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PENSAMENTO SOCIOPOLÍTICO BRASILEIRO: UMA NOÇÃO DE

BRASIL POR SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Marciano Girão da Silva


Discente do Programa de Mestrado, do ISCSP – Universidade de Lisboa
marcianogirao@gmail.com

Resumo: O presente artigo versa sobre a estreita relação entre a obra


produzida por um destacado escritor e historiógrafo brasileiro, Sérgio Buarque
de Holanda, e a construção de sua trajetória, a partir das influências recebidas
de seu pai, do meio onde desenvolveu sua carreira, seus posicionamentos
políticos e acadêmicos, a influência de outros autores brasileiros, sua
experiência fora do país, e as reflexões contidas em sua mais relevante e
conhecida obra, Raízes do Brasil. A partir de uma compreensão inicial de sua
biografia, o artigo estende seu percurso pela obra e seus mais relevantes
temas, finalizando com considerações acerca das intersecções observadas
entres elas.

Palavras-chave: Pensamento sociopolítico. Ideologia. Raízes. Formação social


do Brasil.

1. Introdução.

Em um momento em que o Brasil passa por crises em distintas ordens –


notadamente nos aspectos político, econômico e ético – a escolha do autor e
da obra revestem-se de particular significado.

Sergio Buarque de Holanda, em que pese ter escolhido como formação


acadêmica o Direito, sempre se destacou como jornalista, ensaísta, escritor e
nos anos em que foi professor das Universidades do Rio de Janeiro (URJ) e de
São Paulo (USP), no campo da História e das Ciências Sociais. Buarque de
Holanda participou de forma ativa dos grandes acontecimentos de sua época,
como correspondente de jornais, atuando no país e no exterior, o que lhe
conferiu uma experiência impar, de analisar o país sob a perspectiva interna,
de brasileiro, e externa – de quem sai e olha para os fatos a partir de um
distanciamento que permite uma leitura mais isenta.

Em 1936, em seu retorno ao Brasil após uma temporada como


correspondente em Berlim, Buarque de Holanda lança o livro “Raízes do
Brasil”, livro onde propõe um outro olhar sobre a História do Brasil, ressaltando
aspectos singulares, próprios da organização sociopolítica do país. Raízes do
Brasil foi considerada uma produção visionária, sendo até hoje vista como uma
das principais obras fundadoras da historiografia e das ciências sociais
modernas no Brasil, por apresentar categorias centrais para o entendimento da
especificidade histórica brasileira.

São do autor, por exemplo, as reflexões acerca do homem cordial,


incapaz de agir de acordo com a letra da lei; da relação entre a colonização
brasileira e a forma como as instituições se estabeleceram, permeadas pelo
espírito da expropriação, do desleixo, da desigualdade; da sociedade rural,
escravista, e da compreensão das cidades como instrumentos de dominação
portuguesa, por exemplo.

Caracterizado por seu espírito ao mesmo tempo boêmio e inquieto,


curioso e sociável, Buarque de Holanda reúne os dados pesquisados e as
evidências coletadas em suas pesquisas à uma leitura refinada da sociedade e
dos traços que constituíram os pilares do que conceitua-se como sociedade
brasileira. Uma sociedade ainda jovem, ainda sem parâmetros organizativos
bem consolidados e com uma ética difusa – que segue em busca de conhecer-
se melhor para, enfim, avançar em seus marcos de civilidade, crescimento e
diretos civis.

2. Desenvolvimento.

2.1 O pensamento sociopolítico brasileiro: uma noção de brasil por


Sérgio Buarque de Holanda.

Sergio Buarque de Holanda assevera1:

Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de


uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos
deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a
multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o
panorama da História e são muitas vezes mais interessantes e
mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a
História (1985, pp. 173-174).

