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Rio de Janeiro
2015
Carla Monteiro Sales
A reprodução do “Mapa invertido da América do Sul” nas visões críticas sobre o Sul
global
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBA
CDU 91:327(8)
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.
__________________________________ ____________________________
Assinatura Data
Carla Monteiro Sales
A reprodução do “Mapa Invertido da América do Sul” nas visões críticas sobre Sul
global
________________________________________________________
Prof. Dr. André Reyes Novaes (Orientador)
Instituto de Geografia - UERJ
_________________________________________________________
Prof. Dr. Valter Luis de Macedo
Instituto de Geografia - UERJ
_________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo César da Costa Gomes
Instituto de Geociências - UFRJ
_________________________________________________________
Prof.ª Dra. Gisele Girardi
Departamento de Geografia - UFES
Rio de Janeiro
2015
DEDICATÓRIA
Um trabalho de tanta importância nas conquistas da vida nunca poderia ser realizado
em total isolamento. É importante e gratificante reconhecer desde as maiores até as menores
participações para esse resultado final. Por isso, reservo o “primeiro pedaço do bolo” para
minha família: Fátima Cristina, Luiz Ivam e Henrique, pela construção de um lar sublime e
confortante onde posso desenvolver com a melhor estrutura do mundo! De igual importância
é o agradecimento que faço ao companheiro de tudo Alex Rodrigues, seu apoio vai desde os
gestos cotidianos até questões técnicas da presente dissertação e eu simplesmente fico sem ter
como agradecer.
Um sincero e carinhoso ‘obrigada’ ao amigo Ricardo Brenelli pelas diversas ajudas ao
longo da dissertação, que também estendo aos amigos Marina, Yasmin e Lucas Thomé pela
preocupação e amparo. E de forma inusitada, agradeço a minha cadelinha de estimação Raika,
mas sua “cãoterapia” praticada nos estresses dessa escrita foi valiosa.
Devo ainda agradecer à equipe de professores e diretores da Escola Municipal Rio das
Pedras pelo apoio e compreensão diária.
Tenho enorme gratidão aos mestres que guiaram a construção desse conhecimento
durante o curso do mestrado: Prof. Dr. Miguel Angelo, Prof. Dr. João Baptista e Prof. Dr.
Glaucio Marafon. Agradeço, ainda, ao aceite dos professores que irão compor a banca dessa
dissertação: Profa. Dra. Gisele Girardi, Prof. Dr. Paulo César e Prof. Dr. Valter Macedo.
Sou imensamente grata à assistência dos funcionários do PPGEO/UERJ, da
funcionária Taciane da biblioteca do CTC e de outros funcionários da UERJ que me
prestaram auxílio de forma fantástica.
Por fim, mas não menos importante, agradeço os ensinamentos e instruções valiosas
do Prof. Dr. André Novaes. Obrigada por aceitar o desafio de orientar essa dissertação de
mestrado no meio de tanta correria e pela capacidade de redefinir as noções de tempo durante
a construção desse trabalho!
Contemplando o mapa, eu comecei a ver um retrato de mim mesmo.
James Cowan
RESUMO
SALES, Carla Monteiro. A reprodução do “Mapa Invertido da América do Sul” nas visões
críticas sobre o Sul global. 2015. 183 f. Dissertação de Mestrado em Geografia. – Instituto de
Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
SALES, Carla Monteiro. The reproduction of “Inverted Map of South America” in critical
views of global South. 2015. 183 f. Dissertação de Mestrado em Geografia. – Instituto de
Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
The "Inverted Map of South America" (1943) is a different map. Firstly, because it was not
created by the canons of cartographic science, but by the hands of a Uruguayan artist, called
Torres-García. Secondly, because it did not use the conventional orientation to the North, but
reversed the South’s position to the top of the image. This paper was motivated by the
different worldview this artistic map displays, where the purpose is to understand the different
contexts that reproduce this map, contributing to its prominence until latterly. In order to do
so it is necessary to understand the meanings, questions and ideologies expressed in this
inversion, since they contribute to the recognition with this art construction to times beyond
its formulation. In this sense, the research was based on a literature survey of schools of
thought that propose a critical view to the historical formation process of the global South,
notably postcolonialism and the postdevelopment. Such theoretical subsidies help to
understand a map that is as plural as worldviews may be, treading a relationship between
geopolitics, cartography and art.
INTRODUÇÃO......................................................................................... 11
CONCLUSÃO......................................................................................... 151
REFERÊNCIAS...................................................................................... 160
11
INTRODUÇÃO
cartográficos feitos por artistas em suas variadas formas de expressão, que passamos a
chamar de mapas artísticos.
Ao aproximar a cartografia da arte, os mapas artísticos levantam uma série de
questões sobre as relações histórias e intercâmbios representativos que esses dois
campos apresentam. Ao apropriar elementos da cartografia, mapas artísticos colocam
em questão a autoridade e o poder dos mapas em afirmar eventos e características
espaciais, e assim, influenciar comportamentos sociais no espaço. São tão amplos e
intrigantes as críticas e discussões que essas imagens podem fomentar que nos motivou
a tentar entendê-los mais a fundo e verificar como podem, ou se podem contribuir para
os estudos da geografia.
Essas são formas imagéticas relativamente novas. Muitos autores são
concordantes em dizer que, enquanto um movimento, os mapas artísticos adquirem
notoriedade nos últimos trinta anos (COSGOVE, 2005; WOOD, 2006; D’IGNAZIO,
2009). Entretanto também reconhecem a existência de exemplos de mapas mais velhos
também feitos por artistas, dentre os quais podemos citar o recorrente Mapa invertido
da América do Sul, feito em 1943, pelo artista uruguaio Joaquín Torres-García (figura
1).
A primeira coisa que salta aos olhos ao ver esse mapa é que a América do Sul
aparece com seu contorno e sua forma habitual, porém sua orientação está diferente,
está ao contrário! Só não acusamos o erro ou “concertamos” o sentido da imagem
quando percebemos no título, que diz “invertido”, que se trata de uma mudança
proposital. Mas então, qual o propósito dessa inversão? Que discursos motivaram essa
ideia? E que discursos foram propagados através dessa imagem invertida? O que
expressam os elementos cartográficos nela contidos, como a Linha do Equador, o Polo
Sul e o valor da latitude e longitude? E o que expressam as demais formas desenhadas
tão simplesmente, como a lua, o peixe e o barco?
14
Essas são questões bastante interessantes, cuja resposta não pode ser dada sem
um debate sobre os assuntos envolvidos na temática dos mapas artísticos e, portanto, só
poderão ser respondidas no decorrer dos capítulos. De fato, estas questões nos
instigaram a compor a presente pesquisa, visto que se repetiam ou se somam ao
encontrarmos com esse mapa artístico sendo reproduzido em diferentes situações
cotidianas e habituais. Aquelas mesmas que dissemos, no início dessa introdução, serem
indissociáveis dos conhecimentos que formulávamos nas aulas e através dos textos
acadêmicos.
Assim sendo, era quase inevitável olhar para essa imagem invertida da América
do Sul e não relacionar com os debates sobre os conflitos e desigualdades existentes
entre as regiões Norte e Sul do globo, ou não questionar aquele mapa ensinado ainda na
escola, com uma linha de separação entre países do Norte e países do Sul que faz grande
curva na Austrália. Esse mapa artístico passava, então, a dizer muito sobre as relações
geopolíticas entre os países, sobre a síntese mundo em uma só imagem normatizada de
mapa-múndi, sobre a influência ideológica na escolha de uma orientação padronizada,
sobre a relação de dependência estabelecida entre países submetidos ao regime colonial.
15
Enfim, uma série de discussões que nos chamava a tomar esse mapa como objeto de
estudo.
Ao traçarmos como objeto de estudo um mapa artístico, a presente pesquisa
mostrou-se um desafio, visto que tais formas imagéticas ainda foram pouco exploradas
e debatidas na ciência geográfica, principalmente em se tratando do cenário brasileiro.
As contribuições e investigações sobre os mapas artísticos são somadas e difundidas
gradativamente, conquistando um espaço que pode transitar entre história da arte,
perspectivas da cartografia e até mesmo geopolítica. Nenhum desses é mais importante
ou isolado do outro, mas temos claro que, devido ao tema proposto, nossa abordagem
concentrou um maior número de bibliografias na articulação desses dois últimos
campos supracitados.
Tendo em vista a recenticidade desse tema, muitas das bibliografias concentram-
se em uma exploração inicial, preocupados em fazer um levantamento vasto de
exemplos de mapas artísticos e em propor demandas que podem ser criadas por eles. Há
também, mas em menor número, alguns trabalhos já mais específicos, que usam de
mapas artísticos para investigar e debater as visões de mundo, as intervenções no espaço
e contestações políticas que tais mapeamentos podem expressar. Muito inspirados por
esses textos, também pretendemos, aqui, contribuir no avanço e na expansão da
discussão sobre os mapas artísticos, principalmente para o olhar geográfico.
Nesse sentido, os entendimentos sobre a cartografia mostraram-se primordiais
para compreender como se dá sua relação com a arte. Mais surpreendente do que
encontrar diversas referências sobre as antigas relações entre mapa e arte, foi reconhecer
que elas não se esgotaram como se costuma pensar na cartografia científica. É preciso
narrar um pouco da história da cartografia para esclarecer essa comum confusão. O fato
é que, durante muito tempo, essa história da cartografia foi contada a partir de uma
perspectiva evolutiva, onde os mapas teriam sido gradativamente aprimorados por meio
de novas técnicas científicas e de precisão.
Nessa perspectiva, é reconhecível a relação entre arte e mapa em seus
primórdios, no chamado período pré-científico da cartografia. Durante muito tempo,
aqueles que se empenhavam em pintar paisagens também desempenhavam a função de
confeccionar os mapas. Não obstante, os mapas antigos exaltam características
pictóricas e propriedades estéticas, sendo até hoje objetos de decoração, sobre os quais
discorreremos melhor no capítulo pertinente. Porém, com a composição do período
científico da cartografia, as imagens pictóricas foram migrando cada vez mais para as
16
1
First, it finally threw off art and subjectivity. Thus science was posed in opposition to art. Second, it
became as it were 'post-political' by throwing off the fatal attraction to propaganda and ideological
mapping evidenced prior to and during the war, and promoting a kind of swiss-like neutrality about
politics.
17
2
(...) sought to bring new critical thinking to bear on the interpretation of maps and tried to broaden our
understanding of mapping practices, not least the conventional historiography of cartography´s evolution
from art to science.
18
poderíamos deixar de considerar uma característica particular dessa obra que mais nos
instigou a querer estudá-la. Em nossa atenção às leituras dos elementos habituais e
cotidianos, associados aos ensinamentos da formação acadêmica, esse mapa artístico
nos apareceu mais de uma vez, em circunstâncias e formatos diferentes, nos fazendo
atentar para a fama e notoriedade dessa obra em tempos distantes de sua elaboração.
Em concordância com nossa inicial inquietação, procuramos levar em
consideração as circunstâncias da criação da obra, mas somamos as situações em que
ela é reproduzida e os ideais de pensamento que influenciam tal reprodução. Isso
porque, tal obra não ficou restrita ao seu artista, país ou ano de criação. Ela caiu no
gosto popular, ganhou fama e passou a emprestar seu ideário a diferentes tipos de
conjunturas. Não é difícil encontrarmos pessoas familiarizadas com tal imagem, o que é,
provavelmente, explicado pela sua ampla circulação. Em qual dessas situações
possivelmente tivemos contato com esse mapa? Em camisas, cartazes de evento, capas
de livro, revistas, galerias de arte, souvenires, materiais didáticos ou mesmo em
tatuagens? Numa tentativa de ajudar a memória, reunimos tais situações na Figura 2.
É por essa percepção de notoriedade que o Mapa invertido da América do Sul
(1943) atrai nossa curiosidade científica. Queremos saber mais sobre esse mapa tão
familiar, entender como e porque foi feito desse modo e, principalmente, compreender
os motivos de sua reprodução até os dias atuais. Por exemplo, é possível termos novos
olhares do público ao tomarem conhecimento que tal mapa artístico foi feito para a capa
de manifesto escrito por Torres-García, com o objetivo de exaltar a cultura do Uruguai e
reduzir a importação das tendências artísticas da Europa (JOLLY, 2011), do qual
destacamos o seguinte trecho:
É por isso que nós agora viramos o mapa de cabeça para baixo, e agora nós
sabemos qual é nossa real posição, e não é como o resto do mundo gostaria
que estivéssemos. De agora em diante, o alongamento da ponta da América
do Sul irá apontar insistentemente para o Sul, nosso Norte. Nossa bússola
também, ela vai inclinar irremediavelmente e para sempre na direção do Sul,
da direção do nosso polo (TORRES-GARCÍA, 1992, p.53, tradução nossa) 3.
3
That is why we now turn the map uspside down, and now we know what our true position is, and it is
not the way the resto f the world would like to have it. From now on, the elongated tip of South America
will point insistently at the South, our North. Our compass as well; it will incline irremediadiably and
forever toward the South, toward our pole.
19
Ou ainda, o espectador da obra pode ter percepções mais amplas caso consiga
localizá-la no movimento modernista da América Latina, conhecido por sua rejeição ao
projeto de modernidade burguesa e valorização do nacionalismo e regionalismo em
resposta a tudo que fosse central e cosmopolita (ADES, 1997). Por fim, também pode
ser surpreendente apreciar a ideologia construtivista de Torres-García, que sintetiza e
esboça um elemento através do que seria sua essência. Todas essas características serão
mais bem descritas em momento oportuno ao longo dos capítulos.
No presente momento, torna-se mais interessante continuar a fomentar o debate:
quais discursos são expressos na reprodução dessa obra? Será que seu formato invertido
traz novas identificações ideológicas? Se retomarmos a definição de mapas artísticos
como construções que visam contrapor, questionar ou contrariar formas hegemônicas e
padronizadas de mapa, então a contínua reprodução do Mapa invertido da América do
Sul (1943) deve relacionar-se a outra continuidade: a das visões de mundo que fornecem
uma manutenção da diferenciação do mundo entre Norte e Sul.
Novamente, recorremos às imagens que nos chegam de modo habitual e usual,
sendo diretamente relacionado com os conhecimentos acadêmicos, e uma dessas
imagens nos pareceu ter especial contribuição na visualidade da diferenciação entre
Norte e Sul. Em 2 de outubro de 2009, a cidade do Rio de Janeiro era anunciada como
sede dos jogos olímpicos e paraolímpicos de 2016, durante a 121° sessão do Comitê
Olímpico Internacional, em Copenhague, na Dinamarca. Na ocasião, a disputa estava
entre Madrid (Espanha) e Rio de Janeiro (Brasil), cada um havia vencido uma das
etapas anteriores e por isso, ainda restavam muitas dúvidas sobre a cidade a ser eleita.
Eis que a apresentação da delegação brasileira expõe seu item determinante, o que foi
considerado seu trunfo: um mapa da distribuição das cidades sedes dos jogos olímpicos
(Figura 3).
O mapa apresentado destaca o número total de jogos já sediados em cidades de
cada continente. A grande concentração de jogos olímpicos está nas cidades da Europa
(30), seguido de cidades da América do Norte (12), enquanto nenhuma cidade da África
foi sede de olimpíadas. Esse mesmo vazio seria afastado da América do Sul pelos jogos
olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. Em 2009, tal mapa foi comentado durante as
notícias da escolha da cidade brasileira, pois ele destacava o principal argumento para a
vitória: esta viria a ser a primeira olimpíada realizada na América do Sul.
21
Esse recente exemplo do mapa das cidades sedes dos jogos olímpicos nos
mostra, de forma perceptível, como a divisão global entre Norte e Sul está relacionada
com as construções cartográficas. Portanto, existe um imaginário geográfico que propõe
um entendimento de mundo divido entre Norte e Sul que conta com importante
participação da cartografia em sua fixação, notavelmente pela orientação que foi
gradativamente padronizada em uma visão de mundo que fosse única e normatizada.
De forma bastante resumida e amplamente aceita, concordamos que:
Juntamente com a dissolução pós-1989 do segundo mundo, as tendências de
aceleração da globalização e da superfície explosiva de uma variedade de
tensões e conflitos sociais, também tem ocorrido um ressurgimento do
interesse no estado das relações Norte-Sul. Já no início de 1990, foi sugerido
que o fosso crescente entre Primeiro e Terceiro mundos estava levantando
algumas das questões morais mais agudas do mundo moderno e tornando-se
uma questão central dos nossos tempos. (SLATER, 2004, p. 3, tradução
nossa)4.
Nesse sentido, a ideia de dividir as disparidades mundiais entre Norte e Sul foi
potencialmente difundida durante o período citado, o que não significa que era
inexistente em períodos anteriores. Pelo contrário, não se pode negar o processo
histórico de construção dessa diferenciação entre países do Norte e países do Sul, que
apenas passa a ficar mais evidente pós-1989 (SLATER, 2004; VESENTINI, 2013). Até
4
Together with the post-1989 dissolution of the second world, the accelerating tendencies of
globalization and the explosive surfacing of a variety of acute social tensions and conflicts, there has also
been a resurgence of interest in the state of North-South relations. Already in the early 1990s, it was
suggested that the growing gap between First and Third Worlds was raising some of the most acute moral
questions of the modern world and becoming a central issue of our times.
22
5
These imagined geographies described the world to people, and explained their place within it, and were
thus very significant in shaping how people responded to the world. Although imagined, these
geographies have real consequences for people´s actions: they were very important to people´s
understanding of what they saw and experienced in their travels.
23
Não que fossem elementos totalmente distantes, mas trariam o risco de fugir ao
foco da pesquisa. Nesse sentido, encontramos uma maior correlação e pertinência nas
proposições da geopolítica critica por já considerarem, recorrentemente, o papel das
imagens de mundo. Trata-se de um braço do pensamento geopolítico que ganhou
notoriedade no início da década de 1980 (TUATHAIL, 2006), onde o contexto da
Guerra Fria expôs a importância dos discursos e imagens para apoiar certas estratégias
geopolíticas. Nesse sentido, segundo Dodds (2001), escritores europeus sentiram a
obrigação de abordar a suposta conexão entre ideias e práticas políticas associadas ao
expansionismo territorial e a dominação do lugar. Portanto, se a geopolítica adquiriu o
significado de estudo sobre política mundial, com ênfase na dimensão geográfica do
poder, então: “nós devemos estar atentos às formas pelas quais o espaço global é
rotulado, metáforas são empregadas, e imagens visuais são usadas nesse processo de
fazer histórias e construir imagens sobre a política mundial” (TUATHAIL, 2006, p. 1,
tradução nossa)6.
