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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Tecnologia e Ciências


Instituto de Geografia

Carla Monteiro Sales

A reprodução do “Mapa invertido da América do Sul” nas visões críticas


sobre o Sul global

Rio de Janeiro
2015
Carla Monteiro Sales

A reprodução do “Mapa invertido da América do Sul” nas visões críticas sobre o Sul
global

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Orientador : Prof. Dr. André Reyes Novaes

Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBA

S163 Sales, Carla Monteiro.


A reprodução do “Mapa Invertido da América do Sul” nas visões
críticas sobre o Sul global / Carla Monteiro Sales. – 2015.
164 f. : il.

Orientador: André Reyes Novaes.


Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Geografia.
Bibliografia.

1. Geopolítica – América do Sul – Teses. 2. Póscolonialismo – América


do Sul – Teses. 3. Cartografia – América do Sul - Teses. 4. Leitura de
mapas – América do Sul – Teses. I. Novaes, André Reyes. II. Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. III. Título.

CDU 91:327(8)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

__________________________________ ____________________________
Assinatura Data
Carla Monteiro Sales

A reprodução do “Mapa Invertido da América do Sul” nas visões críticas sobre Sul
global

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Geografia, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Aprovada em 27 de maio de 2015.


Banca Examinadora:

________________________________________________________
Prof. Dr. André Reyes Novaes (Orientador)
Instituto de Geografia - UERJ

_________________________________________________________
Prof. Dr. Valter Luis de Macedo
Instituto de Geografia - UERJ

_________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo César da Costa Gomes
Instituto de Geociências - UFRJ

_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Gisele Girardi
Departamento de Geografia - UFES

Rio de Janeiro
2015
DEDICATÓRIA

A todos os povos do sul.


AGRADECIMENTOS

Um trabalho de tanta importância nas conquistas da vida nunca poderia ser realizado
em total isolamento. É importante e gratificante reconhecer desde as maiores até as menores
participações para esse resultado final. Por isso, reservo o “primeiro pedaço do bolo” para
minha família: Fátima Cristina, Luiz Ivam e Henrique, pela construção de um lar sublime e
confortante onde posso desenvolver com a melhor estrutura do mundo! De igual importância
é o agradecimento que faço ao companheiro de tudo Alex Rodrigues, seu apoio vai desde os
gestos cotidianos até questões técnicas da presente dissertação e eu simplesmente fico sem ter
como agradecer.
Um sincero e carinhoso ‘obrigada’ ao amigo Ricardo Brenelli pelas diversas ajudas ao
longo da dissertação, que também estendo aos amigos Marina, Yasmin e Lucas Thomé pela
preocupação e amparo. E de forma inusitada, agradeço a minha cadelinha de estimação Raika,
mas sua “cãoterapia” praticada nos estresses dessa escrita foi valiosa.
Devo ainda agradecer à equipe de professores e diretores da Escola Municipal Rio das
Pedras pelo apoio e compreensão diária.
Tenho enorme gratidão aos mestres que guiaram a construção desse conhecimento
durante o curso do mestrado: Prof. Dr. Miguel Angelo, Prof. Dr. João Baptista e Prof. Dr.
Glaucio Marafon. Agradeço, ainda, ao aceite dos professores que irão compor a banca dessa
dissertação: Profa. Dra. Gisele Girardi, Prof. Dr. Paulo César e Prof. Dr. Valter Macedo.
Sou imensamente grata à assistência dos funcionários do PPGEO/UERJ, da
funcionária Taciane da biblioteca do CTC e de outros funcionários da UERJ que me
prestaram auxílio de forma fantástica.
Por fim, mas não menos importante, agradeço os ensinamentos e instruções valiosas
do Prof. Dr. André Novaes. Obrigada por aceitar o desafio de orientar essa dissertação de
mestrado no meio de tanta correria e pela capacidade de redefinir as noções de tempo durante
a construção desse trabalho!
Contemplando o mapa, eu comecei a ver um retrato de mim mesmo.
James Cowan
RESUMO

SALES, Carla Monteiro. A reprodução do “Mapa Invertido da América do Sul” nas visões
críticas sobre o Sul global. 2015. 183 f. Dissertação de Mestrado em Geografia. – Instituto de
Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

O “Mapa Invertido da América do Sul” (1943) é um mapa diferente. Primeiro, porque


não foi feito pelos cânones da ciência cartográfica, mas pelas mãos de um artista uruguaio,
chamado Torres-García. Segundo, porque não utilizou a orientação convencional ao Norte,
mas inverte o posicionamento do Sul para o topo da imagem. A presente pesquisa foi
motivada pela visão de mundo diferenciada que esse mapa artístico apresenta, onde o objetivo
é compreender os diversos contextos que reproduzem esse mapa, contribuindo para sua
notoriedade até os dias atuais. Para tanto, é necessário entender os significados, os
questionamentos e as ideologias expressas nessa inversão, pois contribuem na identificação
com a obra em tempos além de sua elaboração. Nesse sentido, a pesquisa foi embasada em
um exame bibliográfico de correntes de pensamento que propõem uma visão crítica sobre os
processos de formação histórica do Sul global, destacavelmente o póscolonialismo e o
pósdesenvolvimento. Tais subsídios teóricos auxiliam em um entendimento de mapa que seja
tão plural quanto às visões de mundo podem ser, trilhando uma relação entre geopolítica,
cartografia e arte.

Palavras chave: Mapa artístico, Sul global, póscolonialismo.


ABSTRACT

SALES, Carla Monteiro. The reproduction of “Inverted Map of South America” in critical
views of global South. 2015. 183 f. Dissertação de Mestrado em Geografia. – Instituto de
Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

The "Inverted Map of South America" (1943) is a different map. Firstly, because it was not
created by the canons of cartographic science, but by the hands of a Uruguayan artist, called
Torres-García. Secondly, because it did not use the conventional orientation to the North, but
reversed the South’s position to the top of the image. This paper was motivated by the
different worldview this artistic map displays, where the purpose is to understand the different
contexts that reproduce this map, contributing to its prominence until latterly. In order to do
so it is necessary to understand the meanings, questions and ideologies expressed in this
inversion, since they contribute to the recognition with this art construction to times beyond
its formulation. In this sense, the research was based on a literature survey of schools of
thought that propose a critical view to the historical formation process of the global South,
notably postcolonialism and the postdevelopment. Such theoretical subsidies help to
understand a map that is as plural as worldviews may be, treading a relationship between
geopolitics, cartography and art.

Keywords: Map art, global South, postcolonialism.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa invertido da América do Sul .................................................... 14


Figura 2 - Reproduções da obra em diferentes situações........................................ 19
Figura 3 - Cidades-sedes dos Jogos Olímpicos ..................................................... 21
Figura 4 - Mapa T - O.............................................................................................. 51
Figura 5 - Mapa Invertido da América do Sul de 1936.......................................... 63
Figura 6 - Mapa Invertido da América do Sul no Palacio de Bellas Artes, Cidade
do México, 2011..................................................................................... 121
Figura 7 - Camisa com o mapa artístico.................................................................. 126
Figura 8 - Cartão postal e souvernir com o mapa artístico ..................................... 127
Figura 9 - Logo para blog........................................................................................ 128
Figura 10 - Material De divulgação do CD Singular................................................. 129
Figura 11 - Capa do livro “Conocer desde El Sur”................................................... 131
Figura 12 - Cartaz de evento acadêmico com mapa artístico 1................................. 131
Figura 13 - Cartaz de evento acadêmico com mapa artístico 2................................. 132
Figura 14 - Livro didático com mapa artístico ......................................................... 134
Figura 15 - Questão ENEM 2009 ............................................................................. 135
Figura 16- Tatuagem com o mapa artístico 1........................................................... 136
Figura 17- Tatuagem com o mapa artístico 2........................................................... 137
Figura 18- Tatuagem com o mapa artístico 3........................................................... 137
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Movimentos artísticos e mapas..................................................................... 58


Tabela 2 – Impulsos dos mapas artísticos ..................................................................... 59
Tabela 3 – Três caminhos teóricos das relações de poder dos mapas............................ 74
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................... 11

1 PARA QUE SERVEM OS MAPAS ARTÍSTICOS?............................ 32


1.1 Relações entre cartografia e arte............................................................ 43
1.2 A elaboração do Mapa Invertido da América do Sul........................... 62
1.3 Relações entre cartografia e geopolítica................................................ 71

2 QUAL A POSIÇÃO DO SUL GLOBAL?............................................. 86


2.1 O sistema-mundo moderno e a crítica póscolonial................................ 98
2.2 A era do desenvolvido e a crítica pósdesenvolvimentista...................... 109

3 PORQUE O MAPA INVERTIDO DA AMÉRICA DO SUL


CONTINUA TÃO FAMOSO? ............................................................. 120
3.1 13 exemplos de reprodução do Mapa Invertido da América do Sul..... 125
3.2 O Mapa Invertido da América do Sul enquanto alternativa................ 139

CONCLUSÃO......................................................................................... 151

REFERÊNCIAS...................................................................................... 160
11

INTRODUÇÃO

Este não é, ou nunca pretendeu ser, um projeto de pesquisa convencional. As


leituras aqui empregadas não provêm de fontes unicamente bibliográficas e de textos
acadêmicos, mas reconhecemos igual importância das leituras provenientes de fontes
habituais e casuais, como: ilustrações, romances, filmes, peças, fotografias, músicas,
quadros, dentre tantas outras possibilidades. Desde os primeiros anos de formação em
geografia, nos pareceu difícil a tarefa de desassociar os conhecimentos academicamente
apreendidos, dos conhecimentos eventuais e usuais presentes em diferentes práticas
cotidianas.
Uma ida ao teatro, uma exposição fotográfica, um filme na tela, uma visita ao
museu, todas essas formas (e tantas outras) pareciam também ter tanto a dizer, pensar e
ensinar. Quantas boas ideias, ou mesmo oposições a elas, poderiam migrar dessas
atividades para o pensamento sobre as ciências, ou mais especificamente, sobre a
geografia. É claro que, por conta dessa propensão, também não menosprezamos ou
reduzimos a importância das formas convencionais do conhecimento acadêmico, apenas
nos parecia complementar e enriquecedor considerar leituras habituais e artísticas no
entendimento sobre a sociedade e suas relações no espaço.
Assim, cada vez mais nos despertava o interesse e o prazer naqueles textos que
traziam para a discussão referências a essas diferentes e ecléticas fontes de análise. Nas
mais variadas formas, esses textos acadêmicos apareciam para o enriquecimento de
nossa inquietude, desde aqueles que usavam tais formas cotidianas como uma
exemplificação, como também aqueles que se propunham a discutir a importância
dessas formas e compor metodologias de análise que as englobassem ao estudo
acadêmico da sociedade.
Dois desses textos tiveram excepcional destaque devido a excelência de suas
explicações que fomentaram um grande impulso para que também optássemos pelo
emprego dessas formas cotidianas e artísticas em nossa pesquisa acadêmica, tentado
contribuir na afirmação de sua importância na construção do conhecimento. O primeiro
foi um texto de Cosgrove (2004), em que o autor debate o conceito geográfico de
paisagem através de narrativas das mais diversas percepções cotidianas propondo uma
leitura simbólica para cada uma delas que o faz afirmar:
12

(...) perdida na maré de intensa praticabilidade e entre os seixos de fatos


demonstráveis está a mágica real da geografia- o sentido de maravilhar-se
com o mundo humano, a alegria de ver e refletir sobre o mosaico ricamente
variado da vida humana e de compreender a elegância de suas expressões na
paisagem humana. Esta é a experiência que ainda faz o National Geographic
uma das mais populares revistas do mundo. A geografia, afinal de contas,
está em toda parte (COSGROVE, 2004, p. 96. Grifo no original).

As relações de poder no espaço, os mecanismos de dominação e hegemonia, as


diferenças sociais tão importantes e recorrentes nos estudos de Geografia aparecem, no
texto de Cosgrove, através das formas mais habituais e cotidianas da paisagem.
Complementarmente, o autor reforça sua análise pelas paisagens criadas pelas
construções artísticas, quando cita romances, filmes e quadros pictóricos. O segundo
texto é formado pelas primeiras partes da obra acadêmica “Condição Pós-moderna” de
David Harvey (2012), onde o argumento sobre as principais mudanças e características
desse período histórico apontado pelo autor é desprendido por meio de análise de
filmes, fotografias, romances e quadros. Um dos mais valiosos exemplos da intrínseca
relação entre construções artísticas e teorias acadêmicas.
Através dessas leituras, grande parte das pesquisas e trabalhos que tivemos de
realizar durante a graduação e o mestrado buscavam uma análise, ou ao menos uma
correlação, com ideias e debates instigados por meio das formas artísticas ou de
visualidades. E não poderia ser diferente na presente dissertação de mestrado. Na
verdade, retomamos aqui alguns interesses presentes desde a graduação em Geografia,
onde o papel e a força das imagens mentais sobre os lugares já aguçavam nossa atenção
e curiosidade. Naquela oportunidade, concluímos o curso com uma pesquisa sobre o
imaginário geográfico sobre o sertão nordestino, alicerçado pelas metodologias e
proposições da Geografia Cultural, para a análise da paisagem cinematográfica, com
grandes contribuições do referido texto de Cosgrove (2004).
Existe, assim, uma continuidade do nosso interesse, porém uma mudança no
objeto de pesquisa. A presente investigação foi estruturada por nosso recente contato
com um modo diferente de mapa, que não se preocupa, necessariamente, com escalas,
legendas, título, orientação, localização ou mesmo com a precisão dos dados
geolocalizados. Pelo contrário, esse tipo de mapa tem como um de seus princípios
colocar em debate as formas de imagem científicas, mais especificamente as
representações cartográficas e suas convenções. Para tanto, esses mapas não são feitos
por cartógrafos, nem mesmo por base de dados, mas são apropriações de elementos
13

cartográficos feitos por artistas em suas variadas formas de expressão, que passamos a
chamar de mapas artísticos.
Ao aproximar a cartografia da arte, os mapas artísticos levantam uma série de
questões sobre as relações histórias e intercâmbios representativos que esses dois
campos apresentam. Ao apropriar elementos da cartografia, mapas artísticos colocam
em questão a autoridade e o poder dos mapas em afirmar eventos e características
espaciais, e assim, influenciar comportamentos sociais no espaço. São tão amplos e
intrigantes as críticas e discussões que essas imagens podem fomentar que nos motivou
a tentar entendê-los mais a fundo e verificar como podem, ou se podem contribuir para
os estudos da geografia.
Essas são formas imagéticas relativamente novas. Muitos autores são
concordantes em dizer que, enquanto um movimento, os mapas artísticos adquirem
notoriedade nos últimos trinta anos (COSGOVE, 2005; WOOD, 2006; D’IGNAZIO,
2009). Entretanto também reconhecem a existência de exemplos de mapas mais velhos
também feitos por artistas, dentre os quais podemos citar o recorrente Mapa invertido
da América do Sul, feito em 1943, pelo artista uruguaio Joaquín Torres-García (figura
1).
A primeira coisa que salta aos olhos ao ver esse mapa é que a América do Sul
aparece com seu contorno e sua forma habitual, porém sua orientação está diferente,
está ao contrário! Só não acusamos o erro ou “concertamos” o sentido da imagem
quando percebemos no título, que diz “invertido”, que se trata de uma mudança
proposital. Mas então, qual o propósito dessa inversão? Que discursos motivaram essa
ideia? E que discursos foram propagados através dessa imagem invertida? O que
expressam os elementos cartográficos nela contidos, como a Linha do Equador, o Polo
Sul e o valor da latitude e longitude? E o que expressam as demais formas desenhadas
tão simplesmente, como a lua, o peixe e o barco?
14

Figura 1 - Mapa invertido da América do Sul.

Fonte: INTENDENCIA DE MONTEVIDEO, 2015. Disponível em:


<http://www.montevideo.gub.uy/jtg/por_escuela.html>. Acesso em: 20 jan. 2015.

Essas são questões bastante interessantes, cuja resposta não pode ser dada sem
um debate sobre os assuntos envolvidos na temática dos mapas artísticos e, portanto, só
poderão ser respondidas no decorrer dos capítulos. De fato, estas questões nos
instigaram a compor a presente pesquisa, visto que se repetiam ou se somam ao
encontrarmos com esse mapa artístico sendo reproduzido em diferentes situações
cotidianas e habituais. Aquelas mesmas que dissemos, no início dessa introdução, serem
indissociáveis dos conhecimentos que formulávamos nas aulas e através dos textos
acadêmicos.
Assim sendo, era quase inevitável olhar para essa imagem invertida da América
do Sul e não relacionar com os debates sobre os conflitos e desigualdades existentes
entre as regiões Norte e Sul do globo, ou não questionar aquele mapa ensinado ainda na
escola, com uma linha de separação entre países do Norte e países do Sul que faz grande
curva na Austrália. Esse mapa artístico passava, então, a dizer muito sobre as relações
geopolíticas entre os países, sobre a síntese mundo em uma só imagem normatizada de
mapa-múndi, sobre a influência ideológica na escolha de uma orientação padronizada,
sobre a relação de dependência estabelecida entre países submetidos ao regime colonial.
15

Enfim, uma série de discussões que nos chamava a tomar esse mapa como objeto de
estudo.
Ao traçarmos como objeto de estudo um mapa artístico, a presente pesquisa
mostrou-se um desafio, visto que tais formas imagéticas ainda foram pouco exploradas
e debatidas na ciência geográfica, principalmente em se tratando do cenário brasileiro.
As contribuições e investigações sobre os mapas artísticos são somadas e difundidas
gradativamente, conquistando um espaço que pode transitar entre história da arte,
perspectivas da cartografia e até mesmo geopolítica. Nenhum desses é mais importante
ou isolado do outro, mas temos claro que, devido ao tema proposto, nossa abordagem
concentrou um maior número de bibliografias na articulação desses dois últimos
campos supracitados.
Tendo em vista a recenticidade desse tema, muitas das bibliografias concentram-
se em uma exploração inicial, preocupados em fazer um levantamento vasto de
exemplos de mapas artísticos e em propor demandas que podem ser criadas por eles. Há
também, mas em menor número, alguns trabalhos já mais específicos, que usam de
mapas artísticos para investigar e debater as visões de mundo, as intervenções no espaço
e contestações políticas que tais mapeamentos podem expressar. Muito inspirados por
esses textos, também pretendemos, aqui, contribuir no avanço e na expansão da
discussão sobre os mapas artísticos, principalmente para o olhar geográfico.
Nesse sentido, os entendimentos sobre a cartografia mostraram-se primordiais
para compreender como se dá sua relação com a arte. Mais surpreendente do que
encontrar diversas referências sobre as antigas relações entre mapa e arte, foi reconhecer
que elas não se esgotaram como se costuma pensar na cartografia científica. É preciso
narrar um pouco da história da cartografia para esclarecer essa comum confusão. O fato
é que, durante muito tempo, essa história da cartografia foi contada a partir de uma
perspectiva evolutiva, onde os mapas teriam sido gradativamente aprimorados por meio
de novas técnicas científicas e de precisão.
Nessa perspectiva, é reconhecível a relação entre arte e mapa em seus
primórdios, no chamado período pré-científico da cartografia. Durante muito tempo,
aqueles que se empenhavam em pintar paisagens também desempenhavam a função de
confeccionar os mapas. Não obstante, os mapas antigos exaltam características
pictóricas e propriedades estéticas, sendo até hoje objetos de decoração, sobre os quais
discorreremos melhor no capítulo pertinente. Porém, com a composição do período
científico da cartografia, as imagens pictóricas foram migrando cada vez mais para as
16

bordas dos mapas, até desaparecerem. Desapareceu também essa simultaneidade do


fazer artístico e do mapeamento, visto que esse último passou a ser requerido pela
instituição da ciência cartográfica, passando a ser objeto dos cartógrafos e geógrafos.
Essa história da cartografia tem como resultado uma oposição entre mapas pré-
modernos e modernos: os primeiros seriam carregados de subjetividade e imprecisão; já
os segundos seriam acurados e objetivos em suas representações. Em outras palavras, os
mapas teriam “evoluído” da arte para a ciência, destacamos evoluir, pois é a partir dessa
noção que o fazer artístico anterior passa a ser subjulgado e desvalorizado. Assim, a
cartografia prezou por se tornar uma ciência, com o estabelecimento de normas,
cálculos, padrões e classificações que cumprissem cada vez mais com a ideia de
cientificidade e objetividade.
Esse almejo da cartografia definiu, gradativamente, uma estética particular aos
mapas, e adquiriu respaldo com o término da Segunda Guerra Mundial, quando a
cartografia foi finalmente estabelecida como ciência. Para isso desprendeu-se dois
principais esforços:
Em primeiro lugar, ela finalmente se livrou da arte e subjetividade. Assim, a
ciência foi colocada em oposição à arte. Em segundo lugar, tornou-se como
que "pós-política", jogando fora a atração fatal para propaganda e
mapeamento ideológico evidenciado antes e durante a guerra, e promovendo
uma espécie de neutralidade estilo-suíça sobre política (CRAMPTON, 2010,
p. 3, tradução nossa)1.

Essa história começa a adquirir novas versões através de uma corrente de


pensamento que ficou conhecida como cartografia crítica, que se desenvolve no início
da década de 1980 e propõe que os mapas não apenas representam, mas também fazem a
realidade (CRAMPTON E KRYNGIER, 2006). Nesse sentido, os mapas são visto como
ativos, com capacidade de construir ativamente o conhecimento espacial, de exercer
poder e de promover mudanças sociais. O mapeamento seria parte integrante da
produção do espaço, da geografia e das identidades políticas das pessoas que habitam e
consomem um lugar.
Sobre essa perspectiva crítica, historiadores da cartografia da década de 1980
“(...) procuraram trazer um novo pensamento crítico sobre a interpretação de mapas e
tentaram ampliar nossa compreensão das práticas de mapeamento, não obstante a

1
First, it finally threw off art and subjectivity. Thus science was posed in opposition to art. Second, it
became as it were 'post-political' by throwing off the fatal attraction to propaganda and ideological
mapping evidenced prior to and during the war, and promoting a kind of swiss-like neutrality about
politics.
17

historiografia convencional de evolução cartográfica da arte à ciência” (COSGROVE,


2005, p. 35, tradução nossa)2. No lugar dessa visão evolutiva e binária, a proposta é
compreender as interseções entre essas duas práticas artística e cartográfica, bem como
perceber o mapa como um produto cultural e social que precisa ser entendido em seu
contexto histórico.
Nesse sentido, a cartografia crítica abre caminho para formas de mapear ditas
“desautorizadas”, ou seja, que não fazem parte da cartografia institucional e científica.
São chamadas de mapeamentos alternativos, que englobam, dentre outros, os mapas
participativos e os mapas artísticos. Ambos ganham impulso na relativização da
cartografia científica, pois se apropriam desses elementos cartográficos em novos
contextos, compondo um questionamento da autoridade do mapa.
Apesar de ser correto conceituar ou referir aos mapas artísticos como
apropriações de elementos cartográficos por artistas para compor suas obras, é válido
ressaltar que a importância desse tipo de imagem vai além dessa definição. Ao fazer
essa apropriação, os elementos que antes eram usados como forma de obter
normatizações e credibilidade, passam a ser questionados ao figurarem em contextos
artísticos. O mapeamento dos artistas tende a expor a seletividade da linguagem
cartográfica e seus estilos estéticos de representação, que apesar de serem características
comuns a ambas as práticas (cartografia e arte), são omitidas pelos status científico e
acadêmico do mapa.
Ainda assim, mais interessante para a geografia seria a segunda contribuição que
os mapas artísticos abarcam. Por serem construções mais livres e expressivas, esses
mapas passam a multiplicar as formas de enxergar e representar o mundo, legitimando-
as através do uso de elementos consagrados da cartografia, mas adaptados a figuras que
sejam assumidamente emotivas e subjetivas. Assim, eles nivelam os mapas científicos
como uma forma de visualidade do mundo e, por conseguinte, ampliam as visões sobre
ele. Os mapas artísticos não aceitam uma visão de mundo que seja única ou mais
correta.
Tendo isso em vista, um de nossos intuitos na presente investigação é justamente
compreender as visões de mundo que são expressas através da modificação de
orientação no Mapa invertido da América do Sul (1943). Somado a isso, não

2
(...) sought to bring new critical thinking to bear on the interpretation of maps and tried to broaden our
understanding of mapping practices, not least the conventional historiography of cartography´s evolution
from art to science.
18

poderíamos deixar de considerar uma característica particular dessa obra que mais nos
instigou a querer estudá-la. Em nossa atenção às leituras dos elementos habituais e
cotidianos, associados aos ensinamentos da formação acadêmica, esse mapa artístico
nos apareceu mais de uma vez, em circunstâncias e formatos diferentes, nos fazendo
atentar para a fama e notoriedade dessa obra em tempos distantes de sua elaboração.
Em concordância com nossa inicial inquietação, procuramos levar em
consideração as circunstâncias da criação da obra, mas somamos as situações em que
ela é reproduzida e os ideais de pensamento que influenciam tal reprodução. Isso
porque, tal obra não ficou restrita ao seu artista, país ou ano de criação. Ela caiu no
gosto popular, ganhou fama e passou a emprestar seu ideário a diferentes tipos de
conjunturas. Não é difícil encontrarmos pessoas familiarizadas com tal imagem, o que é,
provavelmente, explicado pela sua ampla circulação. Em qual dessas situações
possivelmente tivemos contato com esse mapa? Em camisas, cartazes de evento, capas
de livro, revistas, galerias de arte, souvenires, materiais didáticos ou mesmo em
tatuagens? Numa tentativa de ajudar a memória, reunimos tais situações na Figura 2.
É por essa percepção de notoriedade que o Mapa invertido da América do Sul
(1943) atrai nossa curiosidade científica. Queremos saber mais sobre esse mapa tão
familiar, entender como e porque foi feito desse modo e, principalmente, compreender
os motivos de sua reprodução até os dias atuais. Por exemplo, é possível termos novos
olhares do público ao tomarem conhecimento que tal mapa artístico foi feito para a capa
de manifesto escrito por Torres-García, com o objetivo de exaltar a cultura do Uruguai e
reduzir a importação das tendências artísticas da Europa (JOLLY, 2011), do qual
destacamos o seguinte trecho:
É por isso que nós agora viramos o mapa de cabeça para baixo, e agora nós
sabemos qual é nossa real posição, e não é como o resto do mundo gostaria
que estivéssemos. De agora em diante, o alongamento da ponta da América
do Sul irá apontar insistentemente para o Sul, nosso Norte. Nossa bússola
também, ela vai inclinar irremediavelmente e para sempre na direção do Sul,
da direção do nosso polo (TORRES-GARCÍA, 1992, p.53, tradução nossa) 3.

3
That is why we now turn the map uspside down, and now we know what our true position is, and it is
not the way the resto f the world would like to have it. From now on, the elongated tip of South America
will point insistently at the South, our North. Our compass as well; it will incline irremediadiably and
forever toward the South, toward our pole.
19

Figura 2 – Reproduções da obra Mapa invertido da América do Sul em diferentes situações.

Fonte: O autor, 2015.


20

Ou ainda, o espectador da obra pode ter percepções mais amplas caso consiga
localizá-la no movimento modernista da América Latina, conhecido por sua rejeição ao
projeto de modernidade burguesa e valorização do nacionalismo e regionalismo em
resposta a tudo que fosse central e cosmopolita (ADES, 1997). Por fim, também pode
ser surpreendente apreciar a ideologia construtivista de Torres-García, que sintetiza e
esboça um elemento através do que seria sua essência. Todas essas características serão
mais bem descritas em momento oportuno ao longo dos capítulos.
No presente momento, torna-se mais interessante continuar a fomentar o debate:
quais discursos são expressos na reprodução dessa obra? Será que seu formato invertido
traz novas identificações ideológicas? Se retomarmos a definição de mapas artísticos
como construções que visam contrapor, questionar ou contrariar formas hegemônicas e
padronizadas de mapa, então a contínua reprodução do Mapa invertido da América do
Sul (1943) deve relacionar-se a outra continuidade: a das visões de mundo que fornecem
uma manutenção da diferenciação do mundo entre Norte e Sul.
Novamente, recorremos às imagens que nos chegam de modo habitual e usual,
sendo diretamente relacionado com os conhecimentos acadêmicos, e uma dessas
imagens nos pareceu ter especial contribuição na visualidade da diferenciação entre
Norte e Sul. Em 2 de outubro de 2009, a cidade do Rio de Janeiro era anunciada como
sede dos jogos olímpicos e paraolímpicos de 2016, durante a 121° sessão do Comitê
Olímpico Internacional, em Copenhague, na Dinamarca. Na ocasião, a disputa estava
entre Madrid (Espanha) e Rio de Janeiro (Brasil), cada um havia vencido uma das
etapas anteriores e por isso, ainda restavam muitas dúvidas sobre a cidade a ser eleita.
Eis que a apresentação da delegação brasileira expõe seu item determinante, o que foi
considerado seu trunfo: um mapa da distribuição das cidades sedes dos jogos olímpicos
(Figura 3).
O mapa apresentado destaca o número total de jogos já sediados em cidades de
cada continente. A grande concentração de jogos olímpicos está nas cidades da Europa
(30), seguido de cidades da América do Norte (12), enquanto nenhuma cidade da África
foi sede de olimpíadas. Esse mesmo vazio seria afastado da América do Sul pelos jogos
olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. Em 2009, tal mapa foi comentado durante as
notícias da escolha da cidade brasileira, pois ele destacava o principal argumento para a
vitória: esta viria a ser a primeira olimpíada realizada na América do Sul.
21

Figura 3 – Cidades-sede dos Jogos Olímpicos.

Fonte: WIKIPEDIA, 2015. Disponível em:


<http://en.wikipedia.org/wiki/Rio_de_Janeiro_bid_for_the_2016_Summer_Olympics>. Acesso em: 17
jan. 2015.

Esse recente exemplo do mapa das cidades sedes dos jogos olímpicos nos
mostra, de forma perceptível, como a divisão global entre Norte e Sul está relacionada
com as construções cartográficas. Portanto, existe um imaginário geográfico que propõe
um entendimento de mundo divido entre Norte e Sul que conta com importante
participação da cartografia em sua fixação, notavelmente pela orientação que foi
gradativamente padronizada em uma visão de mundo que fosse única e normatizada.
De forma bastante resumida e amplamente aceita, concordamos que:
Juntamente com a dissolução pós-1989 do segundo mundo, as tendências de
aceleração da globalização e da superfície explosiva de uma variedade de
tensões e conflitos sociais, também tem ocorrido um ressurgimento do
interesse no estado das relações Norte-Sul. Já no início de 1990, foi sugerido
que o fosso crescente entre Primeiro e Terceiro mundos estava levantando
algumas das questões morais mais agudas do mundo moderno e tornando-se
uma questão central dos nossos tempos. (SLATER, 2004, p. 3, tradução
nossa)4.

Nesse sentido, a ideia de dividir as disparidades mundiais entre Norte e Sul foi
potencialmente difundida durante o período citado, o que não significa que era
inexistente em períodos anteriores. Pelo contrário, não se pode negar o processo
histórico de construção dessa diferenciação entre países do Norte e países do Sul, que
apenas passa a ficar mais evidente pós-1989 (SLATER, 2004; VESENTINI, 2013). Até
4
Together with the post-1989 dissolution of the second world, the accelerating tendencies of
globalization and the explosive surfacing of a variety of acute social tensions and conflicts, there has also
been a resurgence of interest in the state of North-South relations. Already in the early 1990s, it was
suggested that the growing gap between First and Third Worlds was raising some of the most acute moral
questions of the modern world and becoming a central issue of our times.
22

porque, tal processo histórico é imprescindível para fundamentar um imaginário


geográfico de dicotomia entre duas regiões globais.
Dizemos “imprescindível” porque a formulação de um imaginário geográfico
não está reduzida a uma interpretação subjetiva de cada indivíduo, nem mesmo a
acepção comum de uma simples imagem mental. Trata-se, segundo Driver (2005), de
um sistema compartilhado de signos comunicativos e interpretativos onde essas
imagens tornam-se inerentemente sociais; trata-se, segundo Mignolo (2005), de uma
construção simbólica mediante a qual uma comunidade passa a se identificar. Ou seja, o
que apreendemos desses dois autores é que o imaginário geográfico está atrelado ao seu
compartilhamento, sua construção conjunta ou seu alcance público.
Estas geografias imaginadas descreveram o mundo para as pessoas, e
explicaram o seu lugar dentro dele, e foram, portanto, muito importante na
formação do como as pessoas responderam ao mundo. Embora imaginada,
estas geografias têm consequências reais para as ações das pessoas: eles eram
muito importantes para a compreensão do que eles viram e experimentaram
em suas viagens (SHARP, 2009, p.12, tradução nossa)5.

Assim, se o imaginário geográfico é entendido em sua formulação social, é


possível identificá-lo em nosso próprio cotidiano. No caso da divisão Norte e Sul,
podemos nos questionar: O que diferencia os países do Norte dos países do Sul? Quais
valores e adjetivos associamos a cada um deles? Com qual imagem poderíamos retratar
um país do Sul? Com isso, notamos que as respostas podem não ser precisas, mas o fato
de existirem respostas, sem necessariamente existir uma vivência ou conhecimento
aprofundado, indica a influência do imaginário socialmente construído. Cabe ressaltar
que não acreditamos existir uma separação entre imaginário e vivência, ao contrário,
acreditamos que são vias de mão dupla, onde um influencia o outro.
Portanto, a fim de compreender os sentidos e motivações da inversão presente no
Mapa invertido da América do Sul (1943), tornou-se mister fomentar o entendimento da
relação entre Norte e Sul global. Para isso, recorremos aos estudos da geopolítica que
tem essa relação como objeto usual de suas pesquisas e esforços. Entretanto, as análises
sobre os planos econômicos, as trocas de mercadoria, os acordos comerciais e os
quantitativos de empréstimos internacionais que diferenciam essas duas regiões na
geopolítica nos pareceram muito densas e pouco conexas com nossa proposta de análise
de uma visão artística de mundo.

5
These imagined geographies described the world to people, and explained their place within it, and were
thus very significant in shaping how people responded to the world. Although imagined, these
geographies have real consequences for people´s actions: they were very important to people´s
understanding of what they saw and experienced in their travels.
23

Não que fossem elementos totalmente distantes, mas trariam o risco de fugir ao
foco da pesquisa. Nesse sentido, encontramos uma maior correlação e pertinência nas
proposições da geopolítica critica por já considerarem, recorrentemente, o papel das
imagens de mundo. Trata-se de um braço do pensamento geopolítico que ganhou
notoriedade no início da década de 1980 (TUATHAIL, 2006), onde o contexto da
Guerra Fria expôs a importância dos discursos e imagens para apoiar certas estratégias
geopolíticas. Nesse sentido, segundo Dodds (2001), escritores europeus sentiram a
obrigação de abordar a suposta conexão entre ideias e práticas políticas associadas ao
expansionismo territorial e a dominação do lugar. Portanto, se a geopolítica adquiriu o
significado de estudo sobre política mundial, com ênfase na dimensão geográfica do
poder, então: “nós devemos estar atentos às formas pelas quais o espaço global é
rotulado, metáforas são empregadas, e imagens visuais são usadas nesse processo de
fazer histórias e construir imagens sobre a política mundial” (TUATHAIL, 2006, p. 1,
tradução nossa)6.
Assim, representações passam a ser vistas como influentes nas formas de ver o
mundo; que por sua vez, passam a ser vistas como influentes nas ações e práticas
políticas.
Quando nós estamos pensando sobre como o mundo é representado, quando
nós pensamos sobre as fontes pelas quais cada um de nós busca nossos
entendimentos sobre o mundo ao nosso redor, nós não podemos olhar apenas
para fontes escritas mas devemos também examinar de perto as imagens –
sejam elas pinturas orientalistas do século dezenove, fotos de filmes,
ilustrações da National Geographic, ou imagens de propagandas. (SHARP,
2009, p. 7, tradução nossa)7.

Com essa breve descrição, é possível pensar na intertextualidade necessária para


geopolítica crítica, que inaugura uma agenda de pesquisa muito mais diversa do que a
geopolítica clássica seria capaz de aceitar, tais como: avaliar o papel dos imaginários
geográficos para as políticas mundiais; considerar as representações populares de
mundo; analisar as relações de poder dos campos do conhecimento; entre outros. Por
conseguinte, a geopolítica crítica também abre portas para outras correntes de

6
(...) we must be attentive to the ways in which global space is labeled, metaphors are deployed, and
visual images are used in this process of making stories and constructing images of the world politics.
7
When we are thinking about how the world is represented, when we think about the sources from which
we each get our understanding of the world around us, we cannot only look to written sources but must
also closely examine images – whether these are the paintings of nineteenth century Orientalists, film
stills, illustrations from the National Geographic, or advertising images.
24

pensamento como, por exemplo, o póscolonialismo, citado inclusive na pioneira


explicação de Dodds (2001):
Fazendo isso, a geografia política está se movendo a uma distância
considerável da agenda de pesquisa tradicional baseada em fronteiras, poder
estatal e condições ambientais. Muitos desses retrabalhos geopolíticos,
entretanto, apesar de seu interesse e preocupação com diversidade, são
predominantemente compostos e circulados em poucos centros pós-imperiais.
É altamente provável que as pesquisas póscoloniais vão se fortalecer muito
mais nas pesquisas futuras. Em suma, geopolítica crítica tem ajudado a abrir
uma nova agenda de pesquisa e contribuído com debates por toda ciência
social e humanas sobre a globalização, política de identidade e soberania
(Op. Cit., p. 471)8.

Apesar do essencial suporte que a geopolítica crítica nos proporciona para


compreender a relação entre Norte e Sul através de sua formulação discursiva, nos
pareceu que suas propostas ajudavam mais a pensar as visões de mundo presente no
Mapa invertido da América do Sul (1943) do que a permanência de sua reprodução e
circulação até a atualidade. Como já mencionamos, a continuidade do aparecimento
dessa obra vincula-se a manutenção das formas hegemônicas de compreensão e
entendimento de mundo. Ao buscarmos apreender tal manutenção, a geopolítica crítica
nos apresentou as ditas teorias póscoloniais e pósdesenvolvimentistas, que por sua vez,
mostram-se bastante relevantes para traçar uma análise dos discursos que, ainda hoje,
utilizam o mapa invertido de Torres-García.
Existe, no póscolonialismo, uma ampla preocupação com a importância das
produções discursivas e imagéticas nas formas de apresentar e moldar o mundo.
Ampliando-se, assim, as análises unicamente políticas e econômicas. A perspectiva
póscolonial aponta para a continuidade e manutenção das relações de poder e
dominação entre regiões do globo, através de novos ou reinventados mecanismos.
Assim, atrai o interesse de diferentes ciências sociais em investigar esses mecanismos
nas mais diversas formas: nos discursos políticos, na apropriação da história, nas
produções culturais, nas configurações de mercado, entre tantas outras. Trata-se de
questionar certos discursos hegemônicos e visões naturalizadas, buscando elucidar as
construções e formas de continuidade da diferença colonial que “redefine-se nas formas
globais de colonialismo movidas pelas finanças e pelos mercados, mais que pela

8
In doing so, political geography is moving a considerable distance from traditional research agendas
based on boundaries, state power and evironmental conditions. Many of these geopolitical reworkings,
however, despite their interest and concern for diversisty, are predominatly composed and circulated in
particular post-imperial centers. It is highly likely that poscolonial research will feature more strongly in
future research. Overall, critical geopolitics has helped to open up new research agendas and contribued
to debates across the social sciences and the humanities on globalization, identity politics and sovereinty.
25

cristianização, pela missão civilizadora, pelo destino manifesto ou pelo progresso e


desenvolvimento” (MIGNOLO, 2005, p. 98).
Para a geografia, podemos destacar a contribuição do póscolonialismo em
questionar a alteridade disposta entre as regiões do globo, acompanhada de supressões e
preconceitos sobre a parte mais frágil. Para Said (2009) essas diferenciações provêm da
composição de uma geografia imaginativa, através de uma íntima associação entre
produções culturais e discursos sociais com dispositivos políticos e ações de poder que
se manifestam na materialidade espacial e configuram uma “distribuição de consciência
geopolítica”, feita por meio de textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos,
históricos e filológicos. Desse modo, Said defende que as imagens do mundo, moldadas
pelas produções culturais, são parte constitutivas da realidade justamente pelo modo
como são associadas ao conhecimento e ao poder (SHARP, 2009), em alusão às ideias
foucaultianas, expressa na seguinte fala do autor:
Minha argumentação é que, sem examinar o Orientalismo como um discurso,
não se pode compreender a disciplina extremamente sistemática por meio da
qual a cultura europeia foi capaz de manejar – e até produzir – o Oriente
política, sociológica, militar, ideológica, científica e imaginativamente
durante o período do pós-Iluminismo (SAID, 2007, p. 29).

Desse modo, uma das principais contribuições do póscolonialismo na análise do


Mapa invertido da América do Sul (1943) é o reconhecimento dos aparatos discursos e
imagéticos como constitutivos das formas de poder e da materialidade espacial. Ao
longo do texto faremos algumas alusões a tais aparatos pelo qual a diferenciação entre
Norte e Sul é estruturada e fixada em nosso imaginário geográfico, porém nosso foco de
análise se concentra naquele modo de visualidade que é mais recorrente da ciência
geográfica: o mapa.
De tão intrinsecamente relacionado à geografia o mapa passa, inclusive, a
representar essa ciência. Não é à toa que muitas vezes o mapa é confundido como
símbolo da ciência geográfica, ou como principal objeto de estudo dos geógrafos, quiçá
como produto do fazer geográfico. Em certos pensadores clássicos da geografia é
possível perceber seu apreso pelo mapa. Hartshorne chegou a escrever que se o
problema não pode ser estudado pelo mapa ou pela comparação entre mapas, então é
questionável se este problema é mesmo pertinente à geografia (CRAMPTON;
KRYGIER, 2006).
Com isso, não queremos extinguir ou menosprezar a utilização do mapa pelos
geógrafos. Pelo contrário, o problema encontra-se no uso superficial e acrítico dessa
26

ferramenta. A facilidade de visualização espacial dos fenômenos através dos mapas


seduz o olhar geográfico a usá-lo simplesmente como síntese ou como corroboração de
tudo que foi estudado. Por diversas vezes a pesquisa geográfica foi validada pelo uso do
mapa, tornando célebre a frase: “Então, segundo o mapa observado temos que...”.
Destarte, torna-se majoritária a utilização do mapa como ferramenta descritiva
de algum elemento, como forma de ligar algo estudado a um lugar no mundo, como
uma transposição da realidade geográfica local para a sua representação cartográfica
(WOOD, 2010). Nessa confusão com a realidade é que o mapa passa a impressionar e
induzir a sua rasa utilização como ilustração (SEEMANN, 2013). O que se perde, nesse
processo, é a capacidade de analisar e ler criticamente essa representação. Ou seja, a
capacidade de interpretar informações variadas de uma elaboração cartográfica.
Nesse mesmo sentido, Seemann (2013) critica essa majoritária forma de
utilização, tanto em produções acadêmicas, como em livros didáticos: “A cartografia
definha com a frase ‘veja o mapa 1’ – sem maiores explicações ou instruções de como
‘ver’ e ler entre as suas linhas” (Op. Cit, p. 19). Na verdade, essa é uma problemática
que envolve não apenas os mapas, mas o uso de qualquer representação imagética pela
geografia: esquemas, vídeos, fotografias, slides, diagramas, gráficos e assim por diante.
Todas essas formas são frequentemente apropriadas como comprovação visual
do que foi concluído na geografia e, por conseguinte, o uso de imagens se torna
naturalizado e acrítico. Assim, como a “tradição” da geografia muitas vezes requer o
uso de imagens, não é necessário justificar, contextualizar, nem mesmo analisar esse
uso.
Por isso, as imagens perderam seu lugar como elementos de análise; no
máximo, elas são tomadas como exemplos, meras ilustrações de propósito
autônomos, gerados independentemente de qualquer observação. O trabalho
de campo em geografia se transformou assim em um procedimento
metodológico secundário, momento de coleta de dados ou simples recursos
pedagógicos, demonstração de um saber que se constrói fora da observação
(GOMES, 2013, p. 9).

Com essa postura ilustrativa, as formas visuais adquirem característica de


neutralidade, omitindo seu papel social e relações de poder que são tão interessantes ao
olhar geográfico. Para reverter esse quadro, a geógrafa Gillian Rose (2003) propõe uma
interessante reflexão e problematização sobre o que é visualidade, que se refere a “como
vemos, como nós estamos aptos, permitidos, ou feitos para ver, e como nós vemos o que
enxergamos e o que, concomitantemente, não enxergamos” (ROSE, 2003, p. 213,
27

tradução nossa)9. Ao compreender a visualidade como algo circunstancial, passamos a


negar qualquer suposta neutralidade nas visualidades implantadas pela produção do
conhecimento geográfico. Para essa autora, uma representação nunca é apenas uma
ilustração, mas sim um campo para a construção e representação de diferenças sociais.
Assim:
Entender a visualidade é...indagar...o trabalho social que ela faz. É notar seus
princípios de inclusão e exclusão, é detectar os papéis que disponibiliza, é
entender o modo como são distribuídas, e decodificar as hierarquias e
diferenças que ela naturaliza (FYFE; LAW apud ROSE, 2003, p. 213,
tradução nossa)10.

