Você está na página 1de 18

O Liberalismo Utilitarista dos Radicais

Britânicos

João Tomás Carrilho Roque

a2020132716

Filosofia e Cultura em Portugal

Professor Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da Silva

Licenciatura em Filosofia

2º Ano – 1º Semestre

0
Introdução
O objeto deste trabalho é uma exposição sobre o Radicalismo Inglês, uma das correntes
políticas que mais influenciou a política portuguesa desde o século XIX. Começando
com uma explicitação do seu contexto histórico e filosófico como uma tradição
emergente de um Liberalismo Clássico maturado, seguir-se-á um sumário do seu
impacto na sociedade britânica do século XIX pelas suas consequências dentro e fora do
parlamento, bem como uma delineação dos seus fundamentos éticos segundo a teoria
normativa do Utilitarismo formulada por Jeremy Bentham e aperfeiçoada por John
Stuart Mill, e finalmente um foco no papel fulcral que o movimento radical teve na
alteração da perspetiva sobre o significado do conceito de liberdade que estes
fundamentos provocaram no pensamento de Thomas Hill Green dos Novos Liberais,
marcando o começo da divergência doutrinal para o Liberalismo Moderno.

Contexto na Tradição Liberal


O Liberalismo é uma corrente política baseada na liberdade, no consentimento dos
governados e na igualdade perante a lei que se distinguiu no Iluminismo quando se
tornou popular entre filósofos e economistas ocidentais, apesar de algumas noções
liberais terem precursores na antiguidade clássica e na China Imperial. O Imperador
Romano Marcus Aurélio louvou, “a ideia de uma política administrada com
consideração por iguais direitos e liberdade de expressão, e pela ideia de um reinado
que respeita todas as liberdades dos governados", e diversos académicos têm
reconhecido diversos princípios familiares a liberais contemporâneos nas obras de
vários sofistas e na “Oração Funeral” de Péricles.

Desde o século XVII, o Liberalismo procurou substituir as normas de privilégio


hereditário, religião do estado, monarquia absoluta e Conservadorismo Tradicional com
democracia representativa, governo constitucional limitado e o estado de direito,
apoiando direitos civis e sociais juntamente com liberdades como a de expressão e de
imprensa. Liberais também terminaram políticas mercantilistas e os monopólios da
realeza, promovendo em seu lugar o comercio livre e expansão de mercados. Enquanto
a tradição liberal britânica se focou na expansão da democracia, o Liberalismo francês

1
colocou o seu foco na rejeição do autoritarismo e está relacionado com a construção de
nações.

O filosofo político John Gray identificou os ramos comuns deste pensamento político
como sendo: individualista, defendendo a primazia ética do ser humano contra as
pressões do coletivismo social; igualitário, atribuindo o mesmo valor e estatuto moral a
todos os indivíduos; meliorista, afirmando que gerações sucessivas podem melhorar a
sua condição sociopolítica; e universalista, afirmando a unidade moral da espécie
humana e marginalizando diferenças culturais locais.

Para contribuir para o desenvolvimento da liberdade liberais têm também promovido


conceitos como pluralismo e tolerância - a proliferação de opiniões e crenças que
caracterizam uma ordem social estável. Ao contrário de vários dos seus concorrentes e
predecessores, liberais não procuram conformidade e homogeneidade no modo como
pessoas pensam e, de facto, os seus esforços têm sido focados no estabelecimento de um
sistema de governo que harmoniza e minimiza visões conflituosas, se bem que
permitindo que essas visões existam e se desenvolvam. Para a filosofia liberal, o
pluralismo leva facilmente a tolerância, um conceito que realiza um papel fulcral nas
ideias de Immanuel Kant e John Stuart Mill, com ambos os pensadores acreditando que
a sociedade irá conter diferentes conceções de uma boa vida e que as pessoas devem ser
permitidas fazer as suas próprias escolhas sem interferência por parte do estado ou de
outros indivíduos. Como indivíduos possuirão pontos de vista diferentes, dizem os
liberais, eles devem proteger e respeitar o direito de cada um de discordar.

Na Revolução Gloriosa britânica de 1688, William Henry of Orange usou filosofia


liberal para justificar a revolta armada contra a soberania da realeza e o que era visto
como governo tirânico, a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776
fundou a república em princípios liberais sem os incómodos da aristocracia hereditária,
e uns anos mais tarde, a Revolução Francesa levou ao primeiro estado a garantir
sufrágio masculino universal, com o slogan “liberdade, igualdade, fraternidade”. Esta
tradição, retroativamente nomeada de ‘Liberalismo Clássico’, adotou as ideias
económicas clássicas de Adam Smith relativas ao comercio livre, a um orçamento
equilibrado, e a um governo laissez-faire com intervenção e taxação mínima, tendo este
movimento maturado na Grã-Bretanha, o berço intelectual do Radicalismo.