Assim, representações passam a ser vistas como influentes nas formas de ver o
mundo; que por sua vez, passam a ser vistas como influentes nas ações e práticas
políticas.
Quando nós estamos pensando sobre como o mundo é representado, quando
nós pensamos sobre as fontes pelas quais cada um de nós busca nossos
entendimentos sobre o mundo ao nosso redor, nós não podemos olhar apenas
para fontes escritas mas devemos também examinar de perto as imagens –
sejam elas pinturas orientalistas do século dezenove, fotos de filmes,
ilustrações da National Geographic, ou imagens de propagandas. (SHARP,
2009, p. 7, tradução nossa)7.
6
(...) we must be attentive to the ways in which global space is labeled, metaphors are deployed, and
visual images are used in this process of making stories and constructing images of the world politics.
7
When we are thinking about how the world is represented, when we think about the sources from which
we each get our understanding of the world around us, we cannot only look to written sources but must
also closely examine images – whether these are the paintings of nineteenth century Orientalists, film
stills, illustrations from the National Geographic, or advertising images.
24
8
In doing so, political geography is moving a considerable distance from traditional research agendas
based on boundaries, state power and evironmental conditions. Many of these geopolitical reworkings,
however, despite their interest and concern for diversisty, are predominatly composed and circulated in
particular post-imperial centers. It is highly likely that poscolonial research will feature more strongly in
future research. Overall, critical geopolitics has helped to open up new research agendas and contribued
to debates across the social sciences and the humanities on globalization, identity politics and sovereinty.
25
9
How we see, how we are able, allowed or made to see, and how we see this seeing and the unseeing
therein.
10
To understand a visualisation is...to enquire...into the social work that it does. It is to note its principles
of inclusion and exclusion, to detect the roles that it makes available, to understand the way in which they
are distributed, and to decode the hierarchies and differences that it naturalises.
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dessa obra de Torres-García adquiriu especial atenção: porque esse mapa artístico
pioneiro continua a ser reconhecido até os dias de hoje?
Na tentativa de solucionar tal questionamento, desenvolvemos a hipótese de que
alguns entendimentos e ideias semelhantes aos que influenciaram a construção artística
de Torres-García continuam na pauta de debates e de estudos na contemporaneidade,
principalmente através da perspectiva póscolonial e pósdesenvolvimento. Em outras
palavras, conjecturamos a existência de uma possível associação entre a reprodução
atual do Mapa invertido da América do Sul e essas teorias sociais críticas difundidas a
partir do século XX e em crescente ampliação.
Para responder tal hipótese, optamos pela metodologia de reunir um conjunto de
imagens onde pudéssemos analisar as circunstâncias que ainda utilizam ou reproduzem
esse mapa artístico nos dias atuais. A partir de então, passamos a atentar para as
situações cotidianas em que essa obra tão difundida surgisse ao nosso olhar. Tal
reprodução já nos tinha feito ter contato com essa obra anteriormente, e não seria difícil
que essa ocasionalidade acontecesse novamente. Somamos, também, algumas pesquisas
de imagem feita através da internet.
O resultado foi um conjunto de imagens que reproduzem o mapa de Torres-
García por diferentes públicos e com diferentes propósitos. Por isso, nos pareceu
metodologicamente apropriado agrupar essas imagens em universos de interesse,
selecionando os exemplos mais relevantes de cada um, para que pudéssemos entender
as utilidades e os discursos que o Mapa invertido da América do Sul (1943) continua a
expressar. Nessa seleção, encontramos cinco universos onde essa obra é bastante
utilizada: turismo no Uruguai, cultura popular, ensino superior, ensino escolar, e
tatuagens.
Esclarecidas as metodologias e as indagações que compõem a presente pesquisa,
torna-se necessário, para o momento, elencar mais esquematicamente nossos objetivos.
Assim, a presente pesquisa tem por objetivo geral: compreender a contínua utilização do
Mapa invertido da América do Sul, em seus contextos de produção e de reprodução na
atualidade. Desse, desprendem-se três outros objetivos complementares:
a) Reconhecer a importância dos mapas artísticos e suas visões de
mundo.
b) Discutir as relações entre Norte e Sul nas teorias sociais póscoloniais e
pósdesenvolvimentistas do século XX.
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Discutir o papel dos mapas para a geografia parece, à primeira vista, uma tarefa
redundante. Afinal, durante a formação geográfica, somos instruídos a elaborar mapas,
acostumados vê-los nas principais bibliografias e estimulados a usá-los em nossos
próprios trabalhos a fim de “validá-los”. Entretanto, esse maciço uso do mapa não deve
inibir a reflexão e problematização desse uso. De que modo os geógrafos utilizam os
mapas? A quais propósitos esse uso serve? Quais discursos são associados ao mapa?
Em uma perspectiva bastante geral e ordinária, o mapa é aceito como uma
representação, ainda que parcial, da realidade espacial. Com isso, os mapas teriam a
função de retratar, por meio de seus cálculos e técnicas, algum tema ou configuração de
uma dada realidade local. E, ao fazer sua leitura, estaríamos reconhecendo as reais
características daquela porção espacial. Tanto é que, em uma coletânea de centenas de
definições da palavra “map”, na língua inglesa, buscadas entre 1649 e 1996, e citada por
Wood (2010), traz como resultado mais constante: “uma representação de uma parte da
superfície terrestre” (p. 18) 11.
O próprio autor alerta que a unanimidade não é razão para tomar essa definição
como a imparcial descrição do papel e da natureza do mapa. Por outro lado, pode ser
percebida como uma distinção, ou seja, como o mapa em si se apresenta e gostaria de
ser entendido. O que se torna perceptível na definição que a Associação Internacional de
Cartografia (ICA – International Cartographic Association) traz sobre mapa: “uma
imagem simbolizada da realidade geográfica, representando recursos ou características
selecionadas resultantes do esforço criativo da execução de escolhas de seu autor, e é
12
destinado para uso quando as relações espaciais são de relevância primária”
(Disponível no site da ICA, Traduzido pela autora).
Apesar da reconhecida autoridade que tal instituição possui para fixar uma
definição de mapa, podemos relativizá-la através de questões que se tornam pertinentes,
como: o mapa realmente simboliza uma realidade existente? Todo mapa deve conter
símbolos padrões associados ao que representa? O mapa é uma ferramenta pertencente
11
A representation of a part os the earth´s surface.
12
A symbolized image of geographical reality, representing selected features or characteristics, resulting
from the creative effort of its author's execution of choices, and is designed for use when spatial
relationships are of primary relevance. Texto disponível em:
http://www.itc.nl/Pub/News/in2011/July/Menno-Jan-Kraak-Re-elected-Vice-President-of-ICA.html
33
prioritariamente aos ambientes acadêmicos? Caso não cumpra essa perguntas, não deve
ser considerado mapa?
De fato, todas essas definições expostas se aproximam do entendimento do mapa
como produto de uma técnica, centrada na utilização do mapa. Nenhuma delas exclui a
ilação que os mapas são culturalmente, historicamente e socialmente aceitos como
principal fonte para explorar formas e estruturas do conhecimento geográfico
(COSGROVE, 2008). As contradições aparecem em definir o que constitui o mapa,
algo que pode variar de acordo com o período, com a ideologia, ou até mesmo entre
geógrafos e cartógrafos.
No entendimento mais comum exposto acima, o mapa é relacionado diretamente
com a materialidade local, como reflexos passivos do mundo, como levantamentos
inertes da paisagem. Com isso, nos seduz a encará-los como o mundo em si: “Os mapas
nos impressionam, parecem representações perfeitas da realidade. Às vezes, confiamos
mais no mapa do que na própria realidade” (SEEMANN, 2013. Pg. 13). Segundo
Harley (2005), nessa perspectiva o papel do mapa é representar uma manifestação
concreta de uma realidade geográfica dentro dos limites das técnicas de topografia, da
habilidade do cartógrafo e do código de signos convencionais. Ainda segundo o autor:
Em nossa cultura ocidental, pelo menos desde o Iluminismo, se tem definido
a cartografia como uma ciência concreta. A premissa é que um mapa deve
oferecer uma janela transparente para o mundo. Um bom mapa deve ser
preciso. Quando um mapa não representa a realidade de uma maneira
adequada sobre uma escala concreta, passa ter uma qualificação negativa. Os
mapas se qualificam segundo uma correspondência com a verdade
topográfica. Somos informados que a imprecisão é um crime cartográfico
(HARLEY, 2005, p. 60, tradução nossa)13.
Com tal ótica, o uso do mapa fica voltado para a localização, seja de pessoas ou
de fenômenos. E seu desenvolvimento científico fica centrado em novas técnicas que
aumentem a precisão e a correspondência com a realidade material. Por outro lado,
convivem as limitações causadas por esse entendimento, cujo foco na utilização do
mapa inibe as análises sobre seus processos de construção e suas consequências de uso.
Claramente, o uso de localização requer um maior desenvolvimento técnico, e
não negamos a importância dessa função do mapa. Porém, sua definição torna-se
13
Em nuestra cultura occidental, por ló menos desde La Ilustración, se há definido a la cartografia como
uma ciência concreta. La premisa es que um mapa deve ofrecer uma ventada transparente al mundo. Um
buen mapa debe ser preciso. Cuando um mapa no representa La realidad de uma manera adecuada sobre
uma escala concreta, se hace acreedor a uma calificación negativa. Los mapas se clasifican según su
correspondencia com La verdad topográfica. Se nos há dicho que La imprecisión es um delito
cartográfico.
34
14
Sylvie and Bruno concluded (1893).
35
mapa de uma estrada é representada por um símbolo que tem pouca semelhança com a
estrada em si, mas quem o vê passa a aceitar que o símbolo é como uma estrada.
Os mapas podem ilustrar apenas uma versão da realidade que pretendem
representar, devido às limitações de escala e imprecisões produzidas pela
projeção psicológica do cartógrafo. No entanto, mapas parecem ser
definitivos porque eles não fornecem advertências ou indicam especulação
como fazem os textos escritos. A realidade da descrição pode, assim, estar
mais perto da essência da mente do cartógrafo do que com a do mundo
retratado. Mapas, até certo ponto, portanto, realocam a realidade física e
servem como substituto para ela (KLINGHOFFER, 2006, p. 9, tradução
nossa)15.
Em síntese, mapas não são a realidade, mas interpretações sobre ela. O que dito
desta maneira, parece mais do que o óbvio. Então, será que os cartógrafos realmente
creem nessa relação direta? Acreditamos que não, pois é justamente no caminho entre
fonte material e representação que está o trabalho do cartógrafo em calcular, adaptar,
interpretar, selecionar e intervir nessa forma representativa (KLINGHOFFER, 2006). É
simplista colocar os cartógrafos como “desavisados” da impossibilidade de reproduzir a
realidade em si. Na verdade, ao promover essa busca por cientificidade, induz-se a ideia
de neutralidade do mapa, omitindo as inevitáveis manipulações técnicas. Mas essa é
uma armadilha que não fica limitada à cartografia.
Segundo Gisele Girardi (2000), desde pelo menos a estruturação da cartografia
enquanto um campo do conhecimento específico em nível internacional, a Geografia,
majoritariamente, deixou de se construtora e passou à condição de usuária dos mapas.
Uma mudança que até poderia fornecer fundamentação para uma crítica das
representações cartográficas. No entanto, talvez tentada a um caminho mais fácil, a
Geografia relegou-se ao papel de consumidora dos mapas.
A distinção aqui feita entre consumo e uso pauta-se na observação de como
são tratados os mapas no trabalho geográfico. Temos como consumo o mapa-
ilustração, muitas vezes presente apenas para legitimar a natureza geográfica
da obra (situação muito comum nos livros didáticos, por exemplo); temos
também o mapa-cópia, infelizmente ainda muito comum e muito marcante no
ensino de Geografia nos níveis fundamentais e médio. O uso tem o sentido de
emprego consciente de algo, o que pressupõe conhecimento crítico do que
está utilizando e para quê (GIRARDI, 2000, p. 42).
Isto posto, o consumo de mapa favorece sua utilização como uma substituição
ou validação da realidade. Enquanto o uso de mapa tenderia a interpretar suas diversas
15
Maps can illustrate only a version of the reality they purport to represent due to the limitations of scale
and inaccuracies produced by the psychological projection of the mapmaker. Nevertheless, maps appear
to be definitive because they do not provide caveats or indicate speculation as do written texts. The reality
of the portrayal may thus be closer to the essence of the cartographer's mind than to that of the world
depicted. Maps, to a degree, therefore replace physical reality and serve as substitute for it.
36
Nesse processo, o que se perde é uma leitura crítica dos mapas e a possibilidade
de deduzir informações que vão além da técnica. Era preciso, portanto, adotar uma
definição que fosse mais abrangente, que aplicasse aos mapas as análises sócio-
espaciais tão interessantes à Geografia. Uma das colaborações partiu dos historiadores
da cartografia, para quem o mapa passou a ser entendido como: “Uma construção social
do mundo expressa por meio da cartografia” (HARLEY, 2005).
Com tal perspectiva, retira-se a busca por padronizações e verossimilhança dos
mapas, pois esses passam a ser entendidos como manifestação de um contexto histórico,
como uma descrição de mundo moldada culturalmente e socialmente. Para Klinghoffer
(2006), os mapas não inspiram apenas as mentes, como também os corações. Por isso,
devem ser tão plurais quanto as visões de mundo podem ser. Ao invés de ser
considerado como um neutro produto de uma técnica, o mapa deve ser compreendido
como uma forma de comunicar os entendimentos de mundo de seu contexto.
A definição de mapa que preferencialmente adotamos também é apropriada por
diversos autores (CRAMPTON, 2001; SEEMAN, 2013; BROTTON, 2014), e foi
apresentada na obra de 1987, History of Cartography, de Harley & Woodward. Diziam
eles que: “Mapas são representações gráficas que facilitam a compreensão espacial de
16
coisas, conceitos, condições, processos ou eventos no mundo humano” (p.16) . Essa
exposição proporciona a amplitude requerida por diversas ciências para tomarem o
mapa como mentais, virtuais, cósmicos, artísticos e os mais arcaicos, anteriores às
regras da cartografia científica.
Para chegar a tal definição, os autores traçam uma pesquisa de reunião de
diferentes mapas. Diante da cartografia pré-histórica, clássica e medieval, ficou claro
que os mapas deveriam ser entendidos sobre diversos ângulos, e não apenas como
16
Maps are graphic representations that facilitate a spatial processes, or events in the human world.
37
Na mesma trilha, Seemann (2013, p.31) afirma seu poder de influência sobre
dada realidade: “O mapa é constitutivo de uma determinada forma de realidade, e não
apenas representativo dela”. Para Crampton (2001, p. 71), é necessário quebrar o escudo
de objetividade em que nossa cultura cercou o mapa, e então estudá-lo pelo o que
realmente é: “uma prática humana”. Essa prática, para Klinghoffer (2006, p.2. Tradução
nossa) se compara a mesma abordagem de apresentação da ficção: “Algumas
informações devem ser incluídas a fim de comunicar, mas muito provém da imaginação
18
de quem vê” . O que se complementa com a ponderação de Black (1997, p.11.
Tradução nossa), de que como os mapas não são tamanho-real, eles são modelos e
17
All maps strive to frame their message in the context of an audience. All maps state an argument about
the world and they are propositional in nature. all maps employ the common devices of rhetoric such as
invocations of authority and appeals to a potential readership through the use of colors, decoration,
typography, dedications, or written justifications of their method. Rhetoric may be concealed but it is
always present for there is no description without performance.
18
Some information must be included in order to communicate, but too much constricts the imagination
of the beholder
39
“como resultado, mapeadores devem escolher o que mostrar e como mostrar, e, por
extensão, o que não mostrar (...). Mapeadores são mais criadores do que refletores” 19.
Em suma, tais citações convergem para desinstitucionalizar o mapa e valorizá-lo
em suas diferentes formas de usos, com diferentes agentes e contextos de elaboração.
Enquanto das regras da cartografia científica que tendem a padronizar os mapas, esses
autores críticos tendem a ampliar suas formas, colocando sua representação como algo
relativo e influenciável. Porém com um adendo importante, sem menosprezar essa
manipulação, visto que os mapas expressam uma forma possível de ver o mundo, dentre
várias existentes.
Todas as sucessivas críticas à cartografia expostas são relevantes para a análise
dos mapas pela geografia, pois ao serem vistos como uma construção humana, que
expõe uma noção de espaço, abre-se um grande leque de possibilidades de investigação
que não se limita ao seu consumo superficial. Tais críticas são derivadas de uma
perspectiva basilar na cartografia crítica: a desconstrução do mapa. Em artigo publicado
em 1989, Brian Harley alerta para as problemáticas da ampla aceitação do mapa
enquanto um documento da realidade, deduzindo daí, a necessidade de desconstruir
essa ligação.
Assim, as motivações que levam a críticas da cartografia são semelhantes: a
impressão de realidade, padronização, indução de neutralidade, omissão da autoria e
definição através da técnica. Em todas, cabe a alternativa da desconstrução, cujo
objetivo é justamente sugerir outra possibilidade epistemológica, focada mais na teoria
social do que no positivismo científico. Com isso, pretende-se esclarecer que até mesmo
os mapas mais científicos não são produtos somente de um conjunto e regras e
proporções geométricas, mas também são produtos de normas e valores de uma dada
ordem social, das tradições e das culturas.
Para tanto, é preciso enxergar além das informações que são localizadas pelo
mapa. Se o propósito é romper a ligação entre mapa e realidade, é fundamental
questionar as escolhas, seleções e construções que resultaram naquela elaboração
cartográfica. Não obstante, considerar os motivos de tais escolhas, e os discursos que
elas procuraram expressar. A palavra “desconstruir” torna-se realmente descritiva da
abordagem proposta, pois se pinça cada elemento do mapa, entendem-se suas partes,
interpretam-se suas escolhas, para enfim, compreender os discursos que o perpassam.