Essa ideia de visualidade guia nossos entendimentos e nossas análises de todas


as imagens que aparecerem ao longo do texto, inclusive do Mapa invertido da América
do Sul (1943). Tal abordagem resulta em uma postura metodológica frente às imagens
que nos pareceu mais apropriada para suprir nossos objetivos de pesquisa. Claramente,
não se trata de uma abordagem mais precisa ou mais adequada que outras, o que nos
favoreceu nela foi sua singular associação com as estruturas sociais e as relações poder
que também se fazem presentes na concepção e na interpretação dessas imagens.
Todo o exposto até aqui buscou apresentar os entendimentos iniciais que
compõem a presente pesquisa. Para desenvolvê-la, foi necessário desprender um esforço
de discussão teórica bastante densa que oferecesse aporte para a compreensão desses
novos elementos que os mapas artísticos fornecem à relação entre arte, cartografia e
geopolítica. De fato, acreditamos que uma das principais relevâncias da presente
pesquisa está na contribuição para esse debate que ainda foi pouco desenvolvido pela
geografia no Brasil.
Por sua vez, para embasar esse esforço teórico, nos pareceu apropriado analisar
um dos mais expressivos e difundidos mapas artísticos: o Mapa invertido da América
do Sul (1943), cujo maior reconhecimento ajuda a visualizar as definições desse tipo de
representação. Ao nos debruçarmos sobre tal obra, outras necessidades foram somadas à
pesquisa para que os discursos e as significações dessa representação pudessem ser
melhor compreendidos. Na verdade, como já mencionamos, uma qualidade peculiar

9
How we see, how we are able, allowed or made to see, and how we see this seeing and the unseeing
therein.
10
To understand a visualisation is...to enquire...into the social work that it does. It is to note its principles
of inclusion and exclusion, to detect the roles that it makes available, to understand the way in which they
are distributed, and to decode the hierarchies and differences that it naturalises.
28

dessa obra de Torres-García adquiriu especial atenção: porque esse mapa artístico
pioneiro continua a ser reconhecido até os dias de hoje?
Na tentativa de solucionar tal questionamento, desenvolvemos a hipótese de que
alguns entendimentos e ideias semelhantes aos que influenciaram a construção artística
de Torres-García continuam na pauta de debates e de estudos na contemporaneidade,
principalmente através da perspectiva póscolonial e pósdesenvolvimento. Em outras
palavras, conjecturamos a existência de uma possível associação entre a reprodução
atual do Mapa invertido da América do Sul e essas teorias sociais críticas difundidas a
partir do século XX e em crescente ampliação.
Para responder tal hipótese, optamos pela metodologia de reunir um conjunto de
imagens onde pudéssemos analisar as circunstâncias que ainda utilizam ou reproduzem
esse mapa artístico nos dias atuais. A partir de então, passamos a atentar para as
situações cotidianas em que essa obra tão difundida surgisse ao nosso olhar. Tal
reprodução já nos tinha feito ter contato com essa obra anteriormente, e não seria difícil
que essa ocasionalidade acontecesse novamente. Somamos, também, algumas pesquisas
de imagem feita através da internet.
O resultado foi um conjunto de imagens que reproduzem o mapa de Torres-
García por diferentes públicos e com diferentes propósitos. Por isso, nos pareceu
metodologicamente apropriado agrupar essas imagens em universos de interesse,
selecionando os exemplos mais relevantes de cada um, para que pudéssemos entender
as utilidades e os discursos que o Mapa invertido da América do Sul (1943) continua a
expressar. Nessa seleção, encontramos cinco universos onde essa obra é bastante
utilizada: turismo no Uruguai, cultura popular, ensino superior, ensino escolar, e
tatuagens.
Esclarecidas as metodologias e as indagações que compõem a presente pesquisa,
torna-se necessário, para o momento, elencar mais esquematicamente nossos objetivos.
Assim, a presente pesquisa tem por objetivo geral: compreender a contínua utilização do
Mapa invertido da América do Sul, em seus contextos de produção e de reprodução na
atualidade. Desse, desprendem-se três outros objetivos complementares:
a) Reconhecer a importância dos mapas artísticos e suas visões de
mundo.
b) Discutir as relações entre Norte e Sul nas teorias sociais póscoloniais e
pósdesenvolvimentistas do século XX.
29

c) Associar essas teorias sociais do século XX aos discursos da obra


Mapa invertido da América do Sul.
Diante do exposto, a presente pesquisa tem destacável relevância em compor
uma perspectiva crítica frente a imagens tão fortemente naturalizadas. É nossa
pretensão, que ao longo da argumentação, tornem-se claros os artifícios de construção
de uma imagem norteada de mundo, com as relações de poder envolvidas e a
participação das convenções cartográficas. O que não significa que queremos apontar
falhas, ou rejeitar todo tipo de conhecimento já estabelecido, mas sim examinar
cautelosamente certas suposições conhecidas, ou seja, considerar que tipo de
suposições, de noções familiares e já estabelecidas são fundados nossos meios de pensar
(CRAMPTON, 2010).
Por sua vez, os mapas são ativos em construir conhecimento, influenciam
mudanças sociais de forma poderosa, e expressam interesses frequentemente guiados.
Por tal razão, o mapa constitui um foco de atenção do pensamento crítico, que visa
atentar para sua capacidade de sustentar uma estrutura de dominação política
(CRAMPTON; KRYGIER, 2006), conscientizando sobre seu processo de construção,
ou ainda, reconhecendo outras formas de representação. Segundo Crampton (2010), a
representação torna-se central para a perspectiva crítica, visto que a hegemonia
transforma-se em geografias imaginárias, e desnaturalizar, contestar e achar alternativas
é um trabalho crítico. No nosso caso, guiado pela análise de um mapa artístico.
Portanto, a fim de dar conta dos objetivos expostos e suas devidas discussões,
estruturamos a presente pesquisa em três capítulos. Nestes, procuraremos articular
bibliografias de diferentes áreas do conhecimento, convergindo para uma análise
geográfica que reconheça a função e relevância dos mapas artísticos. Para isso, como
sugerido nas linhas anteriores, estaremos aportados em algumas correntes de
pensamento que contribuem consideravelmente em nossa argumentação. A geopolítica
crítica nos auxilia na associação entre discurso e materialidade; já a cartografia crítica
contribui na discussão das relações de poder nas representações cartográficas; enquanto
as teorias póscoloniais e pósdesenvolvimento apontam o teor dessas relações de poder
expressas na divisão global entre Norte e Sul.
O primeiro capítulo da dissertação, intitulado “Para que servem os mapas
artísticos?” irá adotar, prioritariamente, autores da cartografia crítica, afim de traçar
uma história da cartografia que não seja evolucionista, mas que considere os mapas
dentro de seus contextos históricos. Com isso, poderemos debater a longínqua relação
30

entre mapa e arte e seus reflexos na atualidade, inclusive, destacando as apropriações de


elementos cartográficos por artistas. Daremos destaque para a análise do mapa
Mercator, por ter sido lido muitas vezes como projeção padronizada e correta de mundo.
Também se torna importante a elucidação do poder e do papel político que os mapas
possuem e potencializam ao se pretenderem uma representação exata e imparcial de
uma dada realidade. Por fim, uma terceira parte deste primeiro capítulo irá narrar a
conjuntura de criação da obra Mapa invertido da América do Sul, destacando as
ideologias e funções que a elaboração desse mapa artístico buscou expressar.
Passemos para o segundo capítulo, cujo título é “Qual a posição do Sul
global?”. Onde as ideias expostas são provenientes de autores pósdesenvolvimentistas e
póscoloniais que procuram relativizar os pensamentos coloniais e desenvolvimentistas,
apontando para as consequências materiais e imateriais para os países do sul. De forma
breve, discorreremos sobre o surgimento e fundamentos da teoria do sistema-mundo
moderno da década de 1970, e da teoria do desenvolvimento no pós-Segunda Guerra
Mundial, para em seguida, discutir as diferentes consequências que tais preceitos
tiveram para os países centrais e os países periféricos. Assim, ao notar as semelhanças
entre ambas as teorias, passaremos a discutir como elas constituem um discurso e
prática política hegemônica que legitimam a formação de um imaginário divido entre
Norte e Sul global e, por conseguinte, corroboram com a manutenção das estruturas de
poder. Por fim, iremos associar essas teorias hegemônicas ao impulso para sua reflexão
crítica e afinidade com a inversão proposta no mapa artístico de Torres-García.
Finalizando nossa pesquisa, o terceiro capítulo tem o título de “Porque o Mapa
invertido da América do Sul continua famoso?”. Nele, traremos cinco exemplos
recentes de universos em que esse mapa artístico é apropriado, com o intuito de analisar
quais são os contextos e os propósitos de apropriação dessa imagem. Procuraremos
identificar semelhanças e diferenças nesses contextos, para compreender os discursos
que esse mapa artístico representa e que o faz ser reconhecido até a atualidade. Existe
uma manutenção de um imaginário geográfico que discrimina as divisões globais,
atribuindo-lhes valores opostos. Essa desigualdade é estruturada pela convergência de
diversos atores, dentre mapas institucionais, pacotes de medidas para desenvolvimento
ou apropriação da história do sistema-mundo. Tratam-se, pois, de discursos
hegemônicos que impulsionam respostas de relativização por diversos caminhos. Como
esses caminhos se relacionam com as representações do Mapa invertido da América do
Sul é o que procuraremos descobrir nas páginas a diante.
31
32

1 PARA QUE SERVEM OS MAPAS ARTÍSTICOS?

Discutir o papel dos mapas para a geografia parece, à primeira vista, uma tarefa
redundante. Afinal, durante a formação geográfica, somos instruídos a elaborar mapas,
acostumados vê-los nas principais bibliografias e estimulados a usá-los em nossos
próprios trabalhos a fim de “validá-los”. Entretanto, esse maciço uso do mapa não deve
inibir a reflexão e problematização desse uso. De que modo os geógrafos utilizam os
mapas? A quais propósitos esse uso serve? Quais discursos são associados ao mapa?
Em uma perspectiva bastante geral e ordinária, o mapa é aceito como uma
representação, ainda que parcial, da realidade espacial. Com isso, os mapas teriam a
função de retratar, por meio de seus cálculos e técnicas, algum tema ou configuração de
uma dada realidade local. E, ao fazer sua leitura, estaríamos reconhecendo as reais
características daquela porção espacial. Tanto é que, em uma coletânea de centenas de
definições da palavra “map”, na língua inglesa, buscadas entre 1649 e 1996, e citada por
Wood (2010), traz como resultado mais constante: “uma representação de uma parte da
superfície terrestre” (p. 18) 11.
O próprio autor alerta que a unanimidade não é razão para tomar essa definição
como a imparcial descrição do papel e da natureza do mapa. Por outro lado, pode ser
percebida como uma distinção, ou seja, como o mapa em si se apresenta e gostaria de
ser entendido. O que se torna perceptível na definição que a Associação Internacional de
Cartografia (ICA – International Cartographic Association) traz sobre mapa: “uma
imagem simbolizada da realidade geográfica, representando recursos ou características
selecionadas resultantes do esforço criativo da execução de escolhas de seu autor, e é
12
destinado para uso quando as relações espaciais são de relevância primária”
(Disponível no site da ICA, Traduzido pela autora).
Apesar da reconhecida autoridade que tal instituição possui para fixar uma
definição de mapa, podemos relativizá-la através de questões que se tornam pertinentes,
como: o mapa realmente simboliza uma realidade existente? Todo mapa deve conter
símbolos padrões associados ao que representa? O mapa é uma ferramenta pertencente

11
A representation of a part os the earth´s surface.
12
A symbolized image of geographical reality, representing selected features or characteristics, resulting
from the creative effort of its author's execution of choices, and is designed for use when spatial
relationships are of primary relevance. Texto disponível em:
http://www.itc.nl/Pub/News/in2011/July/Menno-Jan-Kraak-Re-elected-Vice-President-of-ICA.html
33

prioritariamente aos ambientes acadêmicos? Caso não cumpra essa perguntas, não deve
ser considerado mapa?
De fato, todas essas definições expostas se aproximam do entendimento do mapa
como produto de uma técnica, centrada na utilização do mapa. Nenhuma delas exclui a
ilação que os mapas são culturalmente, historicamente e socialmente aceitos como
principal fonte para explorar formas e estruturas do conhecimento geográfico
(COSGROVE, 2008). As contradições aparecem em definir o que constitui o mapa,
algo que pode variar de acordo com o período, com a ideologia, ou até mesmo entre
geógrafos e cartógrafos.
No entendimento mais comum exposto acima, o mapa é relacionado diretamente
com a materialidade local, como reflexos passivos do mundo, como levantamentos
inertes da paisagem. Com isso, nos seduz a encará-los como o mundo em si: “Os mapas
nos impressionam, parecem representações perfeitas da realidade. Às vezes, confiamos
mais no mapa do que na própria realidade” (SEEMANN, 2013. Pg. 13). Segundo
Harley (2005), nessa perspectiva o papel do mapa é representar uma manifestação
concreta de uma realidade geográfica dentro dos limites das técnicas de topografia, da
habilidade do cartógrafo e do código de signos convencionais. Ainda segundo o autor:
Em nossa cultura ocidental, pelo menos desde o Iluminismo, se tem definido
a cartografia como uma ciência concreta. A premissa é que um mapa deve
oferecer uma janela transparente para o mundo. Um bom mapa deve ser
preciso. Quando um mapa não representa a realidade de uma maneira
adequada sobre uma escala concreta, passa ter uma qualificação negativa. Os
mapas se qualificam segundo uma correspondência com a verdade
topográfica. Somos informados que a imprecisão é um crime cartográfico
(HARLEY, 2005, p. 60, tradução nossa)13.

Com tal ótica, o uso do mapa fica voltado para a localização, seja de pessoas ou
de fenômenos. E seu desenvolvimento científico fica centrado em novas técnicas que
aumentem a precisão e a correspondência com a realidade material. Por outro lado,
convivem as limitações causadas por esse entendimento, cujo foco na utilização do
mapa inibe as análises sobre seus processos de construção e suas consequências de uso.
Claramente, o uso de localização requer um maior desenvolvimento técnico, e
não negamos a importância dessa função do mapa. Porém, sua definição torna-se

13
Em nuestra cultura occidental, por ló menos desde La Ilustración, se há definido a la cartografia como
uma ciência concreta. La premisa es que um mapa deve ofrecer uma ventada transparente al mundo. Um
buen mapa debe ser preciso. Cuando um mapa no representa La realidad de uma manera adecuada sobre
uma escala concreta, se hace acreedor a uma calificación negativa. Los mapas se clasifican según su
correspondencia com La verdad topográfica. Se nos há dicho que La imprecisión es um delito
cartográfico.
34

insuficiente se limitada a apenas essa função. Existem influências ideológicas em sua


construção, relações sociais em seu uso e expressões culturais em suas formas que não
são levadas em consideração quando utilizamos o mapa apenas para localizar. Eles
fornecem respostas a muito mais perguntas do que simplesmente como ir de um lugar a
outro:
Desde a primeira infância, temos consciência de nós mesmos em relação ao
resto do mundo físico a partir do processamento espacial de informações. Os
psicólogos chamam essa atividade de “mapeamento cognitivo”, o dispositivo
mental pelo qual os indivíduos adquirem, ordenam e lembram as informações
sobre seu ambiente espacial, em cujo processo eles distinguem e se definem
espacialmente em relação ao mundo vasto , aterrorizante e incognoscível que
está “lá fora” (BROTTON, 2014).

Destarte, outros profissionais interessados nos mapas, como geógrafos,


sociólogos, historiadores da arte, entre outros, não necessitam utilizar a mesma
definição dos cartógrafos, visto que outras prioridades e olhares estão em questão. Cabe
ressaltar que não estamos nos referindo a definições limitadas, cada uma guardada na
gaveta de sua área do conhecimento isolada das demais. Tais conceituações são
dialogantes e cambiáveis, onde a discussão de um pode ser aproveitada ou
complementada pelo interesse de outro. É o que acontece no caso da Geografia, as
definições que adotamos aqui não são unicamente geográficas e provém de uma
interação interdisciplinar.
Dentre as críticas que as demais ciências fazem sobre a definição cartográfica de
mapa, a mais óbvia é feita em forma de conto. Segundo Brotton (2014), no romance de
Lewis Carroll14, o personagem Mein Herr anunciava sua façanha de ter feito um efetivo
mapa do país, com escala de uma milha para uma milha. Mas admitia que tal mapa
nunca fora usado, pois os fazendeiros objetaram argumentando que cobriria todo o país
e apagaria a luz do Sol. Então, decidiram por bem, utilizar o próprio condado como seu
mapa, pois funcionaria muito melhor.
Tal situação fantasiosa ilustra a impossibilidade de transpassar a dimensão
espacial material para o mapa. Logo, impreterivelmente esse processo necessita de
reduções e seleções, assim como, definitivamente o mapa não é o território. Ao invés de
transpor fidedignamente a realidade, “os mapas desenvolvem sinais convencionais que
passamos a aceitar como substitutos daquilo que jamais podem verdadeiramente
mostrar” (BROTTON, 2014, p. 14). Trata-se de uma analogia em que, por exemplo, o

14
Sylvie and Bruno concluded (1893).
35

mapa de uma estrada é representada por um símbolo que tem pouca semelhança com a
estrada em si, mas quem o vê passa a aceitar que o símbolo é como uma estrada.
Os mapas podem ilustrar apenas uma versão da realidade que pretendem
representar, devido às limitações de escala e imprecisões produzidas pela
projeção psicológica do cartógrafo. No entanto, mapas parecem ser
definitivos porque eles não fornecem advertências ou indicam especulação
como fazem os textos escritos. A realidade da descrição pode, assim, estar
mais perto da essência da mente do cartógrafo do que com a do mundo
retratado. Mapas, até certo ponto, portanto, realocam a realidade física e
servem como substituto para ela (KLINGHOFFER, 2006, p. 9, tradução
nossa)15.

Em síntese, mapas não são a realidade, mas interpretações sobre ela. O que dito
desta maneira, parece mais do que o óbvio. Então, será que os cartógrafos realmente
creem nessa relação direta? Acreditamos que não, pois é justamente no caminho entre
fonte material e representação que está o trabalho do cartógrafo em calcular, adaptar,
interpretar, selecionar e intervir nessa forma representativa (KLINGHOFFER, 2006). É
simplista colocar os cartógrafos como “desavisados” da impossibilidade de reproduzir a
realidade em si. Na verdade, ao promover essa busca por cientificidade, induz-se a ideia
de neutralidade do mapa, omitindo as inevitáveis manipulações técnicas. Mas essa é
uma armadilha que não fica limitada à cartografia.
Segundo Gisele Girardi (2000), desde pelo menos a estruturação da cartografia
enquanto um campo do conhecimento específico em nível internacional, a Geografia,
majoritariamente, deixou de se construtora e passou à condição de usuária dos mapas.
Uma mudança que até poderia fornecer fundamentação para uma crítica das
representações cartográficas. No entanto, talvez tentada a um caminho mais fácil, a
Geografia relegou-se ao papel de consumidora dos mapas.
A distinção aqui feita entre consumo e uso pauta-se na observação de como
são tratados os mapas no trabalho geográfico. Temos como consumo o mapa-
ilustração, muitas vezes presente apenas para legitimar a natureza geográfica
da obra (situação muito comum nos livros didáticos, por exemplo); temos
também o mapa-cópia, infelizmente ainda muito comum e muito marcante no
ensino de Geografia nos níveis fundamentais e médio. O uso tem o sentido de
emprego consciente de algo, o que pressupõe conhecimento crítico do que
está utilizando e para quê (GIRARDI, 2000, p. 42).

Isto posto, o consumo de mapa favorece sua utilização como uma substituição
ou validação da realidade. Enquanto o uso de mapa tenderia a interpretar suas diversas

15
Maps can illustrate only a version of the reality they purport to represent due to the limitations of scale
and inaccuracies produced by the psychological projection of the mapmaker. Nevertheless, maps appear
to be definitive because they do not provide caveats or indicate speculation as do written texts. The reality
of the portrayal may thus be closer to the essence of the cartographer's mind than to that of the world
depicted. Maps, to a degree, therefore replace physical reality and serve as substitute for it.
36

informações e deduzir como e porque foram representadas cartograficamente.


Complementarmente, a mesma autora ainda ressalta que a Geografia coloca para si, a
mesma importância que o mapa tem para a Cartografia, centradas na elaboração técnica.
Convencionou-se chamar de mapa aquelas construções que obedecem a
padrões. No decorrer da formação em Geografia, somos treinados a
operacionalizar e a construir tais mapas; eventualmente analisá-los. Ainda
assim é comum balizar essa análise dentro de especificações técnicas da
própria Cartografia. Julgamos se o mapa é bom ou não, se é correto ou não, a
partir da existência ou não de escala, de orientação, de título, de uso de
variáveis visuais pertinentes, de coerência legenda-conteúdo, entre outros
elementos (GIRARDI, 2000, p. 43).

Nesse processo, o que se perde é uma leitura crítica dos mapas e a possibilidade
de deduzir informações que vão além da técnica. Era preciso, portanto, adotar uma
definição que fosse mais abrangente, que aplicasse aos mapas as análises sócio-
espaciais tão interessantes à Geografia. Uma das colaborações partiu dos historiadores
da cartografia, para quem o mapa passou a ser entendido como: “Uma construção social
do mundo expressa por meio da cartografia” (HARLEY, 2005).
Com tal perspectiva, retira-se a busca por padronizações e verossimilhança dos
mapas, pois esses passam a ser entendidos como manifestação de um contexto histórico,
como uma descrição de mundo moldada culturalmente e socialmente. Para Klinghoffer
(2006), os mapas não inspiram apenas as mentes, como também os corações. Por isso,
devem ser tão plurais quanto as visões de mundo podem ser. Ao invés de ser
considerado como um neutro produto de uma técnica, o mapa deve ser compreendido
como uma forma de comunicar os entendimentos de mundo de seu contexto.
A definição de mapa que preferencialmente adotamos também é apropriada por
diversos autores (CRAMPTON, 2001; SEEMAN, 2013; BROTTON, 2014), e foi
apresentada na obra de 1987, History of Cartography, de Harley & Woodward. Diziam
eles que: “Mapas são representações gráficas que facilitam a compreensão espacial de
16
coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo humano” (p.16) . Essa
exposição proporciona a amplitude requerida por diversas ciências para tomarem o
mapa como mentais, virtuais, cósmicos, artísticos e os mais arcaicos, anteriores às
regras da cartografia científica.
Para chegar a tal definição, os autores traçam uma pesquisa de reunião de
diferentes mapas. Diante da cartografia pré-histórica, clássica e medieval, ficou claro
que os mapas deveriam ser entendidos sobre diversos ângulos, e não apenas como

16
Maps are graphic representations that facilitate a spatial processes, or events in the human world.
37

imagens calculadas e objetivas. Após o lançamento de sua obra, os autores


reconheceram que tiveram que redefinir suas próprias concepções de mapa, com as
quais iniciaram a pesquisa (CRAMPTON, 2010). A ideia ocidental de mapa era
limitada, pensada como sistemática, geométrica, com escala e projeção, que pode ser
pensadas como verdadeira e imparcial. Em contraste, a ideia de mapa para os asiáticos,
por exemplo, abarcava interesses bastante diversos, incluindo capturar o espírito da
terra. Seria um erro pensá-la como inválida por ter influência da religião, visto que era
esta mesma influência que guiava suas visões de mundo.
Já sabemos ser inviável transpor a realidade material para a representação
cartográfica, ilustrada aqui pela fábula do mapa de escala 1 para 1. E já argumentamos
que os cartógrafos são cientes dessa impossibilidade, até porque mesmo que fossem
fotografias em tamanho natural, um objeto tridimensional e esférico como o globo, não
pode ser representado em duas dimensões sem que sua essência seja alterada (BLACK,
1997). Porém, quão cientes somos dessas limitações ao usar um mapa?
Os cartógrafos e os historiadores dos mapas têm consciência há bastante
tempo, que o conteúdo dos mapas tem uma tendência a criar o que eles
chamam de desvios, distorções, variações ou de abusos em relação à
realidade. Mas os escritos relativos à cartografia dedicam pouco espaço às
implicações políticas destes desvios e ao que eles representam, e menos ainda
às suas consequências sociais. Estes desvios ou distorções são geralmente
medidos em relação à uma norma de objetividade, ela mesma tirada de
procedimentos cartográficos. As consequências somente são evidenciadas
pelos mapas que apresentam distorções intencionais, por exemplo, com
finalidade de publicidade ou propaganda (HARLEY, 2009, p. 5).

A cartografia científica passou a reproduzir seus padrões não como uma


alternativa de visão de mundo, mas sim como um modelo correto de representação
espacial, difundindo a ideia de que uma informação cartograficamente representada só é
validada pelo uso desses padrões científicos. Com isso, os mapas eram colocados em
patamar distinto das demais imagens representativas, pois enquanto essas seriam
subjetivas e manipuladas por seus autores, os mapas seguiriam normas cientificamente
embasadas para representar com neutralidade.
Os mapas passam por uma série de seletividades e escolhas em seu processo de
elaboração, que por sua vez podem receber influência política, ideológica, cultural ou
mesmo individual.
Todos os mapas se esforçam para enquadrar a sua mensagem no contexto de
uma audiência. Todos os mapas sustentam um argumento sobre o mundo e
eles são proposicionais por natureza. Todos os mapas empregam dispositivos
comuns de retórica, como invocações de autoridade e recursos para um
público potencial através do uso de cores, decoração, tipografia, dedicatórias,
38

ou justificações escritas de seu método. A retórica pode ser escondida, mas


está sempre presente, pois não há descrição sem desempenho (HARLEY,
1989, p. 11, tradução nossa)17.

Toda essa retórica e seletividade são gradativamente omitidas pelo conjunto de


diretrizes científicas, com suas coordenadas, mensurações, escalas que fixavam um
padrão cada vez mais limitado de mapa (HARLEY, 1989). Através dessa padronização
os mapas disfarçam sua autoria de criação, que resulta em uma generalização e
imparcialidade (WOOD, 2006), características primordiais para gerar essa impressão de
neutralidade.
Nessa altura, torna-se pertinente ponderar que a cartografia crítica não propõe a
invalidez de todos os mapas através de sua perspectiva. O alerta é apenas para que não
sejam encarados como informações neutras e transparentes de uma realidade espacial.
Assim, sem propor jogar fora todos os mapas, nos resta encará-los como aquilo que
nunca deixaram de ser: uma forma de representação, um meio de comunicar visões de
mundo. Com diferentes argumentações, essa ideia perpassa o entendimento de mapa de
diversos autores, dentre os quais relacionamos alguns. Segundo Girardi (2000):
Sendo o mapa uma forma de representação do espaço – representação gráfica
e visual – podemos também entendê-lo como uma mediação entre a realidade
e o leitor dessa realidade espacial; como uma imagem (possível) do mundo.
Assim, o mapa reproduz um sistema de valores sociais que são culturais e
históricos (Op. Cit., p. 43).

Na mesma trilha, Seemann (2013, p.31) afirma seu poder de influência sobre
dada realidade: “O mapa é constitutivo de uma determinada forma de realidade, e não
apenas representativo dela”. Para Crampton (2001, p. 71), é necessário quebrar o escudo
de objetividade em que nossa cultura cercou o mapa, e então estudá-lo pelo o que
realmente é: “uma prática humana”. Essa prática, para Klinghoffer (2006, p.2. Tradução
nossa) se compara a mesma abordagem de apresentação da ficção: “Algumas
informações devem ser incluídas a fim de comunicar, mas muito provém da imaginação
18
de quem vê” . O que se complementa com a ponderação de Black (1997, p.11.
Tradução nossa), de que como os mapas não são tamanho-real, eles são modelos e
17
All maps strive to frame their message in the context of an audience. All maps state an argument about
the world and they are propositional in nature. all maps employ the common devices of rhetoric such as
invocations of authority and appeals to a potential readership through the use of colors, decoration,
typography, dedications, or written justifications of their method. Rhetoric may be concealed but it is
always present for there is no description without performance.
18
Some information must be included in order to communicate, but too much constricts the imagination
of the beholder
39

“como resultado, mapeadores devem escolher o que mostrar e como mostrar, e, por
extensão, o que não mostrar (...). Mapeadores são mais criadores do que refletores” 19.
Em suma, tais citações convergem para desinstitucionalizar o mapa e valorizá-lo
em suas diferentes formas de usos, com diferentes agentes e contextos de elaboração.
Enquanto das regras da cartografia científica que tendem a padronizar os mapas, esses
autores críticos tendem a ampliar suas formas, colocando sua representação como algo
relativo e influenciável. Porém com um adendo importante, sem menosprezar essa
manipulação, visto que os mapas expressam uma forma possível de ver o mundo, dentre
várias existentes.
Todas as sucessivas críticas à cartografia expostas são relevantes para a análise
dos mapas pela geografia, pois ao serem vistos como uma construção humana, que
expõe uma noção de espaço, abre-se um grande leque de possibilidades de investigação
que não se limita ao seu consumo superficial. Tais críticas são derivadas de uma
perspectiva basilar na cartografia crítica: a desconstrução do mapa. Em artigo publicado
em 1989, Brian Harley alerta para as problemáticas da ampla aceitação do mapa
enquanto um documento da realidade, deduzindo daí, a necessidade de desconstruir
essa ligação.
Assim, as motivações que levam a críticas da cartografia são semelhantes: a
impressão de realidade, padronização, indução de neutralidade, omissão da autoria e
definição através da técnica. Em todas, cabe a alternativa da desconstrução, cujo
objetivo é justamente sugerir outra possibilidade epistemológica, focada mais na teoria
social do que no positivismo científico. Com isso, pretende-se esclarecer que até mesmo
os mapas mais científicos não são produtos somente de um conjunto e regras e
proporções geométricas, mas também são produtos de normas e valores de uma dada
ordem social, das tradições e das culturas.
Para tanto, é preciso enxergar além das informações que são localizadas pelo
mapa. Se o propósito é romper a ligação entre mapa e realidade, é fundamental
questionar as escolhas, seleções e construções que resultaram naquela elaboração
cartográfica. Não obstante, considerar os motivos de tais escolhas, e os discursos que
elas procuraram expressar. A palavra “desconstruir” torna-se realmente descritiva da
abordagem proposta, pois se pinça cada elemento do mapa, entendem-se suas partes,
interpretam-se suas escolhas, para enfim, compreender os discursos que o perpassam.

19
As result, map-makers have to choose what to show and how to show it, and, by extension, what not to
show (...). Map-makers as creator rather than reflector.
40

Nesse processo, olhar o mapa e atentar para as seleções é buscar suas omissões, atentar
para as representações é buscar seus vazios e atentar para as informações é buscar seus
discursos.
Desconstrução exorta-nos a ler entre as linhas do mapa - nas margens do
texto - e por meio de suas alegorias para descobrir os silêncios e as
contradições que desafiam a honestidade aparente da imagem. Começamos a
aprender que os fatos cartográficos são apenas fatos dentro de uma
perspectiva cultural específica (HARLEY, 1989, p. 3, tradução nossa)20.

Ao invés do positivismo científico, a proposta é compor uma metodologia para


ler o mapa, uma leitura que não seja focada na técnica, mas que permita sua
interpretação, tal qual um texto. Desse modo, ao compreender o mapa como produções
culturais de discursos sobre o território, torna-se possível ler a sociedade por meio de
seus mapas.
A grande importância do mapa na Geografia reside na sua leitura e não
exclusivamente na sua elaboração técnica. Podemos estabelecer aqui um
paralelo entre a leitura de textos e a de mapas: aprendemos a ler criticamente
textos, chegando ao refinamento de desvendar sua ideologia, mas não
aprendemos a fazer exercício semelhante em relação aos mapas. O exercício
de leitura de material escrito nos orienta na produção de nossos próprios
textos. Os mapas copiamo-los, literalmente, ou produzimo-los sob um
conjunto rígido de técnicas e, pior, não percebemos o conteúdo ideológico e
às vezes até mitológico do que estamos reproduzindo (GIRARDI, 2000, p.
43).

É amplamente aceito que o um texto é constituído não pela presença de


elementos linguísticos, mas pelo ato de construção. Então, como os mapas são
construções que empregam um sistema convencional de signos, isso já permite a sua
leitura. Outro sim, o mapa como um texto é uma metáfora mais adequada do que como
espelhos da natureza, por considerá-lo como um texto cultural (HARLEY, 1989). A
leitura de mapas apresenta duas percepções importantes. Em primeiro, a observação de
retórica em cada elemento que o constitui, organizados para constituir uma
argumentação. Em segundo, a capacidade de interpretar tal argumentação de forma
crítica, onde se considera suas intenções e influências culturais e ideológicas.
Os mapas são uma linguagem gráfica que se deve decodificar. São uma
construção da realidade, imagens carregadas de intenções e consequências
que se podem estudar nas sociedades de seu teu tempo. Como os livros, são
também produtos tanto das mentes individuais como dos valores culturais

20
Deconstruction urges us to read between the lines of the map - in the margins of the text - and through
its tropes to discover the silences and contradictions that challenge the apparent honesty of the image. We
begin to learn that cartographic facts are only facts within a specific cultural perspective.
41

mais amplos nas sociedades específicas (HARLEY, 2005, p. 62, tradução


nossa)21.

Cabe a ressalva que todos os mapas, sejam institucionais ou participativos,


podem ser lidos como textos, visto que todos os tipos de mapas expõem o fato de
falarem para certa audiência e de serem ordenados por certa autoridade que o solicitou.
Nesse sentido, a leitura de mapas como um texto também pode ser excepcionalmente
proveitosa para a compreensão dos mapas artísticos, onde a apreciação de seus
elementos e a interpretação de seus discursos não se limitam a análise técnica. Portanto,
essa perspectiva irá nos acompanhar no entendimento de mapa artístico que o presente
capítulo irá desenvolver, e pode ser assim absorvida:
Ao aceitar a sua textualidade somos capazes de abraçar um número de
diferentes possibilidades interpretativas. Em vez de apenas a transparência de
clareza podemos descobrir a fertilidade da opacidade. De fato, podemos
adicionar mito, e em vez de inocência podemos esperar duplicidade. Ao invés
de trabalhar com a ciência formal de comunicação, ou mesmo uma sequência
de processos técnicos vagamente relacionados, a nossa preocupação é
redirecionada para uma história e antropologia da imagem, e aprendemos a
reconhecer as qualidades narrativas da representação cartográfica, bem como
a sua pretensão de fornecer uma simultânea imagem do mundo (HARLEY,
1989, p. 8, tradução nossa)22.

Tal citação resume com clareza como é esse olhar que propomos para análise
dos mapas e de sua apropriação artística. Porém, ao relacionar essa citação com outros
autores, nos surge uma importante indagação: É necessário enxergar o mapa como um
texto para desprender tais propriedades? Claro, que de forma comparativa, essa é uma
ferramenta bastante didática, mas essa perspectiva é bastante próxima da proposta da
análise crítica das imagens enquanto uma visualidade, tal qual o mapa é.
Assim, gostaríamos de relembrar essa discussão traçada em nossa introdução.
Dissemos que muitas vezes as imagens são usadas com fins de ilustração ou
comprovação, gerando um aspecto de neutralidade que omite seu papel social e sua
função ideológica. Mas, ao mesmo tempo, existe um crescente movimento de
problematização da visualidade, que procura extrair informações diversas das

21
Los mapas son um lenguaje gráfico que se debe decodificar. Son uma construcción de La realidad,
imaágenes cargadas de intenciones y consecuencias que se pueden estudiar em las sociedades de su
tiempo. Al igual que lós libros, son también producto tanto de las mentes individuales como de lós
valores culturales más amplios en sociedades específicas.
22
By accepting their textuality we are able to embrace a number of different interpretive possibilities.
Instead of just the transparency of clarity we can discover the pregnancy of the opaque. To fact we can
add myth, and instead of innocence we may expect duplicity. Rather than working with a formal science
of communication, or even a sequence of loosely related technical processes, our concern is redirected to
a history and anthropology of the image, and we learn to recognize the narrative qualities of cartographic
representation as well as its claim to provide a synchronous picture of the world.
42

representações visuais e atentar para aspectos além da aparência vista, como: os


contextos de produção da imagem, os processos de seleção da composição e os usos
para que foi desenvolvido. Tudo isso evidencia as relações de poder que podem ser
expressas ou concretizadas através da visualidade.
Ou seja, tal qual sugerido pela ideia de leitura, encarar o mapa enquanto uma
visualidade também nos permite analisar essas propriedades de sua desconstrução.
Segundo Rose (2003), encarar a visualidade é não só ver a imagem, mas entender como
vemos, ou seja, como nós estamos aptos, permitidos ou feitos para ver e,
concomitantemente, o que deixamos de enxergar nesse processo, o que fica omitido.
Entender a visualidade vai além de contemplar uma imagem, pois passamos a
considerar seus discursos associados, seja na sua elaboração, seja na sua apropriação e
circulação.
Os mapas serão considerados como parte integrante da família mais
abrangente das imagens carregadas de um juízo de valor, deixando de ser
percebidos essencialmente como levantamentos inertes de paisagens
morfológicas ou como reflexos passivos do mundo dos objetos (HARLEY,
2009, p. 2).

Ao associar essa perspectiva à ciência geográfica, Cramptom (2001) sugere o


emprego do termo Visualização Geográfica (Geographic Visualization, no original)
para se referir a habilidade dos mapas, gráficos e imagens de fazer visíveis as relações
espaciais. Essa habilidade requer um ato cognitivo, no sentido de desenvolver imagens
mentais que permitem aos geógrafos identificar padrões e criar ou impor uma ordem
social. A diferença da visualização está que ela propõe uma ênfase no processo de
exploração de um mapa, questionando a atividade tomada; enquanto a cartografia
tradicional ou mesmo seu modelo comunicativo, dão ênfase para o produto de
representação, respondendo a entrega de um modelo.
Uma melhor comparação entre a abordagem da Visualização Geográfica e a
cartografia científica pode ser assim explicada:
As diferenças entre a visualização e cartografia tradicional podem ser
capturadas utilizando o conceito de "cubo cartográfico" (C3). Cubo
cartográfico é um método de compreender diferentes tipos de usos de mapas.
O "cubo" contém três dimensões; público-privada, alta interatividade-baixa
interatividade, e explorações conhecidas- explorações desconhecidas. A
cartografia tradicional tem ênfase no uso público, de baixa interatividade e
explorações conhecidas, enquanto a visualização enfatiza uso privado, alta
interatividade e explorações desconhecidas (CRAMPTON, 2001, p. 703,
tradução nossa)23.

23
The differences between visualization and traditional cartography can be captured using the concept of
"cartography cubed" (C3). Cartography cubed is a method of understanding different kinds of uses of
43

Temos, assim, mais argumentos favoráveis à perspectiva da visualização para


nossa análise sobre os mapas artísticos, pois justifica e valoriza seus princípios de
questionamento dos mapas tradicionais, com assuntos inexplorados, aberto aos diálogos
e apropriações individuais. Isso não quer dizer que desconsideramos a ideia de leitura de
mapa, apenas acreditamos que são concepções que levam aos mesmos resultados e
propõem posturas de analise do mapa semelhantes.
O presente capítulo tem por objetivo responder aos receios e dúvidas sobre a
importância dos mapas artísticos. Para isso, torna-se necessário compreender como tem
se contado a história da cartografia, analisar as proximidades entre cartografia e arte,
para então, considerar os princípios que motivam a apropriação do mapa pelos artistas.
Ao final, essas discussões embasam nossa investigação sobre o Mapa invertido da
América do Sul. Essas são, portanto, as etapas que compõem as subdivisões do presente
capítulo nas próximas páginas.

1.1 Relações entre cartografia e arte

Grande parte do que reconhecemos e classificamos como mapa, atualmente,


provém da instituição da cartografia enquanto ciência no período pós-2 guerra mundial.
Seu conjunto de elementos obrigatórios, escalas numéricas, cálculos matemáticos,
formas padronizadas, passaram a compor a estética geral que identificamos como mapa
e, por conseguinte, o torna diferenciado de outros tipos de representação. Mas e antes
desse período, não existiam mapas? Seus princípios e diretrizes eram diferentes no
passado? Sua estética era parecida com a atual?
Essas são questões respondidas pelo estudo da história da cartografia, que revela a
importância de compreendermos as diferentes características e contextos que os mapas
serviram ao longo dos séculos, para que assim possamos analisar seu atual estágio de
forma contextualizada. Assim, durante muito tempo, existiu um modo predominante de
se contar essa história da cartografia através da ideia de progresso e evolução
(COSGROVE, 2005). Diziam esses historiadores que a cartografia foi aperfeiçoando

maps. The "cube" contains three dimensions; private- public, high interactivity- low interactivity, and
revealing knowns-exploring unknowns-exploring. Traditional cartography has emphasizes public use, low
interactivity and revealing knowns, while visualization emphasizes private use, high interactivity, and
exploring unknowns.
44

suas formas de representação e aprimorando seus métodos para alcançar uma maior
veracidade. Com essa lógica, era fácil supor que os mapas antigos seriam inferiores e
inexatos. O estudo deles serviria muito mais para a admiração artística e exposição
estética, do que para compreender algum tipo de informação.
Em contrapartida, os “novos” mapas seriam os mais confiáveis e precisos, pois
contavam com o progresso da ciência cartográfica. Somado a isso, o contexto dessa
progressão era o mesmo que caracterizava as ciências como uma entidade neutra,
baseadas em leis gerais e, portanto, isentas de posicionamentos ou ideologias. Destarte,
classificar o mapa como científico é também entendê-lo como algo neutro e imparcial,
uma representação mais próxima de realidade e que mereceria, por isso, maior
credibilidade. Diferente dos mapas antigos, que carentes de leis científicas, tornavam-se
aleatórios e ambíguos, variando conforme a intenção, cultura ou localidade.
Essa divisão teve lugar desde, pelo menos, o Renascimento europeu tendo como
resultado uma hierarquização dos mapas entre pré-modernos e modernos (HARLEY,
1989). Esse século renascentista trazia mudanças significativas na história, dentre as
quais incluía a forma como se faziam os mapas. Era preciso deixar claro que o
entendimento de mapa seria outro, totalmente distinto do período anterior, com novas
diretrizes e características. Assim, foi configurada uma ruptura que colocava de um lado
os mapas pré-modernos influenciados pelas artes, e do outro lado, os mapas modernos
inspirados pela razão científica.
Isso é explicado, pois no período pré-moderno, mapear e pintar paisagens eram
atividades feitas pelas mesmas mãos (REES, 1980). O mapeamento era mais uma das
artes decorativas, artistas tinham mãos livres para fazer mapas antes dos cartógrafos e
geógrafos requererem esse conhecimento como científico. Dois fatos históricos dão
evidência para essa íntima relação entre mapa e arte. Em primeiro, as capitais da arte
renascentista eram também centros proeminentes da confecção de mapas, como Veneza
e Antuérpia. “Tão intimamente associadas eram pintura, cartografia e reprodução que às
vezes eram realizadas por uma pessoa, ou, se por várias, então geralmente em um só
lugar” (REES, 1980, p.63, tradução nossa.)24.
Em segundo, na antiguidade europeia, os mapas eram expostos em paredes, com
todos os seus elementos simbólicos e proximidade com obras de arte, passaram a figurar

24
so closely associated were painting, cartography, and reproduction that they were sometimes carried
out by one person, or, if by several, then usually in one place.
45

na decoração (HARLEY, 2009). Mais do que isso, eram objetos de cenário da nobreza,
pois além da beleza estética representavam a posse de terra.
Os emblemas reais, tais como a flor de lis ou a águia imperial, suscitam
igualmente pensamentos políticos e geográficos, mais concretos no espaço
cartografado. Os personagens mais frequentemente representados são os
nobres, os bispos, os ricos mercadores e os proprietários de terra. Nos mapas
cadastrais ingleses, os símbolos que representam a riqueza fundiária são os
brasões, os castelos, a atividade de caça dos proprietários. Possuir mapa, era
possuir terra (HARLEY, 2009, p. 18).