2
O Impacto do Radicalismo no Século XIX Britânico
O movimento liberal radical teve os seus inícios na década de 1790, uma época de
tensão entre as colónias americanas e a Grã-Bretanha, na qual os primeiros radicais,
descontentes com o estado da Câmara dos Comuns, igualmente exigiam melhor
representação parlamentar e rejeitavam a monarquia, aristocracia e todos os modos de
privilégio. Estes conceitos iniciais de reforma democrática igualitária emergiram na
turbulência da Guerra Civil Inglesa e breve instauração da Comunidade de Inglaterra
republicana, mas foram desacreditados com a Restauração Inglesa da monarquia.
Apesar da Revolução Gloriosa ter aumentado o poder parlamentar com uma monarquia
constitucional, pelos finais do século XVIII a monarquia ainda detinha influência
considerável sobre o parlamento, em si dominado pela aristocracia inglesa. Nas eleições
gerais, o voto era restrito a donos de propriedade em círculos eleitorais que não
refletiam a importância das cidades industriais e comerciais, nem alterações de
população, de modo que, em várias ‘burgas podres’, assentos podiam ser comprados.

Os ‘radicais populares’, artesãos da classe operária e classe média, eram


maioritariamente agitadores e focavam-se em exigir o direito ao voto, bem como em
afirmar o direito à liberdade de imprensa e ao alívio de sofrimento económico, enquanto
os ‘radicais filosóficos’, intelectuais maioritariamente hostis aos argumentos e táticas
dos radicais populares, apoiavam fortemente as medidas de reforma parlamentar, vistas
como um primeiro passo para lidar com as suas várias queixas, como o tratamento dos
críticos religiosos, o tráfico de escravos, e altos preços e impostos.

Nos anos de 1792 e 1793, organizações radicais de artesãos como a London


Corresponding Society e a Friends of the People foram formadas para apoiar reformas
de extensão do direito ao voto e eleições anuais e, apesar de possuírem objetivos
reformistas e não revolucionários, constituíram a primeira vez que a classe operária se
começou a organizar para realizar mudanças políticas. O governo reagiu duramente,
emprisionando líderes radicais escoceses, suspendendo temporariamente o habeas
corpus em Inglaterra, e passando a ‘Lei de Encontros Sediciosos’ de 1795 que exigia
uma licença para qualquer encontro num local público que consistisse de cinquenta ou
mais participantes.

O primeiro uso do termo ‘radical’ num sentido político é atribuído a Charles James Fox,
um líder da ala esquerda do partido Whig divergente do seu Liberalismo Conservador

3
que favorecia as reformas radicais dos republicanos franceses, como o sufrágio
masculino universal. Quando Fox apelou em 1797 a uma reforma ‘radical’ do sistema
eleitoral, o termo passou a ganhar uso corrente para identificar os apoiantes do
movimento por reforma parlamentar.

As ‘Corn Laws’ colocadas em efeito durante várias décadas após as Guerras


Napoleónicas contribuíram para más colheitas e fomentaram descontentamento político,
juntamente com as queixas em encontros políticos de oradores como Henry Hunt de que
apenas três em cem homens possuíam o voto, e escritores como os radicais William
Hone e Thomas Jonathan Wooler espalharam dissidência com as suas publicações
desafiadoras de uma série de leis do governo que limitavam a circulação de literatura
política. As revoltas radicais em 1816 e 1817 foram seguidas pelo massacre de Peterloo
em 1819. As ‘Seis Leis’ de 1819 limitaram o direito a demonstrar ou realizar encontros
públicos e, na Escócia, agitação ao longo de três anos culminou numa tentativa de greve
geral esmagada por forças do governo na ‘Guerra Radical’ de 1820, à qual seguiu um
aumento de poderes dos magistrados para silenciar demonstrações por parte de
operários e ação de ludistas radicais.