19
As result, map-makers have to choose what to show and how to show it, and, by extension, what not to
show (...). Map-makers as creator rather than reflector.
40
Nesse processo, olhar o mapa e atentar para as seleções é buscar suas omissões, atentar
para as representações é buscar seus vazios e atentar para as informações é buscar seus
discursos.
Desconstrução exorta-nos a ler entre as linhas do mapa - nas margens do
texto - e por meio de suas alegorias para descobrir os silêncios e as
contradições que desafiam a honestidade aparente da imagem. Começamos a
aprender que os fatos cartográficos são apenas fatos dentro de uma
perspectiva cultural específica (HARLEY, 1989, p. 3, tradução nossa)20.
20
Deconstruction urges us to read between the lines of the map - in the margins of the text - and through
its tropes to discover the silences and contradictions that challenge the apparent honesty of the image. We
begin to learn that cartographic facts are only facts within a specific cultural perspective.
41
Tal citação resume com clareza como é esse olhar que propomos para análise
dos mapas e de sua apropriação artística. Porém, ao relacionar essa citação com outros
autores, nos surge uma importante indagação: É necessário enxergar o mapa como um
texto para desprender tais propriedades? Claro, que de forma comparativa, essa é uma
ferramenta bastante didática, mas essa perspectiva é bastante próxima da proposta da
análise crítica das imagens enquanto uma visualidade, tal qual o mapa é.
Assim, gostaríamos de relembrar essa discussão traçada em nossa introdução.
Dissemos que muitas vezes as imagens são usadas com fins de ilustração ou
comprovação, gerando um aspecto de neutralidade que omite seu papel social e sua
função ideológica. Mas, ao mesmo tempo, existe um crescente movimento de
problematização da visualidade, que procura extrair informações diversas das
21
Los mapas son um lenguaje gráfico que se debe decodificar. Son uma construcción de La realidad,
imaágenes cargadas de intenciones y consecuencias que se pueden estudiar em las sociedades de su
tiempo. Al igual que lós libros, son también producto tanto de las mentes individuales como de lós
valores culturales más amplios en sociedades específicas.
22
By accepting their textuality we are able to embrace a number of different interpretive possibilities.
Instead of just the transparency of clarity we can discover the pregnancy of the opaque. To fact we can
add myth, and instead of innocence we may expect duplicity. Rather than working with a formal science
of communication, or even a sequence of loosely related technical processes, our concern is redirected to
a history and anthropology of the image, and we learn to recognize the narrative qualities of cartographic
representation as well as its claim to provide a synchronous picture of the world.
42
23
The differences between visualization and traditional cartography can be captured using the concept of
"cartography cubed" (C3). Cartography cubed is a method of understanding different kinds of uses of
43
maps. The "cube" contains three dimensions; private- public, high interactivity- low interactivity, and
revealing knowns-exploring unknowns-exploring. Traditional cartography has emphasizes public use, low
interactivity and revealing knowns, while visualization emphasizes private use, high interactivity, and
exploring unknowns.
44
suas formas de representação e aprimorando seus métodos para alcançar uma maior
veracidade. Com essa lógica, era fácil supor que os mapas antigos seriam inferiores e
inexatos. O estudo deles serviria muito mais para a admiração artística e exposição
estética, do que para compreender algum tipo de informação.
Em contrapartida, os “novos” mapas seriam os mais confiáveis e precisos, pois
contavam com o progresso da ciência cartográfica. Somado a isso, o contexto dessa
progressão era o mesmo que caracterizava as ciências como uma entidade neutra,
baseadas em leis gerais e, portanto, isentas de posicionamentos ou ideologias. Destarte,
classificar o mapa como científico é também entendê-lo como algo neutro e imparcial,
uma representação mais próxima de realidade e que mereceria, por isso, maior
credibilidade. Diferente dos mapas antigos, que carentes de leis científicas, tornavam-se
aleatórios e ambíguos, variando conforme a intenção, cultura ou localidade.
Essa divisão teve lugar desde, pelo menos, o Renascimento europeu tendo como
resultado uma hierarquização dos mapas entre pré-modernos e modernos (HARLEY,
1989). Esse século renascentista trazia mudanças significativas na história, dentre as
quais incluía a forma como se faziam os mapas. Era preciso deixar claro que o
entendimento de mapa seria outro, totalmente distinto do período anterior, com novas
diretrizes e características. Assim, foi configurada uma ruptura que colocava de um lado
os mapas pré-modernos influenciados pelas artes, e do outro lado, os mapas modernos
inspirados pela razão científica.
Isso é explicado, pois no período pré-moderno, mapear e pintar paisagens eram
atividades feitas pelas mesmas mãos (REES, 1980). O mapeamento era mais uma das
artes decorativas, artistas tinham mãos livres para fazer mapas antes dos cartógrafos e
geógrafos requererem esse conhecimento como científico. Dois fatos históricos dão
evidência para essa íntima relação entre mapa e arte. Em primeiro, as capitais da arte
renascentista eram também centros proeminentes da confecção de mapas, como Veneza
e Antuérpia. “Tão intimamente associadas eram pintura, cartografia e reprodução que às
vezes eram realizadas por uma pessoa, ou, se por várias, então geralmente em um só
lugar” (REES, 1980, p.63, tradução nossa.)24.
Em segundo, na antiguidade europeia, os mapas eram expostos em paredes, com
todos os seus elementos simbólicos e proximidade com obras de arte, passaram a figurar
24
so closely associated were painting, cartography, and reproduction that they were sometimes carried
out by one person, or, if by several, then usually in one place.
45
na decoração (HARLEY, 2009). Mais do que isso, eram objetos de cenário da nobreza,
pois além da beleza estética representavam a posse de terra.
Os emblemas reais, tais como a flor de lis ou a águia imperial, suscitam
igualmente pensamentos políticos e geográficos, mais concretos no espaço
cartografado. Os personagens mais frequentemente representados são os
nobres, os bispos, os ricos mercadores e os proprietários de terra. Nos mapas
cadastrais ingleses, os símbolos que representam a riqueza fundiária são os
brasões, os castelos, a atividade de caça dos proprietários. Possuir mapa, era
possuir terra (HARLEY, 2009, p. 18).
fomentando estudos que mostrassem a influência das artes apenas nos mapas pré-
modernos, evitando o exame crítico da ciência cartográfica no século XX, e deixando
intacta a impressão de que arte e cartografia seguiram caminhos diferentes no período
moderno (COSGROVE, 2005).
Claramente, essa ruptura era fundamental para convencer sobre tais mudanças
nas diretrizes do mapeamento. Era preciso valorizar os elementos da cartografia
moderna, como sistema de coordenadas, escalas e cálculos precisos. Para Wood (2010),
convencer sobre os méritos dos mapas modernos, era pré-condição para impulsionar o
mapeamento em si. Essa ideia de neutralidade dos mapas é um debate de múltiplos
caminhos, dos quais retomaremos na próxima seção do presente capítulo, no momento
nos cabe ressaltar sua consequência para a relação entre arte e cartografia: passou a
validar unicamente os mapas modernos e inferiorizar os demais.
Os métodos de cartografia entregaram conhecimento verdadeiro, verossímil,
progressivo, ou altamente confirmado. Este sujeição mimética levou a uma
tendência não só de olhar para baixo sobre os mapas do passado, mas
também a considerar os mapas de outras culturas primitivas ou não ocidentais
(onde as regras da cartografia eram diferentes) como inferiores aos mapas
europeus. (...) Isso permitiu cartógrafos construírem um muro em torno de
sua cidadela do "verdadeiro" mapa. Seus bastiões centrais eram medição e
padronização, e ao redor havia a terra da ‘não cartografia’, onde se escondia
um exército de imprecisas, herética, subjetiva, valorativa imagens
ideologicamente distorcidas (HARLEY, 1989, p. 4, tradução nossa)25.
25
The methods of cartography have delivered a true, probable progressive, or highly confirmed
knowledge This mimetic bondage has led to a tendency not only to look down on the maps of the past but
also to regard the maps of other non-western or early cultures (where the rules of mapmaking were
different) as inferior to European maps. (...) that enabled cartographers to build a wall around their citadel
of the 'true' map. Its central bastions were measurement and standardization and beyond there was a `not
cartography' land where lurked an army of inaccurate, heretical, subjective, evaluative and ideologically
distorted images.
48
Não queremos, com isso, repetir o erro que criticamos na cartografia científica e
traçar uma ruptura. Mesmo a cartografia tradicional não é uniforme, estática ou
irrefletida. É preciso ter em vista que a construção de algo novo é feita pela
reconstrução, e não negação do passado (BLACK, 1997). Assim, essas visões sobre a
relação entre cartografia e arte como algo distante ou próximo convivem ao longo do
tempo. Até mesmo a proposta da cartografia crítica de entendimento do mapa, que
reconhece a importância da influência artística, não pode ser afirmada como unânime
ainda hoje. São muitos os argumentos que ressaltam a distinção entre arte e cartografia,
por exemplo, Fairbairn (2009) afirma que são campos excludentes. Em sua
argumentação esse autor ressalta que “Arte, ao contrário da cartografia não é orientada
por dados: esta é base do contraste entre elas” (FAIRBAIRN, 2009, p. 26, tradução
nossa)27.
Não discordamos do autor sobre essa diferença baseada na utilização de dados
em sua representação, porém, recai no mesmo equívoco mencionado em outro
momento: de considerar apenas aspectos técnicos da confecção dos mapas. É necessário
pensar na forma como os dados são representados e utilizados para verificar as possíveis
semelhanças e contribuições entre arte e cartografia. No mais, não é o intuito da
perspectiva crítica tratar arte e cartografia como atividades iguais e substituíveis, mas
relativizar a extrema diferença resultante da cartografia moderna. Acredita-se, assim,
que o momento de estruturação e ênfase na definição unicamente científica de mapa já
findou, e propõem-se entendê-los por sua função social.
Grande parte das semelhanças entre arte e cartografia apontadas por diversos
autores concentram-se no produto gerado: uma representação de mundo, uma exposição
26
In 1988, a session devoted to 'cartography between art and science' was held at the 13th international
conference for history of cartography. There, Brian Harley challenged the 'sacred dichotomy' between art
and science in the history of cartography and turned to Derridean theory of texts and Foucauldian
concepts of discourse to treat all maps as cultural objects and mapping as a social and cultural activity,
placing cartography outside the disabling classification of art and science. (...) The art/science debate was
thus intimately bound to the more general critical turn within the history of cartography.
27
Art, unlike cartography is not data-driven: here is the basis of the contrast between them.
49
28
A landscape painting was much a document as a map was an artistic object. Impressionism brought less
analytic details and more feelings to painting. On the contrary, cartography naturally followed path
leading to its more technical and scientific aspects. The difference between painting and 'snapshot'
photography is the same as the difference between map and aerial 'photomap'. Painting and map are all
about interpretation, capture of the 'unseen'.
29
Science's nexus of instrumentation, mechanization and objective-representations strategies (such as
quantification or photography) does not escape aesthetic appeal. Rather, science deploys the aesthetics of
plain style within a broader persuasive strategy.
50
30
The effective use of line, color, and symbol can transform maps that might otherwise be dull,
mechanical records into dynamic complexes charges with meaning.
51
Com esse exemplo, expomos que os mapas antigos, imersos em suas inspirações
artísticas, são também importantes fontes de informação geográfica. Tal quais as
pinturas de paisagem, os mapas marcam os estágios das concepções sobre o ambiente.
Entretanto, esse reconhecimento foi travado pelos entendimentos modernos, para quem
52
O que concluímos até aqui é que a relação entre arte e cartografia tem raízes
históricas, apesar de ter passado por um período de hiato, devido instituição da
cartografia enquanto ciência. E o que nos falta, é discorrer sobre a retomada mais
recente dessa relação, aonde artistas contemporâneos vem utilizando elementos
cartográficos em suas obras. Claramente, é nesse segundo conjunto que encontramos as
bases para analisar o Mapa invertido da América do Sul.
53
Nesse sentido, nos enriquece reproduzir a pergunta feita por Novaes (2014, p, 3,
tradução nossa)31: “Como nós podemos estudar a relação entre arte e mapas no período
após a ciência ter “clamado” a cartografia?” Tendo em vista o que já foi apresentado,
essa pergunta se torna um desafio metodológico na medida em que as diretrizes da
cartografia tradicional, hegemônica por grande parte desse período, não dão conta da
análise de tal relação por colocar em oposição mapas científicos e outras formas de
mapa. Era preciso, portanto, uma visão renovada, que trilhasse novos caminhos a partir
da percepção e da crítica sobre a limitação da cartografia tradicional.
As propostas da cartografia crítica passam, então, a contribuir nesse sentido,
pois induzem a pensar o mapa sem a ideia de progresso científico, por conseguinte, nega
as dicotomias e reconhece como as práticas cartográficas são importantes para o campo
artístico, bem como as qualidades da arte também foram benéficas para os mapas em si
(NOVAES, 2014). Desde logo, é importante assinalar que os mapas artísticos ou a visão
crítica não pretendem extinguir os mapas científicos ou institucionais, não há intenção
de criticar uma dicotomia para colocar outra no lugar. Esses mapas foram bastante
importantes para a construção de uma estética específica da cartografia, e apresentam
uma insubstituível utilidade prática para a sociedade, entretanto não podem ser tratados
como única ou correta forma de compreender ou representar o mundo e as experiências
espaciais.
Logo, ao reconhecer a utilidade dos mapas artísticos, reconhecem-se também as
diversas visões de mundo, expressas de formas diferentes. Em uma definição simplista,
podemos dizer que os mapas artísticos são obras que se apropriam, quitemente e
expressivamente, de elementos cartográficos. São vários os exemplos desse tipo de
mapa, e não pretendemos dar conta de todos eles, mas é interessante notar como esse
número cresce gradativamente. Isso chama a atenção de pesquisadores e outros setores
da sociedade a fazer a pergunta reproduzida por Wood (2006): Sobre o que é isso tudo?
Primeiramente, muitos autores convergem na afirmação que os mapas artísticos
enquanto um gênero é algo bastante recente, concentrando-se nas últimas três décadas
(WOOD, 2006; COSGROVE, 2005; D’IGNAZIO, 2009). O que não exclui os
exemplos anteriores a esse período, estes apenas eram mais intervalados. Na explicação
dessa observação, também encontramos uma concordância em destacar a grande
proliferação e ubiquidade dos mapas na sociedade atual que passa a suscitar os
31
How can we study the relationship between art and maps in the period after science had “claimed”
cartography?
54
32
We draw them (maps) in the air and we trace them in the snow, we eat over them on placemats and we
stare at tem on billboard. We have sewn them on silk and printed them on T-shirts, sawn them into jigsaw
puzzles, and mosaicked them into murals. Most are gone now, lost in the making or evaporated with the
words that brought them into to being. (...) Where have all the Road maps gone, and the worlds they
described and the kids we knew, Route 66, and the canyon beneath Lake Powell, and the old Colorado
pouring real water into the Gulf of Mexico? And when we talk of the ‘old maps of Europe’-which too has
disappeared – we are speaking of certainties we grew up with, not a piece of paper. And yet, and yet...it
is hard, in the end, to separate those certainties from the pieces of paper that not only figured that world,
but brought it into being.
55
33
The ubiquity of the map as a means of locating one's place in relationship to the rest of the world
created a unique opportunity for artists to exploit cartography language, symbols, and strategies. Political
boundaries became iconic shapes, legible visual markers of identity and belonging that were ripe for
artistic distortion, subversion, and reimagination.
56
Com efeito, podemos dizer que já os primeiros mapas artísticos emergem como
“fábricas espaciais” e o seus entendimentos contribuem na compreensão dos propósitos
e fundamentações desse tipo de mapa. Focados nessa relação entre arte e cartografia no
contexto pós-institucionalização científica, muitos autores tendem a apontar seu início
no Modernismo, mais especificamente em seu movimento de vanguarda Dadaísta.
Nesse contexto do início do século XX, enquanto a cartografia estava centrada na
metodologia científica e padronização de suas imagens, a arte era movida por uma série
de movimentos vanguardistas cuja intenção era criticar e subverter as ideias e práticas
pré-estabelecidas na arte representacional (COSGROVE, 2005).
Justamente uma das características do Modernismo é a utilização de “coisas
feitas” em sua arte, ou seja, seleção de objetos cotidianos apropriados e modificados
pelos artistas. Tem-se, assim, uma direta relação com a discussão que fizemos sobre a
ubiquidade do mapa: além de artistas serem sensibilizados pelos elementos do dia-a-dia,
esse princípio modernista os apropriam em sua arte de forma mais direta, realocando
seus elementos em novos contextos artísticos e expressivos.
É o que acontece no movimento dadaísta, cujas obras são compostas por
fotomontagens ou recortes colagens que reagrupam e resignificam elementos cotidianos
em um novo conjunto expressivo. Persistem, ainda, algumas dúvidas sobre qual seria a
obra Dadaísta com colagem de mapa mais antiga, devido imprecisão do ano exato da
obra. Dentre essas, Wood (2010) destaca três possibilidades, todas da década de 1920:
34
(...) map art can be considered as ‘spatial fabrics’, which can shape specific forms to act and perform
on these places. When highlighting the relationship between language and performance map artists have
been discussing issues that are very frequently studied in critical geopolitics, considering that the way
describe and Picture the world can shape how we act on it.
57
Cut with Cake-Knife, de Hannah Hoch; A Bourgeois Precision Brain Incites World`s
Movement, de Raoul Hausmann; ou Tatlin at Home, desse mesmo artista. Mas essa
determinação não é mais importante do que reconhecer o papel desses mapas ao
figurarem como colagem dessas obras dadaístas: desconstruir e desordenar os elementos
da vida cotidiana e social, uma contra visão de tudo que circulou na grande mídia para
promover ou sustentar a guerra que vivenciaram.
Esse pode ser um dos estímulos Dadaísta de selecionar o mapa para suas
colagens, pois serviam para representar a posse e fomentar discursos expansionistas.
Até os valores artísticos entraram em questionamento com o movimento Dada, pois
relativizavam a ideia do processo de inspiração e ritual romântico de produção com uma
metodologia mecânica de colagem. Para eles, não havia lógica em mostrar beleza e
sutileza das artes diante dos quadros desumanos da guerra. Assim, “colar pedaços de
mundo em suas telas, era um beijo de adeus ao representacionalismo em um grande
estilo” (WOOD, 2010, p. 196, tradução nossa)35.
