamais seremos
independentes. Obrigatoriamente, seremos escravos do pecado
ou escravos de Jesus Cristo. Mas aqui está a coisa maravilhosa
e marcante: ser um escravo de Jesus Cristo é ter verdadeira
liberdade.(5)
A escravidão a Cristo não significa apenas ser
livre do pecado, da culpa e da condenação.
Significa também ter liberdade para obedecer,
agradar a Deus e viver da maneira que nosso
Criador intencionou que vivêssemos — em
comunhão íntima com Ele.
Assim, “Agora, porém, libertados do pecado,
[fomos] transformados em [escravos] de Deus”
(Rm. 6.22; cf. 1 Pe 2.16). A escravidão a Cristo,
então, é a única liberdade; “Se, pois, o Filho vos
libertar, verdadeiramente sereis livres (João 8.36).
Como Alexander Maclaren escreveu:
Tal escravidão é a única liberdade. Ser livre não significa fazer
o que você quer; significa gostar do que deve gostar e fazê-lo.
Apenas é livre aquele que se submete a Deus, em Cristo, e,
assim, supera a si mesmo e ao mundo e a todo antagonismo,
sendo capaz de fazer aquilo que sua vida se resume em fazer...
Você fala sobre a escravidão da obediência. Ah! “o peso da
liberdade excessiva” é uma escravidão muito mais dolorosa.
Escravos são os que dizem: “Rompamos os seus laços e
sacudamos de nós as suas algemas”; e os libertos são os que
dizem: “Senhor, põe tuas algemas abençoadas em meus braços,
impõe tua vontade sobre a minha e enche meu coração com teu
amor; e, então, minha vontade e minhas mãos se moverão livre
e prazerosamente”. “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres.”(6)
Embora os cristãos caiam em pecado de vez
em quando, devido às suas escolhas desobedientes,
eles jamais serão escravos do pecado como eram,
antes de serem resgatados e libertos por Cristo. O
pecado já não tem poder de controlá-los. O
patriarca da igreja do quarto século, João
Crisóstomo, ilustrou vividamente este ponto, ao
escrever:
É um absurdo que aqueles que estão sendo conduzidos ao reino
de Deus tenham o pecado reinando sobre si; ou que aqueles que
são chamados a reinar com Cristo escolham ser cativos do
pecado, como se alguém pudesse arrancar a coroa de sua
própria cabeça e escolher ser escravo de uma mulher histérica,
que se achegasse mendigando e coberta de trapos . . . Como
pode o pecado reinar em você? Isto não vem de qualquer poder
do pecado, mas sim de sua própria ociosidade.(7)
Tendo sido remidos por Cristo e fortalecidos
pelo poder do Espírito Santo, os crentes têm tudo
o de que precisam, para obter vitória sobre a
tentação e o pecado. O poder do pecado foi
permanentemente quebrado. A condenação da Lei
foi removida para sempre. A liberdade da
obediência nos pertence. “Agora ... servimos em
novidade de espírito” (Rm. 7.6). Por sermos
escravos de Cristo, somos finalmente e totalmente
libertados; por nos submetermos a Ele
experimentamos verdadeira emancipação, pois sua
Lei para sempre nos libertou da lei do pecado e da
morte (Rm. 8.2)
A Escravidão dá fim ao
Preconceito
A escravidão a Cristo não é apenas o caminho
para a liberdade verdadeira; é também o caminho
para a reconciliação e a unidade dentro do corpo
de Cristo. Quando os crentes reconhecem que
todos eles são escravos, chamados para
demostrarem a mesma humildade do escravo
supremo (Fp 2.5-7), torna-se óbvio como devem
tratar os outros: “Nada façais por partidarismo ou
vanglória, mas por humildade, considerando cada
um os outros superiores a si mesmo. Como nosso
Senhor falou aos seus discípulos: “e quem quiser
ser o primeiro entre vós será [escravo] de todos.
Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos (Mc 10.44-45). Depois de
realizar um trabalho de escravos, ao lavar os pés
dos discípulos, Jesus os relembrou: Ora, se eu,
sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés,
também vós deveis lavar os pés uns dos outros.
Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu
vos fiz, façais vós também. Em verdade, em
verdade vos digo que o [escravo] não é maior do
que seu senhor, nem o enviado, maior do que
aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas coisas,
bem-aventurados sois se as praticardes (João
13.14-17). O serviço sacrificial e o amor de uns
para com os outros deveriam caracterizar os
seguidores de Cristo. Afinal, cada um de nós é um
escravo, chamados a imitar o exemplo abnegado
do nosso Mestre.
Conforme o evangelho se espalhou de Israel
para Samaria, e depois aos Gentios, ele quebrou
preconceitos que existiam entre as diferentes
classes sociais e grupos raciais. Judeus e Gentios,
homens e mulheres, escravos e livres, todos eram
bem-vindos à igreja, onde desfrutavam da mesma
posição espiritual diante de Deus, como cidadãos
do céu e companheiros escravos de Cristo. O
evangelho havia posto um fim nos preconceitos
anteriores. Como Paulo disse aos Colossenses: “e
vos revestistes do novo homem que se refaz para o
pleno conhecimento, segundo a imagem daquele
que o criou; no qual não pode haver grego nem
judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita,
escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos.”
(3:10–11).
Porém, os que foram transformados pelo
evangelho eram mais que simples companheiros
de escravidão. Tendo sido adotados por Deus
como filhos, eram agora membros da mesma
família. O novo relacionamento de uns para com
os outros era mais forte que quaisquer laços ou
relações anteriores. A igreja do Novo Testamento é
“mais uma família do que uma associação
eclesiástica ou organização. Tais sentimentos de
companheirismo acabam com a importância da
raça (Gl 3.28; cf. Cl 3.11). Paulo, um Judeu, se
refere a Tito, um Grego (Gl 2.3), como seu irmão
(2Co.2.13) e usa o mesmo termo sobre Filemom,
um outro Grego, e sobre Onésimo, um escravo
foragido (Fl 16, 20)”.(8)
Destes exemplos, o tratamento de Paulo com
Onésimo é, talvez, o mais notável. O apóstolo
abraçou totalmente este escravo gentio fugitivo,
sem preconceito ou condescendência. Em sua carta
a Filemom, que era proprietário de Onésimo,
Paulo escreveu estas palavras de encorajamento e
reconciliação: “Pois acredito que ele veio a ser
afastado de ti temporariamente, a fim de que o
recebas para sempre, não como escravo; antes,
muito acima de escravo, como irmão caríssimo,
especialmente de mim e, com maior razão, de ti,
quer na carne, quer no Senhor” (vv. 15–16).
Através do poder do evangelho, aquele que antes
era um Fariseu se considerava amigo de um
escravo gentio fugitivo. Semelhantemente, ele
instruiu Filemom a receber Onésimo de volta, com
o amor que um membro da família nutre pelo
outro. Embora a origem de Paulo fosse muito
diferente da de Onésimo, estas diferenças não
foram obstáculo para terem comunhão e amizade,
visto que todo crente é uma nova criatura em
Cristo (2 Co. 5.16-17). Para Paulo, o escravo de
Cristo, era uma alegria servir sacrificialmente
qualquer outro membro da família do seu Mestre
(cf. 1 Co. 9.19).
O Apóstolo Tiago também confrontou o
preconceito em sua epístola — especificamente da
parte dos ricos em relação aos pobres. No capítulo
2, ele instruiu aos seus leitores:

“Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo,


Senhor da glória, em acepção de pessoas. Se, portanto, entrar
na vossa sinagoga algum homem com anéis de ouro nos dedos,
em trajos de luxo, e entrar também algum pobre andrajoso, e
tratardes com deferência o que tem os trajos de luxo e lhe
disserdes: Tu, assenta-te aqui em lugar de honra; e disserdes
ao pobre: Tu, fica ali em pé ou assenta-te aqui abaixo do
estrado dos meus pés, não fizestes distinção entre vós mesmos
e não vos tornastes juízes tomados de perversos pensamentos?
Se, todavia, fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo
arguidos pela lei como transgressores” (vv. 1-4,9).

Tal alerta ainda é necessário na igreja hoje.


Preconceito e parcialidade não têm lugar no corpo
de Cristo. Todos nós éramos indignos escravos do
pecado, até que Cristo nos resgatou, apesar de não
termos qualquer mérito. Agora, todos somos
escravos de Cristo, chamados a obedecê-Lo e a
seguir seu exemplo de amor e auto-sacrifício.
Consequentemente, podemos servir uns aos
outros em humildade e alegria, não importa
nossas diferenças étnicas ou socioeconômicas,
sabendo que todos prestaremos contas ao mesmo
Mestre celestial.
A Escravidão Exalta a Graça
Um terceiro paradoxo a ser considerado é
este: nossa escravidão a Cristo exalta a maravilha
de sua graça infinita. Já discutimos o fato que
pertencer a Cristo como seu escravo é um
privilégio infinito (no capítulo 6). Mas é
importante entender que nosso serviço a Ele é
também um dom imerecido — algo que recebemos
e podemos realizar através de Sua graça. Nossa
capacidade em servi-Lo só é possível porque Ele
nos habilita a fazê-lo “na força que Deus supre,
para que, em todas as coisas, seja Deus glorificado,
por meio de Jesus Cristo” (1 Pe. 4.11).
Certamente, Deus não precisa de nossos atos
de serviços (Atos 17.25; cf Mc 10.45). Ainda assim,
Ele nos dá o privilégio de pertencermos a Ele, de
forma a nos deleitarmos completamente nEle, e,
ao assim fazermos, experimentarmos a satisfação
e alegria verdadeira que vem de conhecê-Lo. Essa é
a essência da vida eterna — como Jesus orou em
João 17.3: “E a vida eterna é esta: que te
conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus
Cristo, a quem enviaste”. A vida eterna não é
meramente uma quantidade de vida, mas uma
qualidade de vida, em que os crentes desfrutam
bênçãos inesgotáveis e insuperáveis, advindas da
comunhão íntima com Deus, tanto nesta vida
quanto na futura.
Em Mateus 6.24, Jesus disse aos seus
ouvintes: “Ninguém pode servir a dois senhores;
porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao
outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro.
Não podeis servir a Deus e às riquezas”.
Comentando sobre este verso, John Piper
observou:

Como podemos “servir ao dinheiro?” Não por dar uma ajuda ao


dinheiro ou por fornecer a ele qualquer coisa. Mas, sim, por
projetar toda a nossa vida de modo a tirar o máximo proveito
do dinheiro. Por dirigirmos todas as nossas decisões de forma
a maximizar os prazeres do dinheiro. É o mesmo em relação a
Deus. Nas palavras de Jesus, a respeito de não servirmos ao
dinheiro, mas a Deus, está implícita a premissa de que servir a
Deus significa viver de forma a experimentar a plenitude de
Deus como nosso Tesouro... A singularidade da nossa
escravidão cristã é esta: o Mestre é, de modo absoluto, o
supridor de tudo, de modo que até a nossa servidão, em si, é
uma dádiva de sua graça soberana.(9)