A restrição artística e imaginativa na cartografia começa a emergir no século XV,


através da introdução de instrumentos e técnicas da pesquisa moderna. Nesse processo,
a fantasia do incógnito é gradativamente substituída pela informação do conhecido e as
imagens pictóricas pelos signos convencionados. Pouco a pouco, com menos espaço
para expressões artísticas, estas vão migrando para a borda do mapa, onde o cartógrafo
não exercia comando. Escrevendo em momentos distintos, Rees (1980) afirma que tais
desenhos de borda, geralmente, não tinham relação com o mapa e apenas seguiam os
motivos do período, seja barroco ou romantismo, por exemplo. Já Harley (2009)
apresenta outra perspectiva:
(...) estes elementos considerados como acessórios em relação aos objetivos
da comunicação cartográfica foram negligenciados. Títulos, letras, molduras,
vinhetas, dedicatórias, rosas dos ventos, bordados decorativos, que poderiam
incorporar motivos tirados do vocabulário mais amplo da expressão artística
contribuíram, entretanto, para reforçar a significação política dos mapas.
Nesta perspectiva, a ideia segundo a qual a decoração cartográfica seria um
exercício estético marginal não é mais aceitável. O papel simbólico da
decoração é encontrado em boa parte da história da cartografia europeia. Por
exemplo, os frontispícios e títulos de numerosos atlas definiram
explicitamente, com ajuda de emblemas reconhecíveis por todos, a
importância ideológica e a carga prática dos mapas (Op. Cit, p. 17).

Claramente, essa segunda visão já está situada no conjunto de críticas na história


da cartografia, onde se buscou relativizar essa ruptura comumente contada. As
mudanças científicas ocorridas na cartografia adequavam-se às mudanças dos séculos
XIV/XV. A expansão marítima, a divisão de terras, a exploração colonial, as rotas de
comércio, todos esses fatores se expandiram, e passaram a ser apoiados por usos de
mapas que fossem mais padronizados e matematicamente fundados, tornando a
cartografia uma ferramenta importante e separada de outros campos, como as artes.
Harley e Woodward (1991) constatam que no século XV houve uma
mudança dramática na maneira de pensar o mundo e na construção dessa
visão. Por um lado, ainda estava presente o mapa-múndi medieval (mapa de
roda ou “T no O”) que não era uma representação do espaço, mas da história
cristã. Por outro lado, as escritas e mapas de Cláudio Ptolomeu, que
desapareceram na visão do mundo da Idade Média, sobreviveram na cultura
46

árabe e chegaram até as bibliotecas do Império Bizantino, de onde seguiram


o seu caminho para o ocidente no século XIV. Humanistas italianos e
geógrafos e cartógrafos europeus começaram a revalorizar o potencial dos
mapas ptolemaicos como sistema de referência espacial e como fonte de
poder. A redescoberta da cartografia ptolemaica e seus mapeamentos
marcava o começo da Modernidade Europeia. Os mesmos mapas em “estilo
ptolemaico” ainda apareceram nos atlas mais do que um século depois do
descobrimento do Novo Mundo, tendo alguns erros persistidos até o século
XIX (SEEMAN, 2003, p. 9).

Assim, fica exposto o cenário conturbado de mudanças que o século XV trazia:


gradativamente, um modo de ver e representar o mundo era postergado, para dar lugar a
outro que fosse condizente com os anseios do referido século e do Estado. Nesse
sentido, as correlações matemáticas de Ptolomeu, que traçavam a esfera terrestre com
vários paralelos, pareciam pertinentes para representar regiões do planeta com
proporções calculadas conhecidas. Entretanto, só esta constatação já sucinta um grande
debate, há autores, como Thrower (2008), que colocam a obra de Ptolomeu como um
prenúncio da cartografia moderna e narram sua grande trajetória de difusão desde a
Antiguidade, passando pela Ásia, até ser retomado na Europa. Outros autores, como
Brotton (2014), afirmam que essa relação não é tão direta, pois não é comprovado o
quanto de detalhamento continha em tal obra para ter originado tantos métodos
cartográficos.
Apesar de importantes, não é nossa intenção adentrar nos debates sobre a difusão
histórica das obras cartográficas, o que ressaltamos dessas discussões são as
contextualizações sobre os mapas que elas suscitam. Ao se promover, a cartografia
científica do século XV não apenas estimulou seus princípios e características como
também menosprezou e invalidou o mapeamento anterior. Esse século seria marcado
pela valorização da razão e das explicações científicas, e a cartografia se lançou no
esforço de firmar-se como uma ciência exata, que representaria o espaço com
confiabilidade matemática.
Enquanto os mapas antigos assumidamente utilizavam de perspectivas, ênfases e
simbolizações, que são características compartilhadas com o fazer artístico, a doutrina
do mapeamento científico fixava-se através do cálculo, da objetividade e da
uniformidade. Essa separação entre mapas pré-modernos e modernos tornava-se mais
eficiente em duas vias: primeiro, era necessário afirmar a relevância e credibilidade das
normas científicas, mas complementarmente, era eficaz apagar os vestígios do fazer
artístico no mapeamento (HARLEY, 1989), pois esses seriam incoerentes e
desprezíveis. Por muito tempo, esse modelo prevaleceu na história da cartografia
47

fomentando estudos que mostrassem a influência das artes apenas nos mapas pré-
modernos, evitando o exame crítico da ciência cartográfica no século XX, e deixando
intacta a impressão de que arte e cartografia seguiram caminhos diferentes no período
moderno (COSGROVE, 2005).
Claramente, essa ruptura era fundamental para convencer sobre tais mudanças
nas diretrizes do mapeamento. Era preciso valorizar os elementos da cartografia
moderna, como sistema de coordenadas, escalas e cálculos precisos. Para Wood (2010),
convencer sobre os méritos dos mapas modernos, era pré-condição para impulsionar o
mapeamento em si. Essa ideia de neutralidade dos mapas é um debate de múltiplos
caminhos, dos quais retomaremos na próxima seção do presente capítulo, no momento
nos cabe ressaltar sua consequência para a relação entre arte e cartografia: passou a
validar unicamente os mapas modernos e inferiorizar os demais.
Os métodos de cartografia entregaram conhecimento verdadeiro, verossímil,
progressivo, ou altamente confirmado. Este sujeição mimética levou a uma
tendência não só de olhar para baixo sobre os mapas do passado, mas
também a considerar os mapas de outras culturas primitivas ou não ocidentais
(onde as regras da cartografia eram diferentes) como inferiores aos mapas
europeus. (...) Isso permitiu cartógrafos construírem um muro em torno de
sua cidadela do "verdadeiro" mapa. Seus bastiões centrais eram medição e
padronização, e ao redor havia a terra da ‘não cartografia’, onde se escondia
um exército de imprecisas, herética, subjetiva, valorativa imagens
ideologicamente distorcidas (HARLEY, 1989, p. 4, tradução nossa)25.

Nesse sentido, é partir do Renascimento na cartografia, que se passa a validar o


mapa pelos seus atributos científicos, compondo um único modelo aceito para imagem
do mundo: o da cartografia moderna europeia. Essa interpretação é colocada em
questionamento pela cartografia crítica, onde o entendimento de mapa como uma
produção cultural acaba por trazer novas relações para o binômio arte/ciência. Desde
então, não apenas a interpretação crítica e os métodos iconográficos da história da arte
foram ampliados, mas também o interesse de artistas contemporâneos em temas
cartográficos também cresceu, em um processo relativamente recente, tal qual exposto a
seguir:

25
The methods of cartography have delivered a true, probable progressive, or highly confirmed
knowledge This mimetic bondage has led to a tendency not only to look down on the maps of the past but
also to regard the maps of other non-western or early cultures (where the rules of mapmaking were
different) as inferior to European maps. (...) that enabled cartographers to build a wall around their citadel
of the 'true' map. Its central bastions were measurement and standardization and beyond there was a `not
cartography' land where lurked an army of inaccurate, heretical, subjective, evaluative and ideologically
distorted images.
48

Em 1988, uma sessão dedicada à "cartografia entre arte e ciência" foi


realizada na 13ª conferência internacional para a história da cartografia. Lá,
Brian Harley desafiou a ‘sagrada dicotomia’ entre arte e ciência na história da
cartografia e virou-se para teoria de textos de Derrida e conceitos
foucaultianos de discurso para tratar todos os mapas como objetos culturais e
o mapeamento como uma atividade social e cultural, colocando cartografia
fora da desativada classificação de arte e ciência. (...) O debate arte / ciência
foi, assim, intimamente ligada à virada crítica mais geral dentro da história da
cartografia (COSGROVE, 2005, p. 36, tradução nossa)26.

Não queremos, com isso, repetir o erro que criticamos na cartografia científica e
traçar uma ruptura. Mesmo a cartografia tradicional não é uniforme, estática ou
irrefletida. É preciso ter em vista que a construção de algo novo é feita pela
reconstrução, e não negação do passado (BLACK, 1997). Assim, essas visões sobre a
relação entre cartografia e arte como algo distante ou próximo convivem ao longo do
tempo. Até mesmo a proposta da cartografia crítica de entendimento do mapa, que
reconhece a importância da influência artística, não pode ser afirmada como unânime
ainda hoje. São muitos os argumentos que ressaltam a distinção entre arte e cartografia,
por exemplo, Fairbairn (2009) afirma que são campos excludentes. Em sua
argumentação esse autor ressalta que “Arte, ao contrário da cartografia não é orientada
por dados: esta é base do contraste entre elas” (FAIRBAIRN, 2009, p. 26, tradução
nossa)27.
Não discordamos do autor sobre essa diferença baseada na utilização de dados
em sua representação, porém, recai no mesmo equívoco mencionado em outro
momento: de considerar apenas aspectos técnicos da confecção dos mapas. É necessário
pensar na forma como os dados são representados e utilizados para verificar as possíveis
semelhanças e contribuições entre arte e cartografia. No mais, não é o intuito da
perspectiva crítica tratar arte e cartografia como atividades iguais e substituíveis, mas
relativizar a extrema diferença resultante da cartografia moderna. Acredita-se, assim,
que o momento de estruturação e ênfase na definição unicamente científica de mapa já
findou, e propõem-se entendê-los por sua função social.
Grande parte das semelhanças entre arte e cartografia apontadas por diversos
autores concentram-se no produto gerado: uma representação de mundo, uma exposição
26
In 1988, a session devoted to 'cartography between art and science' was held at the 13th international
conference for history of cartography. There, Brian Harley challenged the 'sacred dichotomy' between art
and science in the history of cartography and turned to Derridean theory of texts and Foucauldian
concepts of discourse to treat all maps as cultural objects and mapping as a social and cultural activity,
placing cartography outside the disabling classification of art and science. (...) The art/science debate was
thus intimately bound to the more general critical turn within the history of cartography.
27
Art, unlike cartography is not data-driven: here is the basis of the contrast between them.
49

das relações espaciais, um entendimento da organização sócio-espacial. Ao aproximar


artes e mapas, encontramos paralelos imediatos entre esses dois tipos de imagens
pictóricas ou cartográficas. Em Wood (2006), o argumento é que ambos são artefatos
gráficos, seguem lógica de escolhas e omissões como qualquer representação, e são
primordialmente comunicacionais. Isso quer dizer que ambos são construções pelas
quais uma pessoa (ou grupo de pessoas) sensibilizam outras, afetam seu estado ou seu
comportamento, em uma situação comunicativa. Complementarmente, em Cosgrove
(2005) o destaque é para as questões técnicas compartilhadas entre essas duas práticas,
como ênfases, meios, linhas, cores e simbolizações. Também compartilham de decisões
parecidas sobre forma, composição, enquadramento e perspectiva.
Essa relação entre arte e cartografia também pode ser analisada através de
questões históricas.
A pintura de paisagem era tanto um documento como um mapa era um objeto
artístico. O Impressionismo trouxe detalhes menos analíticos e mais
sentimentais à pintura. Ao contrário, a cartografia naturalmente seguiu
caminho que levava aos seus aspectos mais técnicos e científicos. A diferença
entre pintura e fotografia ‘instantânea’ é a mesma que a diferença entre o
mapa e fotografia aérea. Pintura e mapa são sobre a interpretação, a captura
do 'invisível' (FRIEDMANNOVÁ, 2009, p. 93, tradução nossa)28.

Desse modo, a cartografia e a pintura de paisagens são conectadas por suas


práticas expressarem concepções de mundo, lidando com problemas de seleção e
representação em uma superfície plana (REES, 1980). Essa proximidade com a arte está
presente até mesmo no debate científico do sistema de coordenadas de Ptolomeu, e suas
projeções e equivalências matemáticas, pois são baseados na proporcionalidade estética.
Nexo da Ciência de instrumentação, mecanização e estratégias de
representações objetivas (como a quantificação ou fotografia) não escapam
do apelo estético. Em vez disso, a ciência implanta a estética de estilo
simples dentro de uma estratégia mais ampla de persuasão (COSGROVE,
2005, p. 36, tradução nossa)29.

De fato, segundo Rees (1980) os cartógrafos ainda se beneficiam das técnicas


pictóricas herdadas da arte e exemplifica pela representação do relevo através uso de

28
A landscape painting was much a document as a map was an artistic object. Impressionism brought less
analytic details and more feelings to painting. On the contrary, cartography naturally followed path
leading to its more technical and scientific aspects. The difference between painting and 'snapshot'
photography is the same as the difference between map and aerial 'photomap'. Painting and map are all
about interpretation, capture of the 'unseen'.
29
Science's nexus of instrumentation, mechanization and objective-representations strategies (such as
quantification or photography) does not escape aesthetic appeal. Rather, science deploys the aesthetics of
plain style within a broader persuasive strategy.
50

iluminações e sombras, ou o desenho de encostas pela eclosão de linhas. Porém, mais


valioso que esse efeito de técnicas é a animação que a sensibilidade artística pode trazer
aos mapas. “O efeito do uso de linha, cor e símbolo pode transformar mapas que
poderiam de algum modo ser maçantes, gravações mecânicas, em complexos dinâmicos
carregados de significado” (REES, 1980, p. 63, tradução nossa)30.
Esse intercâmbio entre arte e cartografia não se restringe à antiguidade. A
seleção de cores nos mapas que seguem princípios de harmonia, analogia,
complementação ou contraste, resguardam, segundo Friedmannová (2009),
contribuições da pintura Impressionista. Esses artistas desenvolveram técnicas de
pintura ao ar livre, com rica paleta visível de tons, que teriam contribuído na teoria de
associação e expressividade de cores. Todos esses exemplos demonstram que o campo
científico pode ter benefícios ao assumir trabalhos e inspirações artísticas.
Por tal razão, grande parte dos obstáculos está na pergunta “arte ou ciência?”,
pois nela se assume serem campos distintos e se inibe a identificação de suas relações.
Ao questionar quem é o cartógrafo e quem é o artista, estamos implicitamente
associando arte à estética, e ciência à análise (NOVAES, 2014), sem que essas possam
assumir correlações e intercâmbios. A superação dessa dicotomia é o que favorece à
cartografia crítica a expandir as análises e reconhecimentos dos mapas para os períodos
pré-modernos, extinguindo a visão tradicional de menosprezar tais mapas.
Por tal perspectiva crítica, historiadores da cartografia desenvolveram novas
relações com os mapas antigos, principalmente em três direções: dissolver a dicotomia
com os mapas modernos; compreendê-los como uma visão de mundo e analisá-los
enquanto uma expressão de seu contexto. Assim, emergem as análises sobre os mapas
antigos que relativizam suas características e escolhas através das circunstâncias
históricas. Um expressivo e conhecido exemplo pode ser exposto pelo mapa T-O ou
mapa roda (Figura 4).

30
The effective use of line, color, and symbol can transform maps that might otherwise be dull,
mechanical records into dynamic complexes charges with meaning.
51

Figura 4 – Mapa T-O.

Fonte: SEEMAN, 2013, p. 35

Diante dessa imagem, muitos cartógrafos tradicionais tendem, inclusive, a


desconsiderá-la enquanto mapa, por não conter os elementos básicos da cientificidade,
nem seus padrões ou mesmo proporcionalidade. Por outro lado, existem aqueles que
admitem a importância desse mapa compor um entendimento de espaço historicamente
situado. Se só existem três continentes é porque este era o mundo conhecido. Se é
orientado a Leste é porque este era o ponto de orientação pelo nascer do sol. Se existe
uma imagem de Adão e Eva ao Leste é uma orientação presente na descrição bíblica em
Genesis 2:8: “E o Senhor Deus plantou o Jardim ao leste, no Éden” (KLINGHOFFER,
2006). Se é centrado em Jerusalém é porque era a cidade sagrada de sua religião e
centro de seu mundo. E assim sucessivamente.
Portanto, quando analisamos esse mapa, descobrimos que o ‘T no O’ não se
preocupava com convenções cartográficas tais como legenda, escala e
projeção. Sua função não era o registro preciso de fatos geográficos, mas a
representação de mistérios religiosos e acontecimentos históricos. Esses
conceitos de espaço e tempo foram fundidos para compreender a vida cristã e
providenciar uma narrativa visual da historia cristã com um pano de fundo
geográfico. Informações sobre a superfície terrestre foram secundárias para
os cristãos da Idade Média cuja mente se preocupava com esferas espirituais
e não com cenários terrestres (SEEMAN, 2013, p. 36).

Com esse exemplo, expomos que os mapas antigos, imersos em suas inspirações
artísticas, são também importantes fontes de informação geográfica. Tal quais as
pinturas de paisagem, os mapas marcam os estágios das concepções sobre o ambiente.
Entretanto, esse reconhecimento foi travado pelos entendimentos modernos, para quem
52

os mapas medievais não passavam de meras aglomerações de lugares e características


desintegradas (REES, 1980).
Tanto as pinturas como os mapas medievais eram indiferentes à precisão
empírica, e só poderiam mesmo ser, pois seus entendimentos gerais eram guiados por
experiências afetivas de mundo. As proporções de tamanho dependiam menos do
tamanho factual e mais da ênfase que o artista dava para expressar suas ideias de
mundo, muitas vezes socialmente compartilhadas. Por causa da autoridade da igreja
medieval, sobrava pouco espaço para o naturalismo nas artes e para a ciência na
cartografia (REES, 1980). A era renascentista procurou superar essas características
para dar lugar as suas: um conhecimento preciso, centrados no mapeamento científico e
na pintura naturalista.
Novamente, ressaltamos que tal diferenciação corresponde aos contextos e às
necessidades sociais que tais mapas procuravam atender em períodos de tempo
distintos. Portanto, os equívocos que tentamos superar não se encontram no mapa pré-
moderno ou no mapa moderno, mas na hierarquia criada que desqualifica e menospreza
as características artísticas do mapa, em uma tentativa de omitir que ainda hoje estão
presentes, uma vez que mapas são construções visuais e representativas.
Em suma, concordamos com Wood (2010) e Brotton (2014), ao afirmarem que o
mundo e todos os locais que passamos a conhecer através de mapas não são
experiências sensoriais, por tal razão, a cartografia tem boas contribuições da arte em
tentar comunicar esse mundo, além da cientificidade pura.
O mapa se vale de métodos artísticos de execução para criar uma
representação, em última análise, imaginativa de um objeto icognoscível (o
mundo); mas também é moldado por princípios científicos, e abstrai Terra de
acordo com uma série de linhas e formas geométricas (BROTTON, 2014, p.
12).

O que concluímos até aqui é que a relação entre arte e cartografia tem raízes
históricas, apesar de ter passado por um período de hiato, devido instituição da
cartografia enquanto ciência. E o que nos falta, é discorrer sobre a retomada mais
recente dessa relação, aonde artistas contemporâneos vem utilizando elementos
cartográficos em suas obras. Claramente, é nesse segundo conjunto que encontramos as
bases para analisar o Mapa invertido da América do Sul.
53

Nesse sentido, nos enriquece reproduzir a pergunta feita por Novaes (2014, p, 3,
tradução nossa)31: “Como nós podemos estudar a relação entre arte e mapas no período
após a ciência ter “clamado” a cartografia?” Tendo em vista o que já foi apresentado,
essa pergunta se torna um desafio metodológico na medida em que as diretrizes da
cartografia tradicional, hegemônica por grande parte desse período, não dão conta da
análise de tal relação por colocar em oposição mapas científicos e outras formas de
mapa. Era preciso, portanto, uma visão renovada, que trilhasse novos caminhos a partir
da percepção e da crítica sobre a limitação da cartografia tradicional.
As propostas da cartografia crítica passam, então, a contribuir nesse sentido,
pois induzem a pensar o mapa sem a ideia de progresso científico, por conseguinte, nega
as dicotomias e reconhece como as práticas cartográficas são importantes para o campo
artístico, bem como as qualidades da arte também foram benéficas para os mapas em si
(NOVAES, 2014). Desde logo, é importante assinalar que os mapas artísticos ou a visão
crítica não pretendem extinguir os mapas científicos ou institucionais, não há intenção
de criticar uma dicotomia para colocar outra no lugar. Esses mapas foram bastante
importantes para a construção de uma estética específica da cartografia, e apresentam
uma insubstituível utilidade prática para a sociedade, entretanto não podem ser tratados
como única ou correta forma de compreender ou representar o mundo e as experiências
espaciais.
Logo, ao reconhecer a utilidade dos mapas artísticos, reconhecem-se também as
diversas visões de mundo, expressas de formas diferentes. Em uma definição simplista,
podemos dizer que os mapas artísticos são obras que se apropriam, quitemente e
expressivamente, de elementos cartográficos. São vários os exemplos desse tipo de
mapa, e não pretendemos dar conta de todos eles, mas é interessante notar como esse
número cresce gradativamente. Isso chama a atenção de pesquisadores e outros setores
da sociedade a fazer a pergunta reproduzida por Wood (2006): Sobre o que é isso tudo?
Primeiramente, muitos autores convergem na afirmação que os mapas artísticos
enquanto um gênero é algo bastante recente, concentrando-se nas últimas três décadas
(WOOD, 2006; COSGROVE, 2005; D’IGNAZIO, 2009). O que não exclui os
exemplos anteriores a esse período, estes apenas eram mais intervalados. Na explicação
dessa observação, também encontramos uma concordância em destacar a grande
proliferação e ubiquidade dos mapas na sociedade atual que passa a suscitar os

31
How can we study the relationship between art and maps in the period after science had “claimed”
cartography?
54

questionamentos e provocações desses artistas. Para Wood (2010), o crescimento dos


mapas artísticos é como um termômetro para o crescimento da indústria cartográfica em
si.
Nós os desenhamos (mapas) no ar e nós os traçamos na neve, nós comemos
sobre eles em jogos americanos e nós os olhamos no quadro de avisos. Nós
os costuramos em silks e os imprimimos em camisas, os vemos em peças de
quebra-cabeça e fazemos seus mosaicos em murais. A maioria já se foi agora,
perdidos no processo construtivo - ou evaporados com as palavras que os
trouxeram para a existência. (...) Para onde foram todos os mapas de estradas,
e os mundos que eles descreveram e que as crianças sabiam, Rota 66, e o
cânion abaixo do Lake Powell, e o velho Colorado despejando água para o
Golfo do México? E quando falamos dos ‘velhos mapas da Europa’- que
também tem desaparecido - estamos falando de convicções com as quais nós
crescemos, não um pedaço de papel. E ainda, e ainda ... É difícil, no final, a
separar essas certezas de pedaços de papel que não só moldaram esse mundo,
mas o fez ser (Op. Cit., 2010, p. 15, tradução nossa)32.

Um incremento importante da produção de mapas reside na mídia gráfica e


audiovisual, onde eles aparecem com frequência aos nossos olhos para localizar
fenômenos e eventos noticiados. De fato, as tecnologias do século XX contribuíram
para a notável multiplicação de diferentes gêneros cartográficos no cotidiano social: os
mapas rodoviários cresceram com os carros; os mapas meteorológicos viraram diários;
softwares que utilizam cartografia se popularizaram; enfim, formou-se, mais do que
nunca, uma “sociedade imersa em mapas” (WOOD, 2010).
Nesse sentido, costuma-se dizer que artistas lidam com o mundo ao seu redor,
com esses últimos incrementos, os mapas têm se tornado parte significativa desse
mundo. Dentre todas as demais coisas frequentes na sociedade, o mapa adquire dois
pontos de interesse: primeiro, por suas semelhanças representacionais com arte; e
segundo, por ser uma construção guiada por padrões e regras tradicionais que são cada
vez menos empolgantes e cada vez mais criticadas pela classe artística (WOOD, 2006).
A onipresença do mapa como um meio de localizar o seu lugar em relação ao
resto do mundo, criou uma oportunidade única para que os artistas
explorassem a linguagem, símbolos e estratégias da cartografia. As fronteiras
políticas tornaram-se formas icônicas, marcas visuais legíveis de identidade e

32
We draw them (maps) in the air and we trace them in the snow, we eat over them on placemats and we
stare at tem on billboard. We have sewn them on silk and printed them on T-shirts, sawn them into jigsaw
puzzles, and mosaicked them into murals. Most are gone now, lost in the making or evaporated with the
words that brought them into to being. (...) Where have all the Road maps gone, and the worlds they
described and the kids we knew, Route 66, and the canyon beneath Lake Powell, and the old Colorado
pouring real water into the Gulf of Mexico? And when we talk of the ‘old maps of Europe’-which too has
disappeared – we are speaking of certainties we grew up with, not a piece of paper. And yet, and yet...it
is hard, in the end, to separate those certainties from the pieces of paper that not only figured that world,
but brought it into being.
55

indicando que estavam maduros para distorção artística, subversão e


reimaginação (D’IGNAZIO, 2009, p.191, tradução nossa) 33.

Na cartografia tradicional, com a ideia de que a cientificidade valida o mapa,


também vem a reboque a ideia de institucionalização, ou seja, de que os mapas eram
feitos por especialistas, em um campo específico, pertencentes às instituições
competentes com aparatos tecnológicos e metodologias para confeccioná-lo. É essa
noção, em diferentes momentos históricos, que levou Harley (2009) a expressar o mapa
enquanto uma “ciência dos príncipes”, e Wood (2010) enquanto um “pedestal de
neutralidade”.
Essa ideia foi se fragmentando na medida em que outros campos não científicos
passaram tanto a reproduzir, como também fazer e divulgar mapas. Na verdade, esses
diferentes caminhos não formais da cartografia não são exclusivamente recentes, é
proveitoso pensá-los em um processo histórico contínuo, isso porque, em uma
perspectiva foucaultina, os “conhecimentos subjulgados” são sempre formados diante
de um conhecimento instituído. Claro, que por algum motivo, não alcançaram a
hegemonia ou foram desqualificados (por exemplo, por serem pouco científicos), mas
isso não significa que não estavam lá (CRAMPTON, 2010).
Atualmente, é mais perceptível que o mapeamento, enquanto um campo do
conhecimento, têm sido tomado em diferentes direções de forma simultânea. O esquema
elaborado por Crampton (2010) dá uma ideia de que tais direções “esticam” o mapa.
Um dos eixos leva para a direção das resistências, compostas por um conjunto de
abordagens críticas dentre os quais fazem parte: os mapas artísticos, mapas da web,
grupos sociais que utilizam de softwares cartográficos para subsidiar suas
reivindicações, entre outros. O outro eixo leva para direção da seguridade, com o
objetivo de manter o conhecimento já estabelecido, composto por especialistas
cientificamente certificados, conhecimento formal, profissionalização, entre outros.
Apesar de localizados em pontos de interesses opostos, mapas artísticos e
científicos podem apresentar relações e contribuições de via dupla. Muitas das noções
de configuração para representação espacial dos mapas científicos foram influenciadas
por noções prévias da pintura de paisagens, assim como, as elaborações de mapas
artísticos utilizam de consensos gerais sobre a cartografia provindos de sua

33
The ubiquity of the map as a means of locating one's place in relationship to the rest of the world
created a unique opportunity for artists to exploit cartography language, symbols, and strategies. Political
boundaries became iconic shapes, legible visual markers of identity and belonging that were ripe for
artistic distortion, subversion, and reimagination.
56

formalização científica. Arte e ciência são articuladas com o propósito de contribuir na


construção de imagens de cidadania, território, nação e fronteira (NOVAES, 2014).
Nesse sentido, Harley (1989) já afirmava que as relações de poder do mapa são
relacionadas ao uso das regras estéticas da cartografia, mostrando que os mapas, tal qual
a arte, tornam-se mecanismos para definição de relações sociais, do imaginário e dos
valores compartilhados socialmente.
(...) mapa artístico pode ser considerado como ‘fábricas espaciais’, que
podem moldar formas específicas para agir e atuar nesses lugares. Ao
destacar a relação entre linguagem e performance, os artistas mapeadores têm
discutido questões que são mais frequentemente estudadas em geopolítica
crítica, considerando que a forma como descrevemos e desenhamos o mundo
pode moldar a forma como agimos sobre ele (NOVAES, 2014. p. 5, tradução
nossa)34.

Com efeito, podemos dizer que já os primeiros mapas artísticos emergem como
“fábricas espaciais” e o seus entendimentos contribuem na compreensão dos propósitos
e fundamentações desse tipo de mapa. Focados nessa relação entre arte e cartografia no
contexto pós-institucionalização científica, muitos autores tendem a apontar seu início
no Modernismo, mais especificamente em seu movimento de vanguarda Dadaísta.
Nesse contexto do início do século XX, enquanto a cartografia estava centrada na
metodologia científica e padronização de suas imagens, a arte era movida por uma série
de movimentos vanguardistas cuja intenção era criticar e subverter as ideias e práticas
pré-estabelecidas na arte representacional (COSGROVE, 2005).
Justamente uma das características do Modernismo é a utilização de “coisas
feitas” em sua arte, ou seja, seleção de objetos cotidianos apropriados e modificados
pelos artistas. Tem-se, assim, uma direta relação com a discussão que fizemos sobre a
ubiquidade do mapa: além de artistas serem sensibilizados pelos elementos do dia-a-dia,
esse princípio modernista os apropriam em sua arte de forma mais direta, realocando
seus elementos em novos contextos artísticos e expressivos.
É o que acontece no movimento dadaísta, cujas obras são compostas por
fotomontagens ou recortes colagens que reagrupam e resignificam elementos cotidianos
em um novo conjunto expressivo. Persistem, ainda, algumas dúvidas sobre qual seria a
obra Dadaísta com colagem de mapa mais antiga, devido imprecisão do ano exato da
obra. Dentre essas, Wood (2010) destaca três possibilidades, todas da década de 1920:

34
(...) map art can be considered as ‘spatial fabrics’, which can shape specific forms to act and perform
on these places. When highlighting the relationship between language and performance map artists have
been discussing issues that are very frequently studied in critical geopolitics, considering that the way
describe and Picture the world can shape how we act on it.
57

Cut with Cake-Knife, de Hannah Hoch; A Bourgeois Precision Brain Incites World`s
Movement, de Raoul Hausmann; ou Tatlin at Home, desse mesmo artista. Mas essa
determinação não é mais importante do que reconhecer o papel desses mapas ao
figurarem como colagem dessas obras dadaístas: desconstruir e desordenar os elementos
da vida cotidiana e social, uma contra visão de tudo que circulou na grande mídia para
promover ou sustentar a guerra que vivenciaram.
Esse pode ser um dos estímulos Dadaísta de selecionar o mapa para suas
colagens, pois serviam para representar a posse e fomentar discursos expansionistas.
Até os valores artísticos entraram em questionamento com o movimento Dada, pois
relativizavam a ideia do processo de inspiração e ritual romântico de produção com uma
metodologia mecânica de colagem. Para eles, não havia lógica em mostrar beleza e
sutileza das artes diante dos quadros desumanos da guerra. Assim, “colar pedaços de
mundo em suas telas, era um beijo de adeus ao representacionalismo em um grande
estilo” (WOOD, 2010, p. 196, tradução nossa)35.
Para além do Dadaísmo, o Modernismo continuou a apropriar os elementos
cartográficos em outros momentos, ampliando as novas relações entre cartografia e arte.
De fato, artistas modernistas desenvolveram amplo interesse pelo gradeado enquanto
um elemento pictórico (COSGROVE, 2005), bem como outros elementos cartográficos
associavam-se ao princípio desse movimento de confrontar as formas previamente
convencionadas de arte e representação. Para artistas modernistas, a arte não deveria
mais se limitar ao prazer e conforto estético, ela devia também incorporar com clareza o
papel social e político do artista, e nesse propósito a utilização de mapas fornece um útil
aporte.
(...) objetivos, ciências e até mesmo aspectos diários banais do mapa se
tornaram vantagens positivas em apoiar o objetivo de divorciar a arte do
prazer visual. Como, em geral, no Modernismo a conexão entre arte e
cartografia envolve uma rejeição consciente das estéticas tradicionais
(COSGROVE, 2005, p. 41, tradução nossa)36.

Desde este tímido início de artistas que utilizam elementos cartográficos não é
apontado nenhuma interrupção, o que encontramos são diferentes propostas, e diferentes
apropriações com o passar do tempo e de cada movimento artístico. No artigo de

35
(...) pasting pieces of the world onto the canvas is kissing representationalism goodbye in a very big
way.
36
(...) objective, scientific and even banal everyday aspects of the map became positive advantages in
supporting the goal of divorcing art from visual pleasure. As generally in Modernism, the connection
between art and cartography involves a conscious rejection of traditional aesthetics.
58

Cosgrove (2005), situa-se um importante esforço em compreender os mapas artísticos


através de uma periodização em movimentos das artes e suas relações com os mapas. É,
no mínimo, interesse notar que todos os exemplos de mapas artísticos citados pelo autor
são europeus ou norte-americanos. Mas isso não quer dizer que não existam mapas
artísticos feitos em outras nacionalidades. Inclusive o Modernismo, citado como
movimento que primeiro utilizou tais elementos cartográficos, teve bastante
expressividade nos países da América Latina, rendendo também um mapa artístico
pioneiro que é nosso objeto de estudo, o Mapa invertido da América do Sul, de 1943.
Na tentativa de fornecer um panorama geral desse esforço, estruturamos suas
informações na seguinte tabela explicativa:

Tabela 1- Movimentos artísticos e mapas.


Movimento Início Característica
Artístico
Modernismo Décadas de Questionar padrões e normas estabelecidas
1910/1920 previamente.
Surrealismo e Década de 1950 Engajar os espaços vividos de forma gráfica
Situacionismo e ativa
Arte Conceitual e Décadas de Problematizar o poder dos códigos visuais
adiante 1960/1970 cartográficos e os interesses de suas
manipulações
Outros Década de 1970 Reconhecer as relações cotidianas com os
mapas através de artes interativas e
performáticas; evidenciar distorções na
elaboração de mapas, como projeções.
Fonte: O autor, 2015, baseado em COSGROVE, 2005.

Essa esquematização em períodos da Arte não é o único caminho válido para a


compreensão dos mapas artísticos. Com o mesmo objetivo de Cosgrove (2005), mas
com metodologia e ideias diferentes, D’Ignazio (2009) discute três principais impulsos
pelos quais artistas têm feitos mapas, independentemente de periodização temporal.
Para a autora, a cartografia e as artes apresentam relações históricas muito antigas, mas
esses três impulsos concentram-se nos mapas artísticos modernos. Essa esquematização
se isenta do cenário das mudanças sociais e econômicas forjados na vida cotidiana, para
59

priorizar elementos que atravessam os séculos XX e XXI, e caracterizam a arte


contemporânea.
A fim de facilitar a análise comparativa, também elaboramos um quadro
resumido dessa divisão, mas fazemos a mesma ressalva da autora em alertar que estes
são grupos interconectados e não categorias rígidas.

Tabela 2 – Impulsos dos mapas artísticos.


Impulso Descrição Um exemplo
Sabotadores de símbolos Usam mapas para A bourgeois Precision
referência pessoal, utopia Brain Incites World
ou metáfora de lugares. Movement, de Raul
Hausman (1920).
Agentes e atores Usam mapa para desafiar The Surrealist Map of the
status quo e promover World, Anonymous
mudanças no mundo como (1929).
conhecemos.
Mapeadores de dados Usam mapa como uma Statistical Challenges, de
invisíveis metáfora de visualização Igo Gunther (1988).
da informação territorial,
como mercado de ações,
Internet, fluxos globais.
Fonte: O autor, 2015, baseado em D’IGNAZIO, 2009.

Esses dois exemplos de esquematização das características dos mapas artísticos


não findam as análises sobre eles, mas sinalizam sua importância. Na verdade, ainda são
escassas as bibliografias e análises que procurem definir os mapas artísticos, ou analisá-
los em algum contexto investigativo, aproveitando suas funções e informações
representadas. Os mapas artísticos ampliam as formas de representar o mundo de modo
mais aberto e espontâneo, acarretando em uma fonte de informação nova para as
metodologias da ciência geográfica. Com eles, não cabem análises de conformidade
técnica ou precisão de proporções, o que está em tela são as funções sociais, tanto as
que influenciam os mapas, como as que são influenciadas por eles. As propostas
artísticas de mapas têm essa capacidade de sensibilizar e causar reflexão sobre nossas
relações com os espaços, reais ou imaginados. As possibilidades não findam.
60

Com efeito, o ato de mapear, seja artístico ou científico, é um ato de


criatividade, pois formam a expressão de um conhecimento sobre o mundo
(CRAMPTON, 2010). A diferença é que no contexto científico existem regras que
guiam e limitam essa representação, colocando-as como precisas e corretas expressões
de um mundo que é único. Enquanto, no contexto artístico, essas expressões são guiadas
por anseios culturais e ideológicos, que são assumidamente colocados, configurando-as
como uma imagem possível e contextualizada de mundo. Nesse sentido, parte da
multiplicação e difusão dos mapas artísticos também está relacionada aos anseios
sociais de seu contexto. A busca por um mapa “melhor” ou mais “preciso” deixou de ser
o único objetivo nas imagens de mundo, ganhando o espaço para o anseio de novas
relações e novos usos, em outras palavras, representações que encarnem novas atitudes
frente ao mundo, com novos eventos, experimentos, intervenções e atividades
(CRAMPTON, 2010).
Os elementos cartográficos por muito tempo eram referência de uma estética
científica e calculada, que ao serem apropriados em obras artísticas, acabam por revelar
uma crítica à noção de neutralidade dos elementos representativos no mapa Assim,
colocam em questão como o mapa, apesar de se afirmar normativo e neutro, também
passa pelos mesmos processos de seleção, omissão e influência ideológica das demais
representações.
Ao fazer mapas, artistas estão apagando a linha que cartógrafos tentaram
desenhar entre suas formas de comunicação gráfica (mapas) e outras
(desenhos, pinturas, e assim vai). Desta maneira artistas de mapa estão
reivindicando o mapa como uma função discursiva para a população em
geral. O florescimento do mapa artístico sinaliza o iminente fim do mapa
como forma privilegiada de comunicação (WOOD, 2006, p.5, tradução
nossa)37.

Esse processo é descrito de forma mais incisiva através da metáfora da máscara,


proposta por Wood (2006). O autor expõe que essa referida estética que a cartografia
padronizou para si através da cientificidade é composta pela uniformidade mecânica, e
resultou na leitura desses símbolos como algo distanciado e imparcial. Com a crença na
imparcialidade, fica fácil afirmar também a neutralidade e objetividade dos mapas, visto
que a uniformidade já reprimiu o potencial expressivo de cada elemento e já omitiu a

37
In doing map artists are erasing the line cartographers have tried to draw between their form of graphic
communication (maps) and the others (drawings, paintings, and soon). In this way map artists are
reclaiming the map as a discourse function for people in general. The flourishing of map art signals the
imminent demise of the map as a privileged form of communication.
61

autoria do mapa (WOOD, 2006). É justamente esse processo de construção da


neutralidade que o autor vai chamar de máscara:
Mapas passam uma descrição do território mais prontamente quando eles
parecem estar descrevendo um estado objetivo das coisas, de informar sobre
uma realidade existente; e eles aparentam estar fazendo isso quando usam
uma máscara de autoridade impessoal (WOOD, 2006, p.8, tradução nossa) 38.

Uma vez mascarado, o mapa pode afirmar sua autoridade que direcionam o
modo como olhamos e utilizamos os mapas. Com tal máscara, o mapa visa atingir a
imparcialidade e neutralidade, passando “a ser aceito não como um discurso sobre o
mundo (que é aberto para discussão ou debate), mas como o mundo em si (sobre o qual
não podemos fazer nada, só podemos aceitar), em outras palavras, como um mito”
(WOOD, 2007, p. 6, tradução nossa, grifo no original)39. Seguindo essa lógica, os
mapas artísticos seriam os que evidenciam e retiram as máscaras do mapa. Assim,
O que está em questão é a natureza do mundo em que queremos viver. Ao
apontar para a existência de outros mundos – reais ou imaginados- artistas de
mapa estão reivindicando o poder do mapa de alcançar outros fins além da
reprodução social de um status quo. Mapas artísticos não rejeitam os mapas.
Eles rejeitam a autoridade clamada pelos mapas normativos exclusivamente
para tratar a realidade como ela é, ou seja, com imparcialidade e objetividade,
os traços consagrados da máscara (WOOD, 2006, p. 10, traduzido pela
autora, grifo no original)40.

Portanto, essa máscara é uma metáfora para se referir a aparência da


cientificidade enquanto algo neutro. Toda máscara esconde algo, e nesse caso o que fica
escondido é a dimensão social em que o mapa atua, ajudando a legitimá-la (HARLEY,
1989). Nesse sentido, se concordamos que os artistas de mapa denunciam e retiram essa
máscara por não pretender ser neutro, então ele revela a dimensão social da cartografia.
Essa é umas das características dos mapas artísticos que tanto interessa para a
investigação geográfica: explorar as relações sociais e de poder de que os mapas
participam, dispensando sua ideia de precisão e de comprovação da realidade.

38
Maps pass as descriptions of the territory most readily when they appear to be describing an objective
state of affairs, to be reporting on an existing reality; and they appear to be doing this when they wear
masks of impersonal authority.
39
(...) on being accepted not as a discourse about the world (which would be open to discussion, or a
fight) but as the world itself (about which we could do nothing, which could only accept), this is to say,
as myth.
40
What is at stake is the nature of the world we want to live in. In pointing towards the existence of other
worlds – real or imagined –map artists are claiming the power of the map to achieve ends other than the
social reproduction of the status quo. Map artists do not reject maps. They reject the authority claimed by
normative maps uniquely to portray reality as it is, that is, which dispassion and objectivity, the traits
embodied in the mask.
62

Simultaneamente, cabe ressaltar, tal máscara também auxilia na afirmação de


uma imagem do mundo enquanto um padrão correto, previamente e cientificamente,
definido. Assim, ao retirá-la, os mapas artísticos revelam as diversas e variantes formas
de expressar o mundo, através de inspirações que podem ser abertamente culturais,
políticas ou puramente estéticas. Essas apropriações artísticas de mapa tendem a
abarcar as novas demandas e novas posturas frente ao mundo: questionando padrões,
negando a uniformidade e expressando vivencias.
Diante do exposto, os mapas artísticos nos despertaram a curiosidade de
entender melhor essa ímpar forma imagética que associa forma estética a contextos
políticos e culturais, ressaltando as relações de poder da cartografia e a expressividade
das visões e mundo. É com esse olhar que buscaremos analisar o Mapa invertido da
América do Sul, ou seja, visando compreender tanto o modo como se apropria de
elementos cartográficos em sua arte, como também seus contextos de elaboração, de
apropriação e de reprodução. Nesses entendimentos, procuramos identificar os discursos
que são associados ao Mapa invertido da América do Sul, o que ele questiona e quais
visões de mundo ele transmite.

1.2 A elaboração do Mapa invertido da América Do Sul

Pela resumida história que narramos sobre os mapas artísticos, torna-se patente o
pioneirismo do Mapa invertido da América do Sul. Enquanto as primeiras obras
utilizavam recorte-colagem, na década de 1920, na Europa; Torres-Garcia já fazia seu
desenho, em 1943, na América do Sul. Na verdade, podemos dizer que foi até antes
disso, da década de 1930, visto que existem duas versões dessa mesma obra, sendo a
primeira de 1936. Acontece que poucos conhecem sobre essa duplicidade da obra que
levam o mesmo título, claramente porque a segunda versão foi muito mais reproduzida
em vários meios, difundida por outros tempos e tornou-se mais famosa do que a
primeira.
A obra de 1936 apresenta a mesma ideia geral da de 1943, porém o primeiro
desenho foi mais detalhista e preenchido, incorporando mais elementos cartográficos,
como o gradeado de coordenadas, as linhas dos trópicos, o nome dos oceanos que
limitam a América do Sul, até a direção da rotação da Terra apareceu. Já a obra de 1943
63

aparece mais “limpa”, com menos elementos cartográficos e mais elementos simbólicos,
como o peixe e o barco. O motivo dessa diferença se encontra nas características
artísticas de Torres-García e nas situações a que cada obra serviu, e que discorreremos
na presente divisão do capítulo.

Figura 5 – Mapa invertido da América do Sul de 1936.

Fonte: SULEAR, 2015. Disponível em: < http://www.sulear.com.br/sulear_vs_nortear.html >. Acesso


em: 17 mar. 2015.