Para além do Dadaísmo, o Modernismo continuou a apropriar os elementos
cartográficos em outros momentos, ampliando as novas relações entre cartografia e arte.
De fato, artistas modernistas desenvolveram amplo interesse pelo gradeado enquanto
um elemento pictórico (COSGROVE, 2005), bem como outros elementos cartográficos
associavam-se ao princípio desse movimento de confrontar as formas previamente
convencionadas de arte e representação. Para artistas modernistas, a arte não deveria
mais se limitar ao prazer e conforto estético, ela devia também incorporar com clareza o
papel social e político do artista, e nesse propósito a utilização de mapas fornece um útil
aporte.
(...) objetivos, ciências e até mesmo aspectos diários banais do mapa se
tornaram vantagens positivas em apoiar o objetivo de divorciar a arte do
prazer visual. Como, em geral, no Modernismo a conexão entre arte e
cartografia envolve uma rejeição consciente das estéticas tradicionais
(COSGROVE, 2005, p. 41, tradução nossa)36.
Desde este tímido início de artistas que utilizam elementos cartográficos não é
apontado nenhuma interrupção, o que encontramos são diferentes propostas, e diferentes
apropriações com o passar do tempo e de cada movimento artístico. No artigo de
35
(...) pasting pieces of the world onto the canvas is kissing representationalism goodbye in a very big
way.
36
(...) objective, scientific and even banal everyday aspects of the map became positive advantages in
supporting the goal of divorcing art from visual pleasure. As generally in Modernism, the connection
between art and cartography involves a conscious rejection of traditional aesthetics.
58
37
In doing map artists are erasing the line cartographers have tried to draw between their form of graphic
communication (maps) and the others (drawings, paintings, and soon). In this way map artists are
reclaiming the map as a discourse function for people in general. The flourishing of map art signals the
imminent demise of the map as a privileged form of communication.
61
Uma vez mascarado, o mapa pode afirmar sua autoridade que direcionam o
modo como olhamos e utilizamos os mapas. Com tal máscara, o mapa visa atingir a
imparcialidade e neutralidade, passando “a ser aceito não como um discurso sobre o
mundo (que é aberto para discussão ou debate), mas como o mundo em si (sobre o qual
não podemos fazer nada, só podemos aceitar), em outras palavras, como um mito”
(WOOD, 2007, p. 6, tradução nossa, grifo no original)39. Seguindo essa lógica, os
mapas artísticos seriam os que evidenciam e retiram as máscaras do mapa. Assim,
O que está em questão é a natureza do mundo em que queremos viver. Ao
apontar para a existência de outros mundos – reais ou imaginados- artistas de
mapa estão reivindicando o poder do mapa de alcançar outros fins além da
reprodução social de um status quo. Mapas artísticos não rejeitam os mapas.
Eles rejeitam a autoridade clamada pelos mapas normativos exclusivamente
para tratar a realidade como ela é, ou seja, com imparcialidade e objetividade,
os traços consagrados da máscara (WOOD, 2006, p. 10, traduzido pela
autora, grifo no original)40.
38
Maps pass as descriptions of the territory most readily when they appear to be describing an objective
state of affairs, to be reporting on an existing reality; and they appear to be doing this when they wear
masks of impersonal authority.
39
(...) on being accepted not as a discourse about the world (which would be open to discussion, or a
fight) but as the world itself (about which we could do nothing, which could only accept), this is to say,
as myth.
40
What is at stake is the nature of the world we want to live in. In pointing towards the existence of other
worlds – real or imagined –map artists are claiming the power of the map to achieve ends other than the
social reproduction of the status quo. Map artists do not reject maps. They reject the authority claimed by
normative maps uniquely to portray reality as it is, that is, which dispassion and objectivity, the traits
embodied in the mask.
62
Pela resumida história que narramos sobre os mapas artísticos, torna-se patente o
pioneirismo do Mapa invertido da América do Sul. Enquanto as primeiras obras
utilizavam recorte-colagem, na década de 1920, na Europa; Torres-Garcia já fazia seu
desenho, em 1943, na América do Sul. Na verdade, podemos dizer que foi até antes
disso, da década de 1930, visto que existem duas versões dessa mesma obra, sendo a
primeira de 1936. Acontece que poucos conhecem sobre essa duplicidade da obra que
levam o mesmo título, claramente porque a segunda versão foi muito mais reproduzida
em vários meios, difundida por outros tempos e tornou-se mais famosa do que a
primeira.
A obra de 1936 apresenta a mesma ideia geral da de 1943, porém o primeiro
desenho foi mais detalhista e preenchido, incorporando mais elementos cartográficos,
como o gradeado de coordenadas, as linhas dos trópicos, o nome dos oceanos que
limitam a América do Sul, até a direção da rotação da Terra apareceu. Já a obra de 1943
63
aparece mais “limpa”, com menos elementos cartográficos e mais elementos simbólicos,
como o peixe e o barco. O motivo dessa diferença se encontra nas características
artísticas de Torres-García e nas situações a que cada obra serviu, e que discorreremos
na presente divisão do capítulo.
Para além das diferenças, também são notáveis as semelhanças que mantém a
característica principal da obra: inverter o mapa da América do Sul e propor uma visão
de mundo onde o Sul não seja mais dependente ou “inferiorizado”. Essa proposição tem
ampla relação com o conjunto de ideias e de conhecimentos que Torres-García, autor da
obra, vivenciava e percebia. No entendimento desses fatores, pretendemos também
elucidar em quais características definidas por Cosgrove (2005) e por D’Ignazio (2009),
e contida nas tabelas anteriormente apresentadas, o Mapa invertido da América do Sul
se encaixa.
Já inicialmente, na definição guiada por períodos de tempo de Cosgrove (2005),
é fácil deduzir pelo ano da obra, que esta pertence ao período Modernista. Vale ir além
do dado temporal para notar que as características da obra também dialogam com o
64
É importante nesse ponto, não confundir identidade da América Latina, com sua
realidade, como muitas vezes é tomada. Na noção de realidade estariam expressos
fatores históricos e sociogeográficos que supostamente são capazes de criar uma
realidade circum-ambiente (MORSE, 2011), o que consideramos bastante problemático
de se afirmar e averiguar. Já na noção de identidade estaria expresso, de forma
65
resumida, um vínculo criado por consciência coletiva, algo autorreconhecido, o que por
sua vez, incorpora interesses dominantes, políticos e ideológicos.
Por tal razão, as artes não possuem pretensão de expressar uma realidade, mas sim
de participar de uma identidade e, por conseguinte, são também influenciadas pelos
posicionamentos político-ideológico e suas críticas. Inclusive, por vezes o conceito de
cultura e identidade foi associado ao “bom gosto” das elites, que seriam letradas e
eruditas suficientes para admirar essa qualidade estética das artes. Nesse sentido,
julgamos proveitoso ressaltar alguns das características sociais da América Latina, onde
foram gestados o Modernismo e, logo, o Mapa invertido da América do Sul.
O princípio modernista de romper padrões artísticos e convenções sociais foram
inspirados pela crescente tecnificação e alienação na Europa, guiadas pelas teorias
marxistas, pelas atitudes de “modernização”, pela industrialização e pela Primeira
Guerra Mundial, fatores que surpreendiam e inquietavam os artistas. A sensação era de
constantes mudanças onde nada ganhava concretude, em um aparente colapso
confirmado pelas imagens da guerra. Por isso, os artistas modernistas promoviam esse
“ataque cognitivo às contradições da modernidade” (MORSE, 2011, p. 27).
Nesse sentido, o Modernismo europeu influenciou sim os artistas latinos, mas não
com o papel de espelho ou de tutor que vigorava até então. A Europa estava decadente e
com o centro das artes desencantado, abrindo precedentes para a pela reabilitação da
periferia. Os artistas latinos foram estimulados a desdenhar desses pressupostos
evolutivos de seu passado e a inventar uma nova identidade e um novo futuro para seus
países, uma vez que a Europa não era mais um modelo a se seguir (MARTIN, 2011).
A ruptura com o passado, embora poucas vezes expressadas tão brutalmente
quanto no futurismo ou no dadaísmo, era, em geral, de alguma maneira,
afirmada; às vezes, na forma de um elogio mais ou menos direto à
modernidade, mas o mais frequente era ver a tradição sendo reavaliada e
rejeitados o período colonial e a cultura europeizada do século XIX, em troca
de uma tradição cultural indígena de mais fortes raízes (ADES, 1997, p. 126).
Nessa nova identidade não cabia apenas ressaltar a natureza ímpar do continente
americano, mas ainda valiam os princípios modernistas de questionamento do status
quo conservador e da harmonia estética das artes, e por tal razão, assim fizeram os
artistas latinos, inclusive Torres-García. Ele, Diego Rivera, Tarsila do Amaral, e tantos
outros importantes nomes do Modernismo na América Latina, tiveram contato com esse
movimento ainda na Europa, e eles próprios contribuíram para o desenvolvimento de
correntes peculiares dentro do Modernismo, como é o caso de Torres-García e seu
construtivismo.
66
Sendo assim, existe uma identidade ambígua, onde a Europa ainda é um centro de
aprendizagem, mas ao mesmo tempo algo que se deve combater a influência direta. Não
é nosso intuito adentrar nessa discussão, mas ressaltamos que essa ambiguidade não
invalida as contribuições desses artistas, pois também é frequente em vários setores das
sociedades colonizadas, onde convivem tanto o combate como o aceite das culturas
importadas. Por exemplo, foi o caso das elites crioulas, que usavam o termo “bárbaro”,
não para referir-se aos estrangeiros, mas a grupos de seus próprios países que eram
notoriamente “nativos” (MORSE, 2011).
Torres-García era fruto dessa ambiguidade, tendo nascido no Uruguai e mudado,
ainda jovem, para Barcelona. Já adulto, também morou em Paris e em Nova Iorque,
antes de regressar para Montevidéu em 1934, declarando o objetivo de desenvolver uma
série de atividades, desde aulas, palestras de arte até a criação de um movimento, em
Montevidéu, que acreditava poder igualar a arte de Paris (TORRES, 1992), de novo
vista, simultaneamente, como fonte repressora e de inspiração. Por isso, esses objetivos
encontram dificuldades pelo que o próprio artista descreveu como um gosto
predominante nas artes uruguaias de copiar cânones estéticos do fin-de-siècle
importados da Europa (TORRES, 1992).
Assim, uma de suas primeiras atitudes já em Montevidéu é escrever seu manifesto
Estructura (1936), cuja intenção era expor o processo histórico da arte através de suas
experiências, com grandes doses de opiniões pessoais. Também era sua intenção exaltar
a cultura e os motivos do Uruguai e da América do Sul, combatendo o comportamento
que ele chamou de “exilados da Europa”. Uma consciência que não era só de Torres-
García, como também de outros artistas e estudiosos, perplexos com as principais
capitais latinas que não se apresentavam como sedes de sua sociedade.
Ao contrário, eram enclaves europeus, a conspirar traiçoeiramente ou a
colaborar submissamente na exploração de matérias-primas naturais, ou
como Lima, Rio de Janeiro e Buenos Aires, com as costas voltadas para o
interior e mirando sonhadoramente o oceano, que reconduzia à Europa.
Decerto, alguns escritores sempre alegaram que o cosmopolismo é uma
aproximação inevitável, e ainda por cima desejável, do mundo, um desejo de
inserir a América Latina na ordem universal das coisas, de fazê-la tomar seu
lugar entre as culturas, reconhecendo e sendo reconhecida. Eis uma discussão
cujo fim está longe (MARTIN, 2011, p. 356).
instigante inversão da imagem mais usual e padronizada. Por causa do conteúdo desse
manifesto, e do cenário que o inspirou, não é suficiente afirmar que a inversão do mapa
é apenas um questionamento da autoridade do mapa científico. Existem,
concomitantemente, o próprio entusiasmo em valorizar a América do Sul, a crítica ao
domínio europeu nas ciências e nas artes, e a proposição de um novo olhar e consciência
para essa região. Todas são informações simbolicamente expressas na colocação do Sul
na porção “superior” do mapa.
Com esse manifesto e sua capa, Torres-García intencionava chamar atenção de
novos artistas uruguaios para conformação de um movimento que fosse procedente da
América do Sul e carregasse essa marca, centrando em temas e problemas que não se
religam à Europa. Ele visionava uma nova arte para a América, que envolvesse desde
arquitetura até o artesanato. Sem pretender ser um movimento isolacionista ou
preciosista que não aceita qualquer influência externa, admitia-se os princípios básicos
de outras origens, como no caso do construtivismo, mas que servissem como
ensinamentos e não cópias.
Após algumas ações artísticas que não tiveram muito sucesso, com severas
críticas destinadas à Torres-García, vindas da imprensa ou dos órgãos de governo, ele
teve reconhecido sucesso entre jovens uruguaios interessados em arte, que passaram a
procurá-lo em busca de maiores conhecimentos e amadurecimento da ideia de uma arte
expressivamente nacional. Levando a fundação da Escola do Sul: El Taller Torres-
García (TTG), em 1943, onde Torres-García passou a trabalhar, ensinar e escrever seus
manifestos (FLÓ, 1992). Com esse centro artístico de ensino, o reconhecimento e
popularidade de Torres-García tiveram aumento no Uruguai, trazendo a oportunidade,
para ele e seus aprendizes, de interferirem em espaços da cidade, como murais e/ou
esculturas em prédios públicos e praças do país.
É para inaugurar as atividades da TTG que Torres-García elabora a segunda
versão do Mapa invertido da América do Sul, de 1943. Este desenho hoje vem a ser
uma de suas obras mais famosas na cultura geral, que foi reproduzida em diversos
meios, em diferentes tempos, para servir a contextos diversos, com a mesma ideia de
inversão da América do Sul. É possível que esses reprodutores não sejam cientes do
contexto de criação da obra, ainda assim, são atraídos pela expressiva mensagem
simbolizada em tão simples desenho.
A propósito, esse é um ponto de indagação de muitas pessoas quando conhecem
esse mapa artístico: Mas um desenho tão infantil é uma obra de arte? Na verdade, essa
68
41
By inserting a symbol representing humanistic values into the antithetical rational structure of
neoplasticism, Torres-García succeeded in creating a style that constituted a major contribution to modern
art. He called it constructive universalism. Torres created constructive universalism by synthesizing the
leading art movements of the period. From cubism, he took the geometric principle and the concept of
concrete form; from neoplasticism, the purified structure; and from surrealism, references to the
subconscious.
42
He abstracted symbols into basic line drawings, believing that such simplified forms would be primal
and thus universally understood, and then he built them into his grids, creating a system of formally
structured symbolic relationships.
69
43
Publicado em 1935, como Lição 30 do seu “Universalimo construtivo: contribuição para unificação das
artes e da cultura da América”.
70
das linguagens cartográficas para questionar aparatos das relações hegemônicas, bem
como para propor uma mudança no mundo, tal qual sugere essa classificação. Então:
Talvez este é o porquê Torres-García, assim como todas as vanguardas, lutou
com uma posição social marginal conduzindo a criar uma imagem que
continua a ressoar hoje. Sua abordagem à arte, e ao mapeamento, lembra-nos
que a nossa relação com lugar e espaço, é uma construção intelectual. Numa
época em que Geografia era o destino, Torres-García abraçou prerrogativa
utópica do artista vanguarda para reconstruir essa relação através da
manipulação da ordem simbólica que temos aceitado como dado. Inverter o
mapa, tem o potencial para reordenar as hierarquias de política, comércio e
intercâmbio cultural que estruturam nosso mundo- se aceitarmos essa nova
ordem utópica (JOLLY, 2011, p. 201, tradução nossa) 44.
Sendo assim, se uma nova ordem é pensada, é porque existe outra já estabelecida
que precisa ser relativizada. A concepção de orientação do mundo ao Norte, destinando
a parte inferior do mapa para o Sul, foi difundida e absorvida pelo excessivo uso da
projeção Mercator. Destarte, se admitimos, assim como Wood (2006), que os mapas
artísticos retiram a máscara das normas cartográficas tradicionais, o Mapa invertido da
América do Sul propõe um questionamento direto ao uso político da projeção
padronizada por Mercator. Não podemos nos esquivar da discussão pertinente ao
sucesso e padronização dessa projeção. Torna-se enriquecedor compreender os
interesses e as consequências geopolíticas de seu uso como uma visão correta de
mundo, para assim, termos claros os fatores que motivaram a composição desse
questionamento através da arte.
44
Perhaps this is why Torres-García, who like all avant-gardes struggled with a marginal social position
managed to create an image that continues to resonate today. His approach to art, and to map making,
reminds us that our relationship to place and space, is an intellectual construction. In an era when
Geography was destiny, Torres-García embraced the avant-garde artist's utopian prerogative to
reconstruct this relationship by manipulating the symbolic order that we have come to accept as given.
Inverting the map, has the potential to reorder the hierarchies of politics, trade, and cultural exchange that
structure our world- if we accept this utopian new order.
72
É com essa perspectiva que Harley (1989) propõe uma distinção entre poder
externo e poder interno dos mapas. No primeiro, o poder é exercido sobre ou com a
45
Foucault sought to use the notions, symbols and language of cartography, specifically of space,
boundaries and networks, in order to understand and make dynamic his views on the politics of
knowledge. For Foucault, knowledge as struggle was to be understood in large part by reference to space:
there were boundaries and spheres of contest; ideologies colonized terrains.
73
Os mapas, tal quais outras formas imagéticas, possuem uma expressividade que os
torna um importante meio de divulgar e difundir discursos. Mas existem algumas
particularidades notáveis, principalmente em dois sentidos. Primeiro, eles formam um
discurso especificamente sobre os espaços, sendo atuantes na configuração de uma
ordem social espacial (WOOD, 2010). Isso porque, os mapas conectam entidades,
eventos, localidades e fenômenos díspares e heterogêneos que nos permitem ver
conexões que não são visíveis de outra forma. Partindo dessa afirmativa, Black (1997)
aponta que os mapas modernos configuram uma forma de conhecimento padronizada
que estabelece um conjunto de possibilidades de conhecer, ver e de agir. No mesmo
sentido, Harley (2009) conclui que os mapas invadem a vida cotidiana e criam uma
espécie de “ditadura do espaço” ao condicionar nossas relações espaciais.