Assim, o Apóstolo Paulo podia dizer aos


Coríntios que, mesmo em seu serviço sacrificial
pela causa de Cristo, tudo precisava ser atribuído à
graça de Deus. “Mas, pela graça de Deus, sou o que
sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se
tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que
todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus
comigo”. (1Co. 15.10). Semelhantemente todos
nós, cristãos, somos chamados para desenvolver “a
[nossa] salvação com temor e tremor” e reconhecer
que “Deus é quem efetua em [nós] tanto o querer
como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp.
2.12–13). A realidade surpreendente é que Deus
não apenas nos chama para sermos escravos
obedientes. Ele também nos capacita a sermos
fiéis ao chamado. Além do que, ao nos capacitar
para servi-Lo, Ele então promete nos recompensar,
eternamente, pela fidelidade com que Ele
graciosamente nos capacitou.
A metáfora da escravidão não apenas exalta a
graça; ela também realça o amor. Como um autor
explicou: O que corresponde ao paradoxo
“escravidão na liberdade” é o paradoxo “amor na
escravidão”. Na liberdade cristã há escravidão; na
escravidão cristã há amor. Isto evita que a
liberdade se torne em licenciosidade desenfreada,
e evita que a escravidão se torne em subjugação
servil.”(10) A escravidão a Cristo é muito mais que
um mero dever; é motivada por um coração cheio
de devoção amorosa e de puro deleite. Porque
Deus nos amou primeiro e nos enviou seu Filho
para nos redimir do pecado, agora nós O amamos,
desejando de coração adorá-Lo, honrá-Lo e
obedecê-Lo em tudo. Nossa escravidão a Ele não é
penosa, mas um privilégio repleto de alegria, que
se tornou possível por sua graça salvadora e pela
obra contínua do Espírito em nossas vidas. Como
cidadãos leais e filhos gratos, agora servimos
nosso Rei e Pai, com corações transbordando de
gratidão. Ser escravos de Cristo é uma realidade
abençoada e maravilhosa; ser seu “doulos não é
parcialmente doce e parcialmente amargo, mas
totalmente doce”.(11)
Tudo isto reforça o caráter magnânimo de
nosso amoroso Mestre. Sua escravidão é
verdadeira liberdade. Seu jugo é suave e seu fardo
é leve. O que Ele exige, também capacita, por sua
graça. E nos chama a obedecer, não porque Ele
precisa de nós, mas porque sabe que nós
precisamos dEle. Afinal de contas, é somente
através do relacionamento com Ele que nossa alma
pode ser satisfeita. Somente em deleitarmos nEle é
que podemos experimentar verdadeira alegria e
vida eterna. É como Agostinho disse em sua
conhecida oração, em suas Confissões: “Tu nos
fizeste para ti mesmo, e nosso coração está
inquieto, enquanto não encontrar descanso em
ti.”(12)
A Escravidão retrata a
Salvação
O quarto e último paradoxo é encontrado
nesta gloriosa realidade: Deus expressou as
riquezas da nossa salvação usando o simbolismo
da escravidão. Certamente, esta verdade tem sido
o tema de todo este livro. Na eternidade passada,
Deus escolheu aqueles a quem haveria de salvar.
Durante o nosso tempo de vida, Ele nos resgatou
da escravidão do pecado e nos transportou para o
reino do seu querido Filho. A obra expiatória de
Cristo na cruz nos redimiu, de forma que fomos
comprados por Ele; e tendo sidos comprados por
preço, estamos agora em sua posse. Fomos
libertados do pecado, e, assim, como escravos da
justiça, possuímos uma liberdade gloriosa que será
nossa por toda a eternidade.
Mas a figura da escravidão faz mais do que
meramente retratar o evangelho. De fato, ela é
central para a mensagem da salvação. Isto porque
a metáfora da escravidão aponta para a realidade
do senhorio de Cristo, e o senhorio de Cristo é
essencial ao evangelho bíblico.
A mensagem do evangelho não é
simplesmente um plano de salvação; é um
chamado para abraçar a Pessoa que dá a salvação.
E Ele é tanto Salvador quanto Senhor; os dois não
podem ser separados. Vir, verdadeiramente, a
Cristo é entregar voluntariamente o coração, a
mente e a vontade — isto é, dar-se inteiramente
— ao Mestre. Um mero culto de lábios ao senhorio
de Jesus nada mais é que hipocrisia (Tito 1.16) —
uma confissão falsa que não salva (Mt. 7.23; Lc
6.46). Da mesma forma, pregar Cristo como
Salvador, mas não como Senhor, é apresentar uma
mensagem do evangelho incompleta. Nas palavras
do mártir missionário, Jim Elliot:
É uma heresia do século vinte, que Cristo é apenas Salvador
por direito, e Senhor por “opção” do “crente.” Esta negação do
único Mestre e Senhor anuncia somente a metade de Sua
pessoa, declarando apenas parcialmente a verdade como ela é,
em Jesus Cristo. [O evangelho] deve ser pregado com total
compreensão de quem Ele é, o Senhor exigente e também o
Salvador que liberta... A negação do senhorio do Senhor é
desobediência que, em todos os aspectos, torna flexível a
exigência da parte de Deus, pois não faz dEle Deus.(13)

O evangelho, proclamado em sua totalidade,


necessariamente inclui o senhorio de Jesus Cristo.
Como disse Paulo aos Romanos: “Se, com a tua
boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu
coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os
mortos, serás salvo. (Rm.10.9 — ênfase acrescida).
Quando perguntado: “Que devo fazer para que
seja salvo?” Paulo da mesma forma instruiu o
carcereiro: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e
tua casa” (Atos 16.31 ênfase acrescida). Ao
explicar o evangelho aos Judeus, no dia do
Pentecostes, Pedro finalizou seu sermão com estas
palavras: “Esteja absolutamente certa, pois, toda a
casa de Israel, de que a este Jesus, que vós
crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo” (Atos 2.36
— ênfase acrescida).
Nestes mesmos termos, o Novo Testamento
constantemente enfatiza o arrependimento, em
seu chamado evangelístico ao perdido. O próprio
Jesus pregou: “Arrependei-vos e crede no
evangelho” (Atos 1.15 — ênfase acrescida; cf. Lc
24.47). No Pentecostes, Pedro proclamou:
“Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em
nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo “
(Atos 2.38 — ênfase acrescida; cf. Atos 5.31).
Paulo disse aos filósofos no Areópago:
“...Deus...notifica aos homens que todos, em toda
parte, se arrependam” (Atos 17.30 — ênfase
acrescida; cf. 20.21). Enfatizando a natureza
obediente da fé salvadora, João escreveu:
“Quem...se mantém rebelde contra o Filho não verá
a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus”
(João 3.36 — ênfase acrescida). O escritor aos
Hebreus, semelhantemente, disse que Cristo
“tornou-se o Autor da salvação eterna para todos
os que lhe obedecem” (Hb 5.9 — ênfase acrescida).
Embora esta linguagem contradiga a “crença-
fácil” de alguns evangelistas contemporâneos, está
perfeitamente de acordo com o modelo de
escravidão do primeiro século.
Para ser claro, a salvação é por fé somente.
Entretanto, a fé salvadora nunca está só.
Inevitavelmente, ela produz “frutos dignos de
arrependimento” (Mt. 3.8), dando evidência de um
coração transformado. Aquele que alega conhecer
a Cristo, porém continua em padrões de pecado
impenitente, trai a credibilidade de sua profissão
de fé (1 João 1.6). Do mesmo modo, aquele que
alega pertencer a Cristo, porém continua
totalmente escravizado pelo pecado, engana a si
mesmo quanto a sua condição espiritual.
Os verdadeiros escravos de Cristo foram
libertos do pecado e livres para praticar a justiça.
Suas vidas são um testemunho desta realidade.
Havendo sido salvos pela graça, foram “criados em
Cristo Jesus para boas obras” (Ef. 2.10). Agora eles
andam em alegre obediência, motivados pelo seu
amor sincero ao Mestre (João 14.15). Como
Charles Spurgeon discorreu:

Todo cristão verdadeiro pronuncia enfaticamente, e sem


qualquer reserva, a frase “Jesus, nosso Senhor”. Nosso desejo é
que Jesus Cristo seja nosso Senhor, em todas as coisas, e
Senhor sobre toda parte de nosso ser... Aquele que ama
verdadeiramente a Jesus e sabe que é um dos redimidos por
Ele, diz com todo coração que Jesus Cristo é Senhor, seu
soberano absoluto, seu Déspota — se esta palavra for usada no
sentido de Cristo ter o reinado ilimitado e domínio supremo
sobre sua alma. Sim, Ó “Jesus, nosso Senhor”, Tu serás o
Mestre absoluto e soberano sobre nosso coração, com domínio
total sobre nossa humanidade!(14)
Assim, terminamos este livro por onde
começamos — fazendo a pergunta: o que significa
ser cristão? Se examinarmos a identidade nacional
de Israel, depois do êxodo do Egito, ou a
identificação pessoal dos escritores apostólicos, ou
a terminologia usada pelos primeiros mártires
cristãos, nos veremos continuamente
confrontados com um conceito tão estranho
quanto radical e profundo para a nossa
mentalidade Ocidental. No entanto, se queremos
compreender plenamente o que significa seguir a
Cristo, devemos abraçar as implicações de
mudança de vida que há neste conceito vital.
Ser um cristão significa ser um escravo de
Cristo.

(1) Cf. Mt. 5.3; 13.44–46; Lc. 17.33; 1 Co. 3.18.


(2) Cf. Mt. 5.4; 23.12; 20.16; Lc. 22.26; Atos 20.35.
(3) Cf. Gn. 50.20; Dt. 6.4; Mt. 28.19; João 1.1, 14; Hb. 1.3;
4.15.
(4) Michael Card, A Better Freedom (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 2009), 23–24. Mt. 5.3; 13.44–46; Lc 17.33;
1 Co. 3.18.
(5) James Montgomery Boice, Romans, 4 vols. (Grand Rapids:
Baker, 1991), 2:689–90; ênfase no original. Cf. Douglas Moo,
The Wycliffe Exegetical Commentary, Romans 1–8(Chicago: Moody
Press, 1991), 415, onde ele escreveu: “Ninguém jamais será
livre de um dono; e os não crentes, que pensam que são livres,
estão debaixo de uma ilusão criada e sustentada por Satanás.”
(6) Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture, the Acts
(n.p.: Bibliolife, 2007), 148.
(7) Chrysostom, Homilies on Romans, 11, citado em Gerald Bray,
ed. Romans, Ancient Christian Commentary on Scripture (Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1998), 163.
(8) Francis Lyall, Slaves, Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles
(Grand Rapids: Academie Books, 1984), 129–30.
(9) John Piper, em um e-mail não publicado, datado de 9 de
fevereiro de 2010. Usado com permissão.
(10) Murray J. Harris, Slave of Christ (Downers Grove, IL:
InterVarsity Press, 1999), 155.
(11) Ibid., 142.
(12) Augustine, Confessions, 1, em tradução de Jay P. Green,
Saint Augustine’s Confessions (LaVergne, TN: Lightning Source,
2001), 1.
(13) Jim Elliot, em Elisabeth Elliot, ed., The Journals of Jim Elliot
(Old Tappan, NJ: Revell, 1978), 253. A data do lançamento
deste diário foi 7 de Junho de 1950.
(14) Charles Spurgeon, “Jesus Our Lord,” Metropolitan Tabernacle
Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim Publications, 1977), 48:558.
Itálicos no original.
APÊNDICE
VOZES DA HISTÓRIA DA
IGREJA
O PASTOR DE HERMAS (CERCA DO ANO
130 DC)
O Pastor de Hermas é um dos mais antigos
documentos cristãos fora do Novo Testamento.
Ele faz referência aos crentes como “escravos de
Deus” em várias ocasiões, como pode ser
evidenciado no trecho abaixo.(1) Outros
documentos cristãos antigos evidenciam uma
compreensão semelhante da vida cristã.
Por exemplo, a Primeira Epístola de Clemente
de Roma (escrita por volta do ano 95 dC), refere-se
a Deus como “o Mestre” em cerca de vinte
passagens.(2) Da mesma forma, em sua carta à
Filadélfia, Inácio (c.50 - c.110) escreveu: “o bispo
juntamente com o presbitério e os diáconos, meus
companheiros escravos.”(3)
Segundo se relata, ao narrar uma visão que
recebera, Hermas escreveu:
Eu respondi: “Que tipo de coisas más,
Senhor, devemos deixar de fazer?”
“Ouça,” ele disse: “do adultério e da
imoralidade sexual, da embriaguez
desregrada, da luxúria maligna, do
exagero na alimentação, da riqueza
extravagante, da jactância, do orgulho,
da altivez, da mentira, calúnia, e
hipocrisia, de carregar rancor e falar
qualquer blasfêmia. Estes são os mais
malignos de todos os atos da vida
humana. E assim, o escravo de Deus deve
abster-se de praticá-los. Pois aquele que
não se abstém destas coisas não pode
viver para Deus. Ouça, ainda, sobre as
coisas que acompanham aquelas.
“Existem ainda outras obras más,
Senhor?” eu perguntei. “Sim, de fato
há,” disse ele, “há muitas coisas das quais
o escravo de Deus deve abster-se: roubo,
mentira, fraude, falso testemunho,
ganância, desejo do mal, engano,
vaidade, arrogância e coisas
semelhantes a estas. Elas não parecem
más para você?” “Sim, de fato,” Eu
disse, “são muito más para os escravos
de Deus.” “E por isso é necessário que o
escravizado a Deus abstenha-se delas.”(4)
POLICARPO (C. 69–C. 155)
Em sua carta aos Filipenses, Policarpo
escreveu:
Bem sabeis que fostes salvos por um
dom gracioso — não por obras, mas
pela vontade de Deus, através de Jesus
Cristo. Portanto, atai vossas roupas
soltas e servi como escravos de Deus, em
reverente temor e verdade, abandonando
o raciocínio fútil e o erro, que engana a
muitos; crede naquele que ressuscitou
nosso Senhor Jesus Cristo dentre os
mortos e deu a ele a glória e um trono à
sua mão direita. Todas as coisas no céu e
na terra estão sujeitas a ele; tudo quanto
tem fôlego a ele servirá; ele está voltando
como juiz dos vivos e dos mortos; e
Deus vai responsabilizar pelo seu
sangue aqueles que O desobedecem.(5)
MÁRTIRES DO SEGUNDO SÉCULO
Em uma carta das Igrejas de Lyon e Vienne à
Igreja da Ásia:
Os habitantes de Vienne e de Lyon de
Gaul, escravos de Cristo, aos irmãos na
Ásia e na Frígia, que têm a mesma fé e
esperança de redenção juntamente
conosco, paz e graça e glória da parte de
Deus Pai e de nosso Senhor Jesus
Cristo. A grandeza desta nossa
tribulação, o levante furioso dos
Gentios contra os santos, e as coisas
que os abençoados mártires sofreram
não somos capazes de expressar com
exatidão, por meio de palavras, nem
esgotar o assunto ao escrever.(6)
AMBROSIASTER (C. 366–C. 384)