Com o apoio das massas, organizações de uniões políticas, e revoltas em diversas


cidades, a ‘Lei de Reforma’ de 1832 foi aprovada, emancipando as classes médias,
apesar de não cumprir as exigências dos radicais ao apenas elevar a percentagem da
população adulta elegível para votar de 3% para 6%. Após esta lei, os Whigs
aristocráticos na Casa dos Comuns foram acompanhados por um grupo parlamentar de
cinquenta a sessenta radicais, um número que rapidamente duplicou na seguinte eleição
de 1835, e que era já chamado informalmente de ‘partido liberal’ por volta de 1839.
Este produziu o primeiro-ministro William Gladstone, que se revelou uma imponente
figura política do Liberalismo no século XIX e sob o qual os Liberais reformaram a
educação, separaram a igreja do estado na Irlanda, e introduziram o boletim secreto para
eleições locais e parlamentares. Não se contentando com esta lei de emancipação,
radicais dentro e fora do parlamento continuaram a lutar por sufrágio universal, se bem
que a maioria viu a abolição das burgas podres como um grande passo na direção de
destruir o que chamavam a “Velha Corrupção”:

"Em consequência das burgas, todas as nossas instituições são parciais,


opressivas e aristocráticas. Temos uma igreja aristocrática, uma lei aristocrática,
uma caça aristocrática, impostos aristocráticos... tudo é privilégio”.

4
Apesar de todo este sucesso político e eleitoral, os radicais falharam na completa toma
de posse de um dos partidos existentes ou na criação de uma nova terceira força devido
a três razões principais: a grande força do poder eleitoral Whig no meio século após a
Lei de 1832, que havia sido expressamente criada para preservar a influencia de
senhorios Whigs nos condados e restantes burgas pequenas; o corpo crescente de
opinião dentro e fora do parlamento sobre outras causas políticas, como Liberalismo
internacional, oposição à escravatura, reformas educacionais, e admissão de não-
anglicanos a posições de poder; e finalmente a falta de estrutura, organização partidária,
liderança formal ou ideologia unificada nos radicais, que levou a oposição interna entre
‘radicais humanitários’ e ‘filosóficos’ sobre as ‘Leis das Fábricas’, entre ‘radicais
políticos’ e ‘intervencionistas benthamistas’ sobre a redução do executivo, e entre
‘sufragistas universais’ e ‘livres-comerciantes’ no que toca a gestão de tempo e
recursos.

Mesmo assim, a partir de 1836, radicais da classe operária unificaram-se à volta de seis
exigências: sufrágio universal, distritos eleitorais de iguais dimensões, o boletim
secreto, o fim de qualificação de propriedade para o parlamento, salário para MPs, e
eleições anuais. Em 1839, líderes radicais como Richard Cobden e John Bright na
‘Anti-Corn Law League’ da classe média emergiram para se opor aos impostos sobre
grão importado que, ao aumentar o preço da comida, ajudavam agricultores e donos de
terras à custa de consumidores e operários. Após o seu sucesso, a procura por sufrágio e
reforma parlamentar lentamente reemergiu através dos radicais parlamentares, os quais,
em 1859, se juntaram aos Whigs e Tories antiprotecionistas para formar oficialmente o
‘Partido Liberal’.

Em 1864, a lei modesta de Earl Russel foi rejeitada tanto por Tories como por Liberais
reformistas, forçando o governo a demitir-se e ser substituído por um governo de
minoria conservador, que, dependendo dos radicais para a sua maioria, teve que aceitar
as suas emendas e introduziram a ‘Lei de Reforma’ de 1867, que quase duplicou o
eleitorado, dando até a homens operários o voto. Pressão radical adicional levou ao
boletim secreto em 1872 e à ‘Lei de Práticas Corruptas e Ilegais’ de 1883, seguida pela
‘Lei de Representação do Povo’ de 1884. Os radicais, tendo sido tão tenazes nos seus
esforços em nome das classes operárias, ganharam um seguimento profundamente leal
de sindicalistas britânicos entre 1874 e 1892, que ao serem eleitos ao parlamento nunca

5
se consideraram algo além de ‘radicais’, tendo posteriormente formado a base do
Partido Trabalhista.

Após o pico de popularidade do movimento radical na década de 1830, os seus ideais de


reforma do sistema eleitoral para aumentar o sufrágio espalharam-se pela europa nas
décadas seguintes durante as Revoluções de 1848, e o século XIX viu governos liberais
estabelecidos em nações à volta da Europa e da América do Sul. Em França, os radicais
tornaram-se uma força política significativa no parlamento apesar de não estarem
organizados por nenhuma estrutura nacional singular, posteriormente formando o
partido mais importante do governo durante a segunda metade da Terceira República
Francesa. O sucesso desta estratégia incentivou radicais noutros países a formarem
partidos formais ao longo do resto do século XIX e inícios do século XX, com radicais
alcançando posições políticas significativas em 14 outros países europeus, incluindo
Portugal, culminando na organização do Radical Entente, o internacional político dos
próprios radicais. O progresso intelectual do Iluminismo, que questionou velhas
tradições sobre sociedades e governos, acabou por culminar em poderosos movimentos
revolucionários que demoliram o que os franceses chamavam de “Antigo Regime” – a
crença na monarquia absoluta e religião do estado – principalmente na Europa, América
Latina, e América do Norte.