Em segundo, desde sua fase científica, mapas se apresentam como um discurso
neutro dessa realidade espacial, estimulando que suas mensagens sejam vistas com uma
credibilidade diferenciada das demais imagens. Ao se apresentarem como imparciais e
independentes de qualquer discurso ideológico ou de classes, os mapas tendem a
mostrar um espaço social vazio. A neutralidade é garantida pelo o que Wood (2010)
chamou de uso da máscara, que oculta tanto o processo criativo do mapeamento, como
também o modo pelo qual os mapas dão voz à autoridade de poderosos
(KLINGHOFFER, 2006). Em outras palavras,
Por trás do criador de mapas se esconde um conjunto de relações de poder,
que cria suas próprias especificações. Sejam impostas por um particular, pela
burocracia do Estado, ou pelo mercado, estas regras podem, às vezes, ser
reconstruídas a partir de um conteúdo dos mapas e do modo de representação
gráfica. Adaptando as projeções individuais, manipulando as escalas,
46
the way maps are compiled and the categories of information selected; the way they are generalized, a
set of rules for the abstraction of the landscape; the way the elements in the landscape are formed into
hierarchies; and the way various rhetorical styles that also reproduce power are employed to represent the
landscape
74
Tabela 3 – Três caminhos teóricos das relações de poder dos mapas. (início)
O que propõe Como contribui
Induz a um maior leque de questionamentos
direcionados ao mapa, como: códigos,
Linguagem Baseia-se em uma análise contextos, nível de familiarização dos
semiótica. usuários, natureza da informação, autoria,
entre outros. A perspectiva da crítica
literária auxilia a identificar uma forma
particular de discurso cartográfico.
75
Tabela 3 – Três caminhos teóricos das relações de poder dos mapas. (continuação)
Nível mais profundo de Mapas carregam imagens associáveis à
Iconologia significação, associado à aspectos do espaço cotidiano, formulando
dimensão simbólica e às uma dimensão simbólica onde o poder do
formulações Panofsky. mapa é reproduzido e percebido.
Sociologia Cartografia entendida Auxiliam a considerar a influência política
do como uma forma de dos mapas na sociedade. Eles são meios de
Conhecimento conhecimento e uma autoridade por fazerem parte do estoque de
forma de poder informação e saber controlados pelo Estado
e suas políticas.
Fonte: O autor, 2015, baseado em Harley, 2009.
Por tais caminhos, a leitura do poder das representações cartográficas passou a ser
hábil para diversos autores. Eles colocam em debate o domínio que certos setores
influentes das sociedades tiveram, historicamente, sobre os mapas, dentre os quais: a
Igreja, os imperadores, o Estado e o exército (BLACK, 1997; HARLEY, 2009).
Complementarmente, também destacam as influências políticas por detrás das
convenções cartográficas mais usuais, como: a definição do Meridiano de Greenwich,
as projeções e as orientações (COSGROVE, 2001; KLINGHOFFER, 2006). Dentre
todas essas possibilidades, nosso foco recai sobre a padronização das orientações de
mapa que guiaram uma configuração conhecida de mundo.
Tal foco desperta a seguinte indagação: o que efetivamente ocultam as
influências políticas dos mapas científicos? Cuja resposta, encontramos no processo de
naturalização das representações cartográficas, ou seja, no modo como os mapas são
reproduzidos e utilizados como uma construção neutra, favorecendo a sua aceitação
como natural ou reflexo da existência. É comum encontrar a utilização da perspectiva da
semiologia e da ideia de mito na explicação dessa naturalização. Apesar dessas
discussões não serem nosso objetivo, discorreremos brevemente sobre algumas de suas
noções que já foram adequadas, por outros autores, à cartografia.
A configuração de um mito ocorre, segundo Wood (2010), quando um sistema
de significantes passa a ser entendido como um sistema de fatos. Para tanto,
significantes e significados são articulados em uma relação natural, onde um torna-se
substituto do outro. De fato, o mito é um conjunto de signos estruturando um discurso,
76
mas que oculta essa característica discursiva e passa a ser interpretado de forma
naturalizada. Assim,
O mito opera transformando um sentido pleno numa forma vazia, o sentido
está contido na forma, porém empobrecido, sem seu valor original, pois a
função do conceito mítico não é eliminar o sentido, mas sim deformá-lo,
aliená-lo. O vazio da forma permitirá a locação de um conceito, com novo
contexto, com nova história. O mito, assim, é uma fala (mensagem) roubada
e restituída. Essa mensagem é definida pela sua intenção muito mais do que
pela sua literalidade (GIRARDI, 2000, p.47).
47
(...) it retains always the fullness, the presence, of the primary semiological system to which it endlessly
capable of retreating. What viewed obliquely appears as an advertising slogan, confronted directly is the
blandest of legends, so that the slogan, still ringing in one’s ears, is apprehended as no more than the
natural echo of the facts of the map
77
48
(...) Chinese cartography was predominantly oriented southward. two Hunan maps from the early
second century B.C., exemplify this custom, perhaps developed because the apogee of the sun at the
summer solstice was visible in the southern part of the sky. South was also the royal direction, and
Chinese compasses pointed toward magnetic south. Emperors sat with their backs to the north, and their
palaces faced south from their location north of the capital's east-west axis. Islamic map making, which
was influenced by the Chinese, also featured a southern orientation. This is evident in the twelfth-century
works of al-Idrisi.
78
49
The prominence of the four cardinal directions on the mappaemundi, together with appropriate
symbolic wind heads, thus undoubtedly has a far deeper significance than simply showing the reader
which way the map is to be read. The maps are found oriented in all four directions, but east, north, and
south are the most common, in that order. An eastern orientation is usually, but by no means exclusively,
found on the tripartite mappaemundi, and it follows the late Roman Sallustian tradition adopted by the
Christian world. The northern orientation is found on the other large group of mappaemundi that can be
traced back to earlier classical Greek sources and whose geometry was centered on the earth's axis and
the climate. The southern orientation is probably derived from Arabic influence,since world maps of the
Arabic culture were characteristically oriented to the south.
79
Tal citação não faz referência específica aos mapas, mas nos pareceu
amplamente associável por remeter às diferenças de posição entre os mapas científicos e
o Mapa invertido da América do Sul. A orientação ao norte é acompanhada da posição
central dos países da Europa, permitindo ser mais visada do que outras áreas do globo
que se posicionam em relação a esta primeira. Já a orientação ao sul do mapa artístico
de Torres-García expressa outros interesses e outras percepções que não são englobadas
representadas no mapa-múndi padronizado.
A configuração desse padrão de imagem mundo teve inegável participação do
mapa Mercator, até porque, a configuração de uma projeção passa também pela escolha
de uma orientação. O fato é que desde Mercator o mundo passou a ser cognoscível pela
orientação norte, pela centralidade da Europa, pelo pré-definido posicionamento de
países e pela segmentação do Oceano Pacífico. O que não é explicado por simples
80
Assim, tal quais outros mapas, Mercator também foi influenciado pelas
demandas de seu tempo. O primeiro grande destaque dessa projeção está em ser um dos
primeiros mapas europeus que sobrepõe visões cristãs, colocando a Europa no centro do
mapa ao invés das terras sagradas (BLACK, 1997). O segundo destaque, amplamente
conhecido, é que esta projeção tinha por objetivo auxiliar as grandes navegações, e para
isso, desenvolveu uma projeção conforme, cujos cálculos facilitavam o uso de bússola e
compasso através de linhas paralelas e meridianas que cruzam o globo com o mesmo
ângulo.
Entretanto, como toda a projeção, o resultado desta é uma distorção. No caso,
favorável as maiores latitudes, expandido o tamanho das terras distantes do Equador: na
50
A number of different projections have been produced over the centuries, to serve different purposes.
The most influential, and the only ones to be adopted by developed, i.e. Europeanized, societies around
the world, have been European. The world was first circumnavigated in the sixteenth century, and by
Europeans. It is not surprising that many maps they then produced used a projection that made most sense
in terms of the employment of the compass, and of maritime directions and links, especially in the mid-
latitudes. Europeans needed to be able to sail great distances if they were to fulfil the commercial logic of
distant possessions and trading opportunities.
81
latitude 60º, a distância representada aumenta duas vezes, na 80º, seis vezes. Através do
mapa Mercator, fica difícil convencer, por exemplo, que a Groelândia, na verdade, é
menor do que a América do Sul. Com isso, além da Europa centralizada, ela também
ocupa uma área relativa muito maior, o que abre precedente para considerar a projeção
Mercator uma construção eurocêntrica. Não no sentido caricato, mas simplesmente
porque o contexto de elaboração de tal projeção pretendia valorizar a influência
comercial dos europeus (KLINGHOFFER, 2006), bem como a produção cartográfica
europeia do período era protuberante, justificando seu destaque no mapa (HARLEY,
2009).
Portanto, desviamos da relação direta de apontar Mercator como um colonizador
ou cartógrafo conscientemente eurocêntrico. E concordamos com Seeman (2003) em
afirmar que:
Ao elaborar esta projeção, Mercator não pensava (nem sabia) nos impactos
socioculturais e políticos da sua projeção. Visando apenas a oferecer um
auxílio aos navegadores, Mercator erra para que os marinheiros possam
acertar. O que era uma ajuda de navegação para os capitães do Renascimento
tornou-se uma representação ideologizada do mundo (Op. Cit. , p. 13).
51
The legacy of Mercator’s projections is somewhat different. Students throughout the world learned
their geography from his maps and emerged with a Eurocentric bias. This was demonstrated in a recent
survey of 438 geography students at 22 sites, only 3 of which are in Europe. One of these was in Istanbul,
which is mostly in Europe but part of a predominantly Asian state. Students were asked to draw from
82
memory a map depicting the continents. Not surprisingly, the majority at 15 sites made their own
continent larger that it was in reality. More revealing was that students at all 22 sites exaggerated the size
of Europe, and those at 20 sites drew Africa as too small. This latter phenomenon was even evident at 4
of the 5 African sites used for the survey
52
Many european perceptions became standardized in maps because of their continent's domination of
cartography for the past four centuries, but a backlash against 'eurocentrism' toward the end of the
twentieth has made modest inroads into the geographical vocabulary (....) The word 'oriental' has become
'politically incorrect' in reference to people, because it is predicated on defining them in the context of a
European interpretation of direction rather than in terms of a self-definition of place or cultural heritage.
83
53
The primary geographical order of continents and oceans was not finally determined until the twentieth
century - a globalizing intellectual imposition of the European geographical imagination. The extent and
disposition of lands and seas and their mutual enclosure long remained in question. The globe's
geographical naming is necessarily arbitrary and conventional rather than logical or empirical, its
apparent order and stability in atlas or world map deceptive: the nominal globe is a space of contestation
rather than of concord.
84
54
Critical geopolitics ought to demonstrate how popular and élite forms of geopolitical reasoning collude
with one another and then resonate with and through popular culture.
55
(...) the role of knowledge is to create orders so that we can make sense of the multitude of information
about the world around us. Things are grouped into categories and associations that allow us to navigate
our way through the world. These groupings make order out of the chaos of stuff around us. Foucault
88
argues that through history different 'epistemes, or ways of knowing or organising the world, have come
to dominate.
89
constante referência às disparidades entre países do Norte e do Sul que não seguem de
uma contextualização histórica e são usadas como meras explicações de um contexto
global é o que leva Vesentini (2013) a afirmar que se trata de “duas noções
geoeconômicas demasiado genéricas (....), que não fornecem uma ideia precisa de como
o mundo se divide do ponto de vista da geração de riquezas” (Op. Cit., p. 52).
Por outro lado, é inegável que as análises que consideram o contexto histórico
das diferenças entre Norte e Sul trazem importantes contribuições para o entendimento
das políticas e relações de poder do sistema-mundo. É nesse sentido que diversos
autores referenciam a análise de Hobsbawm (SLATER, 2004) ao definir o Sul como
uma zona mundial da revolução, visto que tal região foi palco dos diversos conflitos
armados da Guerra Fria, sendo apoiados pelas duas grandes potências do período. Ou
seja, o 3º mundo constituía uma área de relevância para a disputa por alianças políticas
(ESCOBAR, 2012), herdando desse período, a instabilidade e a intervenção externa em
sua política.
Essa divergência de visões sobre a divisão Norte e Sul nos demonstra que esta
não é totalmente inválida e dispensável, mas também não deve ser tomada como uma
explicação pré-definida findada em si mesma. Um terceiro caminho, associado à
perspectiva crítica da geopolítica, é compreender essas divisões de mundo e seus
discursos considerando as relações de poder que se envolvem.
Em suma, a geopolítica não é um concurso de ideias produzidas por
intelectuais livres flutuantes em que os argumentos verdadeiros e
intelectualmente superiores triunfam sobre os mentirosos, falhos e fracos.
Discurso geopolítico opera dentro de redes de poder e os discursos que
emergem como os vigentes em quaisquer estados refletem a influência dessa
estrutura de poder; na verdade, esses discursos são parte da própria operação
desta estrutura de poder (THUATHAIL, 2006, p. 12, tradução nossa)56.
Desse modo, temos claro que essa noção de Sul global é geograficamente
problemática por ser imprecisa e maleável. Acarreta, portanto, em questões bem
próximas as que Said (2007) destacou sobre a delimitação do Oriente: para ele, tais
divisões do globo não são uma forma de conhecimento inocente, mas antes são a
onipresença de um sentido de divisão do mundo em dois nas produções estéticas,
cultura popular e textos acadêmicos sociológicos, geográficos e históricos.
56
In sum, geopolitics is not a contest of ideas produced by free floating intellectuals in which truthful and
intellectually superior arguments triumph over mendacious, flawed and weak ones. Geopolitical discourse
operates within networks of power and the discourses that emerge as the prevailing ones in any states
reflect the influence of that power structure; indeed, these discourses are part of the very operation of this
power structure.
90
Em outras palavras, ele está sugerindo que o conceito de diferença entre leste
e oeste é uma diferença geopolítica que está escrita por todos os textos da
cultura ocidental, como através das escritas de viagem, textos políticos,
pinturas, ou nas discussões acadêmicas. Para Said, qualquer ou todas as
culturas do norte da África, do leste a sudeste da Ásia e os Mares do Sul
poderiam ser abrangidos pela imaginação geográfica ocidental em um
singular ‘Oriente’ (SHARP, 2009, p. 16, tradução nossa, grifo nosso)57.
Ao mesmo tempo, a divisão Norte e Sul constitui certa veracidade à medida que
passa a ser usada em diferentes discursos sobre as políticas internacionais. De fato, a
representação geopolítica de um Sul global permaneceu por diversos tempos, sendo
associada a características e nomenclaturas diferentes a esses países de acordo com o
período. Para Escobar (2012), o imaginário da divisão Norte e Sul previamente
existente é o que sustentou a durabilidade da noção de 3º mundo, mesmo após o fim do
2º mundo ter desfragmentado a ideia de divisão em três mundos.
Do mesmo modo, tal imaginário fornece sentido a outras teorias que tentam
solucionar ou readequar essa divisão de mundo, tal qual a teoria desenvolvimentista que
propõe uma dicotomia entre mundo desenvolvido e mundo subdesenvolvido; ou ainda a
teoria do sistema-mundo moderno que baseia a categorização entre países centrais e
periféricos.
Destarte, para apreender a lógica da inversão do Sul na obra de Torres-García, é
necessário compreender o que forma esse Sul, quais suas características e condições, e
principalmente, qual anseio por “inverte-las”. As ideias sobre o Sul encontram-se tanto
na prática material, como nos discursos e produções culturais, em uma relação de mútua
influência onde um sustenta a continuidade do outro, e assim ocorre com dois discursos
academicamente pautados que tiveram projeção e durabilidade em descrever e
racionalizar o Sul: o desenvolvimentismo e o sistema-mundo moderno.
Não coincidentemente, essas duas construções teóricas adquirem notoriedade e
magnitude no período pós-2º guerra mundial, quando as relações Norte e Sul passam a
ser o foco das contradições do mundo globalizado. Claramente, tais teorias possuem
inspirações e influências prévias, originadas de experiências de períodos históricos
anteriores. O desenvolvimento é um termo conhecido e usado por longo tempo, desde
seu emprego nas ciências biológicas referindo-se à transformação de um organismo, até
57
In other words, he is suggesting that the concept of difference between east and west is a geopolitical
difference which is written up throughout the texts of western culture whether through travel writing,
political texts, paintings, or in academic discussions. To Said, any or all of the culture of northern Africa,
east to southeast Asia and the South Seas could be encompassed by the western geographical imagination
into a singular 'Orient".
91
sua metáfora nas ciências sociais, ainda no século XIV, para aludir sobre o processo
gradual de mudança social (SACHS, 2010).
Apesar dessas várias conotações, outra adquire dimensão e destaque já em
meados do século XX, com o primeiro emprego oficial da palavra
“subdesenvolvimento” pelo presidente estadunidense Truman, que veio a marcar o
início da era do desenvolvimento no pós 2º guerra mundial. Desde então o
desenvolvimento passa a ser a solução, objetivo e meta para áreas que foram
caracterizadas como atrasadas, problemáticas e carentes. Assim,
O desenvolvimento não pode desvincular-se das palavras com as quais foi
formado - o crescimento, evolução, maturação. Da mesma forma, aqueles que
agora usarem a palavra não podem libertar-se de uma rede de significados
que conferem uma cegueira específica para a sua linguagem, pensamento e
ação. Não importa o contexto em que é utilizada, ou a conotação precisa que
a pessoa que a usa quer dá-la, a expressão torna-se qualificada e colorida por
significados talvez indesejados. A palavra implica sempre uma mudança
favorável, um passo do simples para o complexo, do inferior para o superior,
de pior para melhor. A palavra indica que se está fazendo bem, porque se está
avançando no sentido do necessário, inevitável, lei universal e em direção a
um objetivo desejável (SACHS, 2010, p. 6, tradução nossa)58.
58
Development cannot delink itself from the words with which it was formed – growth, evolution,
maturation. Just the same, those who now use the word cannot free themselves from a web of meanings
that impart a specific blindness to their language, thought and action. No matter the context in which it is
used, or the precise connotation that the person using it wants to give it, the expression becomes qualified
and colored by meanings perhaps unwanted. The word always implies a favorable change, a step from the
simple to the complex, from the inferior to the superior, from worse to better. The word indicates that one
is doing well because one is advancing in the sense of a necessary, ineluctable, universal law and towards
a desirable goal.