Ele [o apóstolo Paulo] diz isto porque,


através da lei da fé, ele morreu para a
lei de Moisés; pois, aquele que dela é
libertado “morre” e vive para Deus,
tornando-se seu escravo, tendo sido
comprado por Cristo.(7)
JOÃO CRISÓSTOMO (C. 347–407)
Nas coisas relacionadas a Cristo, ambos
[escravos e senhores] são iguais: da
mesma forma que você é um escravo de
Cristo, o seu senhor também é. . . É
possível ao que é escravo não ser um
escravo; e ao que é um homem livre ser
um escravo. “E como pode alguém ser
um escravo, mas não ser escravo?”(8)
Quando ele faz tudo por Deus: quando
ele nada finge, e nada faz para ser visto
pelos homens: é assim que aquele que é
escravo do homem pode ser livre. Ou,
ainda, como alguém que é livre se torna
um escravo [do pecado]? Quando ele
serve aos homens em qualquer serviço
do mal, seja por gula, ou pelo desejo de
riqueza, ou por causa do ofício. Pois tal
pessoa, ainda que seja livre, é mais
escrava que qualquer outra. . . . Assim é
o Cristianismo; na escravidão, ele concede
liberdade. . . . [Afinal,] a escravidão real
é a do pecado. E se você não é um
escravo, nesse sentido, seja ousado e se
regozije. Ninguém terá o poder de lhe
fazer algum mal, se você tiver um
caráter que não se deixa escravizar.
Mas, se você é um escravo do pecado,
mesmo que seja dez mil vezes livre, de
nada lhe vale a liberdade.
Primeiro, acontece a libertação do pecado
e, então, nascem os escravos da justiça, que
é melhor que qualquer outra liberdade.
Pois Deus fez o mesmo que se uma
pessoa tomasse um órfão que fora
levado por selvagens para seu país, e,
não apenas o libertou do cativeiro, mas
se posicionou como um pai para ele e o
elevou a um alto grau de dignidade. É
isto o que aconteceu em nosso caso.
Pois Deus não apenas nos libertou de
nossos antigos males; Ele também nos
conduziu à uma vida de anjos. Ele abriu
o caminho para desfrutarmos o melhor
da vida, entregando-nos à custódia da
justiça, exterminando nossas antigas
mazelas, mortificando em nós o velho
homem e nos trazendo para a vida
eterna.(9)
AGOSTINHO (354–430)
Ao escrever sobre Agostinho, Gerald Bonner
observou que “a experiência pessoal, como
relatada nas Confissões, o havia persuadido de
que, em última análise, a liberdade humana só
poderia ser relativa: apenas tornando-se escravo
de Deus alguém pode escapar de ser um escravo do
pecado.(10) Em seguida, há vários lugares onde
pode ser vista a ênfase de Agostinho sobre esse
conceito.
O Senhor merece tê-lo como seu escravo de
confiança?(11)
Se ele, então, sendo um com o Pai, igual
ao Pai, Deus vindo de Deus, Deus com
Deus, co-eterno, imortal, igualmente
imutável, igualmente eterno,
igualmente criador e estabelecedor das
eras; se ele, que veio na plenitude dos
tempos, tomou a forma de escravo, foi
achado em forma de homem (Fl. 2.7), e
busca a glória de seu Pai em vez de sua
própria, o que deve você fazer, ó
homem, você, que busca a sua própria
glória sempre que faz algo que é bom, e,
por outro lado, quando faz algo mau,
encontra motivos para culpar a Deus?
Olhe para si mesmo; você é uma
criatura, reconheça o criador, você é um
escravo, não desdenhe do mestre, você foi
adotado, mas não por seus méritos.
Busque a glória daquele que lhe
concedeu esta graça, ó filho adotivo;
busque a glória daquele cuja glória foi
procurada por seu filho único e
verdadeiro.(12)
CHARLES HODGE (1797-1878)
Todos os cristãos. . . foram comprados
por bom preço. Isto é, adquiridos por
Cristo, com seu preciosíssimo sangue (1
Pedro 1. 18,19). Pertenceis a ele, sois
seus escravos e deveis, portanto, agir
em conformidade, e não serdes escravos
dos homens. O escravo de um mestre
não pode ser escravo de outro. Aquele
que é redimido por Cristo, que sente
que pertence a ele, que Sua vontade é a
regra suprema de ação, e que realiza
todos os seus deveres, não para agradar
aos homens, mas como um serviço ao
Senhor (Ef. 6. 6-7), é interiormente
livre, independente de sua condição
externa . . . Eles [os crentes de Corinto]
todos pertenciam a Cristo. Para Ele, a
lealdade deles era devida. Por
conseguinte, fossem eles escravos ou
livres, deviam agir em obediência a Ele,
e não em obediência aos homens”.(13)
CHARLES SPURGEON (1834–1892)
Não tenha qualquer reserva, não faça
qualquer outra escolha senão a de
obedecer a seu comando. Quando
souber o que ele lhe ordena fazer, não
hesite, não questione nem tente evitar,
mas “faça-o”: faça-o de uma vez, de todo
coração, com alegria e por completo. É
pouco que sejamos seus escravos, se
compararmos ao preço que o nosso
Senhor pagou, comprando-nos com seu
próprio sangue. Os apóstolos referiam a
si mesmos como escravos de Cristo.
Onde nossa versão ameniza com o termo
“servo”, na verdade é “escravo”. Os santos
do início da igreja tinham prazer de se
considerarem como propriedade absoluta
de Cristo, comprados por ele, pertencentes