O Fundamento Utilitarista do Radicalismo


O fundamento teórico para o movimento do Radicalismo, bem como para as ações dos
radicais parlamentares, foi providenciado pelos radicais filosóficos, que seguiam a
filosofia utilitarista de Jeremy Bentham, mais tarde aperfeiçoada por John Stuart Mill,
ambos radicais britânicos e fortes apoiantes de reforma parlamentar e eleitoral.

O Utilitarismo é uma das mais fortes e persuasivas abordagens a ética normativa da


história da filosofia e, apesar de não ser completamente articulada até ao século XIX,
posições proto utilitaristas podem ser identificadas ao longo da historia da teoria ética,
com as suas sementes nos hedonistas Aristipo e Epicuro, bem como nos moralistas John
Gay, Francis Hutcheson e David Hume, a sua continuação em Sidgwick, R. M. Hare e
Peter Singer, e as suas diversas aplicações em economia de bem-estar social, na crise de
pobreza global, na ética de criação de animais para alimentação e na importância de
evitar riscos existenciais para a humanidade.

6
Jeremy Bentham é o filósofo cujo nome é mais associado à era inicial da tradição
utilitarista moderna, tendo desenvolvido a teoria na sua forma reconhecivelmente
secular e sistemática e feito dela uma ferramenta crítica de filosofia moral e legal, bem
como de progresso político e social. Na sua obra “An Introduction to the Principles of
Morals and Legislations” de 1780, Bentham detalhou os elementos básicos da teoria
utilitarista clássica, e em 1823 fundou a ‘Westminster Review’, um jornal para radicais
filosóficos delineando e popularizando essa mesma filosofia.

O Utilitarismo é na verdade uma família de teorias ético-normativas, com uma grande


variedade existente nesta visão, mas sendo em geral considerada como a noção de que a
ação moralmente correta é a que produz o maior bem – a que ‘maximiza a utilidade’
nalgum sentido, normalmente segundo um conceito de ‘bem-estar’. Bentham, em
particular, descreveu ‘utilidade’ do seguinte modo:

“[Utilidade é] aquela propriedade em qualquer objeto, pela qual ela tende a


produzir benefício, vantagem, prazer, bem, ou felicidade... [ou] a prevenir o
acontecimento de dano, dor, mal, ou infelicidade para com o grupo cujo
interesse é considerado”.

Algo a notar sobre esta teoria é de que é um modo do Consequencialismo, que afirma
que as consequências de qualquer ação são a única medida do certo e errado. O que
distingue o Utilitarismo de outros modos de Consequencialismo, tais como Egoísmo ou
Altruísmo, é o âmbito das consequências relevantes. Segundo a visão utilitarista, é o
bem geral que deve ser maximizado, ou seja, devemos considerar o bem de todos, tanto
o do agente como o do outro, igualmente.

Acerca de descrições de Utilitarismo, Frederick Rosen, professor de História do


Pensamento Político na University College London e diretor do Bentham Project, nota
que estas podem apresentar “pouca semelhança historicamente a utilitaristas como
Bentham e J. S. Mill” e podem ser mais “uma versão bruta de ‘utilitarismo do ato’
concebida no século vinte como um boneco de palha a ser atacado e rejeitado”. Neste
sentido, seria um erro pensar que Bentham não se preocupa com regras quando a sua
obra seminal é sobre os princípios de legislação. A obra inicia com o famoso ‘princípio
da utilidade’, a essência de qualquer teoria utilitarista:

A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois mestres soberanos, dor


e prazer. Cabe a eles apenas apontar o que devemos fazer…. Pelo princípio da

7
utilidade refiro ao princípio que aprova ou desaprova cada ação, seja qual for, de
acordo com a tendência que aparenta possuir a aumentar ou diminuir a felicidade
do grupo cujo interesse está em questão.... Eu digo de cada ação, seja qual for, e,
portanto, não apenas de cada ação de um individuo privado, mas cada medido do
governo.

Este início contém uma importante premissa sobre motivação humana na sua primeira
linha: o que move a ação humana é a busca pelo prazer ou evasão da dor, e nada mais.
Bentham permite que sejamos movidos pelos prazeres e dores de outros, mas estas
considerações por outros só nos movem na medida em que retiramos prazer dos
prazeres dos outros, ou dor das suas dores. Isto faz de Bentham um aderente do
Egoísmo Psicológico, afirmando que a felicidade do próprio agente é e unicamente pode
ser o último objeto dos seus desejos, e como Bentham é um hedonista no que toca a
utilidade ou felicidade, tratando-a como consistindo em prazer, a versão de Egoísmo
Psicológico que adota é uma de Hedonismo Psicológico.