Para além das diferenças, também são notáveis as semelhanças que mantém a
característica principal da obra: inverter o mapa da América do Sul e propor uma visão
de mundo onde o Sul não seja mais dependente ou “inferiorizado”. Essa proposição tem
ampla relação com o conjunto de ideias e de conhecimentos que Torres-García, autor da
obra, vivenciava e percebia. No entendimento desses fatores, pretendemos também
elucidar em quais características definidas por Cosgrove (2005) e por D’Ignazio (2009),
e contida nas tabelas anteriormente apresentadas, o Mapa invertido da América do Sul
se encaixa.
Já inicialmente, na definição guiada por períodos de tempo de Cosgrove (2005),
é fácil deduzir pelo ano da obra, que esta pertence ao período Modernista. Vale ir além
do dado temporal para notar que as características da obra também dialogam com o
64

Modernismo, um movimento artístico que teve ampla expressividade na América


Latina, principalmente nas discussões sobre identidade e cultura e suas ex-colônias da
Europa. Se é verdade, como afirmamos anteriormente, que o modernismo questionava
os padrões socialmente estabelecidos, então essa re-orientação da América do Sul
cumpria didaticamente esse papel.
A recorrente preocupação da arte latino-americana em querer construir uma
identidade nacional, e até certo ponto essa incumbência é bastante artística, tende a
formar não apenas uma apreensão interna do país, mas também ajuda a identificar as
semelhanças entre os movimentos de outros países latinos (ADES, 1997). Reconhece-se
que mesmo o termo América Latina resguarda seus problemas. Este foi formado no
contexto da política externa francesa dos anos de 1850, para referir-se às terras que
haviam sido colônias espanholas, portuguesas e as de fala francesa, e com isso, não foi
um termo dotado, inicialmente, de sentido interno de unidade.
Atualmente, esse termo continua contendo ressalvas, por englobar extensas
populações, com distintas tradições e cultura diversificada. Mas cabe relativizar que este
é um problema que envolve tantas outras regionalizações geopolíticas do globo, e não
uma singularidade da América Latina pelo qual se anularia qualquer tentativa de
compreendê-la em um conjunto. Destarte, os esforços de análise do contexto latino
amplo também são igualmente válidos e, por isso, segue sendo essa nossa opção.
Devido também a outras duas razões são somadas: primeiro, porque os escritos e
referências de Torres-Garcia são mais frequentes em relação ao conjunto da América;
segundo, porque:
(...) a amplidão da perspectiva, tanto do ponto de vista histórico como do
geográfico, permitiu a descoberta de temas e preocupações que se vinculam e
são comuns a todos; por exemplo: a tortuosa e fascinante relação com a arte
europeia, ao tempo da independência, quando a liberdade política se fazia
acompanhar de uma dependência oficial ao modelo acadêmico neoclássico
europeu, através de uma ambígua interação com o modernismo; as discussões
entre aqueles que se punham a favor de uma arte tendenciosa e política e
aqueles que afirmavam a autonomia da arte; o nativismo, o nacionalismo e a
arte popular; o papel das artes visuais na construção da história; e
principalmente os conflitos e tensões inerentes à busca de uma identidade
cultural (ADES, 1997, pg. 1).

É importante nesse ponto, não confundir identidade da América Latina, com sua
realidade, como muitas vezes é tomada. Na noção de realidade estariam expressos
fatores históricos e sociogeográficos que supostamente são capazes de criar uma
realidade circum-ambiente (MORSE, 2011), o que consideramos bastante problemático
de se afirmar e averiguar. Já na noção de identidade estaria expresso, de forma
65

resumida, um vínculo criado por consciência coletiva, algo autorreconhecido, o que por
sua vez, incorpora interesses dominantes, políticos e ideológicos.
Por tal razão, as artes não possuem pretensão de expressar uma realidade, mas sim
de participar de uma identidade e, por conseguinte, são também influenciadas pelos
posicionamentos político-ideológico e suas críticas. Inclusive, por vezes o conceito de
cultura e identidade foi associado ao “bom gosto” das elites, que seriam letradas e
eruditas suficientes para admirar essa qualidade estética das artes. Nesse sentido,
julgamos proveitoso ressaltar alguns das características sociais da América Latina, onde
foram gestados o Modernismo e, logo, o Mapa invertido da América do Sul.
O princípio modernista de romper padrões artísticos e convenções sociais foram
inspirados pela crescente tecnificação e alienação na Europa, guiadas pelas teorias
marxistas, pelas atitudes de “modernização”, pela industrialização e pela Primeira
Guerra Mundial, fatores que surpreendiam e inquietavam os artistas. A sensação era de
constantes mudanças onde nada ganhava concretude, em um aparente colapso
confirmado pelas imagens da guerra. Por isso, os artistas modernistas promoviam esse
“ataque cognitivo às contradições da modernidade” (MORSE, 2011, p. 27).
Nesse sentido, o Modernismo europeu influenciou sim os artistas latinos, mas não
com o papel de espelho ou de tutor que vigorava até então. A Europa estava decadente e
com o centro das artes desencantado, abrindo precedentes para a pela reabilitação da
periferia. Os artistas latinos foram estimulados a desdenhar desses pressupostos
evolutivos de seu passado e a inventar uma nova identidade e um novo futuro para seus
países, uma vez que a Europa não era mais um modelo a se seguir (MARTIN, 2011).
A ruptura com o passado, embora poucas vezes expressadas tão brutalmente
quanto no futurismo ou no dadaísmo, era, em geral, de alguma maneira,
afirmada; às vezes, na forma de um elogio mais ou menos direto à
modernidade, mas o mais frequente era ver a tradição sendo reavaliada e
rejeitados o período colonial e a cultura europeizada do século XIX, em troca
de uma tradição cultural indígena de mais fortes raízes (ADES, 1997, p. 126).

Nessa nova identidade não cabia apenas ressaltar a natureza ímpar do continente
americano, mas ainda valiam os princípios modernistas de questionamento do status
quo conservador e da harmonia estética das artes, e por tal razão, assim fizeram os
artistas latinos, inclusive Torres-García. Ele, Diego Rivera, Tarsila do Amaral, e tantos
outros importantes nomes do Modernismo na América Latina, tiveram contato com esse
movimento ainda na Europa, e eles próprios contribuíram para o desenvolvimento de
correntes peculiares dentro do Modernismo, como é o caso de Torres-García e seu
construtivismo.
66

Sendo assim, existe uma identidade ambígua, onde a Europa ainda é um centro de
aprendizagem, mas ao mesmo tempo algo que se deve combater a influência direta. Não
é nosso intuito adentrar nessa discussão, mas ressaltamos que essa ambiguidade não
invalida as contribuições desses artistas, pois também é frequente em vários setores das
sociedades colonizadas, onde convivem tanto o combate como o aceite das culturas
importadas. Por exemplo, foi o caso das elites crioulas, que usavam o termo “bárbaro”,
não para referir-se aos estrangeiros, mas a grupos de seus próprios países que eram
notoriamente “nativos” (MORSE, 2011).
Torres-García era fruto dessa ambiguidade, tendo nascido no Uruguai e mudado,
ainda jovem, para Barcelona. Já adulto, também morou em Paris e em Nova Iorque,
antes de regressar para Montevidéu em 1934, declarando o objetivo de desenvolver uma
série de atividades, desde aulas, palestras de arte até a criação de um movimento, em
Montevidéu, que acreditava poder igualar a arte de Paris (TORRES, 1992), de novo
vista, simultaneamente, como fonte repressora e de inspiração. Por isso, esses objetivos
encontram dificuldades pelo que o próprio artista descreveu como um gosto
predominante nas artes uruguaias de copiar cânones estéticos do fin-de-siècle
importados da Europa (TORRES, 1992).
Assim, uma de suas primeiras atitudes já em Montevidéu é escrever seu manifesto
Estructura (1936), cuja intenção era expor o processo histórico da arte através de suas
experiências, com grandes doses de opiniões pessoais. Também era sua intenção exaltar
a cultura e os motivos do Uruguai e da América do Sul, combatendo o comportamento
que ele chamou de “exilados da Europa”. Uma consciência que não era só de Torres-
García, como também de outros artistas e estudiosos, perplexos com as principais
capitais latinas que não se apresentavam como sedes de sua sociedade.
Ao contrário, eram enclaves europeus, a conspirar traiçoeiramente ou a
colaborar submissamente na exploração de matérias-primas naturais, ou
como Lima, Rio de Janeiro e Buenos Aires, com as costas voltadas para o
interior e mirando sonhadoramente o oceano, que reconduzia à Europa.
Decerto, alguns escritores sempre alegaram que o cosmopolismo é uma
aproximação inevitável, e ainda por cima desejável, do mundo, um desejo de
inserir a América Latina na ordem universal das coisas, de fazê-la tomar seu
lugar entre as culturas, reconhecendo e sendo reconhecida. Eis uma discussão
cujo fim está longe (MARTIN, 2011, p. 356).

Já nesse manifesto aparecia a frase sintética dos ideais de Torres-García: “Nosso


Norte é o Sul” (fragmento citado na Introdução). Assim, para ilustração da capa o artista
elabora a inicial versão (1936) do Mapa invertido da América do Sul, onde pela
primeira vez a silhueta da América do Sul aparece direcionada para cima, em uma
67

instigante inversão da imagem mais usual e padronizada. Por causa do conteúdo desse
manifesto, e do cenário que o inspirou, não é suficiente afirmar que a inversão do mapa
é apenas um questionamento da autoridade do mapa científico. Existem,
concomitantemente, o próprio entusiasmo em valorizar a América do Sul, a crítica ao
domínio europeu nas ciências e nas artes, e a proposição de um novo olhar e consciência
para essa região. Todas são informações simbolicamente expressas na colocação do Sul
na porção “superior” do mapa.
Com esse manifesto e sua capa, Torres-García intencionava chamar atenção de
novos artistas uruguaios para conformação de um movimento que fosse procedente da
América do Sul e carregasse essa marca, centrando em temas e problemas que não se
religam à Europa. Ele visionava uma nova arte para a América, que envolvesse desde
arquitetura até o artesanato. Sem pretender ser um movimento isolacionista ou
preciosista que não aceita qualquer influência externa, admitia-se os princípios básicos
de outras origens, como no caso do construtivismo, mas que servissem como
ensinamentos e não cópias.
Após algumas ações artísticas que não tiveram muito sucesso, com severas
críticas destinadas à Torres-García, vindas da imprensa ou dos órgãos de governo, ele
teve reconhecido sucesso entre jovens uruguaios interessados em arte, que passaram a
procurá-lo em busca de maiores conhecimentos e amadurecimento da ideia de uma arte
expressivamente nacional. Levando a fundação da Escola do Sul: El Taller Torres-
García (TTG), em 1943, onde Torres-García passou a trabalhar, ensinar e escrever seus
manifestos (FLÓ, 1992). Com esse centro artístico de ensino, o reconhecimento e
popularidade de Torres-García tiveram aumento no Uruguai, trazendo a oportunidade,
para ele e seus aprendizes, de interferirem em espaços da cidade, como murais e/ou
esculturas em prédios públicos e praças do país.
É para inaugurar as atividades da TTG que Torres-García elabora a segunda
versão do Mapa invertido da América do Sul, de 1943. Este desenho hoje vem a ser
uma de suas obras mais famosas na cultura geral, que foi reproduzida em diversos
meios, em diferentes tempos, para servir a contextos diversos, com a mesma ideia de
inversão da América do Sul. É possível que esses reprodutores não sejam cientes do
contexto de criação da obra, ainda assim, são atraídos pela expressiva mensagem
simbolizada em tão simples desenho.
A propósito, esse é um ponto de indagação de muitas pessoas quando conhecem
esse mapa artístico: Mas um desenho tão infantil é uma obra de arte? Na verdade, essa
68

característica do Mapa invertido da América do Sul corresponde aos princípios da arte


construtivista, que tinha em Torres-García um dos seus principais nomes. O
construtivismo guiava-se na busca de um entendimento universal das artes, e adotava os
signos como algo natural e, com isso, ele pode apreender a essência daquele ponto de
incidência entre o existente e o abstrato (ADES, 1997). Artisticamente, Torres-García é
reconhecido por essa estética quase rústica. Seus quadros, desenhos, murais e até
esculturas são concebidos pela forma retangular onde as diferentes cores e os diferentes
símbolos são associados. Esse processo segue assim muito bem elucidado:
Ao inserir um símbolo representando valores humanísticos na antitética
estrutura racional do neoplasticismo, Torres-García teve sucesso em criar um
estilo que constituiu uma importante contribuição para a arte moderna.
Chamou-o universalismo construtivo.Torres criou universalismo construtivo
sintetizando os principais movimentos artísticos do período. Do cubismo, ele
tomou o princípio geométrico e o conceito de forma concreta; do
neoplasticismo, a estrutura purificada; e do surrealismo, as referências ao
subconsciente (TORRES, 1992, p. 7, tradução nossa)41.

Como muitos artistas de vanguarda, Torres-García rejeitava figuras naturalistas e


espaços ilusionistas. Através de sua perspectiva construtivista, ele organizava formas
abstratas conforme estruturas geométricas, associadas a cores para construir uma nova
ordem visual. Logo,
Ele abstraia símbolos em linhas básicas de desenhos, acreditando que tais
formas simplificadas seriam primordiais e, assim entendidas universalmente,
e, em seguida, ele as construía em suas redes, criando um sistema de relações
simbólicas formalmente estruturadas (JOLLY, 2011, p. 200, tradução
nossa.)42.

Essa pretensão de elaborar um estilo artístico baseado no entendimento para o


mundo, e não apenas na estética, era compartilhado por vários artistas do período, pois
condizia com os princípios gerais modernistas. A singularidade de Torres-García não
está, portanto, nos princípios básicos do construtivismo cuja origem era europeia, mas
na incorporação de elementos e entendimentos indígenas à esses princípios (TORRES,
1992). Em suma, Torres-García “praticou sua arte com a mão tipicamente trêmula –

41
By inserting a symbol representing humanistic values into the antithetical rational structure of
neoplasticism, Torres-García succeeded in creating a style that constituted a major contribution to modern
art. He called it constructive universalism. Torres created constructive universalism by synthesizing the
leading art movements of the period. From cubism, he took the geometric principle and the concept of
concrete form; from neoplasticism, the purified structure; and from surrealism, references to the
subconscious.
42
He abstracted symbols into basic line drawings, believing that such simplified forms would be primal
and thus universally understood, and then he built them into his grids, creating a system of formally
structured symbolic relationships.
69

com ‘sentimento’, segundo jargão de estúdios – emprestando às suas obras um estranho


simbolismo. Nunca se viu nada igual no mundo” (BAYÓN, 2011, p. 609).
Portanto, são essas as convicções que guiaram a configuração do Mapa invertido
da América do Sul. Para expressá-la, o artista compõe uma reunião de elementos
simbólicos de desenho simplificado e rústico, que intencionam despertar a ideia de
atemporalidade e de entendimento universal. O que parece ter obtido sucesso, visto sua
frequente reprodução atual. O propósito era incorporar um elemento figurativo ou o
sujeito na estrutura, o artista penetra em sua ordem geométrica e estrutural, para
sintetizá-lo, torná-lo uma ideia, a essência de si mesmo.
O desenho de Torres-García é composto através de elementos simbólicos,
divididos em três ordens que poderiam ser separadas ou simultâneas: do grupo do
intelecto, da emoção ou da realidade física. O sol, a lua, o peixe e o barco são todos
símbolos que, em sua estrutura, permitem um entendimento universal, e não aparecem
apenas nesse mapa artístico, mas são recorrentes em várias outras obras do artista
uruguaio.
Para ele, o peixe denotava o conjunto da natureza e da vida, o imaginário do
reino animal (TORRES, 1992). A trindade do sol, lua e estrelas, são símbolos presentes
na vida de todos, e evocam o universalismo dos cosmos (JOLLY, 2011). Já o navio, este
era menos comum em suas obras, sugere ligação com o comércio, as viagens além-mar,
as histórias de exploração, e até sua própria viagem de retorno a Montevidéu, segundo
Jolly (2011). O desenho do barco também está relacionado aos próprios escritos de
43
Torres-García, em sua carta A escola do Sul , em que ele cita que com a inversão do
mapa, os barcos que saem de Montevidéu em direção ao Norte, agora viajam para
baixo, não para cima, como antes.
A América do Sul é reduzida ao seu contorno, cujo único referencial
cartográfico é a Linha do Equador, ainda presente por, na convenção, indicar a divisão
global entre hemisférios Norte e Sul. A precisão está na localização de Montevidéu
destacada pelas coordenadas, que auxiliam a chegada do barco. Nem mesmo a
designação da região é necessária, pois esta já é reconhecida pelo seu geo-corpo,
previamente moldado e fixado pelos mapas tradicionais. Destarte, o artista usa de uma
das principais funções geopolíticas da cartografia: servir de ferramenta para modelar os
formatos de países, regiões e continentes. Segundo Novaes (2014), esse enquadramento

43
Publicado em 1935, como Lição 30 do seu “Universalimo construtivo: contribuição para unificação das
artes e da cultura da América”.
70

do mundo via mapas padronizados tem o objetivo geopolítico de classificar o que


pertence e o que não pertence a tal localidade, e a estabelecer seu posicionamento
“correto”.
Apesar da noção de “geo-corpo” também ser atuante na definição e afirmação de
fronteiras, o mapa artístico de Torres-García prefere apagar essas linhas internas.
Porque, como já mencionamos, as valorizações da identidade nacional de cada um
desses países se encontram em semelhanças com outros países da América e, assim, ele
almejava um movimento artístico que englobasse as artes de toda região. Em conjunto
com a ausência de fronteiras, também escolhe o uso de temas e elementos oriundos das
crenças indígenas, como o culto ao Sol e a Lua, e o peixe como alimento.
Para o artista, o símbolo era um modo de sintetizar uma ideia em uma forma;
enquanto o mapa, como qualquer arte universalista construtiva, é uma série de símbolos
estruturando a realidade. Essa realidade evocada pelas padronizações e cientificidade do
mapa é justamente o que é colocado em questionamento pela obra de Torres-García. As
metrópoles europeias se esforçavam na divulgação de um mapa-múndi síntese da
suposta realidade do planeta, onde as projeções e elementos cartográficos beneficiavam
o posicionamento central e superior da Europa (HARLEY, 2009). Já esse mapa artístico
colocava que a ponta da América do Sul decisivamente apontaria para o alto, clamando
por uma posição dominante no mapa.
Torres-Garcia foi um dos primeiros artistas do século XX a trabalhar com mapas,
e dividiu com outros artistas a ideia de usar a América do Sul para evocar o pan-
americanismo (JOLLY, 2011). Com tal proposta, Torres-García não copiou a fórmula
dos mapas artísticos surrealistas em substituir ou ocultar certos países e cidades, mas
construiu a ideia de inverter a orientação do mapa, de relativizar essa imagem
padronizada de mundo para o entendimento de sua mensagem: valorizar as coisas locais
da America na construção de um novo mundo e que, portanto, necessitava de um novo
mapa.
Diante dessas características, se retomamos a classificação de mapas artísticos
proposta por D’Ignazio (2009), podemos especificar o Mapa invertido da América do
Sul como um “agente e ator”. Isso porque a inversão da América do Sul expressa,
criativamente, um questionamento sobre o poder da orientação em nossas imagens
mentais de mundo, ao mesmo tempo em que propõe uma nova posição com uma nova
visão para essa região que foi colonizada pela Europa. Ou seja, esse mapa artístico usa
71

das linguagens cartográficas para questionar aparatos das relações hegemônicas, bem
como para propor uma mudança no mundo, tal qual sugere essa classificação. Então:
Talvez este é o porquê Torres-García, assim como todas as vanguardas, lutou
com uma posição social marginal conduzindo a criar uma imagem que
continua a ressoar hoje. Sua abordagem à arte, e ao mapeamento, lembra-nos
que a nossa relação com lugar e espaço, é uma construção intelectual. Numa
época em que Geografia era o destino, Torres-García abraçou prerrogativa
utópica do artista vanguarda para reconstruir essa relação através da
manipulação da ordem simbólica que temos aceitado como dado. Inverter o
mapa, tem o potencial para reordenar as hierarquias de política, comércio e
intercâmbio cultural que estruturam nosso mundo- se aceitarmos essa nova
ordem utópica (JOLLY, 2011, p. 201, tradução nossa) 44.

Sendo assim, se uma nova ordem é pensada, é porque existe outra já estabelecida
que precisa ser relativizada. A concepção de orientação do mundo ao Norte, destinando
a parte inferior do mapa para o Sul, foi difundida e absorvida pelo excessivo uso da
projeção Mercator. Destarte, se admitimos, assim como Wood (2006), que os mapas
artísticos retiram a máscara das normas cartográficas tradicionais, o Mapa invertido da
América do Sul propõe um questionamento direto ao uso político da projeção
padronizada por Mercator. Não podemos nos esquivar da discussão pertinente ao
sucesso e padronização dessa projeção. Torna-se enriquecedor compreender os
interesses e as consequências geopolíticas de seu uso como uma visão correta de
mundo, para assim, termos claros os fatores que motivaram a composição desse
questionamento através da arte.

1.3 Relações entre cartografia e geopolítica

Como já discorremos anteriormente, os mapas científicos promoveram o uso de


elementos cartográficos disciplinados e padronizados, com o intuito de afirmar sua
neutralidade. Expomos também toda a problemática de seletividade e representatividade
que impossibilitam essa total imparcialidade na construção do mapa. O que ainda nos
falta debater são as consequências e resultados dessa crença na neutralidade da

44
Perhaps this is why Torres-García, who like all avant-gardes struggled with a marginal social position
managed to create an image that continues to resonate today. His approach to art, and to map making,
reminds us that our relationship to place and space, is an intellectual construction. In an era when
Geography was destiny, Torres-García embraced the avant-garde artist's utopian prerogative to
reconstruct this relationship by manipulating the symbolic order that we have come to accept as given.
Inverting the map, has the potential to reorder the hierarchies of politics, trade, and cultural exchange that
structure our world- if we accept this utopian new order.
72

cartografia, onde ganha destaque a confiabilidade dos discursos expressos


cartograficamente acarretando em um poder político dos mapas.
Os mapas são as formas pelas quais as concepções sobre os espaços são expressas
visualmente, por conseguinte, guiam nossas ideias e os conhecimentos espaciais
(HARLEY; WOODWARD, 1987). Com tal premissa, torna-se dedutível a que ponto
eles prestam aos interesses e influências, potencializadas pela a confiança na
neutralidade de sua representação. São diversas as formas pelos quais os mapas
apresentam interesses políticos: na reivindicação de posse de terra, na disputa de
fronteiras, na distribuição de serviços, na espacialização dos votos eleitorais, nas
estratégias de guerra, enfim, em uma lista que pode se alongar por muitas páginas. Em
suma, mapas têm desempenhado um importante papel tanto na política internacional,
como doméstica, refletindo a habilidade poderosa das imagens e mensagens visuais de
representar e avançar seus interesses (BLACK, 1997).
Nesse sentido, se a geopolítica reconhece que espaços são criados pelas relações
de poder, então a cartografia passa a ter um importante papel nesse processo (BLACK,
1997), por legitimar a noção de espaço conforme interesse. Tais relações de poder
possuem uma dimensão espacial que podem ser replicadas pelo uso dos mapas. Esse
olhar sobre a cartografia se expande pela possibilidade de encarar o mapa como um
texto ou como um discurso, tal qual já debatemos anteriormente, onde a preocupação
recai sobre as dimensões sociais e políticas do mapa. Com tal perspectiva, torna-se
reconhecível a forma pela qual os mapas atuam na sociedade enquanto um poder do
conhecimento (HARLEY, 1989).
Para melhor compreender como o poder funciona através do mapa, a associação
com as ideias foucaultianas tornaram-se pertinentes, especialmente por problematizar o
conhecimento e sua relação com poder.
Foucault procurou usar noções, símbolos e linguagem da cartografia,
especificamente do espaço, fronteiras e redes, a fim de compreender e fazer
dinâmicas seus pontos de vista sobre a política do conhecimento. Para
Foucault, o conhecimento como luta era para ser entendido, em grande parte
em função de espaço: havia limites e esferas em disputa; ideologias
colonizando terrenos (BLACK, 1997, p. 18, tradução nossa)45.

É com essa perspectiva que Harley (1989) propõe uma distinção entre poder
externo e poder interno dos mapas. No primeiro, o poder é exercido sobre ou com a

45
Foucault sought to use the notions, symbols and language of cartography, specifically of space,
boundaries and networks, in order to understand and make dynamic his views on the politics of
knowledge. For Foucault, knowledge as struggle was to be understood in large part by reference to space:
there were boundaries and spheres of contest; ideologies colonized terrains.
73

cartografia, referindo-se às influências que estão por trás do mapeamento, como um


patrão, um órgão de controle, instituições estatais, ministérios, dentre tantos outros. Ou
seja, um poder que é geralmente centralizado e exercido burocraticamente, imposto de
cima. Já no segundo, o foco está nos efeitos políticos da elaboração do mapa, onde os
cartógrafos seriam manufatores de poder. Isso significa que o poder interno está na
(...) forma como os mapas são compilados e as categorias de informação
selecionada; a maneira como eles são generalizados, um conjunto de regras
para a abstração da paisagem; a maneira como os elementos na paisagem são
formados em hierarquias; e a forma como vários estilos retóricos que também
reproduzem o poder são empregados para representar a paisagem (HARLEY,
1989, p. 13, tradução nossa)46.

Os mapas, tal quais outras formas imagéticas, possuem uma expressividade que os
torna um importante meio de divulgar e difundir discursos. Mas existem algumas
particularidades notáveis, principalmente em dois sentidos. Primeiro, eles formam um
discurso especificamente sobre os espaços, sendo atuantes na configuração de uma
ordem social espacial (WOOD, 2010). Isso porque, os mapas conectam entidades,
eventos, localidades e fenômenos díspares e heterogêneos que nos permitem ver
conexões que não são visíveis de outra forma. Partindo dessa afirmativa, Black (1997)
aponta que os mapas modernos configuram uma forma de conhecimento padronizada
que estabelece um conjunto de possibilidades de conhecer, ver e de agir. No mesmo
sentido, Harley (2009) conclui que os mapas invadem a vida cotidiana e criam uma
espécie de “ditadura do espaço” ao condicionar nossas relações espaciais.
Em segundo, desde sua fase científica, mapas se apresentam como um discurso
neutro dessa realidade espacial, estimulando que suas mensagens sejam vistas com uma
credibilidade diferenciada das demais imagens. Ao se apresentarem como imparciais e
independentes de qualquer discurso ideológico ou de classes, os mapas tendem a
mostrar um espaço social vazio. A neutralidade é garantida pelo o que Wood (2010)
chamou de uso da máscara, que oculta tanto o processo criativo do mapeamento, como
também o modo pelo qual os mapas dão voz à autoridade de poderosos
(KLINGHOFFER, 2006). Em outras palavras,
Por trás do criador de mapas se esconde um conjunto de relações de poder,
que cria suas próprias especificações. Sejam impostas por um particular, pela
burocracia do Estado, ou pelo mercado, estas regras podem, às vezes, ser
reconstruídas a partir de um conteúdo dos mapas e do modo de representação
gráfica. Adaptando as projeções individuais, manipulando as escalas,

46
the way maps are compiled and the categories of information selected; the way they are generalized, a
set of rules for the abstraction of the landscape; the way the elements in the landscape are formed into
hierarchies; and the way various rhetorical styles that also reproduce power are employed to represent the
landscape
74

aumentando excessivamente ou deslocando os sinais ou a topografia,


utilizando cores com forte poder emotivo (...) (HARLEY, 2009, p. 10).

Destarte, a mesma cientificidade e imparcialidade que impediam de perceber a


relação entre arte e cartografia reaparecem também dificultando a percepção da relação
entre política e cartografia. Para transpor esse impasse, os autores da cartografia crítica
foram influenciados por teorias de Derrida e Foucault que auxiliam na compreensão do
mapa enquanto discurso e enquanto formas de conhecimento, e como tais, são guiadas
por interesses hegemônicos, tanto de quem constrói como de quem propaga as ideais ali
contidas.
Isso significa dizer que, enquanto uma forma de conhecimento específica, os
mapas reproduzem certas divisões sociais, principalmente aquelas pautadas na
autoridade de quem detém o conhecimento legitimado. O conhecimento hierarquiza,
divide e subjulga outras formas de conhecimento para o estabelecimento do que passa a
ser aceito como “padrão” ou como “correto”, em um processo por onde perpassa, além
da cientificidade, os interesses sociais e ideológicos. Destarte,
A cartografia pode ser também uma forma de conhecimento e uma forma de
poder. Assim como o historiador pinta a paisagem do passado com as cores
do presente, o geômetra, conscientemente ou não, não reproduz somente o
entorno em sentido abstrato, mas também os imperativos territoriais de um
sistema político (HARLEY, 2009, p. 3).

A fim de tornar didática a compreensão das relações de poder na cartografia,


Harley (2009) esquematiza três pontos de vistas teóricos que auxiliam na afirmação
dessas relações, onde o mapa pode ser visto como uma linguagem, ou através da
iconografia, ou pela sociologia do conhecimento. As características dos três meios
seguem sintetizadas na tabela abaixo.

Tabela 3 – Três caminhos teóricos das relações de poder dos mapas. (início)
O que propõe Como contribui
Induz a um maior leque de questionamentos
direcionados ao mapa, como: códigos,
Linguagem Baseia-se em uma análise contextos, nível de familiarização dos
semiótica. usuários, natureza da informação, autoria,
entre outros. A perspectiva da crítica
literária auxilia a identificar uma forma
particular de discurso cartográfico.
75

Tabela 3 – Três caminhos teóricos das relações de poder dos mapas. (continuação)
Nível mais profundo de Mapas carregam imagens associáveis à
Iconologia significação, associado à aspectos do espaço cotidiano, formulando
dimensão simbólica e às uma dimensão simbólica onde o poder do
formulações Panofsky. mapa é reproduzido e percebido.
Sociologia Cartografia entendida Auxiliam a considerar a influência política
do como uma forma de dos mapas na sociedade. Eles são meios de
Conhecimento conhecimento e uma autoridade por fazerem parte do estoque de
forma de poder informação e saber controlados pelo Estado
e suas políticas.
Fonte: O autor, 2015, baseado em Harley, 2009.

Por tais caminhos, a leitura do poder das representações cartográficas passou a ser
hábil para diversos autores. Eles colocam em debate o domínio que certos setores
influentes das sociedades tiveram, historicamente, sobre os mapas, dentre os quais: a
Igreja, os imperadores, o Estado e o exército (BLACK, 1997; HARLEY, 2009).
Complementarmente, também destacam as influências políticas por detrás das
convenções cartográficas mais usuais, como: a definição do Meridiano de Greenwich,
as projeções e as orientações (COSGROVE, 2001; KLINGHOFFER, 2006). Dentre
todas essas possibilidades, nosso foco recai sobre a padronização das orientações de
mapa que guiaram uma configuração conhecida de mundo.
Tal foco desperta a seguinte indagação: o que efetivamente ocultam as
influências políticas dos mapas científicos? Cuja resposta, encontramos no processo de
naturalização das representações cartográficas, ou seja, no modo como os mapas são
reproduzidos e utilizados como uma construção neutra, favorecendo a sua aceitação
como natural ou reflexo da existência. É comum encontrar a utilização da perspectiva da
semiologia e da ideia de mito na explicação dessa naturalização. Apesar dessas
discussões não serem nosso objetivo, discorreremos brevemente sobre algumas de suas
noções que já foram adequadas, por outros autores, à cartografia.
A configuração de um mito ocorre, segundo Wood (2010), quando um sistema
de significantes passa a ser entendido como um sistema de fatos. Para tanto,
significantes e significados são articulados em uma relação natural, onde um torna-se
substituto do outro. De fato, o mito é um conjunto de signos estruturando um discurso,
76

mas que oculta essa característica discursiva e passa a ser interpretado de forma
naturalizada. Assim,
O mito opera transformando um sentido pleno numa forma vazia, o sentido
está contido na forma, porém empobrecido, sem seu valor original, pois a
função do conceito mítico não é eliminar o sentido, mas sim deformá-lo,
aliená-lo. O vazio da forma permitirá a locação de um conceito, com novo
contexto, com nova história. O mito, assim, é uma fala (mensagem) roubada
e restituída. Essa mensagem é definida pela sua intenção muito mais do que
pela sua literalidade (GIRARDI, 2000, p.47).

No caso da cartografia, o mito é investigado na intenção e na retórica dos mapas.


Com o mito, a alocação de um signo referencial no mapa, passa a ser a mensagem de
que esse objeto está nesse local, e não se considera o processo histórico, os acordos e as
relações sociais dessa localização, em um processo de esvaziamento de sentido
(GIRARDI, 2000). O conceito de mito priva o signo de sua história, por conseguinte,
(...) ele mantém sempre a plenitude, a presença, do sistema semiológico
primário a que é infinitamente capaz de recuar. Quando é visto obliquamente
aparece como um slogan publicitário, confrontado diretamente é uma lenda
das mais insossas, de modo que o slogan, continue soando em nossos
ouvidos, é apreendido como nada mais que o eco natural dos fatos do mapa
(WOOD, 2010, p. 75, tradução nossa)47.

Portanto, a configuração do mito resguarda ampla relação com o processo de


naturalização de uma concepção. No caso dos mapas, muitas vezes naturalizam visões
de mundo, que inibem o entendimento e a aceitação de outras representações plurais
desse mundo, como os mapas artísticos ou antigos. Não se trata de dizer se o mapa está
correto ou errado, em uma questão de precisão, mas de se ter em vista que os mapas de
fato tomam uma posição, enquanto se apresentam como neutros em questões que
dividem as pessoas (WOOD, 2010).
Com tais argumentos em vista, retomamos o nosso principal interesse: a inversão
de orientação no Mapa invertido da América do Sul de Torres-García. Ao colocar o sul
ocupando a parte superior de sua imagem, o artista provoca uma ironia, um impulso de
“endireitar” o mapa por aceitarmos um padrão de orientação ao norte que impede o
reconhecimento de que todas as direções são possíveis de serem orientadas.
De fato, a escolha da orientação cartográfica descreve a posição da qual o
observador irá olhar esse mapa do mundo, ou seja, descreve o lugar de referência para
sua orientação no espaço. Assim,

47
(...) it retains always the fullness, the presence, of the primary semiological system to which it endlessly
capable of retreating. What viewed obliquely appears as an advertising slogan, confronted directly is the
blandest of legends, so that the slogan, still ringing in one’s ears, is apprehended as no more than the
natural echo of the facts of the map
77

Estritamente falando, a orientação se refere geralmente à posição ou direção


relativa; nos tempos modernos, ficou consagrada como a fixação de
localização em relação aos pontos de uma bússola magnética. Mas muito
antes da invenção da bússola na China, no século II d. C., os mapas do
mundo eram orientados de acordo com um dos quatro pontos cardeais: norte,
sul, leste e oeste. A decisão de orientar mapas de acordo com uma direção
principal varia de uma cultura para outra, mas não há nenhuma razão
puramente geográfica para que uma direção seja melhor do que outra, ou para
que os mapas ocidentais modernos tenham naturalizado a suposição de que o
norte deve estar no topo de todos os mapas do mundo (BROTTON, 2014, p.
17, grifo no original).

Essa mesma China antiga, inventora da bússola, não pretendeu padronizar a


orientação de seus mapas. Pelo contrário, historiadores da cartografia apontam que os
chineses até variavam de orientação, conforme o contato que tinham com outras
culturas (THROWER, 2008). E assim foi durante o contato com o povo árabe, que
utilizava a orientação ao sul. Isso associa-se ao fato que um dos primeiros povos
conquistados pelos árabes foram os zoroastristas, para quem o sul era sagrado; e parte
porque os principais centros culturais ficavam nesse novo território conquistado, ao
norte de Meca, tornando o sul uma direção importante para os mulçumanos (HARLEY;
WOODWARD, 1987). Acrescenta-se, ainda, que essa orientação ao sul, também
expressa no Mapa invertido da América do Sul, foi proclamada pelo cartógrafo árabe
Al-Idrisi, pois favorecia uma localização central da Arábia, próxima e acima da Europa
(KLINGHOFFER, 2006). Em suma,
(...) cartografia chinesa foi predominantemente orientada para o sul (...),
talvez desenvolvido porque o apogeu do sol no solstício de verão era visível
na parte sul do céu. O sul também foi direção real, e as bússolas chinesas
apontavam em direção ao sul magnético. Imperadores sentaram-se com as
costas voltadas para o norte, e seus palácios virados para o sul de sua
localização ao norte do eixo leste-oeste da capital. Mapeadores islâmicos, que
foram influenciados pelos chineses, também exibiam uma orientação ao sul.
Isto é evidente nas obras de al-Idrisi do século XII (KLINGHOFFER, 2006.
p. 22, tradução nossa)48.

Na verdade, a própria palavra “orientação” já traz uma designação associada ao


Oriente, o que indica uma maior preocupação das sociedades antigas de guiarem-se
através do Leste. Não é de se estranhar, portanto, que muitos mapas passados sejam
desenhados com o Leste em seu topo, inclusive alguns exemplos oriundos da Europa

48
(...) Chinese cartography was predominantly oriented southward. two Hunan maps from the early
second century B.C., exemplify this custom, perhaps developed because the apogee of the sun at the
summer solstice was visible in the southern part of the sky. South was also the royal direction, and
Chinese compasses pointed toward magnetic south. Emperors sat with their backs to the north, and their
palaces faced south from their location north of the capital's east-west axis. Islamic map making, which
was influenced by the Chinese, also featured a southern orientation. This is evident in the twelfth-century
works of al-Idrisi.
78

medieval, dentre os quais está o já mencionado mapa T- O ou mapa de roda (FIGURA


4), que representava o oriente em seu topo com a Ásia, enquanto a Europa e a África
dividiam a porção abaixo.
Ocorre que, as orientações são selecionadas de acordo com as estruturas de
pensamento em vigor. Durante muito tempo as direções cardeais não funcionavam
apenas como pontos de orientação, mas também como entidades místicas representadas
no mapa simbolicamente, associada a frequente curiosidade humana sobre a posição do
nascer e do pôr do sol. Não é à toa, que se documenta que as palavras Leste e Oeste
tendem a ser nomeadas, nas culturas primitivas, antes das palavras Norte e Sul. Ainda
sobre a origem dessas palavras, relata-se a importância do Leste também nas práticas
sociais e religiosas, onde, por exemplo, o Norte seria a esquerda do Leste, sendo
associado a um comportamento canhoto e sinistro (HARLEY; WOODWARD, 1987).
A proeminência das quatro direções cardeais no mappaemundi, junto com a
apropriação simbólica das cabeças de ventos, sem dúvida, tem um significado
muito mais profundo do que simplesmente mostrar ao leitor qual direção o
mapa deve ser lido. Os mapas são encontrados orientados em todas as quatro
direções, mas leste, norte, e sul são os mais comuns, nesta ordem. A
orientação a leste é geralmente, mas não exclusivamente, encontrada no
mappaemundi tripartido, e segue-se a tradição antiga Sallustian romana
adotada pelo mundo cristão. A orientação norteada é encontrada em outro
grande grupo de mappaemundi que pode ser rastreada até fontes gregas
clássicas e cuja geometria foi centrada no eixo da Terra e no climata. A
orientação suleada ocorre provavelmente por influência árabe, desde que
mapas do mundo da cultura árabe eram caracteristicamente orientada para o
sul (HARLEY E WOODWARD, 1987, p. 336-337, traduzido pela autora)49.

Diante dessa diversidade de orientações, a conclusão é que são selecionadas de


acordo com seu contexto histórico-social, e a orientação norteada não é uma exceção,
como sua padronização nos faz crer. Na verdade, a maioria dos mapas mundiais
conhecidos tendia a colocar sua cultura no centro com o auxílio da orientação, sem
qualquer distúrbio nisso. O problema ocorre pelo norte ter sido difundido como natural
e correta forma de orientar o mapa. Nem sequer existe uma explicação científica ou
matematicamente pautada que justifique essa forma. Na verdade, muitas vezes ela é

49
The prominence of the four cardinal directions on the mappaemundi, together with appropriate
symbolic wind heads, thus undoubtedly has a far deeper significance than simply showing the reader
which way the map is to be read. The maps are found oriented in all four directions, but east, north, and
south are the most common, in that order. An eastern orientation is usually, but by no means exclusively,
found on the tripartite mappaemundi, and it follows the late Roman Sallustian tradition adopted by the
Christian world. The northern orientation is found on the other large group of mappaemundi that can be
traced back to earlier classical Greek sources and whose geometry was centered on the earth's axis and
the climate. The southern orientation is probably derived from Arabic influence,since world maps of the
Arabic culture were characteristically oriented to the south.
79

explicada através da tradição cartográfica da Grécia antiga e da influência dos estudos


de Ptolomeu (KLINGHOFFER, 2006).
O motivo de o norte ter finalmente triunfado como direção principal na
tradição geográfica ocidental, considerando-se suas conotações inicialmente
negativas para o cristianismo, nunca foi totalmente explicado. Mapas gregos
tardios e cartas náuticas medievais primitivas, ou portulanos, eram
desenhados com o uso de bússolas magnéticas, o que provavelmente
estabeleceu a superioridade de navegação do eixo norte-sul sobre o leste-
oeste; mas, mesmo assim, há poucos motivos para que o sul não pudesse ser
adotado como ponto de orientação cardeal mais simples; com efeito, os
cartógrafos muçulmanos continuaram a desenhar mapas com o sul no alto
muito tempo depois da adoção da bússola (BROTTON, 2014, p. 18).

Na falta de uma lógica matemática para a padronização norteada de orientação,


ficam as explicações políticas. Isso porque, a escolha de direcionamento do mapa está
relacionada com a centralização de determinada área e com a condução da leitura da
imagem cartográfica. A orientação do mapa-múndi tem séria importância no
posicionamento dos espaços, em como se lê sua disposição, onde usualmente, se usa o
ponto central como referência e os demais como dependência. Por conseguinte, esse
processo influência na visibilidade, pois como mencionamos anteriormente, esta diz
respeito ao encaminhamento do que estamos aptos/ permitidos a ver. Talvez essa
relação fique assim, mais claramente explicada:
(...) a espacialidade é uma condição fundamental ao fenômeno da
visibilidade. Em outras palavras, a posição das coisas, dos objetos, das
pessoas dentro daquilo que chamamos de trama locacional, ou seja, suas
posições relativas segundo um sistema de referências espaciais consistem em
um elemento central, embora poucas vezes valorizado, no exame do
fenômeno da visibilidade. A variação da posição de um objeto, pessoa ou
fenômeno altera completamente a nossa percepção, nossa apreciação e nosso
provável interesse sobre eles (GOMES, 2013, p. 36).

Tal citação não faz referência específica aos mapas, mas nos pareceu
amplamente associável por remeter às diferenças de posição entre os mapas científicos e
o Mapa invertido da América do Sul. A orientação ao norte é acompanhada da posição
central dos países da Europa, permitindo ser mais visada do que outras áreas do globo
que se posicionam em relação a esta primeira. Já a orientação ao sul do mapa artístico
de Torres-García expressa outros interesses e outras percepções que não são englobadas
representadas no mapa-múndi padronizado.
A configuração desse padrão de imagem mundo teve inegável participação do
mapa Mercator, até porque, a configuração de uma projeção passa também pela escolha
de uma orientação. O fato é que desde Mercator o mundo passou a ser cognoscível pela
orientação norte, pela centralidade da Europa, pelo pré-definido posicionamento de
países e pela segmentação do Oceano Pacífico. O que não é explicado por simples
80

cálculos de precisão, mas perpassa pelos interesses políticos em multiplicar e difundir


tal projeção como um padrão.
A estrutura geométrica dos mapas, vale dizer, a concepção gráfica que
determina o lugar central ou a projeção, fixando o modo de transformação em
relação ao globo terrestre, é um elemento que pode amplificar o impacto
político de uma imagem, mesmo quando alguma distorção não é buscada
conscientemente (HARLEY, 2009, p. 11).

Ocorre que projeção e distorção são palavras indissociáveis. O matemático


alemão Carl Friedrich Gauss provou conclusivamente que uma esfera curva e um plano
não eram isométricos (BROTTON, 2014), ou seja, o globo terrestre jamais poderia ser
representado sobre uma superfície plana sem alguma perda, ou distorção da forma ou da
angularidade. Apesar disso, a busca por projeções “precisas” prosseguia e, na escolha
do que se destaca e do que se atenua, está uma influência ideológica que pode não partir
do criador do mapa, mas de quem o escolhe, utiliza e reproduz de acordo com seu
interesse. Nesse sentido,
Um número de diferentes projeções foi produzido ao longo dos séculos, para
servir a propósitos diferentes. A mais influente, e única a ser adotada por
‘desenvolvidas’, quer dizer europeizadas, sociedades ao redor do mundo, têm
sido a europeia. O mundo foi circunavegado pela primeira vez no século
XVI, e pelos europeus. Não é de estranhar que muitos mapas então
produzidos usavam uma projeção que fez mais sentido em termos de
emprego da bússola e de direções marítimas e afins, especialmente nas
latitudes médias. Os europeus precisavam ser capazes de navegar grandes
distâncias se eles queriam cumprir a lógica comercial de possessões distantes
e oportunidades comerciais (BLACK, 1997, p. 29, tradução nossa)50.