a ele e inteiramente à sua disposição.
Paulo foi além, ao ponto de se alegrar
por ter em si as marcas do seu Mestre, e
ele clama: “Que ninguém me moleste.
porque eu trago no meu corpo as
marcas do Senhor Jesus”
Ali estava o fim de todo o debate: ele
pertencia ao Senhor, e as marcas dos
açoites, das varas, e das pedras eram os
sinal do Rei, que marcava o corpo de
Paulo como propriedade de Jesus, o
Senhor. Agora, se os santos do passado
se gloriavam em obedecer a Cristo, eu
oro para que você e eu, não importa a
que denominação pertençamos, ou
mesmo a nação a que façamos parte,
possamos sentir que o nosso primeiro
objetivo na vida é obedecer ao Senhor, e
não seguir um líder humano ou
promover um partido religioso ou
político. É somente isto que precisamos
fazer, e, assim, seguirmos o conselho de
Salomão, que diz, “Os teus olhos olhem
direito, e as tuas pálpebras,
diretamente diante de ti.” Amados,
esforcemo-nos a ser obedientes nas
coisas pequenas, assim como nas
questões maiores, pois é nos detalhes
que melhor se vê a verdadeira
obediência.(14)
Devemos esperar em nosso Mestre,
humilde e reverentemente, sentindo ser
uma honra fazer qualquer coisa por ele.
E, de agora em diante, como homens
livres, temos que nos render e nos
entregar ao Senhor, e servirmos
verdadeiramente a este Grande
Imperador. Nunca somos tão livres
como quando nos submetemos à
servidão sagrada. . . . Muitas vezes,
Paulo chama a si de servo do Senhor, e
mesmo de escravo de Cristo, e ele se gloria
nas marcas do ferro em brasa em sua
carne. Ele diz: “Trago em meu corpo as
marcas do Senhor Jesus; daqui para
diante, ninguém me perturbe.”
Contamos como liberdade suportar as
cadeias de Cristo. Reconhecemos ser a
mais suprema liberdade poder cantar
com o salmista: “Sou teu servo, sou ter
servo. Quebraste as minhas cadeias”.
“Atem o sacrifício com cordas, com
cordas às pontas do altar.” Essa é a
conduta que nossa servidão ao nosso
Senhor exige.(15)
Todo cristão verdadeiro pronuncia esta
frase: “Jesus, nosso Senhor”, com
grande ênfase de não haver qualquer
reserva. Desejamos que Jesus Cristo seja
o nosso Senhor em tudo e Senhor sobre
todas as partes do nosso ser. . . Quem
verdadeiramente ama Jesus e sabe que
é um dos redimidos por Ele, diz, com
todo o coração, que Jesus é o seu
Senhor, seu Soberano absoluto, seu
déspota, se essa palavra for usada no
sentido de Cristo ter governo ilimitado
e supremo domínio sobre sua alma.
Sim, ó “Jesus, nosso Senhor,” tu és o
Mestre imperador e autocrático em
nosso coração e no domínio sobre todo
nosso ser!(16)
Alexander Maclaren (1826–
1910)
A verdadeira posição, então, para o homem
é a de ser escravo de Deus. As
características duras e repugnantes
dessa instituição perversa assumem um
caráter completamente diferente,
quando se tornam as características de
minha relação com Ele. A submissão
absoluta e a obediência incondicional,
por parte do escravo; e, da parte do
Mestre, a posse absoluta, o direito de
vida e morte, o direito de dispor de
todos os bens pertencentes, o direito de
separar marido e mulher, pais e filhos, o
direito de emitir ordens sem explicação,
o direito de esperar que essas ordens
sejam realizadas prontamente, sem
hesitação, de forma meticulosa e
completa, estas são coisas inerentes à
nossa relação com Deus. Bem-
aventurado é o homem que entendeu
que tais coisas assim o são, e que as
aceitaram como sua glória maior e como
segurança para uma vida mais
abençoada! Pois, irmãos, tal submissão,
absoluta e incondicional, a fusão e
absorção da minha vontade na Sua
vontade é o segredo de tudo aquilo que
torna o ser humano magnífico,nobre e feliz.
Lembre-se, no entanto, que no Novo
Testamento os nomes ‘escravo’ e
‘proprietário’ são transferidos para os
cristãos e para Jesus Cristo. “O Servo”
tem os seus escravos, e Aquele que é
Servo de Deus e não faz sua própria
vontade, mas a vontade do Pai, tem a
nós como seus servos, impõe sua
vontade sobre nós, e então Lhe
prestamos absoluta obediência,
semelhante a que Ele depositou aos pés
de seu Pai.
Tal escravidão é a única liberdade. Ser
livre não significa fazer o que você quer;
significa gostar do que deve gostar, e
fazê-lo. Apenas é livre aquele que se
submete a Deus, em Cristo, e, assim,
supera a si mesmo e ao mundo e a todo
antagonismo, sendo capaz de fazer
aquilo que sua vida se resume em fazer.
Uma prisão, da qual não desejamos
escapar, não é de fato uma prisão; e o
arbítrio que se harmoniza com a lei é o
único arbítrio que é de fato livre. Você
fala sobre a escravidão da obediência.
Ah! “o peso da liberdade excessiva” é
uma escravidão muito mais dolorosa.
Escravos são os que dizem: “Rompamos
os seus laços e sacudamos de nós as
suas algemas”; e os libertos são os que
dizem: “Senhor, põe tuas algemas
abençoadas em meus braços, impõe tua
vontade sobre a minha e enche meu