Para realizar um estudo mais aprofundado do pensamento sociopolítico


brasileiro, o presente artigo toma como base Raymundo Faoro2, quando em
seu texto Existe um Pensamento Político Brasileiro? (1994) traz no referencial
teórico, uma diferenciação entre a filosofia política, o pensamento político e a
ideologia. Para o autor, “o pensamento político seria uma espécie de logos que
direcionaria a práxis” (RICUPERO, 2011) e, no caso do Brasil, isso se daria de
uma maneira subordinada à metrópole, já que o Brasil foi um país colonizado.
A crise do absolutismo e do sistema colonial apontaria dois possíveis rumos:
um setor português que, com ideais neopombalinos, buscava a manutenção
das relações com a metrópole e a de certos setores nativistas, que trazia a

1
DIAS, Maria Odila Leite da Silva (org.). Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, Ática, 1985,
p. 173-174 (Grandes Cientistas Sociais, 51).
2
Raymundo Faoro (Rio Grande do Sul, 1925 - Rio de Janeiro, 2003). Advogado, jurista e
escritor brasileiro. Disponível em: < http://www.interpretesdobrasil.org/sitePage/65.av > Acesso
em: 20 de nov. 2016.
influência do liberalismo importado para romper de vez com a condição
colonial.

O liberalismo, fundamentalmente representado pela classe dos senhores


rurais, saiu derrotado já que, apesar do rompimento com a metrópole, o Brasil
continuou como uma Monarquia, e o Estado assumiu um papel de protetor de
direitos. Ou seja, “no Brasil haveria o liberalismo como filosofia política e como
ideologia, mas não como um pensamento político”.

Faoro ressalta, portanto, a dificuldade de se ter um pensamento político,


por esta ser uma obra coletiva, que demandaria uma sucessão de gerações
para a construção, mostrando certo ceticismo na constituição de um
pensamento político coerentemente brasileiro.

Partindo desta exposição, a proposta deste artigo é de alinhar as ideias


de um representativo autor brasileiro do século XX, Sérgio Buarque de
Holanda, para a formação de uma ideia de Brasil.

Do prefácio do livro de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil


(1936), escrito pelo sociólogo e literato Antônio Candido3, emergem ainda dois
volumes - e seus respectivos autores – que podem ser classificados, em
conjunto com Buarque de Holanda, como intérpretes do Brasil: Casa Grande e
Senzala (1933), de Gilberto Freyre e a Formação do Brasil Contemporâneo
(1958) de Caio Prado Júnior. São livros-chave que trazem elementos centrais
da constituição do tecido social brasileiro, e onde se ressaltam questões até
hoje polêmicas, como a denúncia de preconceito entre raças, a crítica a
fundamentos “patriarcais” e agrários, a desigual distribuição de renda que
acumula quase todo o capital do país nas mãos de poucos... (CANDIDO,
1967). O legado intelectual e político destes três autores e das citadas obras
são provavelmente o mais completo conjunto de dados e reflexões capazes de
desenhar, com relativa isenção, as linhas básicas para a interpretação
sociopolítica do país.

Para uma análise mais detida, o presente artigo se detém sobre Raízes
do Brasil, ressaltando a interdependência entre a biografia do autor e sua obra,
da configuração do retrato deste Brasil que ainda se constrói e consolida sua
real identidade.

2.2 O autor: sou o pai do Chico.

Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo, no dia 11 de julho de


1902. Seu pai, Cristovam Buarque de Holanda, era um migrante
pernambucano, professor de botânica da escola de Farmácia e Odontologia.
Entre os traços deixados por sua criação, destaca-se a necessidade de reação
contra o autoritarismo paterno. Teve uma formação escolar formal, realizando

3
Antônio Candido de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 1918). Escritor, crítico literário, sociólogo
e professor. Disponível em: < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa378/antonio-
candido>. Acesso em: 20 nov. de 2016.
seus estudos secundários no Colégio São Bento, onde foi aluno do historiador
Afonso de Taunay4. Sob a influência do professor, começa a publicar alguns
artigos. Apreciava as artes desde pequeno, tocava piano, gostava de dançar,
compunha valsas, gostava de ler e de escrever.