Assim, tal quais outros mapas, Mercator também foi influenciado pelas
demandas de seu tempo. O primeiro grande destaque dessa projeção está em ser um dos
primeiros mapas europeus que sobrepõe visões cristãs, colocando a Europa no centro do
mapa ao invés das terras sagradas (BLACK, 1997). O segundo destaque, amplamente
conhecido, é que esta projeção tinha por objetivo auxiliar as grandes navegações, e para
isso, desenvolveu uma projeção conforme, cujos cálculos facilitavam o uso de bússola e
compasso através de linhas paralelas e meridianas que cruzam o globo com o mesmo
ângulo.
Entretanto, como toda a projeção, o resultado desta é uma distorção. No caso,
favorável as maiores latitudes, expandido o tamanho das terras distantes do Equador: na

50
A number of different projections have been produced over the centuries, to serve different purposes.
The most influential, and the only ones to be adopted by developed, i.e. Europeanized, societies around
the world, have been European. The world was first circumnavigated in the sixteenth century, and by
Europeans. It is not surprising that many maps they then produced used a projection that made most sense
in terms of the employment of the compass, and of maritime directions and links, especially in the mid-
latitudes. Europeans needed to be able to sail great distances if they were to fulfil the commercial logic of
distant possessions and trading opportunities.
81

latitude 60º, a distância representada aumenta duas vezes, na 80º, seis vezes. Através do
mapa Mercator, fica difícil convencer, por exemplo, que a Groelândia, na verdade, é
menor do que a América do Sul. Com isso, além da Europa centralizada, ela também
ocupa uma área relativa muito maior, o que abre precedente para considerar a projeção
Mercator uma construção eurocêntrica. Não no sentido caricato, mas simplesmente
porque o contexto de elaboração de tal projeção pretendia valorizar a influência
comercial dos europeus (KLINGHOFFER, 2006), bem como a produção cartográfica
europeia do período era protuberante, justificando seu destaque no mapa (HARLEY,
2009).
Portanto, desviamos da relação direta de apontar Mercator como um colonizador
ou cartógrafo conscientemente eurocêntrico. E concordamos com Seeman (2003) em
afirmar que:
Ao elaborar esta projeção, Mercator não pensava (nem sabia) nos impactos
socioculturais e políticos da sua projeção. Visando apenas a oferecer um
auxílio aos navegadores, Mercator erra para que os marinheiros possam
acertar. O que era uma ajuda de navegação para os capitães do Renascimento
tornou-se uma representação ideologizada do mundo (Op. Cit. , p. 13).

Nesse contexto, temos lógicas as razões que justificam a elaboração da projeção


Mercator, o que ainda não temos lógico é o que levou a sua reprodução como padrão
correto de mapa-múndi. Parte foi favorecida pela facilidade de reprodução gráfica por
algumas editoras, que consideravam bastante conveniente a sua forma geométrica
(SEEMAN, 2003). Entretanto, saber dos contextos e intenções de Mercator não invalida
o estudo das consequências geográficas de seu uso (THROWER, 2008), uma vez que
estas não apresentam uma relação tão direta como a navegação, tal qual explica
Klinghoffer (2006):
O legado de projeções de Mercator é um pouco diferente. Os alunos de todo
o mundo aprenderam a geografia de seus mapas e emergem com um viés
eurocêntrico. Isso foi demonstrado em uma pesquisa recente de 438
estudantes da geografia em 22 locais, apenas 3 dos quais estão na Europa.
Um deles ocorreu em Istambul, que é principalmente da Europa, mas parte
predominantemente do estado asiático. Os alunos foram convidados a
desenhar a partir da memória um mapa que mostra os continentes. Não
surpreendentemente, a maioria em 15 locais fez seu próprio continente maior,
que era na realidade. Mais revelador foi que estudantes de todos os 22 locais
exageraram o tamanho da Europa, e aqueles de 20 locais desenharam a África
muito pequena. Este último fenômeno era ainda evidente em 4 dos 5 locais
africanos usado para a pesquisa (Op. Cit. , p. 78, tradução nossa) 51.

51
The legacy of Mercator’s projections is somewhat different. Students throughout the world learned
their geography from his maps and emerged with a Eurocentric bias. This was demonstrated in a recent
survey of 438 geography students at 22 sites, only 3 of which are in Europe. One of these was in Istanbul,
which is mostly in Europe but part of a predominantly Asian state. Students were asked to draw from
82

Portanto, nosso interesse não está em julgar a elaboração da projeção Mercator,


mas em considerar as consequências de seu uso duradouro por entre os séculos. Assim,
a representação que inicialmente auxiliou as conquistas das grandes navegações, mesmo
diante de suas distorções, foi propagada por outros tempos, com outros interesses,
principalmente colonial. Dentre os quais, destacamos sua participação no
estabelecimento de uma visão única de mundo, Mercator trazia a ideia de uma imagem
verossímil e neutra do mundo, que passa a ser entendido através das formas, posições e
tamanhos expressos nesse mapa.
Essa configuração de mundo trazia um respaldo visual para a centralidade
europeia em diversos campos, como comércio e política. E foi através dela que muitas
sociedades passaram a reconhecer seu lugar no mundo, tal qual o seguinte exemplo,
tendo em vista que a seguinte situação pode ser replicada para a nomenclatura “sul-
americanos”, que envolve as representações do Mapa invertido da América do Sul.
Muitas percepções europeias tornaram-se padronizadas em mapas por causa
da dominação do seu continente na cartografia nos últimos quatro séculos,
mas uma reação contra o ‘eurocentrismo’ no final do século XX tem feito
incursões modestas no vocabulário geográfico (...). A palavra ‘oriental’
tornou-se ‘politicamente incorreta’, em referência às pessoas, porque ela se
baseia em defini-las no contexto de uma interpretação europeia de direção e
não em termos de uma autodefinição de lugar ou patrimônio cultural
(KLINGHOFFER, 2006, p. 45, tradução nossa)52.

A ideia de englobar o mundo em uma só visão é mais influente do que sua


reprodução cotidiana possa demonstrar. Cosgrove (2001) descreve bem esse processo
ao se debruçar sobre a ideia de vislumbrar a totalidade do mundo em uma visão de
Apolo. Dizia ele que imaginar, ver e representar o globo possui uma história cultural, e
ainda que seja esférico, pintado, fotografado, achatado ou matematicamente projetado, o
globo é conhecido através de suas construções imagéticas. Não obstante, são essas
imagens que contribuem na formulação de entendimentos e ações no próprio mundo
(COSGROVE, 2001). Assim,

memory a map depicting the continents. Not surprisingly, the majority at 15 sites made their own
continent larger that it was in reality. More revealing was that students at all 22 sites exaggerated the size
of Europe, and those at 20 sites drew Africa as too small. This latter phenomenon was even evident at 4
of the 5 African sites used for the survey
52
Many european perceptions became standardized in maps because of their continent's domination of
cartography for the past four centuries, but a backlash against 'eurocentrism' toward the end of the
twentieth has made modest inroads into the geographical vocabulary (....) The word 'oriental' has become
'politically incorrect' in reference to people, because it is predicated on defining them in the context of a
European interpretation of direction rather than in terms of a self-definition of place or cultural heritage.
83

A ordem geográfica primária de continentes e oceanos não foi


definitivamente fixada até o século XX - uma imposição intelectual
globalizante da imaginação geográfica europeia. A extensão e disposição das
terras e mares e seu grau de proteção mútua permaneceu por muito tempo em
questão. A nomenclatura geográfica do globo é necessariamente arbitrária e
convencional, em vez de lógica ou empírica, sua aparente ordem e
estabilidade no atlas ou mapa do mundo enganam: o mundo nominal é um
espaço de contestação ao invés de concórdia (COSGROVE, 2001, p. 12,
tradução nossa)53.

Os entendimentos explicados por Cosgrove têm semelhanças com a perspectiva


crítica da geopolítica comentada brevemente em nossa introdução, destacavelmente no
reconhecimento do papel geopolítico que as imagens de mundo desempenham. Nesse
sentido, as construções cartográficas não são vistas como construções neutras, elas
possuem influencias de suas demandas sociais na elaboração, bem como sua utilização
depende de certos interesses ideológicos.
A reprodução e extensa utilização do mapa Mercator, nos permite caracterizá-lo
como uma imagem canônica (VUJAKOVIC, 2009), ou seja, que incorpora discursos e
concepções ampliadas. Tais imagens seduzem pela facilidade de resumir didaticamente
uma concepção e passam a ser reproduzidas extensivamente, é o caso do mapa-múndi
Mercator, da representação da linha evolutiva ou da hélice do DNA, por exemplo. Ao
mesmo tempo, essa repetição divulga formas autorizadas e autoritárias de entender um
conceito, pois reforçam pontos de vistas culturais que ficam ancorados por tais imagens.
Por tal razão, mesmo existindo muitas vozes dissonantes, que denunciam a relação entre
representação cartográfica e imperialismo, é difícil superar ou substituir a imagem
eurocêntrica de mundo.
Nesse sentido, o Mapa invertido da América do Sul pode ser considerado
integrante desse conjunto que contrapõe a hegemonia da imagem canônica de mundo. A
relevância de mapas artísticos como esse não está em substituir os mapas científicos,
mas em ilustrar como eles são parciais visões de mundo e propor uma diversidade de
imagens sobre o globo. Mais do que confusas, tais obras artísticas podem ser
libertadoras em termos de um amplo entendimento da complexidade real do mundo.
Claramente, os mapas artísticos também apresentam utilização e reprodução
influenciadas por interesses políticos ou ideológicos diversos. Assim, se os mapas

53
The primary geographical order of continents and oceans was not finally determined until the twentieth
century - a globalizing intellectual imposition of the European geographical imagination. The extent and
disposition of lands and seas and their mutual enclosure long remained in question. The globe's
geographical naming is necessarily arbitrary and conventional rather than logical or empirical, its
apparent order and stability in atlas or world map deceptive: the nominal globe is a space of contestation
rather than of concord.
84

científicos canônicos serviram à colonização, imperialismo e dominação comercial


europeia, então os mapas artísticos, em contraposição, passam a ter a simpatia de teorias
críticas e subalternas (HUGGAN, 2003). Ambos são alternativas a um sistema de ideias
que se constitui como hegemônico, ou seja, são complementares no sentido de que
mapas não-científicos são amplamente expressivos e livres, podendo expressar visões
de mundo que multiplicam aquelas naturalizadas pelas formas de saber dominantes.
Todo o exposto nos encaminha para concluir que nossa investigação sobre o
Mapa invertido da América do Sul não tem o objetivo de discorrer unicamente sobre
sua estética, expressividade artística e contextos de criação. Reconhecemos que estes
são elementos igualmente importantes, mas nosso foco recai sobre os discursos e
contextos geopolíticos que motivam e são motivados nesse mapa artístico. A ideia de
inverter a posição do sul no mapa artístico de Torres-García adquire respaldo no
entendimento do papel geopolítico dessa região nas relações do sistema-mundo. O
imaginário geográfico que definiu, gradativamente, características específicas e distintas
para o Norte e para o Sul global, teve contribuição das representações cartográficas,
cujos elementos são reapropriados nessa construção artística para fomentar outras visões
de mundo. Portanto, o questionamento sobre a quais discursos contribuem para a
reprodução atual do Mapa invertido da América do Sul buscará sua resposta nos debates
pertinentes ao próximo capítulo.
85
86

2 QUAL A POSIÇÃO DO SUL GLOBAL?

Torres-García “virou” a América de cabeça para baixo, invertendo a posição do


Sul em sua obra artística e provocando tanto admiração como repulsão. A diversidade
de reações está ligada tanto à estética artística apresentada, como às expressões
ideológicas representadas artisticamente. Virar o mapa “ao contrário” é mais do que um
efeito curioso, é contrariar uma representação canônica, estabelecida e hegemônica de
mundo que, por sua vez, tem ampla influência das relações de poder nas formas de
conhecimento. Assim, nos leva a questionar: será que a reprodução Mapa invertido da
América do Sul seria tão constante sem sua relação com os debates ideológicos e
medidas políticas direcionadas aos países do Sul ao longo dos séculos?
Após compreendermos as dimensões imagéticas e representativas desse mapa
artístico, sentimos a necessidade de complementar o entendimento de sua importância
nas teorias sociais sobre os países de Sul que, pela lógica do artista uruguaio, também
poderiam ser relativizadas ou “invertidas”. Partindo dessa representação de mapa
questionadora, encontramos amplo diálogo com as ideias da geopolítica crítica para
direcionar nossa análise de tais teorias sociais. A perspectiva crítica propõe justamente
que os campos de conhecimento sejam analisados e examinados enquanto construções,
não para “invertê-los” de errado para certo, mas para reconhecer que a verdade do
conhecimento é estabelecida sobre condições que tem ampla relação com o
poder (CRAMPTON, 2010).
Outrossim a geopolítica é convencionalmente entendida como um discurso sobre
o mundo, cuja função é simplificar questões político-sociais de países de diferentes
culturas em uma explicação facilmente entendida para as demais populações do globo
(THUATHAIL, 2006). Nesse processo, a geopolítica tende a criar regiões políticas,
visões de mundo e discursos metafóricos que incorporam valores e características
predefinidas para tais espaços. Já na sua corrente crítica, que emerge principalmente na
década de 1980, a geopolítica deixa de ser um discurso neutro, para ser entendida
enquanto uma construção do conhecimento ideologicamente localizada e lida através de
seu contexto (DODDS, 2001).
Para Thuathail (2006), os discursos políticos, muitas vezes ratificados por teorias
científicas da geopolítica, baseiam-se em imagens pré-existentes, concepções sociais e
experiências geográficas para produzir o efeito requerido. Desse modo, os Estados
87

sustentam o que o autor chama de “cultura geopolítica”, uma espécie de entendimento


sobre uma única identidade, posição e função daquele território no mundo que é
compartilhado socialmente por sua população. Contextualizar tal cultura é um dos
propósitos da geopolítica crítica, onde ao invés de assumir uma influência da posição
geográfica física na política do Estado, passa a atentar para a interpretação cultural que
tal população tem sobre sua posição geográfica física.
Em suma, podemos dizer que a Geopolítica Crítica apresenta três características
definidoras: I- ela é oposicionista e aponta para formas dominantes de opressão ou
desigualdades; II- ela é prática e deseja mudar o mundo; III- ela é teórica e rejeita
explanações positivistas ao abraçar teorias sociais críticas (CRAMPTON, 2010). Com
tais fatores, essa corrente contribui aos debates do presente capítulo, por reconhecer a
geopolítica não apenas nas ações de governo, mas também na prática popular, presente
na vida cotidiana das pessoas e expressa em representações culturais. “A Geopolítica
Crítica deve demonstrar como formas populares e elitistas de raciocínio geopolítico
conspiram uma com a outra e, em seguida, ressoam com e através da cultura popular”
(DODDS, 2001, p. 473, tradução nossa)54.
A divisão do globo entre Norte e Sul é uma dessas regionalizações formada e
descrita pelas teorias geopolíticas. Comumente, o foco desse objeto recai nos conflitos
das relações interestatais ou na diferenciação de função desses países no capitalismo
global. O esforço da perspectiva crítica é de ampliar o alcance desses entendimentos
geopolíticos, atentando para como eles influem e são influenciados pela prática
cotidiana. Nesse sentido, reconhecem como os discursos geopolíticos também estão
presentes nas manifestações culturais, produções literárias e outras construções artísticas
que podem corroborar ou questionar tais descrições de mundo feitas pela geopolítica. A
relação entre conhecimento teórico e influência cotidiana pode ser assim descrito:
(...) o papel do conhecimento é criar ordens para que possamos criar o sentido
na infinidade de informações sobre o mundo que nos rodeia. As coisas são
agrupadas em categorias e associações que nos permitem navegar o nosso
caminho através do mundo. Estes agrupamentos colocam ordem no caos de
coisas ao nosso redor. Foucault argumenta que através da história, diferentes
‘epistemes', ou formas de conhecer ou organizar o mundo, passaram a
dominar (SHARP, 2009, p. 30, tradução nossa)55.

54
Critical geopolitics ought to demonstrate how popular and élite forms of geopolitical reasoning collude
with one another and then resonate with and through popular culture.
55
(...) the role of knowledge is to create orders so that we can make sense of the multitude of information
about the world around us. Things are grouped into categories and associations that allow us to navigate
our way through the world. These groupings make order out of the chaos of stuff around us. Foucault
88

Justamente por se tratar de uma abstração teórica constituída e fixada através de


discursos científicos, políticos e sociais, torna-se impreciso responder quando começou,
quais são as definições ou quais são os países e fronteiras dessa região geopolítica
chamada de Sul global. Ainda assim, muitos autores apontam que, apesar da existência
anterior, é no período pós-2º guerra mundial que as divergências entre Norte e Sul
adquirem relevância nas análises da política mundial: “O muro Leste-Oeste sucumbe, ao
mesmo tempo em que novos muros Norte-Sul se levantam (...)” (HAESBAERT;
PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 9).
Essa caracterização de espaços globais díspares é comum nas explicações da
política mundial, pelo menos, desde o declínio da potência monopolar da Inglaterra,
quando foi atribuído à geopolítica a incumbência de apontar a nova potência mundial e
as respectivas disputa de força (VESENTINI, 2013). É o que Thuathail (2006) chamou
de “bola de cristal” da geopolítica que permite prever eventos futuros dos quais
políticos e jornalistas gostam de ouvir. Assim, promete-se uma visão das direções
futuras que o mundo irá tomar, como: Qual será a nova forma do mapa político
mundial? Ou onde e pelo quê serão lutadas as próximas guerras? Essa é uma demanda
crescente que se exige dos teóricos geopolíticos.
Um caminho semelhante a este reconheceu as disparidades entre Norte e Sul
como um elemento de escala global capaz de explicar os eventos mundiais que viriam a
acontecer com o término da Guerra Fria e a obsolescência da disparidade Leste e Oeste.
Até mesmo porque, o cenário pós-2º guerra mundial trazia fortemente a noção de
globalização, valorizando explicações na escala global de interação entre os países,
onde o chamado “sistema-mundo” seria uma espécie de “ator” muito mais importante
do que os Estados nacionais. Desse modo, a análise desse sistema revela que com o fim
da Guerra Fria, o maior problema e fonte potencial de conflitos nessa nova ordem
mundial seria a crescente disparidade entre o Norte e o Sul.
Desde então, passam a serem frequentes as pesquisas que revelam a miséria e
precariedade das populações dos países do Sul; os pacotes de medidas de auxílio para
esses países; os mapas explicativos da limitação do Sul global; o ensino da linha
limítrofe entre o Sul e o Norte geopolítico nos livros didáticos; os debates midiáticos
que localizam diversos conflitos locais nesse contexto de disparidade global; entre
vários outros discursos que fornecem concretude a essa regionalização do globo. Essa

argues that through history different 'epistemes, or ways of knowing or organising the world, have come
to dominate.
89

constante referência às disparidades entre países do Norte e do Sul que não seguem de
uma contextualização histórica e são usadas como meras explicações de um contexto
global é o que leva Vesentini (2013) a afirmar que se trata de “duas noções
geoeconômicas demasiado genéricas (....), que não fornecem uma ideia precisa de como
o mundo se divide do ponto de vista da geração de riquezas” (Op. Cit., p. 52).
Por outro lado, é inegável que as análises que consideram o contexto histórico
das diferenças entre Norte e Sul trazem importantes contribuições para o entendimento
das políticas e relações de poder do sistema-mundo. É nesse sentido que diversos
autores referenciam a análise de Hobsbawm (SLATER, 2004) ao definir o Sul como
uma zona mundial da revolução, visto que tal região foi palco dos diversos conflitos
armados da Guerra Fria, sendo apoiados pelas duas grandes potências do período. Ou
seja, o 3º mundo constituía uma área de relevância para a disputa por alianças políticas
(ESCOBAR, 2012), herdando desse período, a instabilidade e a intervenção externa em
sua política.
Essa divergência de visões sobre a divisão Norte e Sul nos demonstra que esta
não é totalmente inválida e dispensável, mas também não deve ser tomada como uma
explicação pré-definida findada em si mesma. Um terceiro caminho, associado à
perspectiva crítica da geopolítica, é compreender essas divisões de mundo e seus
discursos considerando as relações de poder que se envolvem.
Em suma, a geopolítica não é um concurso de ideias produzidas por
intelectuais livres flutuantes em que os argumentos verdadeiros e
intelectualmente superiores triunfam sobre os mentirosos, falhos e fracos.
Discurso geopolítico opera dentro de redes de poder e os discursos que
emergem como os vigentes em quaisquer estados refletem a influência dessa
estrutura de poder; na verdade, esses discursos são parte da própria operação
desta estrutura de poder (THUATHAIL, 2006, p. 12, tradução nossa)56.

Desse modo, temos claro que essa noção de Sul global é geograficamente
problemática por ser imprecisa e maleável. Acarreta, portanto, em questões bem
próximas as que Said (2007) destacou sobre a delimitação do Oriente: para ele, tais
divisões do globo não são uma forma de conhecimento inocente, mas antes são a
onipresença de um sentido de divisão do mundo em dois nas produções estéticas,
cultura popular e textos acadêmicos sociológicos, geográficos e históricos.

56
In sum, geopolitics is not a contest of ideas produced by free floating intellectuals in which truthful and
intellectually superior arguments triumph over mendacious, flawed and weak ones. Geopolitical discourse
operates within networks of power and the discourses that emerge as the prevailing ones in any states
reflect the influence of that power structure; indeed, these discourses are part of the very operation of this
power structure.
90

Em outras palavras, ele está sugerindo que o conceito de diferença entre leste
e oeste é uma diferença geopolítica que está escrita por todos os textos da
cultura ocidental, como através das escritas de viagem, textos políticos,
pinturas, ou nas discussões acadêmicas. Para Said, qualquer ou todas as
culturas do norte da África, do leste a sudeste da Ásia e os Mares do Sul
poderiam ser abrangidos pela imaginação geográfica ocidental em um
singular ‘Oriente’ (SHARP, 2009, p. 16, tradução nossa, grifo nosso)57.

Ao mesmo tempo, a divisão Norte e Sul constitui certa veracidade à medida que
passa a ser usada em diferentes discursos sobre as políticas internacionais. De fato, a
representação geopolítica de um Sul global permaneceu por diversos tempos, sendo
associada a características e nomenclaturas diferentes a esses países de acordo com o
período. Para Escobar (2012), o imaginário da divisão Norte e Sul previamente
existente é o que sustentou a durabilidade da noção de 3º mundo, mesmo após o fim do
2º mundo ter desfragmentado a ideia de divisão em três mundos.
Do mesmo modo, tal imaginário fornece sentido a outras teorias que tentam
solucionar ou readequar essa divisão de mundo, tal qual a teoria desenvolvimentista que
propõe uma dicotomia entre mundo desenvolvido e mundo subdesenvolvido; ou ainda a
teoria do sistema-mundo moderno que baseia a categorização entre países centrais e
periféricos.
Destarte, para apreender a lógica da inversão do Sul na obra de Torres-García, é
necessário compreender o que forma esse Sul, quais suas características e condições, e
principalmente, qual anseio por “inverte-las”. As ideias sobre o Sul encontram-se tanto
na prática material, como nos discursos e produções culturais, em uma relação de mútua
influência onde um sustenta a continuidade do outro, e assim ocorre com dois discursos
academicamente pautados que tiveram projeção e durabilidade em descrever e
racionalizar o Sul: o desenvolvimentismo e o sistema-mundo moderno.
Não coincidentemente, essas duas construções teóricas adquirem notoriedade e
magnitude no período pós-2º guerra mundial, quando as relações Norte e Sul passam a
ser o foco das contradições do mundo globalizado. Claramente, tais teorias possuem
inspirações e influências prévias, originadas de experiências de períodos históricos
anteriores. O desenvolvimento é um termo conhecido e usado por longo tempo, desde
seu emprego nas ciências biológicas referindo-se à transformação de um organismo, até

57
In other words, he is suggesting that the concept of difference between east and west is a geopolitical
difference which is written up throughout the texts of western culture whether through travel writing,
political texts, paintings, or in academic discussions. To Said, any or all of the culture of northern Africa,
east to southeast Asia and the South Seas could be encompassed by the western geographical imagination
into a singular 'Orient".
91

sua metáfora nas ciências sociais, ainda no século XIV, para aludir sobre o processo
gradual de mudança social (SACHS, 2010).
Apesar dessas várias conotações, outra adquire dimensão e destaque já em
meados do século XX, com o primeiro emprego oficial da palavra
“subdesenvolvimento” pelo presidente estadunidense Truman, que veio a marcar o
início da era do desenvolvimento no pós 2º guerra mundial. Desde então o
desenvolvimento passa a ser a solução, objetivo e meta para áreas que foram
caracterizadas como atrasadas, problemáticas e carentes. Assim,
O desenvolvimento não pode desvincular-se das palavras com as quais foi
formado - o crescimento, evolução, maturação. Da mesma forma, aqueles que
agora usarem a palavra não podem libertar-se de uma rede de significados
que conferem uma cegueira específica para a sua linguagem, pensamento e
ação. Não importa o contexto em que é utilizada, ou a conotação precisa que
a pessoa que a usa quer dá-la, a expressão torna-se qualificada e colorida por
significados talvez indesejados. A palavra implica sempre uma mudança
favorável, um passo do simples para o complexo, do inferior para o superior,
de pior para melhor. A palavra indica que se está fazendo bem, porque se está
avançando no sentido do necessário, inevitável, lei universal e em direção a
um objetivo desejável (SACHS, 2010, p. 6, tradução nossa)58.

Por outro lado, o sistema-mundo moderno é mais específico em sua


temporalidade, sendo uma expressão definida pelos estudos de Immanuel Wallerstein
nos anos de 1970/1980, mas reguarda suas influências de teorias anteriores que também
tentavam pensar a econômica capitalista de escala planetária. Na ideia de sistema, cada
entidade se define de acordo com a extensão geográfica de sua divisão do trabalho, ou
seja, a participação de suas atividades produtivas que são necessárias no funcionamento
desse sistema interestados (TAYLOR; FLINT, 2002).
Sistemas históricos são as "sociedades" de Wallerstein. São sistemas
compostos de partes inter-relacionadas que fazem um todo único; mas eles
também são históricos no sentido de que eles nascem, crescem por um tempo,
e depois entram em decadência. Embora Wallerstein admita apenas a
existência de um sistema deste tipo no presente, existiram inúmeros sistemas
históricos no passado (TAYLOR; FLINT, 2002, p. 7, tradução nossa) 59.

58
Development cannot delink itself from the words with which it was formed – growth, evolution,
maturation. Just the same, those who now use the word cannot free themselves from a web of meanings
that impart a specific blindness to their language, thought and action. No matter the context in which it is
used, or the precise connotation that the person using it wants to give it, the expression becomes qualified
and colored by meanings perhaps unwanted. The word always implies a favorable change, a step from the
simple to the complex, from the inferior to the superior, from worse to better. The word indicates that one
is doing well because one is advancing in the sense of a necessary, ineluctable, universal law and towards
a desirable goal.
59
Los sistemas históricos son las "sociedades" de Wallerstein. Son sistmas porque se componen de partes
interrelacionadas que forman um todo único; pero también son históricos en el sentido de que nacen, se
desarrollan durante un cierto tiempo, y después entran en decadencia. Aunque Wallerstein sólo admite la
existencia de un sistema de este tipo en la actualidad, en el pasado ha habido innumerables sistemas
históricos.
92

A formulação da ideia, o emprego dessas expressões e os principais conceitos da


teoria do desenvolvimento e do sistema-mundo moderno serão abordados no decorrer
das páginas do presente capítulo. Para essa discussão introdutória torna-se interessante
notar as semelhanças entre tais discursos. Assim, ambas as configurações dependem do
estabelecimento de uma diferença, de uma dicotomia que ressalte como Sul é avesso ao
Norte. O desenvolvimento econômico constitui o principal elemento de diferenciação,
concentrando-se nos países do Norte, onde a produção industrial, urbanização e
modernidade teriam resultado em uma sociedade próspera e civilizada (ESCOBAR,
2012).
Com efeito, a abordagem dessas teorias em suas análises sobre a economia
mundo baseia-se na ideia de estágios de evolução. Tanto o desenvolvimento, como o
sistema-mundo moderno levam a pensar que suas categorizações podem ser superadas
através de certas políticas econômicas e sociais que levariam ao avanço de estágio.
Nesse sentido, a diferenciação entre regiões no período pós 2ª guerra mundial não se
limita a estabelecer uma supremacia/dependência, mas a colocar estágios de evolução
construindo um caminho que liga um extremo ao outro. Nessa lógica, as potências
mundiais atuais seriam os países que tiveram sucesso em trilhar tal caminho.
O novo paradigma foi dado o acabamento no século XIX, quando a doutrina
do evolucionismo social firmemente enraizada no imaginário popular sobre a
suposta superioridade do Ocidente em relação a outras sociedades. Houve
diferenças sobre como definir as "fases" através do qual todas as sociedades
tiveram de passar, mas houve um acordo geral sobre três pontos essenciais:
que o progresso tem a mesma substância (ou natureza) como a história; que
todas as nações percorrem a mesma estrada; e que tudo não avança na mesma
velocidade da sociedade ocidental, o que, portanto tem um "líder"
indiscutível devido ao maior tamanho de sua produção, o papel dominante
que a razão desempenha dentro dela, e a escala de suas descobertas
científicas e tecnológicas (RIST, 2008, p. 40, tradução nossa)60.

Com tais proposições, ambas as teorias tornaram-se importantes abordagens para


as discussões geopolíticas globais, fornecendo preceitos para análise de blocos de países
reunidos em definições e caracterizações já embasadas teoricamente. O sistema-mundo
moderno, por exemplo, requer pensarmos sobre a sociedade em termos geográficos e
históricos amplos, resultando em uma análise geopolítica capaz de situar eventos

60
The new paradigm was given the finishing in the nineteenth century, when the doctrine of social
evolutionism firmly rooted in the popular imagination the supposed superiority of the West over other
societies. There were differences on how to define the 'stages' through which every society had to pass,
but there was general agreement on the three essential points: that progress has the same substance (or
nature) as history; that all nations travel the same road; and that all do not advance at the same speed as
Western society, which therefore has an indisputable 'lead' because of the greater size of its production,
the dominant role that reason plays within it, and the scale of its scientific and technological discoveries
93

políticos locais em um contexto amplo global (TAYLOR; FLINT, 2002). Desse modo,
reduz a necessidade de entendimento e explicação sobre as particularidades locais de
cada sociedade, para compreendê-las através do amplo contexto.
Por tal razão, tanto as leituras sobre o desenvolvimento como sobre sistema-
mundo moderno resultam em generalizações. Os blocos regionais ou etapas de evolução
que compõem a análise das interações econômicas globais são baseados em
características amplas, que possam ser adequadas a diferentes contextos, em outras
palavras, são analisados “de cima” para “baixo” em termos escalares. Por conseguinte, o
imaginário criado pelos discursos do desenvolvimento e do sistema-mundo são
igualmente generalizantes, e associam diferentes países à um mesmo conjunto
homogêneo como descrito em:
O subdesenvolvimento começou, então, em 20 de janeiro de 1949. Naquele
dia, bilhões de pessoas tornaram-se subdesenvolvidas. Em um sentido real, a
partir desse momento, deixaram de ser o que eram, em toda a sua
diversidade, e foram transformados em um espelho invertido da realidade dos
outros: um espelho que deprecia-los e envia-los para o fim da fila, um
espelho, que define suas identidades, que é realmente a de uma maioria
heterogênea e diversificada, simplesmente nos termos de uma
homogeneização e minoria estreita (SACHS, 2010, p. 2, tradução nossa)61.

Desse modo, ainda que problemáticas, é necessário considerar tais


generalizações, pois figuram facilmente no imaginário geográfico sobre as divisões do
mundo. Além disso, as colocações de Said (2007) sobre o discurso orientalista podem
ser compreendidas no discurso do desenvolvimento e do sistema-mundo moderno, dizia
ele que tal imaginário gera um mundo de diferenciação e distinção, favorável à
hostilidade e preconceitos.
Quando se empregam categorias como oriental e ocidental como ponto de
partida e ponto final de análises, pesquisa, política pública, o resultado é
geralmente polarizar a distinção – o oriental torna-se mais oriental, o
ocidental mais ocidental – e limitar o encontro humano entre culturas,
tradições e sociedades diferentes (SAID, 2007, p. 80).

Ainda nesse sentido, o mesmo autor faz uma notória consideração: seria
incorreto crer que tais categorias e divisões mundiais dos países “aconteçam
simplesmente como uma necessidade da imaginação” (SAID, 2007, p. 32); para que tais
ideias e histórias sejam seriamente compreendidas é preciso considerar suas

61
Underdevelopment began, then, on 20 January 1949. On that day, billion people became
underdeveloped. In a real sense, from that time on, they ceased being what they were, in all their
diversity, and were transmogrified into an inverted mirror of others’ reality: a mirror that belittles them
and sends them off to the end of the queue, a mirror that defines their identity, which is really that of a
heterogeneous and diverse majority, simply in the terms of a homogenizing and narrow minority.
94

configurações de poder. Em outras palavras, tais diferenciações apoiam uma gama de


ações políticas, criam um campo de disputa de interesses entre quem produz o discurso
e quem é dependente dele. Com isso, atenta-se para como a produção do conhecimento
também pode ser uma forma de dominação sobre aquilo que se conhece, principalmente
a erudição de medir e dividir o mundo (SHARP, 2009).
Desse modo, alguns autores passaram a direcionar esse olhar crítico para as
teorias do desenvolvimento e do sistema-mundo moderno, no intuito de encará-las não
como uma realidade descortinada, mas como uma construção do conhecimento, com
início, autoria e influência ideológica. Nessa corrente, o discurso é um elemento
primordial de análise, através dele é que o mundo se torna cognoscível, compreensível,
e fixado em nossa imaginação.
Discursos definem os parâmetros do que pode ser conhecido e compreendido
em qualquer ponto da história e em qualquer lugar. Eles podem ser pensados
como uma lente, através do qual as pessoas interpretam o mundo, que não é
imutável, mas está temporariamente e espacialmente especificada. Discursos
não estruturam simplesmente o conhecimento, mas também o que está
incluído como conhecimento, tais como quais são as perguntas razoáveis. Por
exemplo, em tempos pré-modernos, os discursos religiosos e místicos
dominaram o entendimento (SHARP, 2009, p. 19, tradução nossa) 62.

Assim, além de reconhecer a importância dos discursos, tal corrente também


propõe pensar as relações de poder e a autoridade que se envolvem nos discursos. Não
há qualquer conotação pejorativa em tratar a primazia de certos discursos, é necessário
reconhecer que em uma sociedade não totalitária, “certas formas culturais predominam
sobre outras, assim como certas ideias são mais influentes que outras” (SAID, 2007, p.
34). Por tal razão, reconhecer as relações de poder nas formas discursivas não significa
diretamente apontar a imposição de uma ordem. Antes disso, significa que um discurso
teve maior poder de influência e credibilidade em sua cultura, seja por consenso,
convencimento ou por persuasão.
Cabe notar que a produção desse discurso sobre o mundo se dá sobre condições
desiguais de poder que muitos autores chamam “movimento colonialista” (ESCOBAR,
2012). Esse movimento acarreta construções discursivas específicas sobre colônias/ 3º
mundo de modo a permitir o exercício do poder sobre eles, ou seja, a quem é legitimado

62
Discourses define the parameters of what can be known and understood at any point in history and in
any place. They can be thought of as a lens through which people interpret the world, which is not
unchanging but is temporarily and spatially specific. Discourses do not simply structure knowledge but
also what is included as knowledge, such as what are the reasonable questions to ask. For instance, in pre-
modern times, religious and mystic discourses dominated understanding.
95

a produção do conhecimento, é também e, por conseguinte, legitimado o exercício do


poder sobre tal espaço.
O discurso do desenvolvimento, inevitavelmente, contém uma imaginação
geopolítica que tem moldado o significado de desenvolvimento por mais de
quatro décadas. (...) Está implícito em expressões tais como: Primeiro e
Terceiro Mundo, Norte e Sul, centro e periferia. A produção social do espaço
implícita nesses termos está ligada com a produção da diferença, de
subjetividades e de ordens sociais (ESCOBAR, 2012, p. 9, tradução nossa) 63.

Essa proposta de teorias críticas deu-se o nome de pósdesenvolvimento e


póscolonialismo, visto que foram estruturados pela crítica ao desenvolvimento e ao
colonialismo, cujas políticas influenciaram a configuração do sistema-mundo. Tal qual
afirmamos sobre a Geopolítica Crítica, podemos dizer que estas também são correntes
de pensamento opositoras, ativistas e teóricas. Suas primeiras vozes emergem de fora
dos centros de ciência hegemônicos, impulsionados por questionar os resultados do
projeto de desenvolvimento e modernidade (ESCOBAR, 2012).
Ainda assim, há espaço para amplo diálogo: o pósdesenvolvimento e o
póscolonialismo utilizam de autores europeus importantes para embasar suas pesquisas,
vários de seus pensadores vão estudar ou atuar em centros de ciência de países do Norte.
O fato de serem “contra-hegemônicos” não significa, necessariamente, uma ruptura ou
negação das ideias anteriores, mas sim a soma de novas e diferentes perspectivas que
eram subtraídas até então.
Desde o início de 1980, póscolonialismo desenvolveu um corpo de escrita
que tenta mudar as formas dominantes pelas quais são vistas as relações entre
os povos ocidentais e não ocidentais e seus mundos ... póscolonialismo busca
intervir, forçar seus conhecimentos alternativos contra estruturas de poder do
oeste, bem como do não-oeste. Procura mudar a maneira como as pessoas
pensam, a maneira como eles se comportam, para produzir uma relação mais
justa e equitativa entre os diferentes povos dos mundos (YOUNG apud.
SHARP, 2009, p. 3, tradução nossa) 64.

Ao considerar essas vozes de uma perspectiva crítica, não deve se esperar que
tenham uma verdade sobre o mundo subdesenvolvido a revelar e que foi omitida pelos
discursos do desenvolvimento e do sistema-mundo moderno. O objetivo é reconhecer a

63
The development discourse inevitably contained a geopolitical imagination that has shaped the meaning
of development for more than four decades. (...) It is implicit in expressions such as First and Third
World, North and South, center and periphery. The social production of space implicit in these terms is
bound with the production of differences, subjectivities, and social orders.
64
Since the early 1980s, postcolonialism has developed a body of writing that attempts to shift the
dominant ways in which relations between western and non-western people and their worlds are
viewed...postcolonialism seeks to intervene, to force its alternative knowledges into the power structures
of the west as well as the non-west. It seeks to change the way people think, the way they behave, to
produce a more just and equitable relation between the different peoples of the worlds.
96

força desses discursos na construção dos entendimentos de mundo, e até mesmo no


embasamento de práticas políticas e sociais, tal qual Said (2007) elucida através de seu
próprio contexto investigativo: “(...) o que devemos respeitar e tentar compreender é a
pura força consolidada do discurso orientalista, seus laços muito próximos com as
instituições de poder político e socioeconômico, e sua persistência formidável” (Op.
Cit., 2007, p. 33).
De fato, as forças discursivas tiveram grande importância para os resultados
práticos do período colonial e da era do desenvolvimento. Por mais que sejam discursos
hegemônicos, não podemos afirmar que se pautavam unicamente na imposição violenta
ou ordens de dominação. Muitas vezes o papel do discurso é justamente fornecer bases
coercivas, é estruturar uma enunciação neutra, é difundir sua perspectiva como algo
geral (QUIJANO, 2005). Nesse sentido, o desenvolvimento,
Certamente foi uma invenção do Ocidente, como mostramos no
decorrer, mas não apenas uma imposição sobre o resto. Pelo contrário,
como o desejo de reconhecimento e equidade está enquadrado em
termos do modelo civilizacional das nações poderosas, o Sul surgiu
como o defensor mais ferrenho do desenvolvimento (SACHS, 2010, p.
viii, tradução nossa)65.

Portanto, esses mecanismos também são meios pelos quais a hegemonia e a


autoridade se fazem, e não devem ser menosprezados frente aos estudos das relações de
poder de uma sociedade. As formas de divisão do espaço global apresentam atributos de
autoridade, no sentido de tornar hegemônica uma forma de compreensão de mundo, que
passam a estabelecer cânones de valor e a serem indistinguíveis de certas ideias que
dignifica como verdadeiras (SAID, 2007).
A necessária articulação entre discurso e imagem encontra-se justamente no
reconhecimento dessa autoridade. Vale lembrar a já mencionada ideia de visualidade,
traçada através das relações sociais que envolvem as representações. A mais clara
dessas relações é reconhecer que, apesar da grande proliferação de formas visuais de
comunicar na sociedade contemporânea, essa ainda não pode ser vista como universal e
homogênea, dado que essa contínua aglutinação visual está plenamente disponível
apenas para algumas classes e instituições, em especial aquelas que fazem parte da
história da ciência, vinculada ao militarismo, capitalismo, colonialismo e supremacia
masculina (ROSE, 2007). Em outras palavras, retomamos a ideia de que a visualidade

65
It certainly was an invention of the West, as we showed at length, but not just an imposition on the rest.
On the contrary, as the desire for recognition and equity is framed in terms of the civilizational model of
the powerful nations, the South has emerged as the staunchest defender of development
97

envolve as formas pelas quais devemos ou somos permitidos ver dentro de um contexto
social. Assim,
(...) o que esta visualidade faz é produzir visões específicas de diferenças
sociais - de hierarquias de classe, "raça", gênero, sexualidade e assim por
diante - enquanto alega-se não ser parte dessa hierarquia e, portanto, ser
universal. É porque essa ordenação de diferença depende de uma distinção
entre aqueles que afirmam ver com relevância universal, e aqueles que são
vistos e categorizados de forma particular, (...) que está intimamente
relacionada com as opressões e as tiranias do capitalismo, do colonialismo, o
patriarcado e assim por diante (ROSE, 2007, p. 5, tradução nossa)66.

Desse modo, a visualidade é mobilizada por certas instituições para ver e para
ordenar o mundo e, por conseguinte, tais formas dominantes de visualidade determinam
a validade de outras formas de visualidade da diferença social. O Mapa invertido da
América do Sul pode ser entendido, portanto, como uma visualidade não dominante e,
ao nos debruçarmos sobre ele, estamos buscando outras formas de ver e compreender o
mundo, que se distanciam das formas hegemônicas e se aproximam dos discursos
sociais críticos.
Temos claro que a análise focada em uma única obra artística não dá conta de
todo o discurso, mas é eficaz em apontar sua persistência em um contexto maior.
Segundo Said (2007), o foco é revelar a dialética entre o texto individual ou autor e a
complexa formação coletiva para qual a obra contribui. Tanto essa obra, como outros
mapas artísticos, tem potencial de mostrar como as formas dominantes de representação
não são inevitáveis ou incontestáveis. Existem diferentes formas de ver o mundo, e a
tarefa da perspectiva crítica é diferenciar seus efeitos sociais. Nesse sentido,
acreditamos construir um melhor entendimento sobre a divulgação e reprodução da
forma de ver o mundo do Mapa invertido da América do Sul quando o associamos aos
discursos críticos que continuaram a ser formulados nos tempos seguintes de sua
elaboração.
O presente capítulo visa cumprir tal função ao discutir as formulações do
pósdesenvolvimento e do póscolonialismo, e será divido em dois segmentos, cada um
destinado a discussão de uma dessas teorias. Tal separação visa unicamente uma
organização didática, visto que ambas tem semelhanças e correlações.
De um modo geral, o “pósdesenvolvimento” surgiu a partir da crítica
pósestruturalista e póscolonial, ou seja, uma análise do desenvolvimento

66
what this visuality does is to produce specific visions of social difference -of hierarchies of class, 'race',
gender, sexuality and so on -while itself claiming not to be part of that hierarchy and thus to be universal.
It is because this ordering of difference depends on a distinction between those who claim to see with
universal relevance, and those who are seen and categorized in particular ways, that Haraway claims it is
intimately related to the oppressions and tyrannies of capitalism, colonialism, patriarchy and so on.
98

como um conjunto de discursos e práticas que tiveram profundo impacto


sobre como a Ásia, África e América Latina passaram a ser vistas como
"subdesenvolvida" e tratado como tal (ESCOBAR, 2012, p. xii, tradução
nossa)67.