coração com teu amor; e, então, minha
vontade e minhas mãos se moverão
livre e prazerosamente”. “Se, pois, o
Filho vos libertar, verdadeiramente
sereis livres.”
Tal escravidão é a única nobreza. Nos
impérios perversos da antiguidade,
assim como em alguns de seus
reminiscentes da atualidade, os vizires e
primeiros-ministros eram advindos da
classe servil. É assim no reino de Deus.
Aqueles que se fazem escravos de Deus
são por Ele feitos reis e sacerdotes, e
reinarão com Ele na terra. Se somos
escravos, então somos filhos e herdeiros
de Deus, através de Jesus Cristo ....
O Filho-Servo nos faz escravos e filhos.
Para mim, de nada importa que Jesus
Cristo tenha cumprido perfeitamente a
lei de Deus; isto é tanto melhor para
Ele, mas sem qualquer valor para mim,
a menos que Ele tenha o poder de me
fazer como Ele é. E Ele o tem. Se você
confiar-se a Ele, entregar-Lhe o coração
e pedir que Ele o domine, Ele o fará; e se
você abandonar sua falsa liberdade, que
é a servidão, e tomar a liberdade sóbria,
que é a obediência, então Ele o levará a
compartilhar de sua mesma alegria no
serviço, e até mesmo poderemos ser
capazes de dizer: “Minha comida e
minha bebida é fazer a vontade daquele
que me enviou”, e dizendo isto
verdadeiramente, teremos a chave para
todas as delícias.(17)
R. C. H. LENSKI (1864 –1936)
Após termos sido libertados do domínio
do pecado e sermos escravos de Deus,
felizes e abençoados, devemos
apresentar a nós mesmos e a nossos
membros como δουλοι [“escravos”] a
Deus. Lutero exortou: “viva com Ele em
seu reino e O sirva”. O tempo verbal
[em Romanos 14.18] significa: “quem é
escravo e trabalha como escravo.” O
sentido não é o mesmo do termo
διακονειν [“servir”] - prestar serviço a
Cristo e fazer o máximo que pudermos
para ele; mas, sim: em tudo o que
fizermos, não termos vontade própria,
porém sermos dirigidos e controlados
apenas pela vontade de Cristo, sendo
Ele o nosso Κύριος, nosso único Senhor
e Mestre. . . . Aquele que, como escravo de
Cristo, submete a sua vontade a Ele em
tudo que faz “é agradável a Deus” e jamais
deverá temer estar diante de seu trono de
julgamento.(18)
J. CAMPBELL WHITE (1870–1962)
Falando na conferência internacional do
Movimento Estudantil de Voluntários para
Missões Estrangeiras, em 1906, J. Campbell White
desafiou seu público com estas palavras:
É verdadeira ou falsa a afirmação que
Jesus Cristo é o único e legítimo dono e
Senhor de nossas vidas? Martinho Lutero
achava que era verdadeira, quando
disse: “Se alguém bater na porta do meu
peito e disser: ‘Quem vive aqui?’ Eu não
responderei: ‘Martinho Lutero’, mas
direi: ‘O Senhor Jesus Cristo.’” Paulo
expressou a grande realidade prática de
sua vida, quando disse: “Estou
crucificado com Cristo, e vivo, não mais
eu, mas Cristo vive em mim;” “Porque
para mim o viver é Cristo”. Ele não
apenas se considerava um escravo de
Cristo, mas via como correto, normal e
legítimo que cada discípulo de Cristo
entendesse assim. “Vós não sois de vós
mesmos, porque fostes comprados por
preço; portanto, glorificai a Deus no
vosso corpo e no vosso espírito.” “Vós
sois de Cristo, e Cristo de Deus”.
“Alimentai a igreja de Deus, a qual ele
comprou com seu próprio sangue.” “
Rogo-vos, pois, irmãos, pelas
misericórdias de Deus, que apresenteis
os vossos corpos em sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional.” Até mesmo o próprio
Senhor Jesus considerava esta como a
atitude correta de cada um de seus
seguidores. “Vós me chamais Mestre e
Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou.”
Este senhorio e posse de Jesus Cristo não se
aplica apenas às nossas vidas, mas também
a todos os nossos bens e poderes. . . . Não
há qualquer sombra de dúvida que Jesus
Cristo se considera o dono e Senhor de
nossas vidas. Para nós, a questão prática é,
temos reconhecido seu direito de posse e
seu senhorio? E, estamos vivendo desta
forma para com ele?
... Eu me pergunto, e também a você,
nesta noite, se há algo intensamente
divino que possamos fazer com nossas
vidas, como submetê-las em escravidão
voluntária e perpétua a Jesus Cristo,
por amor da humanidade perdida, e
dizer a Ele: “Se Deus me mostrar
qualquer coisa que eu possa fazer para a
redenção do mundo, que eu ainda não
tenha tentado, por Sua graça vou
realizá-la imediatamente; pois eu não
posso nem me atrevo a ir a julgamento,
até que eu tenha feito o máximo que
Deus espera que eu faça, para difundir a
sua glória por todo o mundo.”(19)
Jim Elliot (1927–1956)
Jim Elliot foi um dos cinco missionários
norte americanos martirizados no Equador pelos
índios Waodani. Ele ficou conhecido por sua
declaração: “Não é tolo quem dá o que não pode
guardar, para ganhar aquilo que não pode
perder.”(20) Em outro registro de seu diário,
comentando sobre os versos iniciais de Judas, ele
escreveu:
Certos homens do grupo a quem Judas