59
Los sistemas históricos son las "sociedades" de Wallerstein. Son sistmas porque se componen de partes
interrelacionadas que forman um todo único; pero también son históricos en el sentido de que nacen, se
desarrollan durante un cierto tiempo, y después entran en decadencia. Aunque Wallerstein sólo admite la
existencia de un sistema de este tipo en la actualidad, en el pasado ha habido innumerables sistemas
históricos.
92
60
The new paradigm was given the finishing in the nineteenth century, when the doctrine of social
evolutionism firmly rooted in the popular imagination the supposed superiority of the West over other
societies. There were differences on how to define the 'stages' through which every society had to pass,
but there was general agreement on the three essential points: that progress has the same substance (or
nature) as history; that all nations travel the same road; and that all do not advance at the same speed as
Western society, which therefore has an indisputable 'lead' because of the greater size of its production,
the dominant role that reason plays within it, and the scale of its scientific and technological discoveries
93
políticos locais em um contexto amplo global (TAYLOR; FLINT, 2002). Desse modo,
reduz a necessidade de entendimento e explicação sobre as particularidades locais de
cada sociedade, para compreendê-las através do amplo contexto.
Por tal razão, tanto as leituras sobre o desenvolvimento como sobre sistema-
mundo moderno resultam em generalizações. Os blocos regionais ou etapas de evolução
que compõem a análise das interações econômicas globais são baseados em
características amplas, que possam ser adequadas a diferentes contextos, em outras
palavras, são analisados “de cima” para “baixo” em termos escalares. Por conseguinte, o
imaginário criado pelos discursos do desenvolvimento e do sistema-mundo são
igualmente generalizantes, e associam diferentes países à um mesmo conjunto
homogêneo como descrito em:
O subdesenvolvimento começou, então, em 20 de janeiro de 1949. Naquele
dia, bilhões de pessoas tornaram-se subdesenvolvidas. Em um sentido real, a
partir desse momento, deixaram de ser o que eram, em toda a sua
diversidade, e foram transformados em um espelho invertido da realidade dos
outros: um espelho que deprecia-los e envia-los para o fim da fila, um
espelho, que define suas identidades, que é realmente a de uma maioria
heterogênea e diversificada, simplesmente nos termos de uma
homogeneização e minoria estreita (SACHS, 2010, p. 2, tradução nossa)61.
Ainda nesse sentido, o mesmo autor faz uma notória consideração: seria
incorreto crer que tais categorias e divisões mundiais dos países “aconteçam
simplesmente como uma necessidade da imaginação” (SAID, 2007, p. 32); para que tais
ideias e histórias sejam seriamente compreendidas é preciso considerar suas
61
Underdevelopment began, then, on 20 January 1949. On that day, billion people became
underdeveloped. In a real sense, from that time on, they ceased being what they were, in all their
diversity, and were transmogrified into an inverted mirror of others’ reality: a mirror that belittles them
and sends them off to the end of the queue, a mirror that defines their identity, which is really that of a
heterogeneous and diverse majority, simply in the terms of a homogenizing and narrow minority.
94
62
Discourses define the parameters of what can be known and understood at any point in history and in
any place. They can be thought of as a lens through which people interpret the world, which is not
unchanging but is temporarily and spatially specific. Discourses do not simply structure knowledge but
also what is included as knowledge, such as what are the reasonable questions to ask. For instance, in pre-
modern times, religious and mystic discourses dominated understanding.
95
Ao considerar essas vozes de uma perspectiva crítica, não deve se esperar que
tenham uma verdade sobre o mundo subdesenvolvido a revelar e que foi omitida pelos
discursos do desenvolvimento e do sistema-mundo moderno. O objetivo é reconhecer a
63
The development discourse inevitably contained a geopolitical imagination that has shaped the meaning
of development for more than four decades. (...) It is implicit in expressions such as First and Third
World, North and South, center and periphery. The social production of space implicit in these terms is
bound with the production of differences, subjectivities, and social orders.
64
Since the early 1980s, postcolonialism has developed a body of writing that attempts to shift the
dominant ways in which relations between western and non-western people and their worlds are
viewed...postcolonialism seeks to intervene, to force its alternative knowledges into the power structures
of the west as well as the non-west. It seeks to change the way people think, the way they behave, to
produce a more just and equitable relation between the different peoples of the worlds.
96
65
It certainly was an invention of the West, as we showed at length, but not just an imposition on the rest.
On the contrary, as the desire for recognition and equity is framed in terms of the civilizational model of
the powerful nations, the South has emerged as the staunchest defender of development
97
envolve as formas pelas quais devemos ou somos permitidos ver dentro de um contexto
social. Assim,
(...) o que esta visualidade faz é produzir visões específicas de diferenças
sociais - de hierarquias de classe, "raça", gênero, sexualidade e assim por
diante - enquanto alega-se não ser parte dessa hierarquia e, portanto, ser
universal. É porque essa ordenação de diferença depende de uma distinção
entre aqueles que afirmam ver com relevância universal, e aqueles que são
vistos e categorizados de forma particular, (...) que está intimamente
relacionada com as opressões e as tiranias do capitalismo, do colonialismo, o
patriarcado e assim por diante (ROSE, 2007, p. 5, tradução nossa)66.
Desse modo, a visualidade é mobilizada por certas instituições para ver e para
ordenar o mundo e, por conseguinte, tais formas dominantes de visualidade determinam
a validade de outras formas de visualidade da diferença social. O Mapa invertido da
América do Sul pode ser entendido, portanto, como uma visualidade não dominante e,
ao nos debruçarmos sobre ele, estamos buscando outras formas de ver e compreender o
mundo, que se distanciam das formas hegemônicas e se aproximam dos discursos
sociais críticos.
Temos claro que a análise focada em uma única obra artística não dá conta de
todo o discurso, mas é eficaz em apontar sua persistência em um contexto maior.
Segundo Said (2007), o foco é revelar a dialética entre o texto individual ou autor e a
complexa formação coletiva para qual a obra contribui. Tanto essa obra, como outros
mapas artísticos, tem potencial de mostrar como as formas dominantes de representação
não são inevitáveis ou incontestáveis. Existem diferentes formas de ver o mundo, e a
tarefa da perspectiva crítica é diferenciar seus efeitos sociais. Nesse sentido,
acreditamos construir um melhor entendimento sobre a divulgação e reprodução da
forma de ver o mundo do Mapa invertido da América do Sul quando o associamos aos
discursos críticos que continuaram a ser formulados nos tempos seguintes de sua
elaboração.
O presente capítulo visa cumprir tal função ao discutir as formulações do
pósdesenvolvimento e do póscolonialismo, e será divido em dois segmentos, cada um
destinado a discussão de uma dessas teorias. Tal separação visa unicamente uma
organização didática, visto que ambas tem semelhanças e correlações.
De um modo geral, o “pósdesenvolvimento” surgiu a partir da crítica
pósestruturalista e póscolonial, ou seja, uma análise do desenvolvimento
66
what this visuality does is to produce specific visions of social difference -of hierarchies of class, 'race',
gender, sexuality and so on -while itself claiming not to be part of that hierarchy and thus to be universal.
It is because this ordering of difference depends on a distinction between those who claim to see with
universal relevance, and those who are seen and categorized in particular ways, that Haraway claims it is
intimately related to the oppressions and tyrannies of capitalism, colonialism, patriarchy and so on.
98
67
Generally speaking, "postdevelopment" arose from poststructuralist and postcolonial critique, that is, an
analysis of development as a set of discourses and practices that had profound impact on how Asia,
Africa, and Latin America came to be seen as "underdeveloped" and treated as such.
68
World-system analysis requires us to think about society in broad geographical and historical terms.
The result is a political geography approach that is able to situate political events (such as the war in
Afghanistan or discussions about global climate change) in a much broader context.
99
nação, ao passo que ressalta a importância dos agentes globais. Por consequência, essa
investigação se preocupa com os ciclos e tensões de hegemonia, compondo um foco
mais relacional (VESENTINI, 2013). Para autores como Taylor e Flint (2002), o
sistema-mundo fornece uma base de interação entre os três níveis de escala geográfica:
Local/urbano, no qual a experiência ou o vivido seria a tônica; o nacional, caracterizado
pelo ideológico; e o global, nível da realidade sistemática.
Claramente, o sistema-mundo moderno não foi uma demanda apenas das
análises políticas, mas principalmente das mudanças econômicas globais, de tal modo
que Taylor e Flint (2002) afirmam que sistema-mundo moderno e economia-mundo
capitalista são duas faces de uma mesma moeda. Assim sendo, a escala de atuação do
capital também sofre mudanças:
É como se um capitalismo globalmente integrado – que podemos denominar
também de globalização neoliberal – se impusesse sobre o capitalismo
organizado em fortes bases nacionais, sem, contudo, superá-lo, ao contrário
do que pregam alguns (HAESBAERT; PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 10).
69
(...) protesta concreta las profundas desigualdades del sistema-mundo que ocupan el centro político de
nuestro tiempo.
101
relações sociais são estabelecidas, o que transforma definitivamente o século XVI como
referencial do imaginário moderno.
Assim, para compreender como o sistema-mundo moderno nasce, no século
XVI, enquanto economia mundo capitalista, podemos nos valer da didática explicação
de Frank (1993):
(...) podemos dizer que o século XVI testemunhou o primeiro longo,
sustentado, e generalizado quantitativo e qualitativo desenvolvimento do
capitalismo em sua fase mercantil e do primeiro período de acumulação de
capital concentrado na Europa ... O mesmo processo se estendeu muito além
Europa às regiões ou "enclaves" que foram integrados no processo de
acumulação de capital mundial nesta fase, especialmente as fontes do Novo
Mundo de ouro e prata. Durante esta ascensão secular e cíclica do século
XVI, a Europa Ocidental sofreu uma forte aceleração do processo de
acumulação de capital ... (Op. Cit, pg. 21, tradução nossa)70.
Como nota-se nas entrelinhas dessa citação, Frank (1993) percebe o século XVI
não como berço do sistema-mundo moderno, como Wallerstein (2006), mas como uma
das fases desse sistema que para ele tem uma história e duração muito mais longínqua,
reconhecendo ciclos de ascensão e crise desde séculos antes de Cristo. Especificamente
sobre o século XVI, Frank (1993) reconhece uma ascensão do Oeste, focado na Europa,
mas como parte de uma dinâmica que envolve a crise do Leste no século XIV. Já
Wallerstein (1991) considera que apenas nesse século as relações traçadas na escala
global atingiram níveis de mercadorias essenciais, e por isso a fixação do sistema-
mundo era substancial e intrínseco.
Não é nosso intuito debater a duração do sistema-mundo, mas é interessante
notar que mesmo diante de uma análise que reconhece ciclos de hegemonia mais
longínquos, o Sul nunca assumiu tal posição.
Durante os mais de 1000 anos de história do sistema mundial estruturado em
centro-periferia que caiu em meados de 1492, o centro hegemônico sempre
mudou de Leste a Oeste, mas apenas em torno do hemisfério Norte. O centro
hegemônico, quando houve um, mudou-se em toda a Ásia, Ásia Ocidental e
Norte da África (agora chamado de "Oriente Médio") para o Sul e depois
para Noroeste da Europa (na franja ocidental da Eurásia). Em seguida, o
centro hegemônico atravessou o Atlântico a Leste e, em seguida, cada vez
mais, talvez, Oeste da América do Norte. Agora a hegemonia política e
econômica, se novamente existe uma, parece continuar seu movimento para o
Oeste através do Pacífico de volta para a Ásia novamente, começando com o
70
(...) we may say that the sixteenth century witnessed the first long, sustained, and widespread
quantitative and qualitative development of capitalism in its mercantile stage and the first period of
concentrated capital accumulation in Europe...The same process extended far beyond Europe to those
regions or "enclaves" which were integrated into the process of world capital accumulation at this stage,
especially the New World sources of gold and silver. During this sixteenth-century secular and cyclical
upswing, Western Europe experienced a sharp acceleration of the process of capital accumulation...
102
71
During the more than a 1,000 year history of the center-periphery structured world system in whose
middle 1492 falls, the hegemonic center has always moved from East to West, but only around the
northern hemisphere. The hegemonic center, when there was one, moved across Asia, West Asia and
North Africa (now called the "Middle East") to Southern and then to Northwest Europe (at the western
fringe of Eurasia). Then the hegemonic center moved across the Atlantic to eastern and then increasingly
perhaps western North America. Now political economic hegemony, if there is again to be any, seems to
continue its westward move across the Pacific back to Asia again, beginning with Japan and perhaps in
the future returning again back to China.
72
The modern world-system was born in the long sixteenth century. The Americas as a geosocial
construct were born in the long sixteenth century. The creation of this geosocial entity, the Americas, was
the constitutive act of the modern world-system. The Americas were not incorporated into an already
existing capitalist world-economy. There could not have been a capitalist world-economy without the
Americas.
103
73
Put more generally, access to biotic resources from colonies and fossil resources from the crust of the
earth was essential to the rise of the Euro-Atlantic civilization. There would have been no industrial
society without the mobilization of resources from both the expanse of geographical space and the depth
of geological time.
104
74
The hierarchy of coloniality manifested itself in all domains – political, economic, and not least of all
cultural. The hierarchy reproduced itself over time, although it was always possible for a few states to
shift ranks in the hierarchy. But the chance in rank order did not disturb the continued existence of the
hierarchy.
75
creating not only rank order but sets of rules for the interactions of states with each other
105
muito mais difíceis de ignorar. Os pontos com os quais contrasta são a falta
de igualdade no pleno reconhecimento da integridade territorial do Estado-
nação. Para as sociedades da América Latina, África e Ásia, os princípios que
regem a constituição de seu modo de ser político foram profundamente
estruturados pela penetração externa, pela invasão das potências estrangeiras.
A definição do tempo e da ordenação do espaço seguiram por uma lógica
imposta externamente, cujos efeitos ainda ressoam no período pós-colonial
(SLATER, 2004, p. 23, tradução nossa)76.
76
Customarily, the analysis of the relations between politics and the political is worked out within the
conceptual confines of an implicitly Western territorial state. There is an assumption of a pre-given
territorial integrity and permeability. But in the situation of peripheral politics, the historical realities of
external power and its effects within those polities are much more difficult to ignore. What this contrast
points to is the lack of equality in the full recognition of the territorial integrity of nation-state. For the
societies of Latin America, Africa and Asia, the principles governing the constitution of their mode of
political being were deeply structured by external penetration, by the invasiveness of foreign powers. The
framing of time and the ordering of space followed an externally imposed logic, the effects of which still
resonate in the postcolonial period.
106
77
Las diversas formas de conocimiento desplegadas por la humanidad en el curso de historia conducirian,
paulatinamente, hacia una única forma legítima de conocer el mundo: la desplegada por la racionalidad
cinetífico-técnica de la modernidad europeia.
78
Europeans drew maps of new lands with boundaries inscribed to identify territories claimed by
different nations. The name given to places by indigenous people were ignored, their claims to ownership
and rights of access where similarly discarded, and instead European words and meanings were written
onto the maps. Once these European maps has been created and accepted, they started to influence the
nature of the actual space they represented.
108
entendida como um dos recursos que sustentam esse padrão a ser alcançando. Por sua
vez, a modernidade é estruturada através de 4 pressupostos:
(...) 1) a visão universal da história associada à ideia de progresso (a partir da
qual se constrói a classificação e hierarquização de todos os povos,
continentes e experiências históricas); 2) a “naturalização” tanto das relações
sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a
naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa
sociedade; e 4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa
sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos
(LANDER, 2005, p. 33).
79
(…) cuya misón es ‘acoger’ el progreso y la civilización que vienen desde Europa.
109
caminhos para tal extensão, e articula novas formas e novos discursos que renovam a
diferenciação entre Norte e Sul.
Até então, as relações Norte-Sul tinham se organizado largamente de acordo
com a oposição colonizador/colonizado. A nova dicotomia ‘desenvolvido’/
‘subsdesenvolvido’ propõe uma relação diferente (...). Colonizado e
colonizador pertenciam a dois universos diferentes e opostos, de modo que o
confronto entre eles (sob a forma de lutas de libertação nacional) apareceu
como uma forma inevitável de reduzir a diferença. Agora, no entanto,
‘subdesenvolvidos’ e ‘desenvolvido’ eram membros de uma mesma família:
um poderia estar ficando um pouco atrás do outro, mas sempre podia esperar
para o alcançar - como um ‘vice-gerente’ pode sempre sonhar em se tornar
um gerente ele mesmo (RIST, 2008, p. 74, tradução Nossa)80.
80
Until then, North-South relations had been organized largely in accordance with the
colonizer/colonized opposition. The new 'developed'/'underdeveloped' dichotomy proposed a different
relationship (...). Colonized and colonizer had belonged to two different and opposed universes, so that
confrontation between them (in the form of national liberation struggles) had appeared unavoidable as a
way of reducing the difference. Now, however, 'underdeveloped and 'developed' were of a single family:
the one might be lagging a little behind the other, but they could always hope to catch up - rather as a
'deputy manager' can always dream of becoming a manager himself.
111
guiar os países subdesenvolvidos para uma sociedade mais justa e com qualidade de
vida, tal qual o modelo ocidental espelha.
Nesse sentido, existe uma semelhança e, em certa medida, uma continuidade do
colonialismo em compor uma dependência dos países subalternos em relação aos países
hegemônicos, também caracterizada pela legitimidade do conhecimento desses últimos
países. Assim,
(...) uma série de estudos recentes sugerem que havia uma importante ligação
entre o declínio da ordem colonial e da ascensão do desenvolvimento. No
período entre guerras, o terreno estava preparado para a instituição de
desenvolvimento como estratégia para refazer o mundo colonial e
reestruturar as relações entre colônias e metrópoles. (...) O papel da Liga das
Nações em negociar a descolonização através do sistema de mandatos
também foi importante em muitos casos, na Ásia e na África. Após a
Segunda Guerra Mundial, este sistema foi estendido para a descolonização
generalizada e a promoção do desenvolvimento pelo novo sistema de
organizações internacionais (ESCOBAR, 2012, p. 26, tradução nossa)81.