2.1 O sistema-mundo moderno e a crítica póscolonial

O contexto do fim da 2º guerra mundial demandava das ciências sociais análises


diversas sobre as mudanças na ordem social mundial. O surgimento de uma nova
potência, as novas áreas de conflito, a organização do mercado global, as regiões
emergentes, todas essas foram previsões que tentaram chegar com base na investigação
sobre os mais recentes acontecimentos. As ciências sociais estão em constante
adaptação, criação e discussão de teorias para ajudar a entender as mudanças sociais, e
dessa demanda emerge a teoria do sistema-mundo moderno.
Análise do sistema-mundo obriga-nos a pensar sobre a sociedade em termos
geográficos e históricos gerais. O resultado é uma abordagem política
geografia que é capaz de situar os acontecimentos políticos (como a guerra
no Afeganistão ou discussões sobre a mudança climática global) em um
contexto muito mais amplo (TAYLOR; FLINT, 2007, p. 12, tradução
nossa)68.

A teoria do sistema-mundo moderno foi sugerida por Wallerstein, na década de


1970, mas envolveu ampla discussão nas ciências sociais, com contribuição de diversos
autores para suas adequações e aplicações e serviu de base para tantas outras análises e
proposições. Na visão de Wallerstein (2006), as ciências sociais tinham prejuízos ao
fazer análises estanques, compartimentadas e de escala limitada, sem considerar a
influência e participação das construções de uma imaginação socialmente
compartilhada. Assim, passa a demandar uma metodologia que embasasse e motivasse
análises de escala global. A metáfora do sistema-mundo moderno permite traçar um
quadro histórico e relacional de reflexões que ultrapassam a ideologia nacional.
A ideia de sistema-mundo moderno teve ampla contribuição nos entendimentos
da nova geopolítica mundial, que teoriza sobre o enfraquecimento do papel do Estado-

67
Generally speaking, "postdevelopment" arose from poststructuralist and postcolonial critique, that is, an
analysis of development as a set of discourses and practices that had profound impact on how Asia,
Africa, and Latin America came to be seen as "underdeveloped" and treated as such.
68
World-system analysis requires us to think about society in broad geographical and historical terms.
The result is a political geography approach that is able to situate political events (such as the war in
Afghanistan or discussions about global climate change) in a much broader context.
99

nação, ao passo que ressalta a importância dos agentes globais. Por consequência, essa
investigação se preocupa com os ciclos e tensões de hegemonia, compondo um foco
mais relacional (VESENTINI, 2013). Para autores como Taylor e Flint (2002), o
sistema-mundo fornece uma base de interação entre os três níveis de escala geográfica:
Local/urbano, no qual a experiência ou o vivido seria a tônica; o nacional, caracterizado
pelo ideológico; e o global, nível da realidade sistemática.
Claramente, o sistema-mundo moderno não foi uma demanda apenas das
análises políticas, mas principalmente das mudanças econômicas globais, de tal modo
que Taylor e Flint (2002) afirmam que sistema-mundo moderno e economia-mundo
capitalista são duas faces de uma mesma moeda. Assim sendo, a escala de atuação do
capital também sofre mudanças:
É como se um capitalismo globalmente integrado – que podemos denominar
também de globalização neoliberal – se impusesse sobre o capitalismo
organizado em fortes bases nacionais, sem, contudo, superá-lo, ao contrário
do que pregam alguns (HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 10).

Tal imposição foi resultado de uma série de outras mudanças, a acumulação de


capital não obedece mais as mesmas bases unicamente nacionais, e se desdobra em uma
acumulação flexível, composta por quatro dimensões: a comercial, a produtiva, a
tecnológica e a financeira (HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006). Por tais
dimensões, compõem-se uma dialética mais complexa, que envolve tanto os interesses
do Estado, o da sociedade civil organizada, como também os interesses dos grandes
capitalistas e das grandes instituições financeiras internacionais, em parcelas de forças
desiguais.
Consequentemente, as relações comerciais entre países também será
diferenciada pela detenção desse capital financeiro e tecnológico, que passam a
influenciar a configuração da hegemonia desse sistema-mundo. O papel desempenhado
por cada país nesse sistema não obedece somente à delimitação pelos setores da
economia e suas produções, mas também os níveis tecnológicos de produção, as formas
de gestão e as relações de trabalho empregadas. Nesses novos elementos de análise,
destaca-se a reprodução da desigualdade sistemática, em uma lógica de manutenção
apontada por diversos autores como em:
(...) é claro que o capitalismo não corresponde a um processo unilateral e
cumulativo de ‘globalização’ (...). Vários atores interferiram nesta dinâmica
e, assim como muitas de suas características atuais já estavam presentes nos
primórdios da expansão capitalista, outras tantas foram sendo construídas e
reconstruídas ao longo do tempo. À medida que parece organizar-se
gradativamente uma espécie de ‘território-mundo’ globalmente articulado, o
capitalismo reproduz contraditoriamente e, sobretudo, difunde a
100

desigualdade, apropriando-se ou mesmo produzindo a diferenciação, a fim de


expandir a lógica mercantil que lhe é inerente (HAESBAERT; PORTO-
GONÇALVES, 2006, p. 38).

De fato, as desigualdades do sistema-mundo não são uma novidade, o próprio


Wallerstein argumenta que tal análise é necessária como uma expressão de “protesto
contra as profundas desigualdades sociais do sistema-mundo que ocupam o centro
político de nosso tempo” (WALLERSTEIN, 2006, p. 4, tradução nossa)69. Assim sendo,
o primeiro passo para combater as desigualdades do sistema-mundo, seria entendê-las.
Portanto, caberia questionar: Quais foram as configurações iniciais desse sistema quase
intrinsecamente desigual? Qual o contexto de origem do sistema-mundo moderno? Qual
sua contribuição para caracterizar a divisão Norte e Sul?
Segundo Wallerstein (2006) e seus estudos historicamente contextualizados, o
sistema-mundo moderno teria três pontos importantes de inflexão: 1) O longo século
XVI, durante o qual o sistema-mundo moderno foi gestado como economia-mundo
capitalista; 2) A revolução francesa de 1789, acontecimento que contribuiu com a
expansão do liberalismo e centralismo; 3) A revolução mundial de 1968, que pressagiou
a longa fase terminal do sistema-mundo moderno e minou a geocultura liberal que
mantinha o sistema- mundo unificado.
Nesse mesmo sentido, a importância do século XVI na adjetivação do sistema-
mundo como moderno é apontada por vários autores. Primeiramente, o próprio
Wallerstein (2006) destaca o século XVI como um período de ruptura entre ciência e
filosofia, que coloca a valorização da observação empírica como único modo de chegar
à verdade científica. A filosofia seria excluída desse conjunto por ser considerada
dedutiva e especulativa, ao passo que a ciência traria segurança da proximidade com a
precisão, através de sua formulação de leis gerais e experimentos, que carregam consigo
narrativas universalistas, inaugurando uma linha evolutiva de todos os povos, do
primitivo ao moderno.
Em segundo, em uma perspectiva de ampliação, Mignolo (2005) destaca a
exterioridade do século XVI, ou seja, a intensificação das relações com outros povos
que resulta na definição da diferença nesse imaginário, sendo focado na emergência do
circuito comercial do Atlântico nesse período, conectando América e Europa. Com isso,
outros circuitos são interligados, novas centralidades comerciais surgem, e novas

69
(...) protesta concreta las profundas desigualdades del sistema-mundo que ocupan el centro político de
nuestro tiempo.
101

relações sociais são estabelecidas, o que transforma definitivamente o século XVI como
referencial do imaginário moderno.
Assim, para compreender como o sistema-mundo moderno nasce, no século
XVI, enquanto economia mundo capitalista, podemos nos valer da didática explicação
de Frank (1993):
(...) podemos dizer que o século XVI testemunhou o primeiro longo,
sustentado, e generalizado quantitativo e qualitativo desenvolvimento do
capitalismo em sua fase mercantil e do primeiro período de acumulação de
capital concentrado na Europa ... O mesmo processo se estendeu muito além
Europa às regiões ou "enclaves" que foram integrados no processo de
acumulação de capital mundial nesta fase, especialmente as fontes do Novo
Mundo de ouro e prata. Durante esta ascensão secular e cíclica do século
XVI, a Europa Ocidental sofreu uma forte aceleração do processo de
acumulação de capital ... (Op. Cit, pg. 21, tradução nossa)70.

Como nota-se nas entrelinhas dessa citação, Frank (1993) percebe o século XVI
não como berço do sistema-mundo moderno, como Wallerstein (2006), mas como uma
das fases desse sistema que para ele tem uma história e duração muito mais longínqua,
reconhecendo ciclos de ascensão e crise desde séculos antes de Cristo. Especificamente
sobre o século XVI, Frank (1993) reconhece uma ascensão do Oeste, focado na Europa,
mas como parte de uma dinâmica que envolve a crise do Leste no século XIV. Já
Wallerstein (1991) considera que apenas nesse século as relações traçadas na escala
global atingiram níveis de mercadorias essenciais, e por isso a fixação do sistema-
mundo era substancial e intrínseco.
Não é nosso intuito debater a duração do sistema-mundo, mas é interessante
notar que mesmo diante de uma análise que reconhece ciclos de hegemonia mais
longínquos, o Sul nunca assumiu tal posição.
Durante os mais de 1000 anos de história do sistema mundial estruturado em
centro-periferia que caiu em meados de 1492, o centro hegemônico sempre
mudou de Leste a Oeste, mas apenas em torno do hemisfério Norte. O centro
hegemônico, quando houve um, mudou-se em toda a Ásia, Ásia Ocidental e
Norte da África (agora chamado de "Oriente Médio") para o Sul e depois
para Noroeste da Europa (na franja ocidental da Eurásia). Em seguida, o
centro hegemônico atravessou o Atlântico a Leste e, em seguida, cada vez
mais, talvez, Oeste da América do Norte. Agora a hegemonia política e
econômica, se novamente existe uma, parece continuar seu movimento para o
Oeste através do Pacífico de volta para a Ásia novamente, começando com o

70
(...) we may say that the sixteenth century witnessed the first long, sustained, and widespread
quantitative and qualitative development of capitalism in its mercantile stage and the first period of
concentrated capital accumulation in Europe...The same process extended far beyond Europe to those
regions or "enclaves" which were integrated into the process of world capital accumulation at this stage,
especially the New World sources of gold and silver. During this sixteenth-century secular and cyclical
upswing, Western Europe experienced a sharp acceleration of the process of capital accumulation...
102

Japão e talvez no futuro voltar novamente à China (FRANK, 1993, p. 3,


tradução nossa)71.

Partindo dessa observação, podemos concluir que o sistema-mundo é um dos


mecanismos de manutenção do imaginário da divisão Norte e Sul, fortemente presente
na ideia de modernidade. Assim, nos instiga a compreender as ações e imposições desse
sistema que realocam, consecutivamente, o Norte em posições superiores. De volta ao
argumento de Wallerstein (2006), onde o sistema-mundo moderno data do século XVI,
o próprio autor retoma esse contexto pra repensar essa hegemonia na relação com a
América:
O moderno sistema-mundo nasceu no longo século XVI. As Américas como
uma construção geosocial nasceram no longo século XVI. A criação desta
entidade geosocial, as Américas, foi o ato constitutivo do sistema-mundo
moderno. As Américas não foram incorporadas à economia-mundo
capitalista já existente. Não poderia ter sido uma economia-mundo capitalista
sem as Américas (QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p. 549, tradução nossa
)72.

Destarte, reconhece que a formação do sistema-mundo moderno e seus níveis de


interação dependem de uma conjuntura de fatores históricos e geográficos que não são
centrados unicamente na Europa. Dentre tais fatores, três fundamentais foram
fornecidos pela colonização da América: 1) expansão da dimensão geográfica do mundo
em questão para estabelecer economia-mundo capitalista; 2) variações nas formas de
controle do trabalho nas diferentes produções para estabelecer diferenças entre as zonas
da economia-mundo; 3) formação de estados com maquinário relativamente mais fortes
para estabelecer estados centrais na economia mundo (QUIJANO; WALLERSTEIN,
1992). De fato, as Américas forneceram espaço, lócus para experimentar novas relações
de trabalho, e por fim, renderam recursos que auxiliaram em uma maior acumulação de
capital e fortalecimento dos estados europeus.

71
During the more than a 1,000 year history of the center-periphery structured world system in whose
middle 1492 falls, the hegemonic center has always moved from East to West, but only around the
northern hemisphere. The hegemonic center, when there was one, moved across Asia, West Asia and
North Africa (now called the "Middle East") to Southern and then to Northwest Europe (at the western
fringe of Eurasia). Then the hegemonic center moved across the Atlantic to eastern and then increasingly
perhaps western North America. Now political economic hegemony, if there is again to be any, seems to
continue its westward move across the Pacific back to Asia again, beginning with Japan and perhaps in
the future returning again back to China.
72
The modern world-system was born in the long sixteenth century. The Americas as a geosocial
construct were born in the long sixteenth century. The creation of this geosocial entity, the Americas, was
the constitutive act of the modern world-system. The Americas were not incorporated into an already
existing capitalist world-economy. There could not have been a capitalist world-economy without the
Americas.
103

Nesse sentido, as trocas comerciais mundiais são intensificadas e concretizadas,


configurando uma economia mundo a partir do colonialismo. As metrópoles europeias
se beneficiam da extração de metais preciosos, tanto no desenvolvimento de seus
próprios estados como também na competição com outros estados de outros
continentes. Assim, o Novo Mundo contribui com a acumulação de capital e do
crescimento econômico de outras áreas, enquanto suporta o genocídio dos habitantes
nativos (FRANK, 1993). Em suma, o circuito comercial expandido através do Atlântico
inicia uma conveniência e dependência de tais mercadorias que pressupõe a existência
não só de tratados comerciais, mas de um sistema-mundo.
Colocado de forma mais geral, o acesso a recursos bióticos das colônias e
recursos fósseis da crosta da Terra foi essencial para a ascensão da
civilização Euro-Atlântica. Não teria sido uma sociedade industrial sem a
mobilização de recursos, tanto da extensão do espaço geográfico como da
profundidade tempo geológico (SACHS, 2010. p. XI, tradução nossa)73.

Entretanto, desse sistema-mundo não ficam apenas os acordos econômicos, mas


seu próprio estabelecimento é guiado por princípios ocidentais que garantem a
manutenção de sua hegemonia. É nesse sentido que a corrente de pensamento
póscolonial analisa o sistema-mundo moderno, procurando ampliar os entendimentos
nos mecanismos que promovem, desde sua formação, uma permanência das
desigualdades internas desse sistema, ao invés de superá-las. Esse sistema-mundo
coloca-se como moderno, sem reconhecer a diferenciação presente desde sua
formulação, onde a modernidade fica circunscrita à Europa, enquanto o restante do
mundo experimenta a colonialidade, por conseguinte, não pode haver modernidade sem
colonialidade (MIGNOLO, 2005).
É justamente nesse sentido que diversos autores da corrente póscolonial
preferem a utilização do termo sistema-mundo moderno-colonial (MIGNOLO, 2000;
LANDER, 2005; CASTRO-GÓMEZ, 2005, HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES,
2006). Nessa conceituação, busca-se dar destaque a diferenciação desse sistema e a
participação primordial do colonialismo das Américas em sua configuração. Assim,
também se dá espaço para o reconhecimento dos mecanismos de dominação que
auxiliaram na formulação do sistema-mundo moderno, dentre os quais figuram:
controle da força de trabalho, colonialidade do poder e modernidade.

73
Put more generally, access to biotic resources from colonies and fossil resources from the crust of the
earth was essential to the rise of the Euro-Atlantic civilization. There would have been no industrial
society without the mobilization of resources from both the expanse of geographical space and the depth
of geological time.
104

Vê-se, desse modo que o mundo moderno não é compreensível sem a


colonialidade. Daí dizermos, sempre, aqui, que vivemos um sistema-mundo
moderno-colonial, e não simplesmente um mundo moderno. Com isso,
podemos superar a visão eurocêntrica de mundo sem que a substituamos por
uma centrada no outro polo, o colonial, e sem que permaneçamos
prisioneiros da mesma polaridade (HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES,
2006, p. 19).

Na compreensão desses mecanismos e do sistema-mundo moderno-colonial é


que podemos encontrar alguns porquês da manutenção e permanência das desigualdades
nas relações desse sistema. Percebendo que apesar do domínio colonial ser findado com
os movimentos de independência, o colonialismo é algo mais difícil de esgotar, visto
que promove manutenção pela hierarquia sociocultural (QUIJANO; WALLERSTEIN,
1992). Enquanto o pós-colonialismo, com hífen, referência o período histórico
inaugurado pelo fim das relações coloniais, o póscolonialismo retira o hífen justamente
para contrapor a ideia de término. Assim, tentam conferir ao colonialismo o prestígio de
sua própria história, analisando não apenas as relações econômicas de exploração, como
também as relações de subordinação culturais (SHARP, 2009), que sofrem manutenção
através de outros tempos.
A hierarquia da colonialidade manifestou-se em todos os domínios -
políticos, econômicos, e não menos importante de todos, cultural. A
hierarquia se reproduzia ao longo do tempo, embora tenha sido sempre
possível para alguns estados mudar etapas na hierarquia. Mas a chance em
ordem de classificação não impede a contínua existência da hierarquia.
(QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p. 550, tradução nossa) 74.

Assim, reconhecer a colonialidade como atribuição do sistema-mundo é


reconhecer seu papel na integração, “criando não só ordem de classificação, mas
conjuntos de regras para as interações dos estados uns com os outros” (QUIJANO;
WALLERSTEIN, 1992, p. 550, tradução nossa)75. Claramente, as nações não
apresentam o mesmo posicionamento geopolítico, mas especificamente para o
entendimento póscolonial, as relações Norte e Sul são marcadas pela diferenciação entre
colonialidade e imperialidade, que podem ser assim explicados:
Habitualmente, a análise das relações entre política e políticos é trabalhada
dentro dos limites conceituais de um estado territorial implicitamente
ocidental. Há uma suposição de uma pré-fornecida integridade e
impermeabilidade territorial. Mas na situação das políticas periféricas, as
realidades históricas de poder externo e seus efeitos nessas políticas são

74
The hierarchy of coloniality manifested itself in all domains – political, economic, and not least of all
cultural. The hierarchy reproduced itself over time, although it was always possible for a few states to
shift ranks in the hierarchy. But the chance in rank order did not disturb the continued existence of the
hierarchy.
75
creating not only rank order but sets of rules for the interactions of states with each other
105

muito mais difíceis de ignorar. Os pontos com os quais contrasta são a falta
de igualdade no pleno reconhecimento da integridade territorial do Estado-
nação. Para as sociedades da América Latina, África e Ásia, os princípios que
regem a constituição de seu modo de ser político foram profundamente
estruturados pela penetração externa, pela invasão das potências estrangeiras.
A definição do tempo e da ordenação do espaço seguiram por uma lógica
imposta externamente, cujos efeitos ainda ressoam no período pós-colonial
(SLATER, 2004, p. 23, tradução nossa)76.

Em suma, o póscolonialismo propõe que as desigualdades percebidas dentro do


sistema-mundo moderno têm sim suas origens no século XVI, mas sua permanência
apresenta justificas mais amplas do que os planos econômicos, englobando construções
ideológicas da dominação colonial que permanecem até os dias atuais no imaginário
geográfico das visões de mundo. Para Castro-Gómez (2005), sem a construção de um
imaginário de divisão geográfica do globo, o colonialismo seria um projeto incompleto.
Parte dessa diferenciação entre áreas geográficas está no domínio da força de
trabalho. De fato, nos primórdios do sistema-mundo moderno, a Europa constituía seu
centro por controlar o tráfico de mercadorias, entretanto esse controle e sua manutenção
abarcam também a mercantilização da força de trabalho. Destarte, a relação capital-
salário torna-se uma forma de controlar o trabalho, seus recursos e seus produtos,
enquanto, por outro lado, as demais áreas colonizadas ou dependentes permaneciam em
relações não-salariais de trabalho, com seus respectivos recursos e produtos, que
refletem nas relações comerciais do sistema-mundo moderno.
Essa colonialidade do controle do trabalho determinou a distribuição
geográfica de cada uma das formas integradas no capitalismo mundial. Em
outras palavras, determinou a geografia social do capitalismo: o capital, na
relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual
se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus
recursos e de seus produtos. (...) essa relação social específica foi
geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e socialmente entre os
grupos europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa
maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista
(QUIJANO, 2005, p. 235).

A percepção da diferenciação pela mercantilização da força de trabalho


contrapõe a noção de uma superioridade comparativa da Europa nas dinâmicas
comerciais do sistema-mundo moderno ao expor mecanismos que serviram na

76
Customarily, the analysis of the relations between politics and the political is worked out within the
conceptual confines of an implicitly Western territorial state. There is an assumption of a pre-given
territorial integrity and permeability. But in the situation of peripheral politics, the historical realities of
external power and its effects within those polities are much more difficult to ignore. What this contrast
points to is the lack of equality in the full recognition of the territorial integrity of nation-state. For the
societies of Latin America, Africa and Asia, the principles governing the constitution of their mode of
political being were deeply structured by external penetration, by the invasiveness of foreign powers. The
framing of time and the ordering of space followed an externally imposed logic, the effects of which still
resonate in the postcolonial period.
106

configuração dessa hegemonia. Ao mesmo tempo, também serviram na manutenção ou


na dificuldade de superação da desigualdade do sistema-mundo moderno,
principalmente ao articular força de trabalho e etnia, um tema sobre o qual cabe a
seguinte reflexão:
Quijano chega a dizer que aos indígenas e negros foi negada, até mesmo, a
condição de serem explorados como assalariados, condição que era exclusiva
de brancos. A colonialidade do pensamento e das práticas sobreviveu ao fim
do colonialismo, e por meio dela continuamos a fazer um enorme esforço
para sermos de “primeiro mundo”, para mostrarmos que não somos índios,
tendo mais vergonha de nos parecermos com os povos originários do que
vergonha do etnocídio que contra eles praticamos (HAESBAERT; PORTO-
GONÇALVES, 2006, p. 22).

Ainda no estabelecimento de diferenciação, um dos mais relevantes mecanismos


apontados pelas pesquisas póscolonais é o que podemos chamar de colonialidade do
poder. Esta pode ser entendida como as estruturas de poder que perpassam o
conhecimento, ou ainda a relação entre conflito de conhecimento e estruturas de poder.
Segundo Mignolo (2000), a colonialidade do poder tem como pressuposto a diferença
colonial para a subalternização de conhecimentos. Mesmo para Frank (1993), que
reconhece sistemas-mundos mais antigos, a particularidade da hegemonia europeia
advém justamente da capacidade de contar e propagar a história mundial como a
história do Oeste, ou seja, utilizar seu conhecimento como forma de poder.
Nesse mesmo sentido, Castro-Goméz (2005) elucida que a hegemonia não é
feita apenas violentando e/ou sujeitando ao outro pela força, existe uma maior eficiência
e duração em empregar elementos ideológicos de representação e conhecimento. Nesse
viés, permite-se ao dominador construir ao outro como objeto de conhecimento, e
também construir uma imagem autocentrada em seu próprio lócus de enunciação. Não
se quer dizer com isso que a colonialidade do poder distorcia a realidade em mentiras
guiadas pelo próprio interesse, apenas que esses entendimentos passavam a constituir o
entendimento sobre a realidade devido às formas de conhecimento e poder com que são
relacionadas (SHARP, 2009).
Nessa característica relação de poder que foi o colonialismo, a forma de
conhecimento ocidental era caracterizada como universal e precisa por ser pautada na
cientificidade moderna, ao passo que, a produção de conhecimento, a criação de
sentidos, o universo simbólico e os padrões de expressão dos colonizados eram
reprimidos. Como resultado:
As diversas formas de conhecimento apresentadas pela humanidade ao longo
da história conduziriam, paulatinamente, a uma única forma legítima de
107

conhecer o mundo: a implantada pela racionalidade técnico-científica da


modernidade europeia (CASTRO-GOMÉZ, 2005, p. 25, tradução nossa) 77.

Apesar de os colonizados continuarem a produzir suas formas próprias formas


de conhecimento, essas conflitavam cada vez mais com as formas hegemônicas que
eram baseadas na valorização da cientificidade e, logo, postas em práticas pelos
colonizadores. Segundo Sharp (2009), aos residentes do Novo Mundo não era permitido
sua própria enunciação, passaram a ser descritos e caracterizados pelo outro e, por
conseguinte, esse outro, produtor do conhecimento, poderia controlá-los. A autora usa
como exemplo a produção de mapas:
Os europeus desenharam mapas das novas terras com fronteiras inscritas para
identificar territórios reivindicados por diferentes nações. O nome dado a
lugares pelos povos indígenas foi ignorado, suas reivindicações à propriedade
e aos direitos de acesso foram similarmente descartados, e as palavras e
significados europeus foram gravados nos mapas. Uma vez que os mapas
europeus eram criados e aceitos, eles começaram a influenciar a natureza do
espaço atual que representavam (SHARP, 2009, p. 18, tradução nossa)78.

Como essas formas de conhecimento adquirem rápida concretude é uma das


primeiras a figurar dentre os elementos de colonialismo difíceis de serem simplesmente
apagados pela independência. Na verdade, tais formas de conhecimento encontram
caminhos de reprodução e manutenção até mesmo pelos países não-hegemônicos do
sistema-mundo moderno, que pode ser assim explicado
Este corpo ou conjunto de polaridades entre a sociedade moderna ocidental e
as outras culturas, povos e sociedades, polaridades, hierarquizações e
exclusões estabelece pressupostos e olhares específicos no conhecimento dos
outros. Neste sentido, é possível afirmar que, em todo o mundo ex-colonial,
as ciências sociais serviram mais para o estabelecimento de contrastes com a
experiência histórica universal (normal) da experiência europeia (ferramentas
neste sentido de identificação de carências e deficiências que têm de ser
superadas), que para o conhecimento dessas sociedades a partir de suas
especificidades histórico-culturais (LANDER, 2005, p. 36).

Através da fixação das formas de conhecimento eurocentradas as categorias de


análise social são universalizadas e convertem-se em padrões normativos para os
demais povos do planeta. Nesse sentido, a noção de modernidade, então, pode ser

77
Las diversas formas de conocimiento desplegadas por la humanidad en el curso de historia conducirian,
paulatinamente, hacia una única forma legítima de conocer el mundo: la desplegada por la racionalidad
cinetífico-técnica de la modernidad europeia.
78
Europeans drew maps of new lands with boundaries inscribed to identify territories claimed by
different nations. The name given to places by indigenous people were ignored, their claims to ownership
and rights of access where similarly discarded, and instead European words and meanings were written
onto the maps. Once these European maps has been created and accepted, they started to influence the
nature of the actual space they represented.
108

entendida como um dos recursos que sustentam esse padrão a ser alcançando. Por sua
vez, a modernidade é estruturada através de 4 pressupostos:
(...) 1) a visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da
qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos,
continentes e experiências históricas); 2) a “naturalização” tanto das relações
sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a
naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa
sociedade; e 4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa
sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos
(LANDER, 2005, p. 33).

Esses pressupostos são o que sustentam a modernidade como um fator de


diferenciação entre as regiões do sistema-mundo. Para adquirir novas vantagens
comparativas nesse sistema, o alvo era a modernização, que teria o papel de superar as
relações arcaicas, através de caminhos progressivos como a urbanização e a
industrialização. Os autores póscoloniais tentam contrapor o primeiro pressuposto da
modernidade a fim de ressaltar que esta, na verdade, é uma construção histórica
articulada com a organização colonial do mundo. Em outras palavras, não existiria um
projeto de modernidade, sem a colonialidade.
Com o início do colonialismo na América inicia-se não apenas a
organização colonial do mundo mas – simultaneamente – a constituição
colonial dos saberes, das linguagens, da memória e do imaginário. Dá-se
início ao longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX e no qual,
pela primeira vez, se organiza a totalidade do espaço e do tempo – todas as
culturas, povos e territórios do planeta presentes e passados – numa grande
narrativa universal (LANDER, 2005, p. 26).

Nessa narrativa universal, o papel da modernidade é descrever uma divisão


geopolítica do mundo, legitimada em uma divisão ontológica entre as culturas, na qual a
Europa descreve e representa a si mesma como moderna. De um lado a cultura
Ocidental é a parte ativa, criadora e dona do conhecimento. De outro, todas as demais
culturas formam a parte passiva, receptora do conhecimento, “cuja função é receber o
progresso e a civilização advindos da Europa” (CASTRO-GOMÉS, 2005, p. 26,
tradução nossa)79. Portanto, a expansão do Oeste foi antes uma expansão de formas
representacionais de conhecimento e cognição, ou seja, de formas de conhecimento
hegemônicas, que deram sustentação à exploração colonial e formulação do sistema-
mundo moderno (MIGNOLO, 2000). Novamente, é válida a ressalva que tal crítica não
pretende sustentar uma invalidação de todo conhecimento moderno ocidental, apenas
tornar ciente de sua participação ideológica.

79
(…) cuya misón es ‘acoger’ el progreso y la civilización que vienen desde Europa.
109

Todo o exposto buscou abarcar as principais críticas fornecidas pelo


póscolonialismo que se relacionam à teoria do sistema-mundo moderno. A visão
póscolonial amplia os entendimentos das relações desse sistema, principalmente por
focar nas suas desigualdades, e não apenas na divisão hierárquica de fornecimento de
mercadoria, como por vezes, a geopolítica tende a simplificar. Ao se debruçarem sobre
tal desigualdade, passam a elucidar os mecanismos de diferenciação presentes na
configuração de uma hegemonia duradoura no sistema-mundo moderno.
Em suma, a crítica póscolonial questiona o domínio do conhecimento e da noção
imagética de mundo pelo local de enunciação. Ou seja, os países hegemônicos do
sistema-mundo moderno têm maiores influencias não apenas nas relações comerciais,
como também na estruturação das formas de conhecimento. As análises póscoloniais
pretendem destacar as produções intelectuais do mundo ex-colonial e, com isso, ampliar
as formas de conhecimento, multiplicar o reconhecimento de produções culturais e
diversificar as representações e visões de mundo.
No caminho dessa pretensão é que as teorias póscoloniais encontram um ponto
de interseção com o Mapa invertido da América do Sul, visto que inverter a orientação
do Sul no mapa também tem o efeito de diversificar as visões de mundo, bem como
fazer refletir sobre a construção ideológica que é a representação padronizada ao Norte,
ou melhor, uma representação pautada no colonialismo do poder. Claramente, existe
uma diferença temporal entre esse mapa artístico e o movimento póscolonial, entretanto
também são claras as proximidades de proposta e discurso. Por tal razão é que nos fica o
questionamento: teria a propagação da visão póscolonial contribuído para a apropriação
e reprodução do mapa de Torres-García até os dias atuais?

2.2 A era do desenvolvido e a crítica pósdesenvolvimentista

O colonialismo e a construção geosocial da América fazem parte do contexto


histórico de formulação do sistema-mundo moderno-colonial do século XVI. Mas,
como vimos anteriormente, existe uma série de mecanismos, discutidos pelo
póscolonialismo, que fazem as hierarquias e hegemonias desse contexto se estenderem
para tempos além de sua formulação. A teoria do desenvolvimento compõe um dos
110

caminhos para tal extensão, e articula novas formas e novos discursos que renovam a
diferenciação entre Norte e Sul.
Até então, as relações Norte-Sul tinham se organizado largamente de acordo
com a oposição colonizador/colonizado. A nova dicotomia ‘desenvolvido’/
‘subsdesenvolvido’ propõe uma relação diferente (...). Colonizado e
colonizador pertenciam a dois universos diferentes e opostos, de modo que o
confronto entre eles (sob a forma de lutas de libertação nacional) apareceu
como uma forma inevitável de reduzir a diferença. Agora, no entanto,
‘subdesenvolvidos’ e ‘desenvolvido’ eram membros de uma mesma família:
um poderia estar ficando um pouco atrás do outro, mas sempre podia esperar
para o alcançar - como um ‘vice-gerente’ pode sempre sonhar em se tornar
um gerente ele mesmo (RIST, 2008, p. 74, tradução Nossa)80.

Assim, nos afastamos do século XVI, em um pequeno salto temporal, para


analisar o discurso do desenvolvimento/subdesenvolvimento que ganhou notoriedade no
período pós Guerra Fria. Isso porque, vale relembrar, nosso intuito é relacionar as
diferentes construções discursivas que permeiam a ideia de divisão do globo em Norte e
Sul e suas consequentes caracterizações e diferenciações. Complementarmente,
relacionar também as diferentes vozes questionadoras que emergem do Sul com a
apropriação do mapa invertido de Torres-García.
Nesse sentido, o discurso do desenvolvimento adquire ampla relevância por
trazer ao imaginário da diferenciação entre Norte e Sul novos elementos e renovada
circunstâncias, de forma a desempenhar papel estratégico na manutenção da dominação
cultural e social (ESCOBAR, 2012). Tal qual o colonialismo, o desenvolvimento
também apresenta uma forte vertente na prática material, influenciando e embasando
ações e instituições que legitimam seus apontamentos e mantém vivo o imaginário do
desenvolvimento. Mas, diferentemente do colonialismo, muitas dessas instituições não
findaram materialmente: países ainda são desenvolvidos/subdesenvolvidos, existem
projetos de desenvolvimento, ministérios do desenvolvimento, programa de
desenvolvimento das Nações Unidas e assim sucessivamente (RIST, 2008).
É bem verdade que o desenvolvimento construiu uma ideia discursiva quase
irresistível de eliminar a pobreza e trilhar um crescimento econômico para os países
periféricos, tornando desejável a atuação dessas instituições. Um processo que inclui o
auxílio dos países desenvolvidos, levando seu conhecimento político e econômico para

80
Until then, North-South relations had been organized largely in accordance with the
colonizer/colonized opposition. The new 'developed'/'underdeveloped' dichotomy proposed a different
relationship (...). Colonized and colonizer had belonged to two different and opposed universes, so that
confrontation between them (in the form of national liberation struggles) had appeared unavoidable as a
way of reducing the difference. Now, however, 'underdeveloped and 'developed' were of a single family:
the one might be lagging a little behind the other, but they could always hope to catch up - rather as a
'deputy manager' can always dream of becoming a manager himself.
111

guiar os países subdesenvolvidos para uma sociedade mais justa e com qualidade de
vida, tal qual o modelo ocidental espelha.
Nesse sentido, existe uma semelhança e, em certa medida, uma continuidade do
colonialismo em compor uma dependência dos países subalternos em relação aos países
hegemônicos, também caracterizada pela legitimidade do conhecimento desses últimos
países. Assim,
(...) uma série de estudos recentes sugerem que havia uma importante ligação
entre o declínio da ordem colonial e da ascensão do desenvolvimento. No
período entre guerras, o terreno estava preparado para a instituição de
desenvolvimento como estratégia para refazer o mundo colonial e
reestruturar as relações entre colônias e metrópoles. (...) O papel da Liga das
Nações em negociar a descolonização através do sistema de mandatos
também foi importante em muitos casos, na Ásia e na África. Após a
Segunda Guerra Mundial, este sistema foi estendido para a descolonização
generalizada e a promoção do desenvolvimento pelo novo sistema de
organizações internacionais (ESCOBAR, 2012, p. 26, tradução nossa)81.

Como já mencionamos anteriormente, a noção de desenvolvimento adquire


notoriedade e significado político específico com o discurso do presidente norte-
americano que referenciou os países do 3 mundo como países subdesenvolvidos. Desde
então, o desenvolvimento passou a ser uma aspiração para países do Sul global e uma
virtude dos países do Norte. Mesmo com tais conotações diferenciadas, podemos
concordar em buscar uma definição genérica para o desenvolvimento nas seguintes
linhas:
‘Desenvolvimento’ é composto por um conjunto de práticas, às vezes
aparecendo em conflito um com o outro, o que exige - para a reprodução da
sociedade- a transformação e destruição geral do meio ambiente natural e das
relações sociais. Seu objetivo é aumentar a produção de commodities (bens e
serviços) orientada, por meio de troca, para a demanda efetiva (RIST, 2008,
p. 13, tradução nossa, grifo nosso)82.

Para Sachs (2010), não há dúvidas de que o desenvolvimento é uma invenção do


Ocidente, mas que não pode ser lido apenas como imposição ao resto. Ao contrário,
conforme a busca por justiça e equidade marca a ideia de uma sociedade próspera, o Sul

81
(...) a number of recent studies suggest there was an important connection between the decline of
colonial order and the rise of development. In the interwar period, the ground was prepared for the
institution of development as a strategy to remake the colonial world and restructure the relations between
colonies and metropolis. (...) The role of League of Nations in negotiating decolonization through the
system of mandates was also important in many cases in Asia and Africa. After the Second World War,
this system was extended to a generalized decolonization and the promotion of development by the new
system of international organizations.
82
'Development' consists of a set of practices, sometimes appearing to conflict with one another, which
require - for the reproduction of society- the general transformation and destruction of the natural
environment and of social relations. Its aim is to increase the production of commodities (goods and
services) geared, by way of exchange, to effective demand.
112

global emerge como entusiasta e defensor do desenvolvimento. Mas como a busca por
produção de bens e serviços que definimos no desenvolvimento tem relação com a
equidade de uma sociedade?
Ainda segundo o mesmo autor, é crucial distinguir dois tipos de equidade. A
primeira acarreta em uma ideia de justiça relativa, onde o foco recai sobre a distribuição
de recursos (renda, escolaridade, conexão de internet, entre outros) entre grupos de
pessoas, traçando uma comparação de acesso. A segunda apresenta uma ideia de justiça
absoluta, onde o foco recai sobre a disponibilidade de recursos fundamentais e
liberdades sem as quais uma vida comum não seria possível. Não há, portanto,
necessidade de comparação, pois organiza condições básicas de vida e normas para
dignidade humana. De modo geral, a primeira noção é mais influente pra
desenvolvimento, enquanto a segunda noção é mais influente para os direitos humanos.
Tendo isso em vista, o desenvolvimento pode ter a conotação de direitos e
recursos para os mais pobres, sendo bastante usado no reforço de autonomia para as
comunidades. Mas, na maioria das vezes, apresenta a conotação de crescimento
econômico, sendo bastante usado no reforço de hegemonias na análise da economia
mundo. Além disso, compõem-se a enumeração de condições necessárias para
caracterizar uma sociedade avançadas, como: altos níveis industrialização, tecnificação
da agricultura e rápido crescimento da produção de mercadorias.
Assim, essa segunda conotação estabelece uma análise de diferenciação entre os
países do globo, onde alguns apresentam as condições de desenvolvidos e outros não.
Eles apresentam problemas de crescimento econômico, organização produtiva e
desigualdades sociais, que devem ser solucionados com auxílio do conhecimento e
experiência das sociedades desenvolvidas, compostas, em sua maioria, por ex-
metrópoles e do Norte global. Como a outra face da mesma moeda, o discurso do
desenvolvimento promove a caracterização da pobreza e miséria dos países do 3º
mundo, ratificando o quanto estes necessitam do auxílio e da intervenção estrangeira
para atingir os modelos de desenvolvimento estabelecidos pelos mesmos “auxiliadores”.
Tanto a delimitação do 3º mundo, como o sonho do desenvolvimento, tem sido
partes integrais da vida socioeconômica, cultural e política que marcam o período pós-
2º guerra mundial. Já mais recentemente, esse modelo começa a apresentar falhas e
receber críticas, não apenas pelo colapso do 2º mundo e fim da tríade mundial, mas
principalmente pelas promessas do desenvolvimento e suas melhorias não se
concretizarem, pelo contrário,
113

Em vez do reino de abundância prometida pelos teóricos e políticos na


década de 1950, o discurso e estratégia do desenvolvimento produziu seu
oposto: maciço subdesenvolvimento e empobrecimento, exploração e
opressão não anunciadas (ESCOBAR, 2012, p. 4, tradução nossa)83.

Grande parte dessas críticas embasou corrente de pensamento que ficou


conhecida como pósdesenvolvimento e que pode ser entendida através de três fatores.
Primeiro, pela necessidade de tirar a centralidade dada ao desenvolvimento na maioria
das representações e discussões sobre a Ásia, África e América Latina. Segundo, pela
proposta de fim do desenvolvimento ou identificação de alternativas ao
desenvolvimento, ao invés de alternativas para o desenvolvimento. Terceiro, pela
proposta de questionar a “verdade” em que se apresentam as políticas econômicas,
apontando um caminho de ideias alternativas a serem consideradas, provindas
principalmente dos movimentos sociais (ESCOBAR, 2012).
Isso porque o pósdesenvolvimento não se preocupa apenas com as questões de
produção de mercadorias e nível de tecnificação dos países subdesenvolvimentos, mas
principalmente com o imaginário formado sobre essa “condição” do
subdesenvolvimento. Ao criar essa categorização, são atreladas uma série de
características e entendimentos que passam a identificar uma série de países. No pós-2º
guerra mundial, além de diversas outras mudanças, a teoria do desenvolvimento trouxe
também o “descobrimento” de uma grande massa de pobreza na Ásia, África, e América
Latina.
Mais do que isso, a caracterização dessa pobreza passou a ser parte fundamental
de uma lógica binária de classificação, onde a carência de uns também define a
prosperidade e avanço de outros. A teoria do desenvolvimento fornece uma base
cognitiva que apoia tanto o intervencionismo do Norte, como também para a
autopiedade do Sul, desejosos de copiar e alcançar o modelo fixado e ensinado pelas
nações desenvolvidas (SACHS, 2010). Por mais que pareça inusitado, a pobreza nem
sempre abarcou tantos problemas, essa foi uma característica que veio com o
desenvolvimento, atribuindo-lhe tantas significações e consequências geopolíticas.
Nos tempos coloniais, a preocupação com a pobreza foi condicionada pela
crença de que, mesmo que os "nativos" pudessem ser de algum modo
iluminados pela presença do colonizador, não teria muito que ser feito sobre
sua pobreza, porque o seu desenvolvimento econômico era frívolo. A
capacidade do nativo para ciência e tecnologia, a base para o progresso
econômico, eram vistos como nulo. (...) Tudo o que esta forma tradicional

83
for instead of the kingdom of abundance promised by theorists and politicians in the 1950s, the
discourse and strategy of development produced its opposite: massive underdevelopment and
impoverishment, untold exploitation and oppression.
114

poderia ter sido, e sem idealizar eles, é verdade que a pobreza em massa no
sentido moderno, só apareceu quando a propagação da economia de mercado
rompeu os laços comunitários e desproveu milhões de pessoas do acesso a
terra, água e outros recursos. Com a consolidação do capitalismo,
pauperização sistêmica tornou-se inevitável (ESCOBAR, 2012, p. 22,
tradução nossa)84.

Vale notar que essa “modernização” da pobreza abre possibilidades para


convencer sobre a necessidade de intervenção no combate dessas condições. Ao romper
relações vernaculares, coloca-se no lugar mecanismos para controle dessas relações que
passam a ser marcadas pela desigualdade. Não afirmamos aqui que a pobreza seja uma
condição a ser multiplicada, apenas que muitas dessas condições foram efeitos da
própria modernidade. Os maiores problemas surgem por olhar a pobreza de forma
estanque, focado em soluções pragmáticas, sem considerar os processos históricos e
contextos amplos que influenciam na caracterização da pobreza. Assim,
(...) através da definição de ‘subdesenvolvimento’ como uma falta, ao invés
de resultado de circunstâncias históricas, e por tratando 'subdesenvolvido'
simplesmente como pobre sem buscar as razões para a sua destituição, ‘a
política de desenvolvimento’ fez do crescimento e da ajuda a única resposta
possível (RIST, 2008, p. 79, tradução nossa) 85.

Cabe destacar que, ao compor essa necessidade por ajuda no combate a pobreza
“modernizada”, adiciona-se um novo ingrediente na dependência econômica entre Sul e
Norte. Apesar de qualquer boa intenção, a lógica do desenvolvimento acaba
contribuindo para a reprodução da assimetria conhecimento/ poder (ESCOBAR, 2012),
visto que propõe também uma série de sugestões de solução baseadas no conhecimento
da sociedade ocidental, que podem ser aplicadas e utilizadas pelos demais países,
visando superar essa condição e avançar os estágios até o modelo hegemonicamente
estabelecido.
Segundo Rist (2008), a doutrina do desenvolvimento para os países não
industrializados teria três pilares: “transferências maciça de capital (principalmente
privado), exportações de matérias-primas, e a vantagem comparativa que deve
84
In colonial times the concern with poverty was conditioned by the belief that even if the 'natives' could
be somewhat enlightened by the presence of the colonizer not much could be done about their poverty
because their economic development was pointless. The native's capacity for science and technology, the
basis for economic progress, was seen as nil. (...) Whatever this traditional ways might have been, and
without idealizing them, it is true that massive poverty in the modern sense appeared only when the
spread of the market economy broke down community ties and deprived millions of people from access
to land, water, and other resources. With the consolidation of capitalism, systemic pauperization became
inevitable.
85
(...) by defining 'underdevelopment' as a lack rather than the result of historical circumstances, and by
treating 'underdeveloped' simply as poor without seeking the reasons for their destitution, 'development
policy' made of growth and aid the only possible answer.
115

beneficiar todos os operadores de mercado” (Op. Cit, p. 113, tradução nossa)86. É


notável que tais pilares apresentem ampla relação com a econômica global e são, em
certa medida, dependentes dela. Com tal visão, o investimento de capital passa a ser
considerado o principal ingrediente para o crescimento econômico e desenvolvimento.
Desde seu início, o crescimento dos países pobres é visto como dependente de amplos
suprimentos de capital para promover infraestrutura, industrialização, urbanização e
modernização daquela sociedade. Mas da onde viria esse capital?
Uma resposta possível seria a poupança interna. Mas estes países eram vistos
como presos em um "círculo vicioso" de pobreza e falta de capital, de modo
que uma boa parte do capital "mal necessário" teria de vir do exterior. Além
disso, era absolutamente necessário que os governos e organizações
internacionais assumissem um papel ativo em promover e orquestrar os
esforços necessários para superar o atraso geral e subdesenvolvimento
econômico (ESCOBAR, 2012, p. 40, tradução nossa)87.