Em seguida, Bentham está a afirmar que utilidade não só descreve motivação humana,
mas também demarca a medida do correto e errado. No entanto, a felicidade em questão
não se limita à do agente, como seria no caso do Egoísmo Ético, pois Bentham oferece a
posição característica do Utilitarismo de que se trata da felicidade de todos. Bentham
diz que a nossa consideração do correto e da obrigação moral deve ser governada por
este princípio da utilidade, significando que uma ação é correta ou obrigatória na
medida em que promove utilidade, logo o ato correto ou obrigatório é aquele que mais
promove a utilidade, ou seja, aquele que a maximiza. Por estas razões, a teoria de
Bentham é entendida como uma combinação de Hedonismo Psicológico e Utilitarismo
Hedonista.

No entanto, esta visão origina um dilema: eticamente, cada um de nós deve visar a
felicidade geral, mas psicologicamente, apenas podemos visar a nossa própria
felicidade. Bentham está consciente desta tensão, abordando-a no que toca a reforma
parlamentar, onde se foca no problema de como podemos conseguir que governadores,
egoístas como todos, governem no interesse dos governados, como o Utilitarismo exige.
A resposta de Bentham é simultaneamente a justificação da sua defesa da democracia
representativa e das reformas eleitorais e parlamentares que definiram a ação radical dos
seus contemporâneos e seguidores:

8
Se cada pessoa age apenas para promover os seus próprios interesses, mas o fim correto
do governo são os interesses dos governados, então governadores perseguirão o fim
correto do governo se e apenas se os seus interesses coincidirem com os dos
governados. Como os interesses dos governadores coincidirão sistematicamente com os
dos governados se e apenas se eles forem democraticamente responsabilizados por
estes, então podemos concluir que governadores devem ser democraticamente
responsabilizados pelos governados.

Após a elaboração utilitarista dos seus princípios de legislação, Bentham aborda a


questão da possibilidade de violar legitimamente uma lei com as noções de males de
primeira e segunda ordem, ou seja, respetivamente, as consequências negativas mais
imediatas de uma ação e as que se espalham pela comunidade provocando ‘alarme’ e
‘perigo’. Se nos limitarmos a considerar efeitos de primeira ordem nas nossas ações, é
verdade que há casos em que o bem gerado de violar uma lei ultrapassa o mal, e,
portanto, o rigor do corpo legal da sociedade tornar-se-ia muito difícil de justificar. É
aqui que tudo depende dos males de segunda ordem, os quais fornecem o carater
requerido às ações em questão e justificam castigo legal.

Imaginemos, por exemplo, o desejo físico da satisfação da fome. Se um sem-abrigo,


pressionado pela sua fome, roubar um pão da casa de um rico, pão este que talvez o
salve da morte, será possível tomar o bem recebido pelo ladrão por menor que o mal
sofrido pelo homem rico? Este enquadramento da situação é em si erróneo, pois apenas
considera efeitos de primeira ordem na avaliação da ação quando, na verdade, é com
base nos efeitos de segunda ordem que esta ação deve permanecer legalmente
repreensível, visto que a permissibilidade social de roubar a alguém algo que se deseje o
suficiente se o estatuto económico do proprietário for suficientemente alto espalharia
por toda a sociedade alarme, pânico, caos e perigo. São estes males que, pesados contra
o bem recebido pelo sem-abrigo, justificam eticamente a ilegalidade da ação.

Deste modo, ficam delineados os princípios essenciais da teoria utilitarista de Bentham,


que foi posteriormente modificada por John Stuart Mill. Para apreciar devidamente a
filosofia moral e política de Mill, é necessário entender o seu fundamento intelectual
como alguém criado na tradição do Radicalismo Filosófico como um benthamista pelo
seu pai e colega de Bentham, John Mill, com a intenção explícita de que ele continuaria
a causa do Utilitarismo. No entanto, apesar de Mill ter aceitado o legado utilitarista dos
radicais, ele transformou-o de modos importantes, sendo que algumas das inovações

9
mais significativas que Mill oferece à tradição utilitarista se relacionam com as suas
teses modificadas acerca da natureza da felicidade e o papel desta na motivação
humana.

Na sua obra “Utilitarianism”, Mill rejeita o conceito puramente quantitativo de utilidade


de Bentham, dizendo:

É deveras compatível com o princípio da utilidade reconhecer o facto, de que


uns tipos de prazer são mais desejáveis e valiosos que outros. Seria absurdo que
enquanto, ao estimar todas as outras coisas, qualidade é considerada tanto quanto
quantidade, a estimação dos prazeres deva supostamente depender apenas da
quantidade.