81
(...) a number of recent studies suggest there was an important connection between the decline of
colonial order and the rise of development. In the interwar period, the ground was prepared for the
institution of development as a strategy to remake the colonial world and restructure the relations between
colonies and metropolis. (...) The role of League of Nations in negotiating decolonization through the
system of mandates was also important in many cases in Asia and Africa. After the Second World War,
this system was extended to a generalized decolonization and the promotion of development by the new
system of international organizations.
82
'Development' consists of a set of practices, sometimes appearing to conflict with one another, which
require - for the reproduction of society- the general transformation and destruction of the natural
environment and of social relations. Its aim is to increase the production of commodities (goods and
services) geared, by way of exchange, to effective demand.
112
global emerge como entusiasta e defensor do desenvolvimento. Mas como a busca por
produção de bens e serviços que definimos no desenvolvimento tem relação com a
equidade de uma sociedade?
Ainda segundo o mesmo autor, é crucial distinguir dois tipos de equidade. A
primeira acarreta em uma ideia de justiça relativa, onde o foco recai sobre a distribuição
de recursos (renda, escolaridade, conexão de internet, entre outros) entre grupos de
pessoas, traçando uma comparação de acesso. A segunda apresenta uma ideia de justiça
absoluta, onde o foco recai sobre a disponibilidade de recursos fundamentais e
liberdades sem as quais uma vida comum não seria possível. Não há, portanto,
necessidade de comparação, pois organiza condições básicas de vida e normas para
dignidade humana. De modo geral, a primeira noção é mais influente pra
desenvolvimento, enquanto a segunda noção é mais influente para os direitos humanos.
Tendo isso em vista, o desenvolvimento pode ter a conotação de direitos e
recursos para os mais pobres, sendo bastante usado no reforço de autonomia para as
comunidades. Mas, na maioria das vezes, apresenta a conotação de crescimento
econômico, sendo bastante usado no reforço de hegemonias na análise da economia
mundo. Além disso, compõem-se a enumeração de condições necessárias para
caracterizar uma sociedade avançadas, como: altos níveis industrialização, tecnificação
da agricultura e rápido crescimento da produção de mercadorias.
Assim, essa segunda conotação estabelece uma análise de diferenciação entre os
países do globo, onde alguns apresentam as condições de desenvolvidos e outros não.
Eles apresentam problemas de crescimento econômico, organização produtiva e
desigualdades sociais, que devem ser solucionados com auxílio do conhecimento e
experiência das sociedades desenvolvidas, compostas, em sua maioria, por ex-
metrópoles e do Norte global. Como a outra face da mesma moeda, o discurso do
desenvolvimento promove a caracterização da pobreza e miséria dos países do 3º
mundo, ratificando o quanto estes necessitam do auxílio e da intervenção estrangeira
para atingir os modelos de desenvolvimento estabelecidos pelos mesmos “auxiliadores”.
Tanto a delimitação do 3º mundo, como o sonho do desenvolvimento, tem sido
partes integrais da vida socioeconômica, cultural e política que marcam o período pós-
2º guerra mundial. Já mais recentemente, esse modelo começa a apresentar falhas e
receber críticas, não apenas pelo colapso do 2º mundo e fim da tríade mundial, mas
principalmente pelas promessas do desenvolvimento e suas melhorias não se
concretizarem, pelo contrário,
113
83
for instead of the kingdom of abundance promised by theorists and politicians in the 1950s, the
discourse and strategy of development produced its opposite: massive underdevelopment and
impoverishment, untold exploitation and oppression.
114
poderia ter sido, e sem idealizar eles, é verdade que a pobreza em massa no
sentido moderno, só apareceu quando a propagação da economia de mercado
rompeu os laços comunitários e desproveu milhões de pessoas do acesso a
terra, água e outros recursos. Com a consolidação do capitalismo,
pauperização sistêmica tornou-se inevitável (ESCOBAR, 2012, p. 22,
tradução nossa)84.
Cabe destacar que, ao compor essa necessidade por ajuda no combate a pobreza
“modernizada”, adiciona-se um novo ingrediente na dependência econômica entre Sul e
Norte. Apesar de qualquer boa intenção, a lógica do desenvolvimento acaba
contribuindo para a reprodução da assimetria conhecimento/ poder (ESCOBAR, 2012),
visto que propõe também uma série de sugestões de solução baseadas no conhecimento
da sociedade ocidental, que podem ser aplicadas e utilizadas pelos demais países,
visando superar essa condição e avançar os estágios até o modelo hegemonicamente
estabelecido.
Segundo Rist (2008), a doutrina do desenvolvimento para os países não
industrializados teria três pilares: “transferências maciça de capital (principalmente
privado), exportações de matérias-primas, e a vantagem comparativa que deve
84
In colonial times the concern with poverty was conditioned by the belief that even if the 'natives' could
be somewhat enlightened by the presence of the colonizer not much could be done about their poverty
because their economic development was pointless. The native's capacity for science and technology, the
basis for economic progress, was seen as nil. (...) Whatever this traditional ways might have been, and
without idealizing them, it is true that massive poverty in the modern sense appeared only when the
spread of the market economy broke down community ties and deprived millions of people from access
to land, water, and other resources. With the consolidation of capitalism, systemic pauperization became
inevitable.
85
(...) by defining 'underdevelopment' as a lack rather than the result of historical circumstances, and by
treating 'underdeveloped' simply as poor without seeking the reasons for their destitution, 'development
policy' made of growth and aid the only possible answer.
115
90
In the global South, for instance, initiatives emphasize community rights to natural resources, self-
governance and indigenous ways of knowing and acting. In the global North, post-development action
instead centres on eco-fair businesses in manufacture, trade and banking, the rediscovery of the commons
in nature and society, open-source collaboration, self-sufficiency in consumption and profit-making, and
renewed attention to non-material values. At any rate, what appears to be the common denominator of
those initiatives is the search for less material notions of prosperity that make room for the dimensions of
self-reliance, community, art or spirituality.
118
Figura 6 – Mapa invertido da América do Sul no Palacio de Bellas Artes, Cidade do México, 2011.
Fonte: Exposição “Crisiss. Art and confrontation in Latin America, 1910-2010”. Disponível em:
<http://centrefortheaestheticrevolution.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html>. Acesso em: 17 mar.
2015.
principal ou a linha geral que essa obra traz aos entendimentos contemporâneos. Essa
abordagem metodológica é uma escolha para a análise de imagens cujo objetivo é
destacar seus discursos e visões, bem como a apropriação delas em sua reprodução. Não
se trata de uma metodologia única ou mais correta, apenas adequada ao intuito da
pesquisa que não tem como pretensão o foco na construção simbólica ou da leitura
semiótica da imagem.
Apesar das imagens selecionadas terem vários formatos, como montagem,
fotografia ou reprodução, todas passam a ser analisadas enquanto mapa artístico, por ser
entendida como uma qualidade primordial dessa representação. Ou seja, de uma
maneira geral, podem ser vistos como um simples esquema espacial feito por um artista.
Mas diante da tentativa de compreender seus preceitos, os mapas artísticos devem ser
vistos como uma diversificação e libertação das formas de ver e expressar o mundo ao
redor. Segundo Cosgrove (2005), existe um conjunto de mapas artísticos que
“confrontam a dialética da harmonia global e exploração colonial” (Op. Cit, p. 42,
tradução nossa)91, refletindo um radical engajamento entre arte conceitual e
mapeamento.
Nesse sentido, a reprodução do Mapa invertido da América do Sul promove a
continuidade e a difusão da visão de mundo questionadora desse mapa. Por isso,
readequamos nossa pergunta direcionadora para: Quais contextos atuais identificam-se
com a visão de mundo expressa nesse mapa artístico? Se é verdade que o mundo
contemporâneo sofreu tantas mudanças, porque a visão de mundo desse mapa continua
pertinente?
Com tal perspectiva, a apropriação artística da cartografia apresenta relações
com a geopolítica, no sentido de que os entendimentos cotidianos e sociais
diferenciados sobre a dimensão espacial do poder político têm uma maior expressão
através das construções não convencionais dos mapas artísticos. Sendo assim, as teorias,
concepções e nomenclaturas divulgadas pela geopolítica, passam a fazer parte do
entendimento e do imaginário de mundo das sociedades, que por sua vez, impulsionam
as representações desses entendimentos nos mapas artísticos.
Em concordância, reconhecemos, ainda no capítulo 1, o poder dos mapas
institucionais e sua capacidade de guiar e limitar os entendimentos de mundo em um
padrão, que seria visto como “científico” e “correto”. O que deixamos claro agora, é que
91
Confront the dialectics of global harmony and colonial exploitation
124
92
the way we see and understand the world, including its geography, influences our actions. Foreign
policy and aid decisions for example, flow out of our global perspective. Military build-ups occur where
threats are perceived.
125
De início, era nosso desejo correlacionar todas essas formas de inversão ao mapa
de Torres-García, porém os possíveis exemplos foram se multiplicando tanto que ficaria
difícil compor uma análise consistente, bem como ficaria penoso traçar um parâmetro
de seleção e exclusão dessas imagens. Entretanto, o que parecia um problema, tornou-se
um ótimo direcionamento, pois nos fez atentar para a quantidade de reprodução do
desenho original da obra que existem. No mais, essa nova estratégia não comprometeria
em nada o objetivo inicial de investigar os sentidos dessa inversão, e ainda auxiliaria a
explicar, de forma mais clara, a popularidade dessa obra até os dias atuais.
De fato, se afirmamos no início da investigação que o reconhecimento desse
mapa artístico é constante, então era provável que figurasse novamente em outros
contextos cotidianos, bastava que estivéssemos atentos a ele. Assim, somada a pesquisa
de imagens na internet, também utilizamos situações habituais em que encontramos
com tal mapa, estruturando um conjunto bastante variável. Primeiramente, são muitas a
formas de utilização do desenho de Torres-García: alguns contêm modificações, outros
são reproduções integrais. Também são variadas as finalidades: alguns se destinam aos
debates sobre a América, outros à contraposição sobre a hegemonia europeia, e assim
93
It continues to resonate within pop culture and high art (...). In the realm of cartography, Torres-
García's intervention ask us to question map-making conventions, anticipating Stuart McArthur's south-
on-top map mass-produced in Australia beginning in 1979 and reminding us that such conventions are
culturally specific.
126
por diante. Por fim, são diferentes também os universos a que pertencem essas
apropriações, indo desde o turismo no Uruguai até o corpo individual e suas tatuagens.
Em suma, encontramos uma riqueza na reunião dessas imagens que pretendemos dar
conta nesse capítulo.
Desde o início, o universo que parecia mais óbvio para encontrar o Mapa
invertido da América do Sul era o dos souvenires do Uruguai (Figura 7 e 8). Dizemos
óbvio porque não foi difícil encontrar, mas por outro lado, não é tão lógico que as
recordações turísticas, representativas de um país, sejam compostas por uma obra de
arte. Quanto mais considerando que a expressividade das artes do Uruguai não figura
entre os principais atrativos turísticos do país: não foi berço de movimento artístico e
não figura na rota das maiores galerias mundiais. Em suma, não há motivação externa
para estampar o mapa de Torres-García nas lembranças que expressam o Uruguai,
somente o potencial próprio da obra.
Figura 7 – Camisa com mapa artístico.
O blog que utiliza a figura 9 é alimentado por uma jornalista que se descreve,
dentre outras coisas, como: marginal, libertária e comunista. E o projeto de viajar pela
América do Sul é justificado pelas descobertas da vivência do cotidiano, dificuldades e
relações humanas desses países. Para compor a identidade visual desse projeto, a
bloggueira optou por uma adequação da obra de Torres-García, onde a localização do
Uruguai, o barco e o peixe são substituídos por elementos que vinculem a ideia de
mochileiros em trânsito, e pela inserção da sugestiva frase “Locos por ti América”, que
atravessa o desenho do mapa e exalta seu interesse em vivenciar a região. Nessa figura,
a viagem dos mochileiros pode ser comparada à viagem do barco de Torres-García,
visto que no trajeto de percorrer a América, ao objetivarem, por exemplo, a ponta da
Patagônia, também estariam partindo “para cima”.
Em suma, a principal mensagem que parece ser expressa através desse mapa
invertido, associado com suas modificações feitas, é de admiração e afeição pelos
valores e modos de vida particulares da América. Tais sentimentos alimentam a ideia de
promover a exaltação dos elementos culturais característicos das Américas, uma
motivação que também estava claramente presente tanto nas obras como nos escritos de
130
A figura 11 é a capa do livro intitulado “Conocer desde el Sur: para una cultura
política emancipatoria”, de autoria de Boaventura Sousa Santos, um dos maiores
teóricos das perspectivas póscoloniais e cidadania global. Além de atuar nas
Universidades de Coimbra (Portugal) e Universidade de Wisconsin-Madison (Estados
Unidos da América), o autor também coordena projetos que visam a emancipação social
através de novos paradigmas teóricos e políticos de transformação social. O título da
obra acadêmica “Conocer desde El Sur” adquire ampla relação com o mapa invertido de
Torres-García, que ao apontar o Sul para o topo revoga qualquer dependência ou
subalternização dos conhecimentos não-ocidentais originados do Sul global. O artista
uruguaio e o autor português, mesmo em tempos históricos distintos, somam forças para
o reconhecimento e a emancipação das formas de conhecimento desses países, que
Boaventura coloca como toda a região do Sul global, mas ilustra apenas com o mapa da
América do Sul de Torres-García.
133
Fundamental e Ensino Médio. Claramente, nesse contexto ainda não vemos articuladas
as densas teorias sociais póscoloniais ou emancipatórias, mas já cabem ensinamentos
que relativizam a padronização cartográfica de orientação e suas influências
ideológicas. Desse universo, selecionamos dois exemplos pertinentes: o primeiro vem
de um livro didático do 8º ano do Ensino Fundamental (Figura 14) e o segundo vem de
uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que abrange todo território
nacional (Figura 15).
Nesse universo, os dois exemplos propõem ao seu público, análises críticas e
exame do discurso que a obra expressa, focado na inversão das orientações. O livro
didático compõem a coleção “Geografia nos dias de hoje”, e seus autores são: Cláudio
Giardino, Ligia Ortega, Rosaly Braga Chianca, Virna Carvalho; já a questão compõe o
modelo de prova que o Ministério da Educação divulgou em 2009 para instruir sobre as
diretrizes do novo ENEM. Em ambos, existe a menção de que o mapa de Torres-García
exibe uma configuração diferente da habitual para o mapa da América do Sul. No livro,
esse mapa artístico é utilizado no contexto de aprendizagem das regionalizações
políticas do globo, compondo uma visualização didática para relativizar a ideia de que
os países do Sul são inferiores e que não existiria pobreza nos países ricos, e mostra
como essa comum noção é ratificada pelo mapa “como estamos acostumados”. Por sua
vez, a partir do mapa artístico o aluno é convidado a pensar como essas posições de
países são uma convenção, um ponto de vista que pode ser modificado.
Font
e: Ministério da Educação, 2009.
torna relevante pela frequência com que encontramos tais tatuagens. Assim,
problemáticas foram solucionadas pela associação com pergunta inicial da pesquisa: Em
que contextos essa imagem circula? Ou seja, existem cenários e locais, que por suas
características, demonstram identificação com as ideias apresentadas por Torres-García
nessa obra. As situações em que tais tatuagens foram fotografadas indicam certa
ideologia dessas pessoas, e como esta pode estar relacionada a esse mapa artístico.
Fonte: Fotografada na III Conferência Nacional de Cultura, 2013, em Brasília. Disponível em:
<http://edgarb.blogspot.com.br/2013/12/em-brasilia-iii-conferencia-nacional-de.html>. Acesso em: 17
mar. 2015.
137
Fonte: O autor, fotografada no carnaval de rua do Rio de Janeiro, na Praça Tiradentes, Centro, no dia 14
fev. 2015.
Fonte: Fotografada na Jornada de luta pelo direito a moradia, do Movimento Nacional de Luta pela
Moradia (MLNM), em 15/04/2015. Arquivo de Mariana Moraes.
138
Assim, todo o mapa artístico expressa uma visão de mundo que não é
contemplada pelos mapas técnicos ou oficiais. Mas porque o Mapa invertido da
América Sul, cujos princípios são os mesmos dos outros, apresentou uma notoriedade
destacável dentre os demais? Afinal, não é todo mapa artístico que adquire
conhecimento além do circuito das artes, ou mantém sua notoriedade por mais de 70
anos, ou são estampados em camisas, cartões postais e tatuagens.
Por tal questionamento, supõe-se que sua notoriedade não está focada
unicamente na qualidade de um mapa artístico, mas sim nos discursos que foram
expressos através desse meio de representação, tal qual apontaram nossos exemplos
anteriores. Ao inverter a posição do Sul em seu mapa, Torres-García abarca também a
inversão dos sentidos e caracterizações que as divisões geopolíticas do globo ajudaram a
associar a esse conjunto de países no imaginário, dentre as quais estão, conforme
debatido no capítulo 2: atrasado, subdesenvolvido, carente, conturbado. Nesse sentido,
realocar o Sul em uma posição dominante do mapa, era uma forma de mudar,
simbolicamente, as condições de desigualdade da economia mundo.
Entretanto, um passo fundamental para compreender essa associação entre
cartografia, arte e geopolítica, é reconhecer o papel dos mapas nas estruturas políticas
de poder, tal qual abordamos no capítulo 1. Para Klaus Dodds (2001), as investigações
da geopolítica focadas unicamente na política através do conhecimento geográfico,
obscurece o fato de que antes: “(...) todos os modelos de política global são informados
94
In the last century, and especially in the last 30 years artists have made maps, subverted maps,
performed itineraries, contested borders, charted the invisible, and hacked physical, virtual, and hybrid
spaces in the name of cartography.
140
ou até guiados por entendimentos geográficos” (Op. Cit., p. 469, tradução nossa)95.
Portanto, as noções de mundo que se estabelecem pelo discurso da ciência geográfica
não são desassociadas das práticas políticas governamentais.