Entretanto, o que faltou para complementar essa análise foi questionar a


possibilidade de refazer a acumulação de capital dos países industrializados, em outras
circunstâncias, na periferia. Para Rist (2008), a resposta seria não:
(...) e demonstrou que o regime de acumulação nos antigos países industriais
não poderia ser reproduzido na periferia. Os países periféricos não estavam
condenados a exportar matérias-primas; eles mesmos poderiam
"desenvolver" no sentido Rostowian - ou seja, industrializar e, até certa
medida, modernizar-se. Mas este "desenvolvimento dependente associado"
não poderia beneficiar toda a população, por razões que tinham a ver tanto
com a estrutura política interna como com a dominação externa. Tais
argumentos ajudaram bastante a reinserir o econômico na ordem político-
social, de modo que já não fosse mais tratada como uma variável
independente (RIST, 2008, p. 118, tradução nossa)88.

Assim, o desenvolvimento deixa de ser atribuído a fatores unicamente


econômicos e independentes, e passa a ser entendido por meio dos processos históricos
e as condições que fornecem. A ênfase de seus discursos recai sobre o tipo de
desenvolvimento necessário para solucionar problemas sociais e econômicos das áreas
86
massive transfers of (mainly private) capital, exports of raw materials, and the comparative advantage
supposed to benefit all market traders.
87
One possible answer was domestic savings. but these countries were seen as trapped in a "vicious
circle" of poverty and lack of capital, so that a good part of the "badly needed"capital would have to come
from abroad. Moreover, it was absolutely necessary that governments and international organizations take
an active role in promoting and orchestrating the necessary efforts to overcome general backwardness and
economic underdevelopment.
88
(…) and demonstrated that the accumulation regime in the old industrial countries could not be
reproduced in the periphery. The peripheral countries were not doomed to export raw materials; they
could themselves 'develop' in the Rostowian sense - that is, industrialize and, to some extent, modernize.
But this 'associated dependent development' could not benefit the whole population, for reasons that had
to do as much with the internal political structure as with external domination. Such arguments greatly
helped to reinsert the economic into the social-political order, so that it was no longer treated as an
independent variable.
116

subdesenvolvidas, fomentando os debates sobre um “outro desenvolvimento”,


“desenvolvimento participativo”, “desenvolvimento socialista” e assim por diante.
Com isso, o que se constrói são novas abordagens, modificações e proposições
desenvolvimentistas, porém, o desenvolvimento em si não é questionado. O
desenvolvimento atingiu o viés de certeza no imaginário social, não sendo por menos,
que os próprios países do Sul despontaram como grandes defensores do
desenvolvimento.
Às vezes, o desenvolvimento cresceu tão importante para os países do
Terceiro Mundo que se tornou aceitável para seus governantes submeter as
suas populações a uma variedade infinita de intervenções, a mais abrangente
formas de poder e sistemas de controle; tão importante que, as elites do
Primeiro e Terceiro mundo aceitaram o preço de empobrecimento maciço,
pela venda de recursos do Terceiro Mundo ao licitante mais conveniente, de
degradar suas ecologias físicas e humanas, de matar e torturar, de condenar as
populações indígenas à beira da extinção; tão importantes que muitos no
Terceiro Mundo começaram a pensar a si mesmos como inferiores,
subdesenvolvidos e ignorantes e a duvidar do valor de sua própria cultura,
decidindo em vez de jurar lealdade aos banners da razão e do progresso; tão
importante, por fim, que a concretização do desenvolvimento obscurecida a
consciência da impossibilidade de cumprir as promessas que o
desenvolvimento parecia estar fazendo (ESCOBAR, 2012. p.52, tradução
nossa)89.

É por tal preocupação que o pósdesenvolvimento questiona não apenas as


medidas e políticas econômicas do desenvolvimento, mas principalmente o imaginário
social construído em torno dessa necessidade. Um passo primordial é compreender o
cenário e a formação discursiva que dão bases para a fixação do desenvolvimento como
algo a ser buscado. Somente entendendo como esse discurso delimita o que “é” e o que
“não é” na caracterização de países, somos capazes de buscar o caminho do que “pode
ser”. Um caminho trilhado pelo entendimento do desenvolvimento enquanto uma
construção moderna e contextualizado pelas hierarquias do sistema-mundo.
Na verdade, como o desenvolvimento foi um fenômeno de proporções globais, a
perspectiva crítica sobre essa corrente não se limitou ao Sul global, tendo pontos que
também interessavam às populações do Norte. Assim, o pósdesenvolvimento engloba
iniciativas múltiplas e demandas diversas que coincidem em questionar a centralidade
89
At times, development grew to be so important for Third World countries that it become acceptable for
their rulers to subject their populations to an infinitive variety of interventions, to more encompassing
forms of power and systems of control; so important that First and Third World elites accepted the price
of massive impoverishment, of selling Third World resources to the most convenient bidder, of degrading
their physical and human ecologies, of killing and torturing, of condemning their indigenous populations
to near extinction; so important that many in the Third World began to think of themselves as inferior,
underdeveloped, and ignorant and to doubt the value of their own culture, deciding instead to pledge
allegiance to the banners of reason and progress; so important, finally, that the achievement of
development clouded the awareness of the impossibility of fulfilling the promises that development
seemed to be making.
117

que o desenvolvimento adquiriu na organização de várias sociedades. Nesse contexto,


dois temas ganham notoriedade: primeiro, a transição de uma economia baseada nos
recursos de combustível fóssil para uma economia baseada na biodiversidade; segundo,
a redução da predominância da economia global, insistindo no direito de agir de acordo
com valores culturais, democráticos e de justiça.
No Sul global, por exemplo, iniciativas enfatizam direitos das comunidades
aos recursos naturais, autogoverno e formas indígenas de conhecer e de agir.
No Norte global, ações do pósdesenvolvimento, ao contrário, centram na
fabricação, comércio e serviços bancários em empresas eco-justas, a
redescoberta da comunidade na natureza e sociedade, a colaboração de
código aberto, a autossuficiência do consumo e dos fins lucrativos, e
renovada atenção para valores não-materiais. De qualquer modo, o que
parece ser o denominador comum dessas iniciativas é a busca de menos
noções materiais de prosperidade que fazem espaço para as dimensões da
autossuficiência, da comunidade, da arte ou da espiritualidade (SACHS,
2010, p. xiii, tradução nossa)90.

Em todo o exposto, tentamos compreender as principais características e


diretrizes da teoria do desenvolvimento, associando a seu contexto de formulação e
propagação do discurso. Percebe-se que, guardadas devidas particularidades, o
desenvolvimento conserva algumas semelhanças com a teoria do sistema-mundo,
guardadas suas devidas particularidades, principalmente por fomentar políticas de uma
economia global e compor uma diferenciação de regiões do globo. Por conseguinte,
estruturam uma relação de hegemonia concentrada nos países do Norte e integrante da
configuração da desigualdade nas interações políticas e sociais do globo.
A discussão que desenvolvemos nessas páginas não pretendem ligar de forma
direta e reducionista o Sul à pobreza e desgraça, em uma lógica quase determinista. Pelo
contrário, traçamos ideias que buscavam relativizar as imagens mais comuns,
demonstrando que tais valores não provêm unicamente de uma realidade, mas da
criação de um aparato discursivo e imagético que compõe o imaginário socialmente
compartilhado. Esse é o primeiro passo a ser tomado pelas perspectivas do
póscolonialismo e pósdesenvolvimento, tal qual descrevemos nas linhas deste segundo
capítulo.

90
In the global South, for instance, initiatives emphasize community rights to natural resources, self-
governance and indigenous ways of knowing and acting. In the global North, post-development action
instead centres on eco-fair businesses in manufacture, trade and banking, the rediscovery of the commons
in nature and society, open-source collaboration, self-sufficiency in consumption and profit-making, and
renewed attention to non-material values. At any rate, what appears to be the common denominator of
those initiatives is the search for less material notions of prosperity that make room for the dimensions of
self-reliance, community, art or spirituality.
118

Porém, também é notável e, portanto, associável, que essa consciência sobre a


construção de uma visão de mundo que passa a confundir-se com a própria realidade
também esteve presente nas linhas de nosso primeiro capítulo. Nele, nossa discussão
tinha o foco nas representações cartográficas, que através da cientificidade e
neutralidade passam a afirmar uma maior verossimilhança. Assim, as teorias sociais
críticas e os mapas artísticos se encontram no objetivo de desconstruir uma forma
padrão e única de entendimento do mundo, ao passo que pretendem multiplicar os
olhares e os conhecimentos sobre esse mesmo mundo.
Portanto, poderíamos dizer que o Mapa invertido da América do Sul é
póscolonial e pósdesenvolvimento? Não é nossa intenção afirmar isso, mas antes
perceber possíveis relações que a visão de mundo expressa nessa obra têm com as
visões de mundo que são debatidas academicamente por essas correntes críticas. Em
outras palavras, intencionamos verificar uma possível participação dessas teorias
acadêmicas na expressividade atual de tal obra. Até mesmo porque, esta é uma das
grandes qualidades das representações artísticas: permitir uma série de interpretações e
de ideias que se identificam com a imagem e podem sobreviver ou adequar ao longo do
tempo.
Entretanto, apenas a discussão sobre o que é o póscolonialismo e o
pósdesenvolvimento não é suficiente para responder esse questionamento. Nem mais
será suficiente discorrer apenas sobre o contexto de criação e motivação da obra pelo
seu artista. Essa correlação será investigada através de exemplos em que essa obra foi
reproduzida, ou seja, procuraremos entender os sentidos e os propósitos que esse mapa
artístico oferece aos contextos em que foi apropriado, para então conseguir,
efetivamente, traçar as influências do póscolonialismo e pósdesenvolvimento. Para essa
tarefa é que foi pensado o nosso próximo capítulo.
119
120

3 PORQUE O MAPA INVERTIDO DA AMÉRICA DO SUL CONTINUA TÃO


FAMOSO?

Esse simples questionamento que dá título ao presente capítulo é, na verdade, a


curiosidade inicial que despertou nosso interesse em compor toda a presente pesquisa.
Foi através do Mapa invertido da América do Sul que tivemos a primeira referência de
um mapa artístico, e talvez não sejamos os únicos. Ainda que sim, é notório o exemplo
referencial e didático que essa obra fornece para a idealização do que é mapa artístico.
Em outras palavras, acreditamos que a ampla circulação desse mapa facilita seu rápido
reconhecimento, e também nos instiga a questionar: aonde já vimos esse mapa antes?
A pergunta não carece de uma resposta precisa, apenas induz a reflexão sobre as
diversas situações onde esse mapa pode ter aparecido. Por se tratar de uma obra de arte,
o lugar mais óbvio para reconhecermos seria em uma exposição ou galeria (Figura 6),
onde a característica da imagem que se ressalta é a qualidade visual e propriedade
artística. A ambientação e as condutas que se colocam ao visitar uma exposição guiam
os olhares para os focos dos movimentos artísticos, destacando suas propostas e seus
componentes. Esse é um cenário mais favorável para que o Mapa invertido da América
do Sul seja pensado dentro de seu contexto de arte moderna da América Latina e do
estilo de seu autor Joaquín Torres-Garcia.
Porém a expressividade desse mapa artístico ultrapassou tais espaços até
abranger o uso popular e sua reprodução em diferentes meios. Mais do que isso,
ultrapassou também as limitações temporais, visto que, mesmo sendo divulgado em
1943, é possível encontrar exemplos de sua reprodução até os dias atuais. São
justamente essas as características que nos despertaram o interesse em compreendê-lo
um pouco melhor.
121

Figura 6 – Mapa invertido da América do Sul no Palacio de Bellas Artes, Cidade do México, 2011.

Fonte: Exposição “Crisiss. Art and confrontation in Latin America, 1910-2010”. Disponível em:
<http://centrefortheaestheticrevolution.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html>. Acesso em: 17 mar.
2015.

Claramente, essa reprodução não carrega consigo toda a história da obra, ou


mesmo conserva todas as suas formatações originais. Por conseguinte, podem existir
certas perdas nessa reprodução geral da obra em questão. Não é por ver, ou mesmo
utilizar de alguma forma esse mapa artístico, que se passa a dominar todos seus
discursos ou propósitos que inspiraram o artista a fazê-lo, muitas vezes se desconhece o
nome da obra, seu autor ou seu ano. Ainda assim, tal mapa continua a comunicar e
expressar uma visão de mundo, que vem sendo apropriada por diferentes situações, e
este é o foco da presente pesquisa.
Portanto, por mais que ocorram perdas nessa ampla reprodução, elas
concentram-se muito mais em elementos artísticos e técnicos do que nas interpretações
que a obra pode fomentar. Na verdade, seus discursos podem até mesmo ser
potencializados e pluralizados por meio de sua propagação, cativando os olhares e
atenção de um público mais vasto. Ao descrever o Mapa invertido da América do Sul,
Seemann (2013) destaca que a novidade de poder mudar e inverter a orientação das
coisas:
(...) com o mapa se tornou ícone para a revisão da ordem mundial pelos
artistas sul-americanos para mostrar que eles também são capazes de criar
uma moderna escola de arte que poderia concorrer com os grandes centros
como Paris ou Nova Iorque (Op. Cit, p. 80).
122

Complementarmente, a própria característica simplista e rústica do estilo de


Torres-García pode ter facilitado tal difusão. Por ser um traçado fácil, com poucos
detalhes de execução, favorece sua reprodução para um universo diverso, que vai desde
cartazes e livros, até camisas e tatuagens. Até mesmo com a utilização de recursos
digitais o desenho desse mapa artístico é mais facilmente editado e modificado devido a
suas poucas linhas e ausência de técnicas detalhistas de pintura. Porém seria errôneo
limitar o sucesso de difusão da obra apenas a sua facilidade de reprodutibilidade técnica,
sua utilização muitas vezes serve como expressão de uma ideia ou de um entendimento
que certos contextos identificam.
Dentre os diversos fatores que podem levar a reprodução de uma imagem em
contextos tão diversos, adquire destaque a identificação com sua mensagem. As formas
artísticas admitem interpretações amplas sobre os discursos que expressam, tornando
um desafio delimitar um sentido único ou original da obra. Mas tão importante quanto
esse sentido primordial, é compreender os outros discursos que também passam a ser
entendidos e vinculados na / pela construção artística. Essa dinâmica é responsável pela
identificação com a obra e, por conseguinte, por sua reprodução e utilização em
diversos meios.
A atual notoriedade dessa obra de Torres-García indica alguma continuidade.
Algo de expressivo nesse mapa invertido continua a ser pertinente e solicitado mesmo
passados mais de setenta anos das circunstâncias e motivos que levaram a sua
elaboração. Em outras palavras, a condição e conjuntura que motivaram a criatividade
artística do autor são, de algum modo, semelhantes àquelas que motivam a identificação
e a reprodução da imagem para expressar valores e ideias até os dias atuais. Mas, quais
são essas semelhanças? Quais são as continuidades?
O caminho para responder tais questionamentos foi pensado através da reunião
de imagens que demonstrassem a variedade de situações em que esse mapa artístico é
reproduzido. Durante alguns meses da pesquisa, foi feito um levantamento eventual de
imagens que mostram o Mapa invertido da América do Sul em alguma de suas muitas
formas de apropriação. Analisar essas imagens, perceber em quais ambientes esse mapa
circula e compreender quais mensagens são expressas através dele são os objetivos do
presente capítulo.
Através desse levantamento, a proposta é perceber as semelhanças,
complementaridades e diversidades na apropriação do Mapa invertido da América do
Sul, agrupando-as em universos de interesse. Assim, ficará mais evidente o discurso
123

principal ou a linha geral que essa obra traz aos entendimentos contemporâneos. Essa
abordagem metodológica é uma escolha para a análise de imagens cujo objetivo é
destacar seus discursos e visões, bem como a apropriação delas em sua reprodução. Não
se trata de uma metodologia única ou mais correta, apenas adequada ao intuito da
pesquisa que não tem como pretensão o foco na construção simbólica ou da leitura
semiótica da imagem.
Apesar das imagens selecionadas terem vários formatos, como montagem,
fotografia ou reprodução, todas passam a ser analisadas enquanto mapa artístico, por ser
entendida como uma qualidade primordial dessa representação. Ou seja, de uma
maneira geral, podem ser vistos como um simples esquema espacial feito por um artista.
Mas diante da tentativa de compreender seus preceitos, os mapas artísticos devem ser
vistos como uma diversificação e libertação das formas de ver e expressar o mundo ao
redor. Segundo Cosgrove (2005), existe um conjunto de mapas artísticos que
“confrontam a dialética da harmonia global e exploração colonial” (Op. Cit, p. 42,
tradução nossa)91, refletindo um radical engajamento entre arte conceitual e
mapeamento.
Nesse sentido, a reprodução do Mapa invertido da América do Sul promove a
continuidade e a difusão da visão de mundo questionadora desse mapa. Por isso,
readequamos nossa pergunta direcionadora para: Quais contextos atuais identificam-se
com a visão de mundo expressa nesse mapa artístico? Se é verdade que o mundo
contemporâneo sofreu tantas mudanças, porque a visão de mundo desse mapa continua
pertinente?
Com tal perspectiva, a apropriação artística da cartografia apresenta relações
com a geopolítica, no sentido de que os entendimentos cotidianos e sociais
diferenciados sobre a dimensão espacial do poder político têm uma maior expressão
através das construções não convencionais dos mapas artísticos. Sendo assim, as teorias,
concepções e nomenclaturas divulgadas pela geopolítica, passam a fazer parte do
entendimento e do imaginário de mundo das sociedades, que por sua vez, impulsionam
as representações desses entendimentos nos mapas artísticos.
Em concordância, reconhecemos, ainda no capítulo 1, o poder dos mapas
institucionais e sua capacidade de guiar e limitar os entendimentos de mundo em um
padrão, que seria visto como “científico” e “correto”. O que deixamos claro agora, é que

91
Confront the dialectics of global harmony and colonial exploitation
124

esses entendimentos de mundo, influenciam as ações e comportamentos sobre ele, tal


qual Cramptom (2010), explica que:
(...) a nossa forma de ver e compreender o mundo, incluindo sua geografia,
influencia nossas ações. Política externa e de decisões sobre assistência, por
exemplo, fluem por nossa perspectiva global. Concentrações militares
ocorrem onde ameaças são percebidas (Op. Cit., p. 94, tradução nossa)92.

De fato, a inversão da orientação do mapa-múndi e a colocação do Sul em sua


porção superior podem ser feitas, sem qualquer prejuízo, por mapas oficiais e
cartograficamente embasados. Como já debatemos anteriormente, não existem razões
matematicamente ou cientificamente especificadas para a determinação de uma
orientação única (KLINGHOFFER, 2006; BROTTON, 2014), mas coube aos mapas
artísticos e sua liberdade construtiva atentar mais decididamente sobre essa observação.
Assim, escolher uma orientação de mapa depende do sentido, ou melhor, da visão de
mundo que esse mapa representa.
Por conseguinte, existia, antes da normatização da cartografia, a tendência de
colocar a própria cultura no centro do mapa, ou seja, o etnocentrismo era comum nas
representações espaciais, não sendo encarado como um problema. Na verdade, o perigo
só ocorre quando essa centralização e, logo, esse etnocentrismo, é colocado como
universal (HARLEY, 1989). O resultado é que a visão de mundo que até então guiava a
orientação, torna-se única e hegemônica.
Já o Mapa invertido da América do Sul, ao mudar a orientação, não
necessariamente era ciente dos debates da ciência cartográfica sobre a comprovação ou
não da orientação norteada. Mas buscava significações e sentidos diferentes da
representação hegemônica e europeia de mundo. Do mesmo modo, poderíamos dizer
que os contextos atuais que reproduzem esse mapa artístico também estejam nessa
mesma busca? Por hora, o que sabemos é que muitos dos exemplos de reprodução não
se encontram, obrigatoriamente, no universo da ciência cartográfica e, portanto, é
provável que estejam menos interessados no debate sobre a padronização de uma
orientação e mais interessados na visão de mundo que esse mapa artístico expõe.

92
the way we see and understand the world, including its geography, influences our actions. Foreign
policy and aid decisions for example, flow out of our global perspective. Military build-ups occur where
threats are perceived.
125

3.1 13 exemplos de reprodução do Mapa invertido da América do Sul

Diante do pioneirismo da inversão de orientação de um mapa, acreditamos que


as influências do mapa artístico de Torres-García sejam bastante amplas, onde se inclui
não só a apropriação do desenho, como também da ideia de inversão. Esse amplo
conjunto abrangeria, por exemplo, diversos símbolos de conferências dos países do sul,
uma das famosas tirinhas de Quino, onde a personagem Mafalda estranha o jeito que a
personagem Liberdade prende um mapa na parede, outras obras artísticas famosas,
como o Corrective Map of the World (1979) do australiano McArthur, entre muitos
outros.
Ele (Mapa invertido da América do Sul) continua a ressoar na cultura pop e
arte elevada (...). No domínio da cartografia, a intervenção de Torres-García
nos leva a questionar convenções do mapeamento, antecipando o mapa sul-
no-topo de Stuart McArthur, produzido em massa na Austrália no início de
1979, e lembrando-nos que tais convenções são culturalmente específicas
(JOLLY, 2011, p. 199, tradução nossa)93.

De início, era nosso desejo correlacionar todas essas formas de inversão ao mapa
de Torres-García, porém os possíveis exemplos foram se multiplicando tanto que ficaria
difícil compor uma análise consistente, bem como ficaria penoso traçar um parâmetro
de seleção e exclusão dessas imagens. Entretanto, o que parecia um problema, tornou-se
um ótimo direcionamento, pois nos fez atentar para a quantidade de reprodução do
desenho original da obra que existem. No mais, essa nova estratégia não comprometeria
em nada o objetivo inicial de investigar os sentidos dessa inversão, e ainda auxiliaria a
explicar, de forma mais clara, a popularidade dessa obra até os dias atuais.
De fato, se afirmamos no início da investigação que o reconhecimento desse
mapa artístico é constante, então era provável que figurasse novamente em outros
contextos cotidianos, bastava que estivéssemos atentos a ele. Assim, somada a pesquisa
de imagens na internet, também utilizamos situações habituais em que encontramos
com tal mapa, estruturando um conjunto bastante variável. Primeiramente, são muitas a
formas de utilização do desenho de Torres-García: alguns contêm modificações, outros
são reproduções integrais. Também são variadas as finalidades: alguns se destinam aos
debates sobre a América, outros à contraposição sobre a hegemonia europeia, e assim

93
It continues to resonate within pop culture and high art (...). In the realm of cartography, Torres-
García's intervention ask us to question map-making conventions, anticipating Stuart McArthur's south-
on-top map mass-produced in Australia beginning in 1979 and reminding us that such conventions are
culturally specific.
126

por diante. Por fim, são diferentes também os universos a que pertencem essas
apropriações, indo desde o turismo no Uruguai até o corpo individual e suas tatuagens.
Em suma, encontramos uma riqueza na reunião dessas imagens que pretendemos dar
conta nesse capítulo.
Desde o início, o universo que parecia mais óbvio para encontrar o Mapa
invertido da América do Sul era o dos souvenires do Uruguai (Figura 7 e 8). Dizemos
óbvio porque não foi difícil encontrar, mas por outro lado, não é tão lógico que as
recordações turísticas, representativas de um país, sejam compostas por uma obra de
arte. Quanto mais considerando que a expressividade das artes do Uruguai não figura
entre os principais atrativos turísticos do país: não foi berço de movimento artístico e
não figura na rota das maiores galerias mundiais. Em suma, não há motivação externa
para estampar o mapa de Torres-García nas lembranças que expressam o Uruguai,
somente o potencial próprio da obra.
Figura 7 – Camisa com mapa artístico.

Fonte: O autor, fotografado em 30 dez. 2014, no Parque Sarah Kubitschek, em Brasília.


127

Figura 8 – Cartão postal e souvenir com o mapa artístico.

Fonte: O autor, fotografado em 10 jan. 2015.

Os exemplos das figuras 7 e 8 apresentam pouca ou nenhuma modificação na


configuração original do mapa artístico, mas torna-se quase imprescindível ancorar a
imagem representada ao contexto de utilização turística através do enunciado “Uruguai”
como referencial da origem tanto da obra como do souvenir, que muitas vezes se
associa à marcação e a precisão da localização do Uruguai no mapa artístico através da
marcação da cruz e das coordenadas numéricas. Destarte, nesse universo a possível
identificação com tal representação não pode ser explicada unicamente pela afinidade
ideológica ou discursiva, mas é igualmente importante considerar a identificação
construída pela identidade da cultura uruguaia.
É válido ressaltar que na capital do país existe um museu destinado unicamente à
obra de Torres-García, que figura entre as atrações turísticas da cidade. Porém, não é
apenas nesse museu que encontramos os tais souvenires com referências ao seu mapa,
estes podem ser encontrados em vários pontos das cidades do país. Não é nosso intuito
adentrar nas discussões sobre as relações sociais da atividade turística, mas o fato de
Torres-García ter sua obra figurando entre os museus, os cartões postais e os souvenires
do país, indica que suas construções e suas ideias fazem parte da identidade nacional do
Uruguai.
De fato, todos esses aparatos, por mais que sirvam à atividade turística, também
compõem uma construção de identificação nacional guiada pelo Estado, elencando os
128

elementos culturais e os fatos históricos que passam a ser reproduzidos e permanecidos


para tempos futuros, através de atividades como o museu e os cartões postais. Segundo
Benedict Anderson (1993) e sua análise sobre a dimensão política do nacionalismo, tais
aparatos conduzem a uma espécie de censo pictórico do patrimônio do Estado.
O próximo universo que se apropriou desse mapa invertido chamamos de
cultura popular. São compostos por produções culturais contemporâneas, onde adquire
destaque o poder de difusão por visarem um amplo público para seu maior sucesso. É
interessante pensar que tais produções selecionam o mapa artístico de Torres-García
dentre várias outras possibilidades de ilustração para suas atividades, o que pode ter
relação com duas propostas: em primeiro, essa obra pode expressar princípios e ideais
que guiam essas produções culturais; em segundo, essa obra pode funcionar como um
chamativo de atenção para tal produção, por vincular uma imagem previamente
conhecida.
Isso deve ficar mais claro pela contemplação das imagens: a primeira é o logo de
um blog sobre um projeto de viagem pelos países da América do Sul (Figura 9); a
segunda é o material de divulgação e o CD Singular, de um trio musical de Pelotas – RS
(Figura 10).

Figura 9 – Logo para blog.

Fonte: blog Hornosa Chiapas. Disponível em: <https://hornosachiapas.wordpress.com/>. Acesso em: 10


jan. 2015.
129

Figura 10 – Material de divulgação do CD Singular.

Fonte: Jornal Tradição. Disponível em:


<http://www.jornaltradicao.com.br/site/content/cultura_e_turismo/index.php?noticia=7395>. Acesso em
12/01/2015.

O blog que utiliza a figura 9 é alimentado por uma jornalista que se descreve,
dentre outras coisas, como: marginal, libertária e comunista. E o projeto de viajar pela
América do Sul é justificado pelas descobertas da vivência do cotidiano, dificuldades e
relações humanas desses países. Para compor a identidade visual desse projeto, a
bloggueira optou por uma adequação da obra de Torres-García, onde a localização do
Uruguai, o barco e o peixe são substituídos por elementos que vinculem a ideia de
mochileiros em trânsito, e pela inserção da sugestiva frase “Locos por ti América”, que
atravessa o desenho do mapa e exalta seu interesse em vivenciar a região. Nessa figura,
a viagem dos mochileiros pode ser comparada à viagem do barco de Torres-García,
visto que no trajeto de percorrer a América, ao objetivarem, por exemplo, a ponta da
Patagônia, também estariam partindo “para cima”.
Em suma, a principal mensagem que parece ser expressa através desse mapa
invertido, associado com suas modificações feitas, é de admiração e afeição pelos
valores e modos de vida particulares da América. Tais sentimentos alimentam a ideia de
promover a exaltação dos elementos culturais característicos das Américas, uma
motivação que também estava claramente presente tanto nas obras como nos escritos de
130

Torres-García e, por isso, participaram da motivação em compor o Mapa invertido da


América do Sul.
Diferentemente, a capa do CD e seu material de divulgação na figura 10 não fez
muitas alterações no desenho do artista uruguaio, a não ser a inserção do nome dos três
músicos brasileiros participantes: Paulo Timm, Gilberto Isquierdo e Maurício Raupp.
Ainda sim, é notório o destaque dado ao mapa que ocupa a maior parte dessa capa, o
que pode ser associado a descrição dada pelo próprio trio sobre suas composições como
melodias que navegam entre as terras do sul. Ou seja, a vivência de uma região de
fronteira dos países mais ao Sul da América e sua cultura está presente nas suas
inspirações para compor e para ilustrar seu CD gravado em 2012.
Portanto, existem tanto no blog como no CD a ideia de valorizar uma cultura
local, existe um sentimento de admiração por esses lugares, que também era presente na
ideologia de Torres-García ao elaborar seu mapa artístico. Também não podemos deixar
de notar que, dentre o amplo universo de circulação de informação da cultura popular,
ambos os exemplos atuam em um circuito mais alternativo de público, que apresenta
um gosto menos comercial, e mais alternativo. Mas, de forma alguma, estamos
colocando essa característica como pejorativa, apenas como um elemento a se
considerar dentre os contextos que contribuem para a permanência do Mapa invertido
da América do Sul.
O terceiro universo que encontramos em nossa pesquisa foi o acadêmico, mas
não consideramos os livros, capítulos e artigos destinados ao estudo da obra de Torres-
García. Nosso intuito está na apropriação da imagem em diferentes contextos, e por isso
selecionamos uma capa de livro (Figura 11) e dois cartazes de evento acadêmico
(Figura 12 e Figura 13) que usam tal mapa em sua divulgação. Novamente, será
possível perceber a serventia que esse mapa empresta à ilustração ao considerar os
assuntos e linhas de pesquisa que esses exemplos apresentam.
131

Figura 11 – Capa do livro “Conocer desde El Sur”.

Fonte: “Conocer desde El Sur”, 2006.


Figura 12 – Cartaz de evento acadêmico com mapa artístico 1.

Fonte: Evento Universidades e Movimentos Sociais na América Latina, maio 2014.


132

Figura 13 – Cartaz de evento acadêmico com mapa artístico 2.

Fonte: Evento I Seminário de Geografia e giro descolonial, nov. 2014.

A figura 11 é a capa do livro intitulado “Conocer desde el Sur: para una cultura
política emancipatoria”, de autoria de Boaventura Sousa Santos, um dos maiores
teóricos das perspectivas póscoloniais e cidadania global. Além de atuar nas
Universidades de Coimbra (Portugal) e Universidade de Wisconsin-Madison (Estados
Unidos da América), o autor também coordena projetos que visam a emancipação social
através de novos paradigmas teóricos e políticos de transformação social. O título da
obra acadêmica “Conocer desde El Sur” adquire ampla relação com o mapa invertido de
Torres-García, que ao apontar o Sul para o topo revoga qualquer dependência ou
subalternização dos conhecimentos não-ocidentais originados do Sul global. O artista
uruguaio e o autor português, mesmo em tempos históricos distintos, somam forças para
o reconhecimento e a emancipação das formas de conhecimento desses países, que
Boaventura coloca como toda a região do Sul global, mas ilustra apenas com o mapa da
América do Sul de Torres-García.
133

A figura 12 é o cartaz de divulgação elaborado para o evento “Universidades e


movimentos sociais na América Latina: pesquisa militante, construção de conhecimento
e bens comuns”, organizado pela Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar de aqui, ambos referenciarem o sul do
continente americano, o Mapa invertido da América do Sul é utilizado não pelo
sentimento de exaltação da cultura local, mas pelo sentimento de militância e ações
construtivas para toda a região. Como narramos ainda no capítulo 1, o propósito do
retorno de Torres-García ao Uruguai era desprender um esforço de emancipação da
América do Sul não apenas nas artes plásticas, como também na literatura, na
arquitetura e no urbanismo. Portanto, a reprodução atual da obra pode ter auxiliado sua
identificação por outros contextos que também defendem essa força emancipatória,
como no caso da produção acadêmica reunida nesse evento.
O último exemplo desse universo é a figura 13 que também é um cartaz de
divulgação, mas elaborado para o evento “I seminário de Geografia e giro descolonial:
experiências, ideias e horizontes de renovação do pensamento crítico”, organizado pelo
Instituto de Geociências, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nesse caso, os
realizadores também optaram pela inserção de novos elementos ao mapa artístico, com
figuras de populações tradicionais, povos indígenas e movimentos sociais em passeata.
Esses novos elementos fornecem uma adequação da obra tanto aos temas póscolonais
atuais, como as propostas de mesa da programação do evento. Semelhante aos demais
exemplos desse mesmo universo, o Mapa invertido da América do Sul na figura 13
também remete às relações de desigualdade e de dependência dos países do Sul e o
desejo por mudança, que passam a ser pensadas pelos debates acadêmicos.
Desse modo, os títulos dos eventos e do livro traçam uma associação com o
mapa, no sentido de fornecer uma expressão visual das ideias de: emancipação,
movimentos sociais da América Latina e giro descolonial. A obra de Torres-García é,
portanto, apropriada por corroborar com as visões críticas desses eventos que
convergem no reconhecimento das vozes e das práticas até então silenciadas das ex-
colônias do Sul e seus grupos sociais reprendidos. Apesar de cada imagem desse
universo ter sua particularidade de proposição, todas parecem convergir na legitimação
dos conhecimentos não-hegemônicos.
Apesar de sua grande valia para os debates do ensino acadêmico, não é só nesse
universo educacional que o Mapa invertido da América do Sul circula. O universo do
ensino escolar também colabora com sua notoriedade, tendo exemplos no Ensino
134

Fundamental e Ensino Médio. Claramente, nesse contexto ainda não vemos articuladas
as densas teorias sociais póscoloniais ou emancipatórias, mas já cabem ensinamentos
que relativizam a padronização cartográfica de orientação e suas influências
ideológicas. Desse universo, selecionamos dois exemplos pertinentes: o primeiro vem
de um livro didático do 8º ano do Ensino Fundamental (Figura 14) e o segundo vem de
uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que abrange todo território
nacional (Figura 15).
Nesse universo, os dois exemplos propõem ao seu público, análises críticas e
exame do discurso que a obra expressa, focado na inversão das orientações. O livro
didático compõem a coleção “Geografia nos dias de hoje”, e seus autores são: Cláudio
Giardino, Ligia Ortega, Rosaly Braga Chianca, Virna Carvalho; já a questão compõe o
modelo de prova que o Ministério da Educação divulgou em 2009 para instruir sobre as
diretrizes do novo ENEM. Em ambos, existe a menção de que o mapa de Torres-García
exibe uma configuração diferente da habitual para o mapa da América do Sul. No livro,
esse mapa artístico é utilizado no contexto de aprendizagem das regionalizações
políticas do globo, compondo uma visualização didática para relativizar a ideia de que
os países do Sul são inferiores e que não existiria pobreza nos países ricos, e mostra
como essa comum noção é ratificada pelo mapa “como estamos acostumados”. Por sua
vez, a partir do mapa artístico o aluno é convidado a pensar como essas posições de
países são uma convenção, um ponto de vista que pode ser modificado.

Figura 14 – Livro didático com mapa artístico.

Fonte: “Geografia nos dias de hoje”, Editora leYa, 2015.


135

Figura 15 – Questão ENEM 2009.

Font
e: Ministério da Educação, 2009.

Na questão do ENEM, a proposta é uma interpretação desse mapa diferente da


América do Sul, apoiado por um trecho do manifesto de Torres-García. O aluno é
convidado a pensar no significado que essa inversão de orientação teve para o autor, e
dentre as opções, deve julgar que o questionamento sobre as noções eurocêntricas sobre
o mundo é uma das propostas expressas através dessa representação artística. De fato, o
artista uruguaio tinha, dentre os seus princípios, essa negação ao domínio europeu
principalmente nas artes, e isso motivou a construção de tal mapa artístico. Mas não
impede que esse questionamento seja estendido às formas de conhecimento e ao modo
de compreender o mundo, tal qual destacam as teorias críticas póscolonial e
pósdesenvolvimento.
Por fim, chegamos ao nosso último universo, que nomeamos indivíduo/corpo.
Trata-se de um universo composto por exemplos de tatuagens do Mapa invertido da
América do Sul (Figuras 16, 17 e 18). Em sua versão tatuada, essa obra também tende a
ser fielmente reproduzida, sem alterações dos elementos. De início enfrentamos
algumas dúvidas sobre como lidar com esses exemplos, por conta a sua escala pessoal,
surgem receios sobre a relevância de sua circulação, bem como da compreensão do
sentido que essa obra adquire para seus tatuados. Mas a menção desses exemplos se
136

torna relevante pela frequência com que encontramos tais tatuagens. Assim,
problemáticas foram solucionadas pela associação com pergunta inicial da pesquisa: Em
que contextos essa imagem circula? Ou seja, existem cenários e locais, que por suas
características, demonstram identificação com as ideias apresentadas por Torres-García
nessa obra. As situações em que tais tatuagens foram fotografadas indicam certa
ideologia dessas pessoas, e como esta pode estar relacionada a esse mapa artístico.

Figura 16 – Tatuagem com o mapa artístico 1.

Fonte: Fotografada na III Conferência Nacional de Cultura, 2013, em Brasília. Disponível em:
<http://edgarb.blogspot.com.br/2013/12/em-brasilia-iii-conferencia-nacional-de.html>. Acesso em: 17
mar. 2015.
137

Figura 17 – Tatuagem com o mapa artístico 2.

Fonte: O autor, fotografada no carnaval de rua do Rio de Janeiro, na Praça Tiradentes, Centro, no dia 14
fev. 2015.

Figura 18 – Tatuagem com o mapa artístico 3.

Fonte: Fotografada na Jornada de luta pelo direito a moradia, do Movimento Nacional de Luta pela
Moradia (MLNM), em 15/04/2015. Arquivo de Mariana Moraes.
138

Claramente, existem outros inúmeros outros contextos e lugares que essas


pessoas, tatuadas com o mapa de Torres-García, circulam. Não é nossa intenção traçar
um perfil social e psicológico delas, mas apenas a situação específica em que foram
fotografas. Destarte, a primeira imagem traz uma participante da Conferência Nacional
de Cultura; a segunda, um adepto do carnaval de rua não-oficial do Rio de Janeiro
(Bloco “Boi Tolo” não compõem a agenda oficial da prefeitura); e a terceira, um
militante do MNLM.
Novamente, nesse universo, é possível falar de identificação com a proposta do
mapa invertido uruguaio, visto que tal imagem foi escolhida para ficar gravada na pele.
Os lugares em que tais tatuagens foram encontradas sugerem manifestações sociais que
questionam ou tentam mudar uma realidade estabelecida, seja na forma de uma
conferência, de um ato político, ou mesmo do carnaval de rua em um bloco não
gerenciado pela prefeitura. Assim, encontram a expressão dessa nova realidade social
através da nova representação de mundo no Mapa invertido da América do Sul.
Esse conjunto de imagens que reunimos buscou embasar a notoriedade e
expressividade com que o mapa artístico de Torres-García permanece na atualidade.
Nosso intuito foi compor diferentes universos que demonstrassem a diversidade de
situações para a qual tal obra tem serventia e identificação, indicando também, a
amplitude de sua circulação. Nesse sentido, é crucial associar tal sucesso às
características fundamentais da obra. O Mapa invertido da América do Sul é,
resumidamente, um mapa artístico de orientação invertida, e por tal viés, fornece uma
visão de mundo insubordinada. Portanto, a continuidade da obra ocorre, pois também
continuam a ser imaginados e debatidos a visão de mundo que expõem e os
ensinamentos que propõem através dessa inversão.
Por conseguinte, também são contínuas as motivações para se construir e
expressar outras visões de mundo. Assim, persiste a manutenção de uma visão de
mundo estruturada por relações de poder hegemônicas, que faz com que a imagem
invertida de mundo ainda se limite a uma alternativa artística. Assim, apoiados pela
seleção de imagens que apresentamos, o próximo seguimento visa debater a manutenção
dessa dualidade entre as visões de mundo hegemônica e contra-hegemônica.
139

3.2 O Mapa invertido da América do Sul enquanto alternativa.

Por sua proposta de apropriação de elementos cartográficos, os mapas artísticos


são alternativos quase que por definição. Tais construções tendem a mostrar mundos
reformulados, imaginados ou compassivos, expressos pela adaptação da estética
cartográfica. São comprometidos com a sensibilidade, criatividade e liberdade de
expressar o mundo ao seu redor e, portanto, alternos à representação padronizada e
cientificamente guiada.
No último século, e especialmente nos últimos 30 anos, artistas fizeram
mapas, subverteram mapas, realizaram itinerários, contestaram fronteiras,
traçaram o invisível, e invadiram espaços físicos, virtuais e híbridos em nome
de cartografia (D’IGNAZIO, 2009, p.190, tradução nossa)94.

Assim, todo o mapa artístico expressa uma visão de mundo que não é
contemplada pelos mapas técnicos ou oficiais. Mas porque o Mapa invertido da
América Sul, cujos princípios são os mesmos dos outros, apresentou uma notoriedade
destacável dentre os demais? Afinal, não é todo mapa artístico que adquire
conhecimento além do circuito das artes, ou mantém sua notoriedade por mais de 70
anos, ou são estampados em camisas, cartões postais e tatuagens.
Por tal questionamento, supõe-se que sua notoriedade não está focada
unicamente na qualidade de um mapa artístico, mas sim nos discursos que foram
expressos através desse meio de representação, tal qual apontaram nossos exemplos
anteriores. Ao inverter a posição do Sul em seu mapa, Torres-García abarca também a
inversão dos sentidos e caracterizações que as divisões geopolíticas do globo ajudaram a
associar a esse conjunto de países no imaginário, dentre as quais estão, conforme
debatido no capítulo 2: atrasado, subdesenvolvido, carente, conturbado. Nesse sentido,
realocar o Sul em uma posição dominante do mapa, era uma forma de mudar,
simbolicamente, as condições de desigualdade da economia mundo.
Entretanto, um passo fundamental para compreender essa associação entre
cartografia, arte e geopolítica, é reconhecer o papel dos mapas nas estruturas políticas
de poder, tal qual abordamos no capítulo 1. Para Klaus Dodds (2001), as investigações
da geopolítica focadas unicamente na política através do conhecimento geográfico,
obscurece o fato de que antes: “(...) todos os modelos de política global são informados
94
In the last century, and especially in the last 30 years artists have made maps, subverted maps,
performed itineraries, contested borders, charted the invisible, and hacked physical, virtual, and hybrid
spaces in the name of cartography.
140

ou até guiados por entendimentos geográficos” (Op. Cit., p. 469, tradução nossa)95.
Portanto, as noções de mundo que se estabelecem pelo discurso da ciência geográfica
não são desassociadas das práticas políticas governamentais.
Por sua vez, o mapa exerce um importante papel na visualização e afirmação do
conhecimento geográfico. Logo, seu poder de influência chega às formas de pensar,
teorizar, agir e relacionar os espaços globais. O mundo não é tátil, e devido à
impossibilidade de experimentar fisicamente toda superfície terrestre, essa experiência
passa a ser guiada pelas formas de representação do mundo. Como o globo é conhecido
através de sua representação, então são estas que dão forma aos entendimentos e ações
sobre o mundo, moldando grande parte da comunicação e comércio entre as pessoas
(COSGROVE, 2001).
Destarte, o domínio sobre as formas de representação do mundo tornaram-se
muito mais importantes e influentes do que um simples esquema gráfico. Em princípio,
o mapa constitui uma visão de mundo, porém quando são institucionalizados e
padronizados passam a formas pelas quais o mundo pode ser formado (WOOD, 2010).
O modo como conhecemos o mundo, interligamos seus espaços e relacionamos suas
distâncias passam, então, a ser guiadas por essa representação de mundo dominante.
Não é a toa que:
A ideia de ver o mundo também parece induzir desejos de ordenar e controlar
o objeto de visão. (...) Imperadores, reis, Estados e corporações têm rendido à
tentações semelhantes, retratando globos e panoramas globais para proclamar
autoridade territorial (COSGROVE, 2001, p. 5, tradução nossa)96.