escreveu haviam mudado a graça de
Deus em libertinagem, negando o único
Mestre e Senhor, Jesus Cristo. Isto foi
escrito para os dias atuais, pois ouço
hoje sobre pregadores que anunciam
que a graça significa liberdade para
viver uma vida sem restrições e sem
qualquer padrão de pureza moral. Estes
são os que declaram: “Não estamos
debaixo da lei, mas debaixo da graça.” A
Graça foi mudada para ἀσέλγεια
[“licenciosidade”]! Somando-se a isto
está a heresia do século XX, que Cristo é
Salvador por direito e Senhor por
“opção” do “crente”. Esta negação do
único Mestre e Senhor prega apenas
sobre uma parte da sua pessoa,
declarando apenas parcialmente a
verdade como ela é em Jesus Cristo. [O
evangelho] deve ser pregado com o
entendimento total sobre quem Ele é, o
Senhor exigente, bem como o Salvador
que liberta. . . . Negar o senhorio do
Senhor - essa é a desobediência que de
alguma forma torna flexível haver a
necessidade de Deus, pois faz com que
Deus não seja Deus.(21)
(1) De acordo com James S. Jeffers, “Hermas se identifica com
outros cristãos e escravos de Deus (Vis. 1.2.4; 4.1.3; Mand. 3.4;
Sim. 8.6.5). A implicação destas passagens é que os cristãos
devem a Deus a mesma obediência que os senhores exigiam de
seus escravos” (“Jewish and Christian Families in First-Century
Rome,” em Karl P. Donfried e Peter Richardson, eds., Judaism
and Christianity in First-Century Rome [Grand Rapids:
Eerdmans, 1998], 148).
(2) James Aloysius Kleist observa o seguinte, sobre a primeira
epístola de Clemente aos Coríntios. “Em cerca de 20 passagens
nesta epístola, Clemente fala de Deus como ‘o Mestre,’ uma
designação incomum no discurso moderno. A idéia é a mesma
que levou São Paulo a chamar-se de doulos ou ‘escravo’ de
Cristo” (The Epistles of St. Clement of Rome and St. Ignatius of
Antioch [Mahwah, NJ: Paulist Press, 1946], 106–7n35).
(3) Letter to the Philadelphians, 4, em Bart D. Ehrman, trad.,
The Apostolic Fathers (Cambridge, Mass.: Harvard University,
2003), I:287.
(4) Shepherd of Hermas, Exposition on the Eighth
Commandment, 38.3–6, em Ehrman, The Apostolic Fathers
(Cambridge, Mass.: Harvard, 2005), II:269–71.
(5) Polycarp, Letter to the Philippians, 1–2, em Ehrman, The
Apostolic Fathers (2003), I:335.
(6) Eusebius, Ecclesiastical History, 5.1–4, por John Allen
Giles, trad. The Writings of the Early Christians of the Second
Century (London: John Russell Smith, 1857), 222.
(7) Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum,
81.3:28.21–3, em notas críticas de Plumer, no Comentário
sobre Gálatas de Agostinho (New York: Oxford University
Press, 2003), 30n153.
(8) Chrysostom, Homilies on First Corinthians, Homily 19.5–6
(em 1 Cor. 7:22–23), citado em Philip Schaff, A Select Library
of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church
(New York: Christian Literature Company, 1889), XII.108–9.
Tradução inglesa atualizada para facilitar a leitura.
(9) John Chrysostom, Homilies on Romans, 11, citado em
Gerald Bray, ed., Romans, Ancient Christian Commentary on
Scripture (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1998), 170.
(10) Gerald Bonner, “Anti-Pelagian Works,” por Allan
Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages: An Encyclopedia (Grand
Rapids: Eerdmans, 1999), 43.
(11) Augustine, “Sermão 159,” por John E. Rottelle, trad.
Sermons (Hyde Park, NY: New City Press, 1992), 124.
(12) Augustine, Homilies on the Gospel of John 1–40, Homilia 29.
Tradução de Edmund Hill (Hyde Park, NY: New City Press,
2009), 495.
(13) Charles Hodge, Exposition of the First Epistle to the
Corinthians (New York: Robert Carter & Brothers, 1878), 125.
(14) Charles Spurgeon, “Eyes Right,” Metropolitan Tabernacle
Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim Publications, 1974), 34:689.
(15) Charles Spurgeon, “The Way to Honor,” sermão no. 1118,
in Metropolitan Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim
Publications, 1981), 19:356–57.
(16) Charles Spurgeon, “Jesus Our Lord,” Metropolitan
Tabernacle Pulpit (Pasadena, TX: Pilgrim Publications, 1977),
48:558. Itálicos no original.
(17) Alexander Maclaren, Expositions of Holy Scripture, the
Acts (n.p.: Bibliolife, 2007), 148–49.
(18) R. C. H. Lenski, Interpretation of Saint Paul’s Epistle
(Minneapolis: Augsburg Fortress, 2008), 843.
(19) J. Campbell White, “The Ownership and Lordship of Jesus
Christ,” em Students and the Modern Missionary Crusade
(New York: Student Volunteer Movement for Foreign Missions
(Movimento Estudantil Voluntário para Missões Estrangeiras),
1906), 29, 36.
(20) Jim Elliot, em Elisabeth Elliott, ed., The Journals of Jim
Elliot (Old Tappan, NJ: Revell, 1978), 174, registro no diário
datado de 28 de outubro de 1949.
(21) Ibid., 253, registro no diário em 7 de Junho de 1950.
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