Mill também nota que, ao contrário do que os seus críticos possam dizer, não existe
“nenhuma conhecida teoria Epicuriana da vida que não atribua aos prazeres do
intelecto... um valor muito mais alto enquanto prazeres que os da mera sensação”,
apesar de aceitar que isto é normalmente porque os prazeres intelectuais são pensados
como tendo meras vantagens circunstanciais, como “maior permanência, segurança” ou
menor “custo”, enquanto Mill defende que alguns prazeres são intrinsecamente
superiores a outros.

A acusação de que o hedonismo é uma “doutrina digna apenas do suíno” tem uma longa
historia, com a “Ética a Nicómaco” de Aristóteles dizendo já que identificar o bem com
o prazer é preferir uma vida adequada a feras, mas enquanto teólogos possuem a opção
de fundamentar a procura da felicidade na vontade de Deus, hedonistas necessitam de
outras defesas. A abordagem de Mill é argumentar que os prazeres do intelecto são
intrinsecamente superiores aos prazeres físicos:

Poucas criaturas humanas consentiriam a serem alteradas para qualquer um dos


animais inferiores por uma promessa da mais complete realização dos prazeres
ferais; nenhum ser humano inteligente consentiria a ser um tolo, nenhuma
pessoa instruída seria um ignorante, nenhuma pessoa de sentimento e
consciência seria egoísta ou degradante, mesmo sendo persuadidas de que o tolo,
o estúpido, ou o patife se encontra mais satisfeito com a uma condição do que
eles estão com a deles... Um ser de faculdades superiores requer mais para o
tornar feliz, é capaz provavelmente de sofrimento mais agudo, e certamente
acessível a ele de mais modos, do que um de tipo inferior; mas apesar destas

10
vulnerabilidades, ele não pode nunca realmente desejar afundar-se no que sente
ser um grau de existência inferior.... É melhor ser um humano insatisfeito do que
um porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E
se o tolo, ou o porco, são de outra opinião, é porque apenas conhecem o seu lado
da questão...

A partir deste ponto, podemos começar a ver a possibilidade e o apelo em ler Mill como
um perfecionista relativamente à felicidade, afirmando que felicidade consiste no
devido exercício daquelas capacidades essenciais à nossa natureza. Por exemplo, Mill
sugere este tipo de perspetiva perfecionista quando, no começo de “On Liberty”,
descreve o fundamento utilitarista da sua defesa de liberdades individuais como o senso
de dignidade de um ser progressivo devidamente consciente de si que origina uma
preferência categórica por atividades que exercitam as suas capacidades superiores.

Ao afirmar “melhor ser um humano insatisfeito do que um porco satisfeito; melhor ser
Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito”, Mill reconhece as capacidades de
autoexaminação e deliberação prática como estando entre as nossas faculdades
superiores. Crucialmente, é este perfecionismo que planta as sementes que germinam
mais tarde no pensamento de Thomas Hill Green, um colega radical que formulou a
noção de liberdade de um modo distinto do resto da tradição liberal e, ao originar a
noção moderna de ‘liberdade positiva’ no pensamento político, cimentou na tradição
radical a divergência filosófica entre o Liberalismo Clássico e o Liberalismo Moderno.

Emergência da Liberdade Positiva e dos Novos Liberais


Ao longo da sua vida, John Stuart Mill contribuiu imensamente para o pensamento
liberal ao combinar elementos do Liberalismo Clássico com o que mais tarde ficou
conhecido como Liberalismo Moderno. Em “Considerations on Representative
Government”, Mill defende que uma forma de democracia representativa é a melhor e
ideal forma de governo, elaborando, a partir do seu Utilitarismo perfecionista, um
argumento completamente distinto do de Bentham, que se baseava na resolução da
tensão entre o Egoísmo Descritivo da natureza humana e o Utilitarismo Prescritivo da
normatividade ética.

Apesar de este ideal não ser invariante e independente de circunstâncias sociais ou


históricas em Mill, este considera-o a melhor forma de governo para sociedades com
11
recursos, segurança e cultura de independência suficientes. Em particular, Mill
considera a democracia representativa a melhor, e nessas circunstâncias, porque melhor
satisfaz o critério de todo o bom governo: um governo é bom na medida em que
promove o bem geral, onde este é concebido como a promoção das características
morais, intelectuais e ativas dos seus cidadãos, sendo óbvio o modo perfecionista como
é colocado ênfase na importância de uma vida ativa e autónoma que exercita
capacidades intelectuais, deliberativas e criativas.