De fato, a fascinação que as imagens e conhecimentos sobre o globo exercem ao


longo de um imaginário milenar é aparente (COSGROVE, 2001), primeiramente a
humanidade foi movida por suas incógnitas, posteriormente, por sua vastidão. A
primeira circum-navegação do globo foi um marco nessa relação entre homem e o
conhecimento do planeta, e como esta foi primeiramente feita pelos europeus, eles
também guiaram as aparências que representariam o globo desde então. Nesse sentido,
os entendimentos de mundo são guiados por valores Ocidentais e persiste o
questionamento: “Quais foram as implicações históricas para o Oeste em conceber e

95
(...) all models of global politics are informed or even guided by geographical understandings.
96
The idea of seeing the globe seems also to induce desires of ordering and controlling the object of
vision. (...) Emperors, kings, states, and corporations have yielded to similar temptations, picturing globes
and global panoramas to proclaim territorial authority.
141

representar a Terra como um unidade, um corpo regular de forma esférica?”


(COSGROVE, 2001, p. ix, tradução nossa)97.
A pergunta feita por Cosgrove (2001) refere-se ao globo terrestre, mas na
presente pesquisa, adaptamos ao mapa-múndi em planisfério, sem qualquer perda de
sentido ou relevância da questão, ainda preocupados com os resultados das escolhas de
projeção e orientação. Acreditamos que as consequências para o padrão ocidental de
mundo sejam diversas, dentre as quais destacamos as relações de poder através dessa
propriedade de proferir as formas de conhecer o mundo. É nesse sentido que as imagens
adquirem importância para a geopolítica, visto que suas teorias sobre as relações globais
possuem ampla relação com a imagem de mundo padronizada pelo ocidente.
A geopolítica crítica, corrente de estudos que descrevemos no capítulo 2,
viabilizou caminhos metodológicos para o estudo do papel das representações nas
relações de poder, possibilitando diversos autores a revisitar certos temas com uma nova
perspectiva. Ao considerarmos as formas padronizadas e hegemônicas do Ocidente de
representar o mundo, é quase imprescindível analisar a projeção Mercator. Por muito
tempo tal projeção foi apresentada como uma imagem científica do mundo, quase um
retrato, sendo repetida por diferentes meios, para diferentes utilidades ao longo dos
séculos, até ser fixada no imaginário como o formato correto de mundo que devemos
reproduzir. Através da geopolítica crítica, as consequências dessa padronização
passaram a ser questionadas.
Vale ressaltar que tal crítica sobre a projeção Mercator não mira seu autor, que
foi guiado por um contexto específico de navegação europeia, mas sim essa apropriação
e repetição que se sucedeu. Isso porque, somente através dessa contínua reprodução é
que a projeção Mercator alcançou tal ponto de influência sobre as visões de mundo e
sobre as teorias geopolíticas. Nesse caminho, um passo inicial é relativizar a ideia de
projeção como um princípio científico neutro:
Projeção não é apenas um conceito pertencente à cartografia, cinematografia
e psicologia - mas também para a política internacional. Engajamento dos
Estados em "projeção de poder" ultramarino, buscando colônias, bases e
direitos logísticos. Projeções geométricas de Mercator no mapeamento,
portanto, teve sua contrapartida no expansionismo europeu, e os mapas foram
intrinsecamente vinculados a projetos imperiais (KLINGHOFFER, 2006, p.
79, tradução nossa)98.

97
What have been the historical implication for the West of conceiving and representing the earth as a
unitary, regular body of spherical form?
98
Projection is not only a concept pertaining to cartography, cinematography, and psychology - but also
to international politics. State engage in "power projection" overseas, seeking colonies, bases, and
142

Não queremos dizer, com isso, que Mercator tenha previsto ou intencionado o
uso de sua projeção pelas relações de dominação colonial. Muito mais importante do
que o tipo de projeção, são as visões de mundo que lhe foram associadas, influenciando
regionalizações políticas do globo. É o que pode ser dito sobre o colonialismo:
As representações, as "visões de mundo" e a formação da subjetividade no
interior dessas representações foram elementos fundamentais para o
estabelecimento do domínio colonial do ocidente. Sem a construção de um
imaginário de "oriente" e "ocidente", não como lugares geográficos e sim
como formas de vida e pensamento capazes de gerar subjetividades
concretas, qualquer explicação (econômica ou sociológica) do colonialismo
resultaria incompleto (CASTRO-GOMÉZ, 2005, p. 22, grifo no original,
tradução nossa)99.

Assim, se a visão de mundo ocidental sofre manutenção no passar dos séculos,


não será só no colonialismo que sua influência será limitada. As divisões políticas e
culturais entre regiões, com suas diferenciações e caracterizações, também são
relacionadas à representação normatizada de mundo. Do mesmo modo, as teorias do
desenvolvimento e do sistema-mundo moderno que debatemos no capítulo 2, não são
exceções. O sistema-mundo moderno é uma
(...) interpretação (que) implica uma geometrização do espaço mundial.
Existe o centro do sistema- no qual sobressai (em) a(s) potência(s)
hegemônica(s) – e as diversas periferias; mais recentemente criou-se o
conceito de “semiperiferia” para se referir a determinados países (Coréia do
Sul, Brasil, -Índia) que pertencem à periferia do sistema capitalista, mas
possuem um nível de industrialização elevado e em alguns casos exercem o
papel de subpolos ou subcentros (...) (VESENTINI, 2013).

O que desprendemos dessa citação são as nomenclaturas associadas à lógica


espacial cartográfica. Geometrização, centro, periferia são noções que adquirem
respaldo e confirmação visual ao serem associadas ao mapa-múndi normatizado. Em
outras palavras, foi a partir desse mapa que tais caracterizações do sistema-mundo
puderam ser pensadas. Do mesmo modo ocorre com o desenvolvido, cujo entendimento
pode ser auxiliado pela imagem de mundo e sua divisão:
A partir da década de 1950 as noções de "modernização" e
"desenvolvimento" passaram a ser mais estreitamente associado com o retrato
conflituoso de Oeste / não-Oeste, ao passo que as representações da
civilização e da ordem, embora ainda presente, (...) tornaram-se menos
importante - eles já não eram os significantes-mestres que foram antes de

logistical rights. Mercator's geometric projections in map making therefore had their counterpart in
European expansionism, and maps were intrinsically tied to imperial designs.
99
Las representaciones, las "concepciones del mundo" y las formación de la subjetividad al interior de
esas representaciones fueron elementos fundamentales para el estabelecimento del dominio colonial de
occidente. Sin la construción de un imaginario de "oriente" y "occidente", no como lugares geograficos
sino como formas de vida y pensamiwnto capaces de generar subjetividades concretas, cualquier
explicación (economica o sociológica) del colonialismo resultaria incompleta.
143

1940. (...) Isto não significa, naturalmente, que estes termos nunca tinham
sido implantados antes da Segunda Guerra Mundial, mas sim que a sua
visibilidade e peso discursivo veio a assumir maior predominância no período
pós-guerra (SLATER, 2004, p. 58, tradução nossa)100.

Em todas essas situações, persiste o fundamento de que o resumo do globo em


uma única imagem induz uma ordem ao mundo, constituído por blocos de países. Por
conseguinte, essa ordem imagética de mundo é um dos fundamentos utilizados pela
geopolítica para suas pesquisas e discursos, traçando uma coesa associação entre texto e
representação. Na verdade, o papel do mapa nessa dinâmica não carece ter uso político
claro, como no caso do sistema-mundo moderno. São igualmente influentes, as imagens
diárias que recebemos através da mídia, que reproduzem e relembram constantemente
esse ordenamento espacial (BLACK, 1997).
Segundo Dodds (2001), esses são elementos comuns da vida cotidiana que
possuem relevância por compor e influenciar a formação de uma “comunidade
imaginada”, sendo tão importantes quanto as “massas de texto” e as “práticas corporais”
que permitem a expressão do poder social. Claramente, não se trata de minimizar a
importância das dinâmicas materiais e práticas das relações de poder, mas de concordar
com as colocações de Said (2007), onde ele
(...) argumenta que é impossível para as pessoas entender o mundo sem ser
através dos discursos. Ele não está sugerindo que o mundo é constituído
apenas de nossa imaginação dele, mas que nós não podemos acessar o mundo
real a não ser através das estruturas culturais de discurso (SHARP, 2009, p.
19, tradução nossa)101.

Em suma, através desses apontamentos, quisemos fundamentar a relevância dos


mapas nas práticas políticas e nos entendimentos geopolíticos, que por sua vez, nos
auxilia em um entendimento mais específico: da contribuição dos mapas artísticos para
as teorias sociais críticas do póscolonialismo e pósdesenvolvimento. Nesse sentido,
póscolonialismo e mapas artísticos são duas forças de mesmo esforço: entender os
espaços globais enquanto construções relacionadas a estruturas de poder.

100
From the 1950s onward notions of 'modernization' and 'development' came to be more closely
associated with the portrayal of West/non-West encounters, whereas representations of civilization and
order, although still present, (...) became less prominent - they were no longer the master signifiers they
had been before 1940. (...) This does not mean, of course, that these terms had never been deployed
before the Second World War, but rather that their visibility and discursive weight came to assume
greater predominance in the post-war.
101
(...) argued that is impossible for people to understand the world expect through discourse. He is not
suggesting that the world is made up only of our imaginations of it, but that we cannot access the real
world except through the cultural structuring of discourse.
144

Para isso, podemos partir de uma primeira observação sobre tal relação, proposta
por Huggan (2003):
A prevalência do lócus do mapa em textos literários pós-coloniais
contemporâneos, e a frequência de seu uso irônico e / ou paródico nestes
textos, sugere uma ligação entre uma de/reconstrutiva leitura dos mapas e
uma revisão da história do colonialismo europeu (Op. Cit, p. 407, tradução
nossa)102.

As relações coloniais de autoridade e hegemonia constituem o foco principal do


olhar póscolonial sobre os mapas. Cosgrove (2005) corrobora com esse foco ao elucidar
que, já no século XIX, grande parte da produção cartográfica era controlada pelo
Estado, produzindo mapas sobre seus próprios territórios e suas possessões coloniais.
Mais do que isso, tais mapas seriam também as formas pelas quais as próprias colônias
e sua gente passariam a se (re) conhecer (SHARP, 2009). Seu uso foi aproveitado em
órgãos de planejamento, pela imprensa, pelo governo e instituído no ensino escolar,
sendo associado a valores de veracidade científica e progresso.
Concordando com tal perspectiva, Mignolo (2000) propõe uma importante
ampliação no entendimento de expansão colonial:
Expansão ocidental desde o século XVI tem sido não só religiosa e
econômica, mas também a expansão das formas hegemônicas de
conhecimento que moldaram a própria concepção de economia e religião.
Isto quer dizer, que era a expansão de um conceito 'representacional' do
conhecimento e cognição (...) (Op. Cit., p. 22, tradução nossa)103.

O que se propõe com tal ampliação é uma maior atenção ao papel das
representações nas formas de poder e soberania. Formando-se, assim, um viés pelo qual
podemos compreender as permanências do colonialismo e a manutenção das
desigualdades hierárquicas do sistema-mundo moderno, tendo em vista que tais
representações continuam a reproduzir os padrões ocidentais. O domínio das formas de
conhecimento são muito mais difíceis de reverter do que os pactos econômicos que
findam com a independência (SHARP, 2009). Mesmo que ainda resguardem-se dúvidas
em afirmar o fim do domínio econômico ou sua reconfiguração em novas estratégias.
Para Rabasa (2003), tais representações:

102
The prevalence of the map topos in contemporary post-colonial literary texts, and the frequency of its
ironic and/or parodic usage in these texts, suggests a link between a de/reconstructive reading of maps
and a revisioning of the history of European colonialism.
103
Western expansion since the sixteenth century has not only been a religious and economic one, but
also the expansion of hegemonic forms of knowledge that shaped the very conception of economy and
religion. That is to say, it was the expansion of a 'representational' concept of knowledge and cognition
(....).
145

(...) são mais do que uma construção ideológica que desaparece com um
borrão da caneta ou simplesmente desaparece quando a Europa perde a sua
posição de domínio. O traço de expansionismo europeu continua a existir nos
corpos e nas mentes do resto do mundo, bem como nas fantasias dos antigos
colonizadores (Op. Cit, p.358, tradução nossa) 104.

Nesse sentido, desconstruir os textos do colonialismo, sejam eles literais ou


cartográficos, é um pressuposto importante para o reconhecimento cultural das colônias
(HUGGAN, 2003). Reconhecimento esse, que pode ser uma demanda identificada por
certos contextos que utilizaram e reproduziram o Mapa invertido da América do Sul,
visto que seu autor, Torres-García, defendia um ideal de valorização de uma cultura
latina, que buscou expressar justamente através da relativização de uma representação
hegemônica: o mapa-múndi norteado.
Especificamente sobre os mapas, a desconstrução recai sobre sua representação
objetiva da realidade, onde é preciso doses de cuidado para não restar apenas uma
cartografia malévola, construída por uma teia de mentiras conspiratórias (BROTTON,
2014). As teorias póscoloniais partilham dessa preocupação e tem contribuído com
textos que auxiliam a ver o mapa como forma de percepção visual, o que se deslumbra é
uma
(...) reavaliação da cartografia, em muitos de seus textos literários mais
recentes, indicam uma mudança de ênfase distante do desejo de
homogeneidade em direção a aceitação da diversidade refletida na
interpretação do mapa, não como meio de contenção espacial ou organização
sistemática, mas como um meio de percepção espacial que permita a
formulação de ligações tanto dentro como entre as culturas (HUGGAN,
2003, p. 408, tradução nossa)105.

Guiado por esse olhar póscolonial e plural, Rabasa (2003) compõem uma
releitura do atlas de Mercator, que para ele constitui uma das mais importantes formas
de definição da Europa como privilegiada fonte de informação e significados para o
resto do mundo. O atlas tem a atribuição de condensar o mundo em uma imagem
modelo, resumida e adaptada aos olhos de seu autor. A distribuição desse modelo
acompanha a subjetiva noção de poder de quem pronuncia/domina o conhecimento do
globo (RABASA, 2003), o que pode ser explicado melhor:

104
(…) is more than an ideological construct that vanishes with the brush of the pen or merely disappears
when Europe loses its position of dominance. The trace of European expansionism continues to exist in
the bodies and minds of the rest of the world, as well as in the fantasies of the former colonizers.
105
(…) reassessment of cartography in many of their most recent literary texts indicates a shift of
emphasis away from the desire for homogeneity towards an acceptance of diversity reflect in the
interpretation of the map, not as means of spatial containment or systematic organization, but as a
medium of spatial perception which allows for the formulation of links both within and between cultures.
146

Global refere-se a uma gama crescente de processos ambientais, econômicos,


políticos e culturais. Muito de sua força deriva do conceito de amarrar a terra
como um único espaço constituído por sistemas de vida interconectados e
uma superfície sobre a qual sistemas tecnológicos, comunicativos, e
financeiros modernos superaram cada vez mais a fricção da distância e do
tempo para alcançar a simultaneidade coordenada. Mesmo avaliações
negativas dos processos globais como irregular e localmente perturbador
conta com um compromisso implícito ao globalismo no sentido da igualdade
de direitos e oportunidades mais espaço global (COSGROVE, 2001, p. 14,
grifo no original, tradução nossa)106.

Com essa explicação, Cosgrove (2001) resume e conclui a importância da noção


de globo nas ações e entendimento políticos, sobre a qual devemos lembrar a
contribuição do mapa-múndi ou dos atlas padronizados pela proeminência da
cartografia europeia. As representações cartográficas participam da capacidade de
resumir toda a diversidade do globo em uma só imagem, instituída pelo seu próprio
olhar e suas próprias especificidades históricas.
Assim, uma vez que o póscolonialismo se propõe como uma análise crítica de
como o conhecimento ocidental se tornou dominante (SHARP, 2009), então passa a
reconhecer como o mapa constitui um meio para essa hegemonia, de modo a reverter a
diversidade do mundo em uma perspectiva uniforme. Em razão disso, as propostas
póscoloniais devem fomentar a ampliação e a diversificação, reconhecendo a
legitimidade de diferentes formas de compreender o mundo. Devem, como já
mencionamos, não apenas desconstruir os discursos tradicionais da cartografia:
(...) cujos padrões de coerção e de contenção são historicamente implicados
na iniciativa colonial, mas também defender outro, cujos padrões flexíveis de
interelação cultural não só neutralizam as convenções monolíticas do
Ocidente, mas a revisam o próprio mapa como a expressão de uma mudança
de terreno entre metáforas alternativas, em vez de como a representação
aproximada de uma “verdade literal” (HUGGAN, 2003, p. 409, tradução
nossa)107.

É nesse sentido que o póscolonialismo estabelece uma frutífera relação com os


mapas artísticos. Para Cramptom (2010), quando artistas (re) mapeiam, estão
sustentando que os mapas são políticos mesmo sem afirmarem ser. Com isso, o autor

106
Global refers to an expanding range of environmental, economic, political, and cultural processes.
Much of its force derives from the arresting concept of the earth as a single space made up of
interconnected life systems and a surface over which modern technological, communications, and
financial systems increasingly overcome the friction of distance and time to achieve coordinated
simultaneity. Even negative evaluations of global processes as uneven and locally disruptive rely upon an
implicit commitment to globalism in the sense of equality of rights and opportunities over global space.
107
(...) whose patterns of coercion and containment are historically implicated in the colonial enterprise,
but to advocate another, whose flexible cross-cultural patterns not only counteract the monolithic
conventions of the West but revision the map itself as the expression of a shifting ground between
alternative metaphors rather than as the approximate representation of a 'literal truth'.
147

sustenta que os mapas artísticos têm, em definição, princípios políticos, pois mesmo que
não seja seu foco, os mapas artísticos readequam elementos ligados à autoridade e ao
poder científico da cartografia. E, portanto, expõem (e, muitas vezes revertem) a
contribuição política das representações cartográficas.
Essa lógica também pode ser vista pela ótica de Wood (2007), que ao invés de
delimitar a participação política da cartografia científica, destaca sua competência em
naturalizar sentidos e formular mitos. Embasado nas ideias de Barthes, o autor
argumenta que o mito sempre é um rapto de linguagem, “roubando o assunto ostensivo
de um mapa para naturalizar outra coisa através dele” (WOOD, 2007, p. 10. Tradução
108
nossa) . É justamente assim que a neutralidade do mapa torna-se uma incoerência,
visto que o próprio propaga sua confiabilidade, ajudando a mascarar outros sentidos
que podem se construir por seu meio, dentre os quais podem incluir sentidos de controle
e hegemonia.
Se as mitologias destacam o caráter mítico do mito, eles roubam o mito de
sua "objetividade", isto é, de sua pretensão de representar o mundo: a
mitologia descasca fora a máscara do mito. Esta é precisamente a aderência
mais comumente feita por artistas que trabalham com mapas (WOOD, 2007,
p. 10, grifo no original, tradução nossa)109.

Em outras palavras, o autor demonstra o que já afirmamos no capítulo 1: os


mapas artísticos tendem a retirar a máscara de objetividade que naturaliza concepções
dos mapas científicos. As conotações e visões de mundo fixadas pelo mapa padronizado
são os mitos criados para além de sua expressão primária, que seria um aspecto
científico do mundo. É justamente por isso que somos tentados a consertar ou refutar o
formato diferenciado do Mapa invertido da América do Sul. As visões de mundo são
“infectadas” pelo mapa retangular, eurocentrado e norteado, que ao ser tomado como
“usual”, passa a diminuir os questionamentos sobre esse padrão e restringir os efeitos de
outros mapas:
Outros ‘mapas reviravolta', muitas versões sino-centradas ou Americo-
centradas também foram projetadas para desafiar a hegemonia "norteada".
Apesar desses desafios, as projeções tradicionais eurocêntricas continuam a
ser utilizadas em uma ampla gama dos meios de comunicação no século atual
(VUJAKOVIC, 2009, p. 143, tradução nossa) 110.

108
stealing the ostensible subject of a map to naturalize through it something else.
109
since mythologies highlight the mythic character of myth, they rob myth of its "objectivity", that is, of
its claim to represent the world: mythology peels off the mask of myth. This is precisely the tack most
commonly taken by artists working with maps.
110
other 'turnabout maps', often sino-centric or amero-centric versions, were also designed to challenge
'northern' hegemony. Despite such challenges traditional Eurocentric projections continue to be used
across a wide range of media into present century.
148

Nesse sentido, o que Torres-García fez foi questionar uma imagem canônica e
apropriar, em sua arte, da concepção de mapas cartograficamente plurais com outras
representações de mundo, mas que estavam cada vez mais esvaziados. Por conta dessa
hegemonia estabelecida e das significações associadas ao mapa norteado, a inversão de
orientação conota uma série de valores simbólicos. O Mapa invertido da América do
Sul “(...) definiu um rumo para inúmeras outros artistas, geógrafos, educadores e outras
pessoas a questionar a orientação padrão e projeção do mapa do mundo” (D’IGNAZIO,
2009, p. 195, tradução nossa)111.
De fato, os mapas artísticos e suas apropriações tendem a provocar perguntas,
são imponentes ferramentas para relembrar que nossa relação com o espaço são
construções sociais (JOLLY, 2011). E, por fim, podem trilhar novas perspectivas que
favoreçam o reconhecimento da pluralidade nas formas de representar ou resumir o
globo, cujo alcance pode se estender às tendências artísticas, às teorias e práticas
políticas ou mesmo às representações da cartografia científica. Assim, inverter o mapa é
também inverter uma ordem estabelecida, e essa ideia é transferível para diversos
contextos, que por sua vez podem se identificar e serem representados pelo mapa
artístico uruguaio.
Por fim, se muitos dos processos que hoje são estudados pela geopolítica
apresentam uma parcela de influência das relações globais, então é necessário
reconhecer não apenas a uniformidade, mas principalmente a diversidade. Processos
como a economia-mundo, a globalização e o desenvolvimento não preveem
implicitamente um benefício a todos seus envolvidos, mas para compreender essa
desigualdade é necessário dar voz aos não hegemônicos. Em outras palavras, a contra
representação sobre esses processos, em suas mais diversas forças, devem ser
criticamente incluídas no amplo entendimento das relações globais (SLATER, 2004).
Através da abrangência dessas perspectivas, busca-se diversificar os
entendimentos e as práticas das relações políticas globais. A associação de discursos
críticos, sejam eles textuais ou imagéticos, demonstra a relevância e a demanda que
ainda persiste sobre o reconhecimento dessas formas diferenciadas de entender e de agir
sobre o mundo. Desse modo, tanto as teorias críticas do póscolonialismo e
pósdesenvolvimento, como também as representações invertidas dos mapas artísticos,

111
(...)set a course for numerous other artists, geographers, educators, and others to question the default
orientation and projection of the world map.
149

não ficam limitados apenas ao campo das ideias, mas fomentam a ampliação de
alternativas que continuam a ser pensadas e produzidas até a atualidade, inspirando
práticas espaciais e formas de ação.
150
151

CONCLUSÃO

A presente investigação foi guiada por um interesse da geografia pelas imagens.


Dentre o grande conjunto de objetos que esse interesse proporciona, nos despertou
especial atenção um tipo de representação que, apesar de claramente relacionada à
geografia, pouco se tem estudado: os mapas artísticos. Quando artistas se apropriam da
estética cartográfica, a preocupação com as formas de entender e representar o espaço
ficam evidentes. Para compreender esses mapas que trazem novas questões à longínqua
relação entre arte e cartografia, nos pareceu pertinente começar por um notório e
popular exemplo: o Mapa invertido da América do Sul.
Dentre os diferentes olhares que se pode ter ao pesquisar uma representação,
nosso foco está na compreensão dos entendimentos e noções de mundo que são
expressos através dessa imagem. Não acreditamos, portanto, que as representações
sejam distanciadas das dinâmicas materiais, e tentamos evidenciar, ao longo do nosso
texto, seu poder de influência nos modos de interpretar, agir e intervir no espaço. Nesse
sentido, a notoriedade do Mapa invertido da América do Sul pode, inclusive,
potencializar sua influência, devido sua maior circulação e maior alcance de público.
Claramente os discursos que tais imagens representam não são uniformes, as
representações são abertas a diferentes interpretações que podem corroborar, discordar
ou reforçar certas noções e entendimentos sobre determinado espaço. Assim, para
compreender essa dinâmica discursiva na popularidade da obra analisada, buscamos
reunir uma série de imagens que reproduzem esse pioneiro mapa artístico para então,
desprender os diferentes contextos que fazem uso de sua expressividade até os dias
atuais, agrupando-os em universos de interesse que indicassem as principais utilidades e
linhas de pensamento que esse mapa continua a expressar.
Para dar conta de tal análise, as imagens não foram utilizadas como reflexo de
uma realidade, nem mesmo enquanto um discurso neutro. Uma vez que o interesse era
sobre seu poder de influência no imaginário social e nas formas de intervir no espaço,
então as relações sociais estão intrinsecamente ligadas às visualidades. Nesse sentido,
busca-se compreender que as diferentes interpretações e usos das imagens estão
associadas às desigualdades de acesso, de permissão e de apropriação, influenciadas
pelas diferenças sociais. Considerar a visualidade significa considerar que as formas de
ver não são homogêneas, nem são guiadas unicamente pela imagem vista, mas também
152

participa desse processo o que não é visto, o que se omite em oposição ao que se
destaca. Em outras palavras, o poder das relações sociais é articulado às formas
específicas de visualidade (ROSE, 2007).
Por tal razão, articulamos a representação do mapa artístico analisado às teorias
das ciências sociais que mais pareciam corroborar e reafirmar seus discursos,
contribuindo para sua reprodução e notoriedade atuais. Nesse sentido, o
póscolonialismo e o pósdesenvolvimento nos ajudaram a compreender a função social
dessa representação, associando as ideais e demandas que o Sul global pode expressar
por meio da apropriação de construções como estas. Assim, tanto o mapa artístico,
como o póscolonialismo e o pósdesenvolvimento procuraram desconstruir visões de
mundo homogeneizadas pela perspectiva hegemônica ocidental, seja por meio textual
ou meio imagético.
O mapa de Torres-García, por meio de sua construção artística, propõe uma
nova visão de mundo através da inversão da orientação padronizada pela cartografia
científica ocidental. Mais do que um simples questionamento das regras cartográficas,
essa inversão abarca uma compreensão política, uma vez que se apropriar do Norte é
também se apropriar do sentido metafórico de superioridade que foi associado a essa
orientação por meio da padronização e repetição da representação ocidental de mundo.
Assim, a motivação e a sensibilidade de inverter o Sul para a porção de cima do mapa
tinha o intuito de reivindicar a importância e valorização desse espaço global.
Por sua vez, as teorias póscoloniais e pósdesenvolvimento, por meio de suas
pesquisas acadêmicas, propõem uma análise crítica sobre o colonialismo e sobre o
discurso do desenvolvimento, focados nas desigualdades formuladas e nos mecanismos
de manutenção das mesmas. Para esses teóricos, as estratégias que levaram à hegemonia
dos países do Norte foram combinadas a uma série de ações que levaram a dependência
dos países do Sul, e essa dinâmica se mantém ao longo de tempos. Eles procuram
evidenciar as limitações da teoria do sistema-mundo moderno e da teoria do
desenvolvimento em solucionar as desigualdades históricas entre blocos de países. Por
conseguinte, discutem também que tais teorias, na verdade, contribuíram para a
permanência de duas coisas: da lógica da dependência e do imaginário de divisão
binária do mundo entre Norte e Sul.
É nesse sentido que esse mapa invertido resguarda ampla semelhança e
complementaridade com essas teorias sociais do século XX, associando a contribuição
textual e imagética para a estruturação de uma visão crítica sobre as formas de
153

conhecimento do mundo e como estas são relacionadas a questões de poder. Nessa


perspectiva, o conhecimento contribui para o estabelecimento de uma hegemonia e de
suas formas de dominação. Ao estruturar certas formas de conhecer e de representar o
mundo como legítimas ou progredidas tem-se, por consequência, a subalternização das
demais formas (SLATER, 2004). Para o pensamento póscolonial e pósdesenvolvimento,
essa hegemonia que envolve os entendimentos e caracterizações sobre o mundo, são
mais efetivas e mais difíceis de reverter do que a subordinação econômica e política.
O domínio deste sistema de conhecimento tem ditado a marginalização e
desqualificação de sistemas não-ocidentais de conhecimento. Nestes últimos
sistemas de conhecimento, as conclusões, pesquisas e ativismo dos autores
podem encontrar racionalidades alternativas para guiar a ação social longe de
maneiras economicistas e reducionistas de pensar (ESCOBAR, 2012, p. 13,
tradução nossa)112 .

Com isso, acreditamos que a reprodução do Mapa invertido da América do Sul


em contextos atuais esteja relacionada não apenas a essa desconstrução da hegemonia
proposta por autores e artistas, mas principalmente por fornecer novas perspectivas de
olhares e novas possibilidades de entendimento condizentes com as demandas e
perspectivas do Sul global. Destarte, o discurso póscolonial e pósdesenvolvimento,
associado à representação do mapa invertido, fomentam alternativas de mudanças no
entendimento das dinâmicas globais através da multiplicação de vozes que reivindicam
espaços e da diversificação de visões sobre mundo.
É cada vez mais evidente, pelo menos para aqueles que estão lutando para
diferentes maneiras de ter uma voz, que o processo de desconstrução e
desmantelamento tem de ser acompanhada pela de construção de novas
formas de ver e de agir (ESCOBAR, 2012, p. 16, tradução nossa) 113.

Assim sendo, se os debates científicos concluíram que o mapa Mercator foi


apropriado enquanto uma visão correta do mundo em favorecimento à expansão e
hegemonia ocidental, então se pode aplicar a mesma lógica para o Mapa invertido da
América do Sul, apropriado enquanto uma visão questionadora que favorece a
visualização das propostas póscoloniais e pósdesenvolvimento com suas críticas às
relações de desigualdade do globo e caracterização de espaços mundiais. Por tal razão,
os contextos que reproduzem esse mapa artístico, elencados no capítulo 3, ao buscarem

112
The dominance of this knowledge system has dictated the marginalization and disqualification of non-
Western knowledge systems. In these latter knowledge systems, the authors conclude, researchers and
activists might find alternative rationalities to guide social action away from economistic and
reductionistic ways of thinking.
113
It is becoming increasingly evident, at least for those who are struggling for different ways of having a
voice, that the process of deconstructing and dismantling has to be accompanied by that of constructing
new ways of seeing and acting.
154

uma representação de mundo, optaram pela forma alternativa do mapa de Torres-García


por destacar entendimentos de mundo distintos da hegemonia ocidental.
Entretanto, sabendo que esse mapa artístico foi feito por Torres-García em 1943,
e que tais teorias críticas adquiriram expressividade já na década de 1970, torna-se
necessário debater melhor essa relação traçada mesmo diante de tal distanciamento
temporal. A associação entre essas duas partes, portanto, não ocorre por compartilharem
um mesmo contexto historio, mas indica que existem certas continuidades entre os
contextos que motivaram suas construções, ou seja, não é incomum que certas relações
sociais sofram manutenção ao longo dos anos e possam inspirar ideias convergentes
mesmo que em tempos distintos.
A própria perspectiva póscolonial e pósdesenvolvimento tem como preceito
destacar certas continuidades das relações hegemônicas de poder para tempos além das
que foram gestadas, no intuito de compreender a manutenção das disparidades entre os
espaços globais, como o Norte e Sul. No artigo a quatro mãos, Quijano e Wallerstein
(1992) expõem a importância da América para a constituição do sistema-mundo
moderno-colonial, porém não se limitam a esse período. Os autores discutem a
manutenção dessa relação de poder ali inaugurada, para outros tempos, através de outros
mecanismos, tais como: guerras, transferência de infraestrutura e tecnologia, e
empréstimos de bancos mundiais. Assim,
Durante o século XX, a América Latina manteve-se na sua maior parte
aprisionada no nexo histórico formado pela imbricação das questões de
nação, identidade e democracia - questões e problemas que noutros países, na
Europa, tem sido tratada não simultaneamente, mas sucessivamente. A
desarticulação ou o corte desse nexo parece ter começado com a revolução
mexicana. Mas a derrota da revolução nacional-democrática nos outros países
não só não conseguiu resolver o problema, mas criou uma crise não resolvida
de poder, cuja expressão mais exata é a persistência dessa criatura política
peculiar e especifica da América Latina, o nacionalismo populista-
desenvolvimentista-socialista, cujos componentes são manuseados de forma
diferente em cada país (Op. Cit, p. 556, tradução nossa) 114.

O reconhecimento desses mecanismos que participam da manutenção das


estruturas de poder, bem como as particularidades dos contextos criados a partir deles,

114
During the twentieth century, Latin America remained for the most part aprisioned in the historical
nexus formed by the imbrication of the issues of nation, identity, and democracy - questions and problems
that elsewhere, in Europe, has been treated not simultaneously but successively. The disentanglement or
cutting of this nexus seemed to begin with the Mexican revolution. But the defeat of the national-
democratic revolution in the other countries not only failed to resolve the problem but created an
unresolved crisis of power, whose most exact expression is the persistence of that peculiar and
specifically Latin American political creature, populist-developmentalist-socialist nationalism, whose
components are juggle differently in each country.
155

constitui apenas o primeiro passo da proposta póscolonial. A desconstrução das relações


de poder nas formas do conhecimento pode parecer, à primeira vista, uma proposta
conspiratória, que visa apenas a destruição de várias concepções já embasadas. Porém,
tão importantes quanto os questionamentos são as proposições, que também fazem parte
do pensamento póscolonial. As principais defesas dessa corrente são a ampliação e
multiplicação de formas de conhecer o mundo, articulando diferentes vozes que
abarquem as diferentes compreensões contextualizadas da realidade.
Inclusive, o Mapa invertido da América do Sul pode ser interpretado a partir
dessa proposta defendida pelo póscolonialismo. Em primeiro, porque Torres-García não
apenas propõe a desconstrução da padronização cartográfica de orientação norteada,
como também apresenta uma nova perspectiva de orientação, com o Sul em seu topo,
condizente com os anseios de diversificação das representações de mundo. Em segundo,
com uma leitura simbólica, esse mapa artístico tende a questionar a lógica das relações
de poder do conhecimento. Isso porque as formas de conhecimento impostas e
hegemônicas são referenciadas como vindas “de cima pra baixo”, e inverter essa ordem
seria um caminho para legitimar as construções de conhecimento vindas de espaços até
então silenciados ou subordinados.
Essas vozes alternativas têm adquirido, gradativamente, reconhecimento e
atenção. É o que leva Quijano e Wallertein (1992) a afirmarem o crescimento de uma
descolonização da produção cultural, das artes e do conhecimento científico no
continente americano, algo que eles chamam de “americanização das Américas”:
As Américas são o produto histórico da dominação colonial europeia. Mas
eles nunca foram apenas uma extensão da Europa, nem mesmo na zona
anglo-americana. Eles são uma criação original, que tomaram muito tempo
para amadurecer e abandonar sua postura dependente vis-à-vis da Europa,
especialmente na América Latina. Mas hoje, se alguém escuta os sons, as
imagens, os símbolos e as utopias das Américas, esse alguém deve
reconhecer a maturação de um padrão social autônomo, a presença de um
processo de reinvenção da cultura nas Américas (Op. Cit., p. 556, grifo no
original, tradução nossa) 115.

A ideia de “americanizar as Américas”, mesmo sendo debatida em 1992,


resguarda semelhanças com a ideologia de valorização da América do Sul que Torres-
García visionava, sendo seu mapa artístico um componente representativo dessa

115
The Americas are the historical product of European colonial domination. But they were never merely
an extension of Europe, not even in the British-American zone. They are an original creation, which have
taken long to mature and to abandon their dependent posture vis-à-vis Europe, especially in Latin
America.But today, if one listens to the sounds, the images, the symbols, and the utopias of the Americas,
onde most acknowledge the maturation of an autonomous social pattern, the presence of a process of
reinvention of culture in the Americas.
156

proposta. Assim, tal qual mencionamos acima, sua notoriedade atual é associada a
visualização de novas perspectivas de olhares e nova pluralidade de vozes nos
entendimentos e ações sobre os países do Sul. De fato, essas concepções críticas que
surgem da desconstrução das formas hegemônicas do conhecimento, parecem guiar o
Sul global para uma nova direção que foi representada por Torres-García em seu Mapa
invertido da América do Sul.
Por isso, quando alguns autores póscoloniais, como Slater (2004), clamam para
que os entendimentos e diferentes agentes do conhecimento idealizados no Sul global
devem ser criticamente incluídos na compreensão sobre o globo, eles não se referem
apenas aos seus próprios textos, mas também as representações de mundos, que incluem
formas culturais e artísticas. Tais representações auxiliam na difusão desse debate, pois
geralmente apresentam propostas de visualização diferentes das convencionais,
fomentando questões sobre o conhecimento padronizado.
As representações de mapas artísticos podem apresentar diversas propostas, mas
é notória a recorrência das questões políticas do espaço. Quando artistas fazem mapas,
eles são impulsionados pela sua relação com o espaço, percebendo mudanças,
intervenções, desigualdades e exercício do poder. Esse tipo de mapa relaciona
representações de mundo com as relações de poder e motivações ideológicas de forma
autêntica e assumida. Diferentemente dos mapas institucionalizados, que por mais que
também recebam influência das relações de poder, essas são omitidas pelos padrões de
cientificidade. Assim, as ideologias que influenciam os mapas da cartografia passam a
ser objeto de estudo para serem evidenciados, enquanto os mapas artísticos já partem
desse pressuposto.
Uma vez que a proposta ideológica dos mapas artísticos é previamente expressa,
eles adquirem liberdade na representação de seus ideais, seja pela apropriação de
elementos cartográficos, pela inversão de orientação, pela aleatoriedade de projeções ou
mesmo por performances de intervenção no espaço. Com isso, os mapas artísticos
adquirem uma importante capacidade de impressionar, de sensibilizar e de causar
reflexão sobre as nossas relações com os espaços, reais ou imaginados.
Essa propriedade também está presente no mapa artístico de Torres-García,
constituído tanto de uma visão ideológica de mundo, como também de uma
sensibilidade artística que procurou inverter a orientação do mapa com o intuito de
provocar a curiosidade e a apreciação sobre o que procurava expressar: resumidamente,
a valorização das artes e de outros campos da América e a redução do domínio
157

ideológico europeu. Na verdade, a contínua reprodução e utilização desse mapa


invertido indica que tal visão de mundo continua a ser, de alguma forma, pensada até os
dias atuais.
De modo geral, queremos dizer que o reconhecimento da importância dos mapas
artísticos equivale ao reconhecimento da ampla diversidade das visões de mundo, e suas
diferentes maneiras de representar. Por conseguinte, no caso do Mapa invertido da
América do Sul, concluímos que passa a compor um importante aporte no
reconhecimento das concepções póscoloniais de mundo, o que não significa dizer que
estes sejam os únicos mapas possíveis de relacionar às visões póscoloniais. Mas sim que
ambos, mapa artístico e teorias póscoloniais, apresentam propostas semelhantes de
ampliação e diversificação das visões de mundo.
Ainda nesse sentido, se concluímos anteriormente que o mapa cartograficamente
padronizado apresenta relações de poder (HARLEY, 2009) e capacidade de influenciar
comportamentos espaciais (WOOD, 2010), então não há impedimentos para que as
representações artísticas de mapa também se apropriem dessa qualidade. Em outras
palavras, os mapas artísticos podem ser relacionados às formas de atuação e intervenção
na materialidade espacial. De fato, conforme já mencionado, eles resultam e são
resultados das compreensões que se tem sobre o mundo.
Trata-se, no entanto, de uma relação indireta. Na verdade, acreditamos que as
imagens mentais socialmente compartilhadas sobre os espaços tenham maior poder de
influência sobre o modo como agimos sobre ele. Por sua vez, tais imagens recebem a
influencia das representações, sejam elas cartográficas ou artísticas. É nesse sentido que
a associação entre o Mapa invertido da América do Sul e outras representações, com as
construções textuais das teorias póscoloniais e pósdesenvolvimento, configuram uma
força discursiva que auxilia no embasamento de novas práticas políticas que tomam
corpo nas Américas.
A chamada “virada para a esquerda” da América Latina (ESCOBAR, 2012)
pode ser considerada um exemplo dessa dinâmica. Onde uma onda de governos de
esquerda foram democraticamente eleitos para assumir o poder em vários países da
região, por volta de 1998. O fato foi analisado como uma influência dos estudos críticos
do desenvolvimento e uma rejeição ao Consenso de Washington (1990). Mais
recentemente, em 2008, Equador e Bolívia chamaram atenção por aprovar uma
constituição que incluía organizações indígenas, direitos da natureza e desenvolvimento
do “bem viver” (ESCOBAR, 2012). Para Quijano (Apud. ESCOBAR, 2012), tais
158

constituições adquirem novo significado histórico, emergindo das lutas de resistência


indígenas contra o modelo moderno europeizado de sociedade.
No jogo de muitas mobilizações políticos-culturais na América Latina
atualmente, nesse sentido, é a ativação política de ontologias relacionais;
estes mobilizações então, referem-se a uma maneira diferente de imaginar a
vida, a outro modo de existência. Eles apontam para o pluriverso (...) que
pode ser descrito como "um mundo onde caibam muitos mundos". Mais
abstratamente talvez, os sinais do pluriverso se esforçam para trazer "mundos
e conhecimentos de outra forma" - isto é, mundos e saberes construídos com
base em diferentes compromissos ontológicos, configurações epistêmicas e
práticas de ser, conhecer e fazer (ESCOBAR, 2012, p. xxviii, grifo no
original, tradução nossa) 116.

Destarte, conforme indicamos no início da presente conclusão, os mapas


artísticos e as teorias críticas convergem nesse mesmo esforço de multiplicar as visões
de mundo. Com isso, as mudanças de visualidade que podem ser fomentadas pelo Mapa
invertido da América do Sul ainda movimentam debates, lutas e conquistas, algumas
delas exemplificadas pelas imagens do capítulo 3. Por tal razão, não poderia ser
inesperado que seu desenho ainda continue conhecido e utilizado pelos contextos atuais.
A presente pesquisa procurou articular arte, cartografia e geopolítica,
estruturando um caminho de investigação ainda pouco explorado pela geografia
brasileira, mas que de forma alguma quer dizer que seja menos significante ou
proveitoso. Pelo contrário, após desprender tal análise bibliográfica sobre os mapas
artísticos, afirmamos que estes apresentam uma capacidade singular de expressar e
difundir visões e entendimentos sobre as diversas dinâmicas espaciais, dentre as quais
se destacam aquelas ligadas ao exercício do poder no conhecimento sobre o espaço. A
singularidade do mapa artístico decorre de sua proposta de apropriação da estética
cartográfica para representações questionadoras, que não são ancoradas ou demarcadas
pelo poder da cartografia em padronizar e normatizar visões de mundo.
Na presente pesquisa, buscamos articular a investigação teórica que sustentou
nossos entendimentos sobre os mapas artísticos a um exemplo mais conhecido desse
tipo de representação, que nos levou a necessidade de compreender os discursos
geopolíticos póscoloniais e pósdesenvolvimento associados à obra analisada. Uma vez
estruturada a articulação bibliográfica entre arte, cartografia e geopolítica, as
possibilidades de estudos de outros exemplos empíricos e outros temas mais amplos se
116
At stake in many cultural-political mobilizations in Latin America at present, in this way, is the
political activation of relational ontologies; these mobilizations thus refer to a different way of imagining
life, to another mode of existence. They point toward the pluriverse(...) that can be described as "a world
where many worlds fit". More abstractly perhaps, the pluriverse signals struggles for bringing about
"worlds an knowledges otherwise" - that is, worlds and knowledges constructed on the basis of different
ontological commitments, epistemic configurations, and practices of being, knowing, and doing.
159

abrem em uma vasta possível agenda de pesquisa. É notável, dentre outras


características, que esse tipo de mapa apresenta, de forma artística e muitas vezes
compassiva, as concepções sobre os lugares e suas dinâmicas políticas. Nesse conjunto,
podemos destacar a importância dos mapas artísticos em representar dinâmicas
espaciais como: áreas de fronteira, relações nas cidades globais, fluxos mundiais,
situação de refugiados, regiões de conflito armado, divisões regionais do globo, entre
tantas outras possibilidades que nos confirmam a relevância que os mapas artísticos têm
para a geografia.
160

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