Muda-se com a família em 1921 para o Rio de Janeiro e lá completa


seus estudos na área do Direito, sem muito afinco, mais interessado na vida
boêmia, nas conversas nos bares, cheio de amigos intelectuais Aos 20 anos,
na efervescência da vida, participou como correspondente e jornalista da
Semana de Arte Moderna (1922) e do movimento modernista no Rio de
Janeiro, o que lhe deixou como marca “uma ânsia em (re) descobrir o Brasil”
(RICUPERO, 2011, p. 103).

Na verdade, nunca chegou a exercer a profissão de advogado. Tornou-


se crítico literário e jornalista, o que lhe rendeu diversas ida à Europa. Foi
jornalista correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha entre os anos de
1929-1931 e lá amadureceu a vocação de historiador, aproximando-se do
historicismo, linha historiográfica que considera as configurações do mundo
humano, num dado momento presente, como resultado de processos históricos
de formação, os quais são passíveis de ser mentalmente reconstruídos e,
portanto, compreendidos. É também na Alemanha que ele tem o primeiro
contato com a obra de Max Weber e assiste, do seu lugar de correspondente
jornalístico, a ascensão do Nazismo..

Segundo Reis (2007, p. 116):

Sérgio Buarque de Holanda é um outro ‘milagre de formação’.


Segundo seus biógrafos e analistas, possuía enorme erudição
em ciências sociais, literatura e artes, apesar de indisciplinado
e boêmio. Ainda na Alemanha, pensou em escrever um livro
sobre o Brasil e escreveu mesmo um volumoso texto[...]. Esse
texto volumoso deu origem a um dos textos mais curtos,
sintéticos, da historiografia brasileira: Raízes do Brasil, que
teria o título de Corpo e Alma do Brasil; ensaio de psicologia
social. Raízes do Brasil foi publicado em 1936, um bom tempo
depois do seu retorno da Alemanha. Aqui ele divulgará o
historicismo em suas pesquisas históricas, particularmente em
Raízes... ( ) onde ele se mostra em grande parte weberiano.

No ano da publicação do livro Raízes, ele se casa com a pianista e


pintora Maria Amélia de Carvalho Cesário Alvim, com quem teria sete filhos:
Sérgio, Álvaro, Maria do Carmo, além dos músicos Ana de Holanda, Cristina
Buarque, Heloísa Maria (Miúcha) e Francisco, mais conhecido como Chico
Buarque.

Sérgio Buarque era funcionário público, assim como seu pai, se


tornando professor em diversas universidades. No mesmo ano de seu
4
Afonso d'Escragnolle Taunay (Nossa Senhora do Desterro, 1876 — São Paulo, 1958) foi um
biógrafo, historiador, ensaísta, lexicógrafo, romancista, heráldico e professor brasileiro.
Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_d%27Escragnolle_Taunay> Acesso em:
20 nov. de 2016.
casamento, se tornou professor da Universidade do Distrito Federal (UDF),
onde foi assistente do historiador francês Henri Hauser. Com a extinção da
Universidade em 1939, passou a exercer funções burocráticas até 1941,
quando fez algumas viagens aos EUA como professor convidado. De volta ao
Brasil, foi morar em São Paulo e assumiu a direção do Museu Paulista,
substituindo seu velho mestre, Afonso de Taunay. Tornou-se professor da
Escola de Sociologia e Política de 1947 a 1955. Viveu na Itália entre 1953 e
1955, onde lecionou a cátedra de estudos brasileiros da Universidade de
Roma. Na Universidade de São Paulo (USP) exerceu o cargo de professor
entre 1958 a 1969, quando se aposentou em protesto contra o AI-5, que havia
afastado diversos colegas das salas de aula. Entre algumas obras deste
período podemos citar: Cobra de Vidro (1944), uma coletânea de artigos e
ensaios que anteriormente publicara nos meios de imprensa; Moções (1945),
Caminhos e Fronteiras (1957), Visões do Paraíso (1959). Suas publicações em
jornais e periódicos continuaram.