Devido à influência perfecionista de Mill, apesar de tanto os liberais como os radicais


terem procurado libertar a humanidade do Tradicionalismo, os liberais consideraram
suficiente o estabelecimento de direitos individuais, enquanto os radicais apelaram a
reformas institucionais, socioeconómicas e principalmente culturais e educacionais para
permitirem a cada cidadão exercitar tais direitos na prática e atingir um nível superior de
autorrealização individual.

De todos os seus colegas intelectuais, a influência de Mill teve mais frutos no radical
Thomas Hill Green, que estabeleceu em “Prolegomena to Ethics” de 1884 os
fundamentos principais do que mais tarde se passou a chamar liberdade positiva. Green
rejeitou a noção de que as pessoas são movidas puramente por egoísmo, focando-se em
contraste nas circunstâncias complexas que afetam o desenvolvimento do nosso caráter
moral. Apontando para a sua nova liberdade como ‘liberdade para agir’ em vez de
‘liberdade para evitar sofrer das ações dos outros’, Green escreveu:

Se alguma vez fosse razoável desejar que o uso de palavras fosse diferente do
que é […] desejaria que o termo ‘liberdade’ tivesse sido confinado à […]
capacidade para realização da vontade.

Após a solidificação da distinção entre estas duas noções de liberdade, a negativa


entendeu-se como a ausência de obstáculos, barreiras, ou limitações – o ser livre de
restrições externas e interferências de outros sujeitos, - enquanto a positiva se entendeu
como a capacidade, particularmente por posse de poder e recursos, para concretizar o
próprio potencial – o ser livre para concretizar a sua vontade e capaz de agir de modo a
realizar os seus objetivos. Deste modo, a natureza da liberdade positiva frequentemente
toca na natureza do conceito de autonomia, sendo as duas noções de liberdade não
apenas distintas, mas interpretações rivais e incompatíveis de um mesmo ideal político.

12
Com a sua rejeição do egoísmo, Green vê a sociedade como um todo orgânico no qual
todos os indivíduos têm um dever de promover o bem comum, e, num profundo passo
para o futuro do Liberalismo Moderno, também atribuiu à sociedade e instituições
políticas a responsabilidade de fortalecerem a liberdade e desenvolverem o caráter
moral, a vontade, e a razão individuais, devendo o estado criar as condições que
permitem tudo isso, oferecendo oportunidade para genuína escolha. Green defende que
o estado deve fomentar e proteger os ambientes sociais, políticos e económicos nos
quais indivíduos terão a melhor chance de agirem de acordo com as suas consciências,
devendo intervir se e apenas se há uma tendência clara, provada e forte de uma
liberdade escravizar o individuo. Assim sendo, para Green, o estado nacional é legitimo
apenas na medida em que apresenta um sistema de direitos e obrigações que é o mais
provável de fomentar autorrealização individual.

Estas ideias espalharam-se rapidamente e foram desenvolvidas mais tarde por


pensadores como Leonard Trelawny Hobhouse e John A. Hobson – os ‘Novos Liberais
– de modo que em poucos anos este ‘novo liberalismo’, ou Liberalismo Moderno, se
tinha tornado no programa essencial político do Partido Liberal, incluindo medidas
como devolução de poder político à Irlanda, a separação da Igreja da Inglaterra da
política escocesa e galesa, maior controlo da venda de licor, grandes extensões de
regulações de fábricas, e várias reformas democráticas. Os novos liberais viam
liberdade individual como algo alcançável apenas sob condições sociais e económicas
favoráveis, sendo a pobreza, doença e ignorância em que muitos viviam algo que
impossibilitava o seu florescer, e acreditando que tais condições poderiam ser
emendadas apenas por ação coletiva coordenada por um estado social intervencionista.

Regressando por um momento a Mill, apesar da sua filosofia económica inicial apoiar
mercados livres e defender que impostos progressivos penalizavam os que trabalhavam
mais, esta também sofreu uma grande mudança gradual ao longo da sua vida. Graças ao
seu caráter perfecionista que aproximava esta noção de liberdade, os seus últimos anos
viram Mill passar além do Liberalismo Moderno e tomar até uma inclinação socialista,
defendendo a proposta de uma restruturação da organização económica da sociedade em
torno de associações cooperativas que adicionariam uma nova dimensão social de
exercício de capacidades intelectuais e deliberativas no trabalho.