Por sua vez, o mapa exerce um importante papel na visualização e afirmação do
conhecimento geográfico. Logo, seu poder de influência chega às formas de pensar,
teorizar, agir e relacionar os espaços globais. O mundo não é tátil, e devido à
impossibilidade de experimentar fisicamente toda superfície terrestre, essa experiência
passa a ser guiada pelas formas de representação do mundo. Como o globo é conhecido
através de sua representação, então são estas que dão forma aos entendimentos e ações
sobre o mundo, moldando grande parte da comunicação e comércio entre as pessoas
(COSGROVE, 2001).
Destarte, o domínio sobre as formas de representação do mundo tornaram-se
muito mais importantes e influentes do que um simples esquema gráfico. Em princípio,
o mapa constitui uma visão de mundo, porém quando são institucionalizados e
padronizados passam a formas pelas quais o mundo pode ser formado (WOOD, 2010).
O modo como conhecemos o mundo, interligamos seus espaços e relacionamos suas
distâncias passam, então, a ser guiadas por essa representação de mundo dominante.
Não é a toa que:
A ideia de ver o mundo também parece induzir desejos de ordenar e controlar
o objeto de visão. (...) Imperadores, reis, Estados e corporações têm rendido à
tentações semelhantes, retratando globos e panoramas globais para proclamar
autoridade territorial (COSGROVE, 2001, p. 5, tradução nossa)96.
95
(...) all models of global politics are informed or even guided by geographical understandings.
96
The idea of seeing the globe seems also to induce desires of ordering and controlling the object of
vision. (...) Emperors, kings, states, and corporations have yielded to similar temptations, picturing globes
and global panoramas to proclaim territorial authority.
141
97
What have been the historical implication for the West of conceiving and representing the earth as a
unitary, regular body of spherical form?
98
Projection is not only a concept pertaining to cartography, cinematography, and psychology - but also
to international politics. State engage in "power projection" overseas, seeking colonies, bases, and
142
Não queremos dizer, com isso, que Mercator tenha previsto ou intencionado o
uso de sua projeção pelas relações de dominação colonial. Muito mais importante do
que o tipo de projeção, são as visões de mundo que lhe foram associadas, influenciando
regionalizações políticas do globo. É o que pode ser dito sobre o colonialismo:
As representações, as "visões de mundo" e a formação da subjetividade no
interior dessas representações foram elementos fundamentais para o
estabelecimento do domínio colonial do ocidente. Sem a construção de um
imaginário de "oriente" e "ocidente", não como lugares geográficos e sim
como formas de vida e pensamento capazes de gerar subjetividades
concretas, qualquer explicação (econômica ou sociológica) do colonialismo
resultaria incompleto (CASTRO-GOMÉZ, 2005, p. 22, grifo no original,
tradução nossa)99.
logistical rights. Mercator's geometric projections in map making therefore had their counterpart in
European expansionism, and maps were intrinsically tied to imperial designs.
99
Las representaciones, las "concepciones del mundo" y las formación de la subjetividad al interior de
esas representaciones fueron elementos fundamentales para el estabelecimento del dominio colonial de
occidente. Sin la construción de un imaginario de "oriente" y "occidente", no como lugares geograficos
sino como formas de vida y pensamiwnto capaces de generar subjetividades concretas, cualquier
explicación (economica o sociológica) del colonialismo resultaria incompleta.
143
1940. (...) Isto não significa, naturalmente, que estes termos nunca tinham
sido implantados antes da Segunda Guerra Mundial, mas sim que a sua
visibilidade e peso discursivo veio a assumir maior predominância no período
pós-guerra (SLATER, 2004, p. 58, tradução nossa)100.
100
From the 1950s onward notions of 'modernization' and 'development' came to be more closely
associated with the portrayal of West/non-West encounters, whereas representations of civilization and
order, although still present, (...) became less prominent - they were no longer the master signifiers they
had been before 1940. (...) This does not mean, of course, that these terms had never been deployed
before the Second World War, but rather that their visibility and discursive weight came to assume
greater predominance in the post-war.
101
(...) argued that is impossible for people to understand the world expect through discourse. He is not
suggesting that the world is made up only of our imaginations of it, but that we cannot access the real
world except through the cultural structuring of discourse.
144
Para isso, podemos partir de uma primeira observação sobre tal relação, proposta
por Huggan (2003):
A prevalência do lócus do mapa em textos literários pós-coloniais
contemporâneos, e a frequência de seu uso irônico e / ou paródico nestes
textos, sugere uma ligação entre uma de/reconstrutiva leitura dos mapas e
uma revisão da história do colonialismo europeu (Op. Cit, p. 407, tradução
nossa)102.
O que se propõe com tal ampliação é uma maior atenção ao papel das
representações nas formas de poder e soberania. Formando-se, assim, um viés pelo qual
podemos compreender as permanências do colonialismo e a manutenção das
desigualdades hierárquicas do sistema-mundo moderno, tendo em vista que tais
representações continuam a reproduzir os padrões ocidentais. O domínio das formas de
conhecimento são muito mais difíceis de reverter do que os pactos econômicos que
findam com a independência (SHARP, 2009). Mesmo que ainda resguardem-se dúvidas
em afirmar o fim do domínio econômico ou sua reconfiguração em novas estratégias.
Para Rabasa (2003), tais representações:
102
The prevalence of the map topos in contemporary post-colonial literary texts, and the frequency of its
ironic and/or parodic usage in these texts, suggests a link between a de/reconstructive reading of maps
and a revisioning of the history of European colonialism.
103
Western expansion since the sixteenth century has not only been a religious and economic one, but
also the expansion of hegemonic forms of knowledge that shaped the very conception of economy and
religion. That is to say, it was the expansion of a 'representational' concept of knowledge and cognition
(....).
145
(...) são mais do que uma construção ideológica que desaparece com um
borrão da caneta ou simplesmente desaparece quando a Europa perde a sua
posição de domínio. O traço de expansionismo europeu continua a existir nos
corpos e nas mentes do resto do mundo, bem como nas fantasias dos antigos
colonizadores (Op. Cit, p.358, tradução nossa) 104.
Guiado por esse olhar póscolonial e plural, Rabasa (2003) compõem uma
releitura do atlas de Mercator, que para ele constitui uma das mais importantes formas
de definição da Europa como privilegiada fonte de informação e significados para o
resto do mundo. O atlas tem a atribuição de condensar o mundo em uma imagem
modelo, resumida e adaptada aos olhos de seu autor. A distribuição desse modelo
acompanha a subjetiva noção de poder de quem pronuncia/domina o conhecimento do
globo (RABASA, 2003), o que pode ser explicado melhor:
104
(…) is more than an ideological construct that vanishes with the brush of the pen or merely disappears
when Europe loses its position of dominance. The trace of European expansionism continues to exist in
the bodies and minds of the rest of the world, as well as in the fantasies of the former colonizers.
105
(…) reassessment of cartography in many of their most recent literary texts indicates a shift of
emphasis away from the desire for homogeneity towards an acceptance of diversity reflect in the
interpretation of the map, not as means of spatial containment or systematic organization, but as a
medium of spatial perception which allows for the formulation of links both within and between cultures.
146
106
Global refers to an expanding range of environmental, economic, political, and cultural processes.
Much of its force derives from the arresting concept of the earth as a single space made up of
interconnected life systems and a surface over which modern technological, communications, and
financial systems increasingly overcome the friction of distance and time to achieve coordinated
simultaneity. Even negative evaluations of global processes as uneven and locally disruptive rely upon an
implicit commitment to globalism in the sense of equality of rights and opportunities over global space.
107
(...) whose patterns of coercion and containment are historically implicated in the colonial enterprise,
but to advocate another, whose flexible cross-cultural patterns not only counteract the monolithic
conventions of the West but revision the map itself as the expression of a shifting ground between
alternative metaphors rather than as the approximate representation of a 'literal truth'.
147
sustenta que os mapas artísticos têm, em definição, princípios políticos, pois mesmo que
não seja seu foco, os mapas artísticos readequam elementos ligados à autoridade e ao
poder científico da cartografia. E, portanto, expõem (e, muitas vezes revertem) a
contribuição política das representações cartográficas.
Essa lógica também pode ser vista pela ótica de Wood (2007), que ao invés de
delimitar a participação política da cartografia científica, destaca sua competência em
naturalizar sentidos e formular mitos. Embasado nas ideias de Barthes, o autor
argumenta que o mito sempre é um rapto de linguagem, “roubando o assunto ostensivo
de um mapa para naturalizar outra coisa através dele” (WOOD, 2007, p. 10. Tradução
108
nossa) . É justamente assim que a neutralidade do mapa torna-se uma incoerência,
visto que o próprio propaga sua confiabilidade, ajudando a mascarar outros sentidos
que podem se construir por seu meio, dentre os quais podem incluir sentidos de controle
e hegemonia.
Se as mitologias destacam o caráter mítico do mito, eles roubam o mito de
sua "objetividade", isto é, de sua pretensão de representar o mundo: a
mitologia descasca fora a máscara do mito. Esta é precisamente a aderência
mais comumente feita por artistas que trabalham com mapas (WOOD, 2007,
p. 10, grifo no original, tradução nossa)109.
108
stealing the ostensible subject of a map to naturalize through it something else.
109
since mythologies highlight the mythic character of myth, they rob myth of its "objectivity", that is, of
its claim to represent the world: mythology peels off the mask of myth. This is precisely the tack most
commonly taken by artists working with maps.
110
other 'turnabout maps', often sino-centric or amero-centric versions, were also designed to challenge
'northern' hegemony. Despite such challenges traditional Eurocentric projections continue to be used
across a wide range of media into present century.
148
Nesse sentido, o que Torres-García fez foi questionar uma imagem canônica e
apropriar, em sua arte, da concepção de mapas cartograficamente plurais com outras
representações de mundo, mas que estavam cada vez mais esvaziados. Por conta dessa
hegemonia estabelecida e das significações associadas ao mapa norteado, a inversão de
orientação conota uma série de valores simbólicos. O Mapa invertido da América do
Sul “(...) definiu um rumo para inúmeras outros artistas, geógrafos, educadores e outras
pessoas a questionar a orientação padrão e projeção do mapa do mundo” (D’IGNAZIO,
2009, p. 195, tradução nossa)111.
De fato, os mapas artísticos e suas apropriações tendem a provocar perguntas,
são imponentes ferramentas para relembrar que nossa relação com o espaço são
construções sociais (JOLLY, 2011). E, por fim, podem trilhar novas perspectivas que
favoreçam o reconhecimento da pluralidade nas formas de representar ou resumir o
globo, cujo alcance pode se estender às tendências artísticas, às teorias e práticas
políticas ou mesmo às representações da cartografia científica. Assim, inverter o mapa é
também inverter uma ordem estabelecida, e essa ideia é transferível para diversos
contextos, que por sua vez podem se identificar e serem representados pelo mapa
artístico uruguaio.
Por fim, se muitos dos processos que hoje são estudados pela geopolítica
apresentam uma parcela de influência das relações globais, então é necessário
reconhecer não apenas a uniformidade, mas principalmente a diversidade. Processos
como a economia-mundo, a globalização e o desenvolvimento não preveem
implicitamente um benefício a todos seus envolvidos, mas para compreender essa
desigualdade é necessário dar voz aos não hegemônicos. Em outras palavras, a contra
representação sobre esses processos, em suas mais diversas forças, devem ser
criticamente incluídas no amplo entendimento das relações globais (SLATER, 2004).
Através da abrangência dessas perspectivas, busca-se diversificar os
entendimentos e as práticas das relações políticas globais. A associação de discursos
críticos, sejam eles textuais ou imagéticos, demonstra a relevância e a demanda que
ainda persiste sobre o reconhecimento dessas formas diferenciadas de entender e de agir
sobre o mundo. Desse modo, tanto as teorias críticas do póscolonialismo e
pósdesenvolvimento, como também as representações invertidas dos mapas artísticos,
111
(...)set a course for numerous other artists, geographers, educators, and others to question the default
orientation and projection of the world map.
149
não ficam limitados apenas ao campo das ideias, mas fomentam a ampliação de
alternativas que continuam a ser pensadas e produzidas até a atualidade, inspirando
práticas espaciais e formas de ação.
150
151
CONCLUSÃO
participa desse processo o que não é visto, o que se omite em oposição ao que se
destaca. Em outras palavras, o poder das relações sociais é articulado às formas
específicas de visualidade (ROSE, 2007).
Por tal razão, articulamos a representação do mapa artístico analisado às teorias
das ciências sociais que mais pareciam corroborar e reafirmar seus discursos,
contribuindo para sua reprodução e notoriedade atuais. Nesse sentido, o
póscolonialismo e o pósdesenvolvimento nos ajudaram a compreender a função social
dessa representação, associando as ideais e demandas que o Sul global pode expressar
por meio da apropriação de construções como estas. Assim, tanto o mapa artístico,
como o póscolonialismo e o pósdesenvolvimento procuraram desconstruir visões de
mundo homogeneizadas pela perspectiva hegemônica ocidental, seja por meio textual
ou meio imagético.
O mapa de Torres-García, por meio de sua construção artística, propõe uma
nova visão de mundo através da inversão da orientação padronizada pela cartografia
científica ocidental. Mais do que um simples questionamento das regras cartográficas,
essa inversão abarca uma compreensão política, uma vez que se apropriar do Norte é
também se apropriar do sentido metafórico de superioridade que foi associado a essa
orientação por meio da padronização e repetição da representação ocidental de mundo.
Assim, a motivação e a sensibilidade de inverter o Sul para a porção de cima do mapa
tinha o intuito de reivindicar a importância e valorização desse espaço global.
Por sua vez, as teorias póscoloniais e pósdesenvolvimento, por meio de suas
pesquisas acadêmicas, propõem uma análise crítica sobre o colonialismo e sobre o
discurso do desenvolvimento, focados nas desigualdades formuladas e nos mecanismos
de manutenção das mesmas. Para esses teóricos, as estratégias que levaram à hegemonia
dos países do Norte foram combinadas a uma série de ações que levaram a dependência
dos países do Sul, e essa dinâmica se mantém ao longo de tempos. Eles procuram
evidenciar as limitações da teoria do sistema-mundo moderno e da teoria do
desenvolvimento em solucionar as desigualdades históricas entre blocos de países. Por
conseguinte, discutem também que tais teorias, na verdade, contribuíram para a
permanência de duas coisas: da lógica da dependência e do imaginário de divisão
binária do mundo entre Norte e Sul.
É nesse sentido que esse mapa invertido resguarda ampla semelhança e
complementaridade com essas teorias sociais do século XX, associando a contribuição
textual e imagética para a estruturação de uma visão crítica sobre as formas de
153
112
The dominance of this knowledge system has dictated the marginalization and disqualification of non-
Western knowledge systems. In these latter knowledge systems, the authors conclude, researchers and
activists might find alternative rationalities to guide social action away from economistic and
reductionistic ways of thinking.
113
It is becoming increasingly evident, at least for those who are struggling for different ways of having a
voice, that the process of deconstructing and dismantling has to be accompanied by that of constructing
new ways of seeing and acting.
154
114
During the twentieth century, Latin America remained for the most part aprisioned in the historical
nexus formed by the imbrication of the issues of nation, identity, and democracy - questions and problems
that elsewhere, in Europe, has been treated not simultaneously but successively. The disentanglement or
cutting of this nexus seemed to begin with the Mexican revolution. But the defeat of the national-
democratic revolution in the other countries not only failed to resolve the problem but created an
unresolved crisis of power, whose most exact expression is the persistence of that peculiar and
specifically Latin American political creature, populist-developmentalist-socialist nationalism, whose
components are juggle differently in each country.
155
115
The Americas are the historical product of European colonial domination. But they were never merely
an extension of Europe, not even in the British-American zone. They are an original creation, which have
taken long to mature and to abandon their dependent posture vis-à-vis Europe, especially in Latin
America.But today, if one listens to the sounds, the images, the symbols, and the utopias of the Americas,
onde most acknowledge the maturation of an autonomous social pattern, the presence of a process of
reinvention of culture in the Americas.
156
proposta. Assim, tal qual mencionamos acima, sua notoriedade atual é associada a
visualização de novas perspectivas de olhares e nova pluralidade de vozes nos
entendimentos e ações sobre os países do Sul. De fato, essas concepções críticas que
surgem da desconstrução das formas hegemônicas do conhecimento, parecem guiar o
Sul global para uma nova direção que foi representada por Torres-García em seu Mapa
invertido da América do Sul.
Por isso, quando alguns autores póscoloniais, como Slater (2004), clamam para
que os entendimentos e diferentes agentes do conhecimento idealizados no Sul global
devem ser criticamente incluídos na compreensão sobre o globo, eles não se referem
apenas aos seus próprios textos, mas também as representações de mundos, que incluem
formas culturais e artísticas. Tais representações auxiliam na difusão desse debate, pois
geralmente apresentam propostas de visualização diferentes das convencionais,
fomentando questões sobre o conhecimento padronizado.
As representações de mapas artísticos podem apresentar diversas propostas, mas
é notória a recorrência das questões políticas do espaço. Quando artistas fazem mapas,
eles são impulsionados pela sua relação com o espaço, percebendo mudanças,
intervenções, desigualdades e exercício do poder. Esse tipo de mapa relaciona
representações de mundo com as relações de poder e motivações ideológicas de forma
autêntica e assumida. Diferentemente dos mapas institucionalizados, que por mais que
também recebam influência das relações de poder, essas são omitidas pelos padrões de
cientificidade. Assim, as ideologias que influenciam os mapas da cartografia passam a
ser objeto de estudo para serem evidenciados, enquanto os mapas artísticos já partem
desse pressuposto.
Uma vez que a proposta ideológica dos mapas artísticos é previamente expressa,
eles adquirem liberdade na representação de seus ideais, seja pela apropriação de
elementos cartográficos, pela inversão de orientação, pela aleatoriedade de projeções ou
mesmo por performances de intervenção no espaço. Com isso, os mapas artísticos
adquirem uma importante capacidade de impressionar, de sensibilizar e de causar
reflexão sobre as nossas relações com os espaços, reais ou imaginados.
Essa propriedade também está presente no mapa artístico de Torres-García,
constituído tanto de uma visão ideológica de mundo, como também de uma
sensibilidade artística que procurou inverter a orientação do mapa com o intuito de
provocar a curiosidade e a apreciação sobre o que procurava expressar: resumidamente,
a valorização das artes e de outros campos da América e a redução do domínio
157
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