Pelo fim do século XIX, os princípios do Liberalismo Clássico foram amplamente


desafiados por quedas em crescimento económico e por uma consciência crescente de

13
pobreza e desemprego presentes em cidades industriais modernas, bem como pela
agitação de organizações trabalhistas, acelerando a transição popular para os princípios
deste Liberalismo Moderno. Entre 1906 e 1914, após a eleição de mais profissionais,
incluindo académicos e jornalistas, com o Partido Liberal, um conjunto notável de
políticas do Liberalismo Moderno foram implementadas, cujos elementos principais
foram pensões para idosos pobres e seguro de saúde, de doença e de desemprego,
acompanhados de impostos progressivos, particularmente no ‘Orçamento do Povo’ de
1909. Nesta era reformista do início do século XX, os liberais mais identificados com
estas medidas do Liberalismo Moderno foram, além do economista William Beveridge,
o PM H. G. Asquith, o Chanceler de Eschequer David Lloyd George, e o Presidente do
Quadro do Comercio Winston Churchill, que estabeleceram os fundamentos do estado
social no Reino Unido antes da Primeira Guerra Mundial.

Ao longo do tempo, a palavra ‘Liberalismo’ começou a divergir no seu significado em


diferentes partes do mundo, sendo que nos EUA o Liberalismo é associado com as
políticas do estado social do programa New Deal da administração Democrática do
presidente Franklin D. Roosevelt, enquanto na Europa é mais frequentemente associado
a uma defesa de governo limitado e políticas económicas laissez-faire. Ao contrário da
Europa e América Latina, a palavra ‘Liberalismo’ na América do Norte refere-se quase
exclusivamente ao Liberalismo Moderno, com o partido canadiano dominante, o Partido
Liberal, bem como o Partido Democrático nos EUA, sendo considerados partidos
liberais.

O Liberalismo Moderno herdado das ideias e ações destes pensadores acabou por ver as
suas políticas largamente adotadas em grande parte do mundo, acabando por se
considerar, no presente, uma posição politicamente moderada, em contraste com a sua
reputação radical na sua conceção. Um governo Liberal-Moderno é atualmente esperado
de abordar questões económicas e sociais como pobreza, infraestrutura, cuidados de
saúde, educação e o ambiente usando intervenções enquanto enfatiza também os direitos
e autonomia do individuo. A maioria dos partidos social-democráticos na Europa,
incluindo o Partido Trabalhista do Reino Unido, foram fortemente influenciados pela
ideologia do Liberalismo Moderno.

14
Conclusão
Em suma, podemos concluir que o Radicalismo, como movimento político histórico,
teve a oportunidade de se desenvolver na Inglaterra do século XIX graças às suas
circunstâncias relativas à tradição do Liberalismo Clássico, alcançando um profundo
impacto na sociedade da nação que reverberou pelo resto do mundo, distinguindo-se no
seu caráter pela distinta fundamentação ética na doutrina utilitarista e fomentando uma
mudança na conceção de liberdade que se mostrou seminal no desenvolvimento do
Liberalismo Moderno. Posteriormente, seria de interesse analisar em maior detalhe não
só as especificidades de como este movimento impactou a política portuguesa dos
séculos XIX e XX, mas também avançar para uma análise da evolução do movimento
liberal após o inicio do século XX e o papel das influencias radicais neste, incluindo a
agravação do intervencionismo do estado durante a segunda guerra mundial, a
reemergência de ideais do Liberalismo Clássico no Neoliberalismo do final do século, e
o impacto deste no campo político como um todo, incluindo a mais recente síntese
destas diversas correntes no pensamento da ‘Terceira Via’ incorporada nas
administrações de Bill Clinton nos EUA e Tony Blair no Reino Unido.

15
Bibliografia
Bentham, J. (1789). An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Nova Iorque:
Hafter Publishing Co.

Freeden, M. (1986). The New Liberalism: An Ideology of Social Reform. Oxford: Oxford UP.

Green, T. H. (1884). Prolegomena to Ethics. Nova Iorque: Kraus Reprint Company.

Harris, W. (1885). The History of the Radical Party in Parliament. Londres: Kegan Paul, Trench &
Co.

Mill, J. S. (1859). On Liberty. Londres: Walter Scott Publishing.

Mill, J. S. (1861). Considerations on Representative Government. Londres: Parker, Son, & Bourn.

Mill, J. S. (1863). Utilitarianism. Londres: Parker, Son & Bourn.

Sturgis, A. H. (1994). The Rise, Decline and Reemergence of Classical Liberalism. Nashville:
Belmont University Press.

16
Índice
Introdução........................................................................................................................1

Contexto na Tradição Liberal........................................................................................1

Desenvolvimento Temático

3.1 – O Impacto do Radicalismo no Século XIX Britânico...................................3

3.2 – O Fundamento Utilitarista do Radicalismo..................................................6

3.3 – A Emergência da Liberdade Positiva e dos Novos Liberais......................11

4 – Conclusão.................................................................................................................15

5 – Bibliografia...............................................................................................................16

17

Você também pode gostar