A partir de 1960, passou a coordenar o projeto da "História Geral da


Civilização Brasileira”. Neste projeto publicou, Do Império à República (1972),
texto que, a princípio, fora concebido como um simples artigo para uma
coletânea, mas que, com o decurso da pesquisa, acabou por ser ampliado num
volume independente. Trata-se de um trabalho de história política que aborda a
crise do império brasileiro no final do século XIX, explicando-a como resultante
da corrosão do mecanismo fundamental de sustentação deste regime: o poder
pessoal do imperador.

Em 1962, assumiu a presidência do recém-fundado Instituto de Estudos


Brasileiros da Universidade de São Paulo. Entre 1963 e 1967, foi professor
convidado em universidades no Chile e nos Estados Unidos e participou de
missões culturais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura em Costa Rica e Peru.

Sua vida intelectual foi bastante plena, era uma figura muito requisitada
pelas universidades, tanto nacionais quanto estrangeiras, apesar da sua dicção
difícil. Além disso, tinha um grande prestígio intelectual no Brasil, que de certa
forma o poupou de perseguições mais intensivas, no período da ditadura.

O cidadão Sérgio Buarque não se distanciou da política, sendo um dos


fundadores da Esquerda Democrática em 1946, e do Partido dos
Trabalhadores (PT), em 1980. Por conta de sua participação no PT e na
condição de intelectual destacado é que o centro de documentação e memória
da Fundação Perseu Abramo (fundação de apoio partidário, instituída pelo PT
em 1996), recebe seu nome: Centro Sérgio Buarque de Holanda:
Documentação e Memória Política.

Apesar da vida tão intensa e do alcance de suas realizações, gostava de


se referir a si mesmo como “o pai do Chico”, seu filho cantor e compositor mais
famoso. Entre os traços marcantes deste intelectual fica-nos, segundo Antonio
Candido, a combinação do imenso erudito com a criatura alegre e
inconformada, não convencional.
Em 1982, devido a complicações pulmonares, Sérgio Buarque de
Holanda faleceu em São Paulo, no dia 24 de abril, faltando poucos meses para
completar 80 anos.

2.3 A obra: Raízes do Brasil.

Tomando como referência o cenário brasileiro que consta no posfácio da


edição do livro Raízes do Brasil publicado na Alemanha, escrito pelo professor
Sérgio Costa5, observa-se que, quando o livro foi publicado na então capital,
Rio de Janeiro, o Brasil já era independente há mais de cem anos. A
escravidão havia sido abolida em 1888, o país era uma república formal desde
1889 e apenas começava a se emancipar da dominação exercida pelas
oligarquias agrárias. A obra foi publicada pela Editora José Olympio, no ano de
1936, e o país contava com um pouco menos de 40 milhões de habitantes -
mais da metade destes, constituída de analfabetos. Uma sociedade
eminentemente agrária e pobre, onde cerca de 70% da população vivia em
zonas rurais, geralmente em condições precárias. Na busca de articular
distintos níveis de compreensão destes contextos, Sérgio Buarque de Holanda
deu um grande mergulho na história brasileira, desenvolvendo um diagnóstico
sócio-histórico que ia muito além das pesquisas conduzidas à época.

Em obra tão largamente discutida e analisada nos meios acadêmicos,


importante destacar algumas preocupações do autor, especialmente aquelas
relacionadas ao tipo de colonização que os portugueses trouxeram às terras
brasileiras; o patriarcado rural aqui estabelecido; o conceito do “homem cordial”
(que será abordado mais adiante); e o paradoxo do liberalismo brasileiro.

Já no início da obra, Sérgio Buarque de Holanda traz a constatação da


dificuldade de construção de uma identidade e de um projeto de nação
brasileira. O fato de o Brasil ter sido colonizado por uma nação ibérica, mais
plástica, devido sua localização entre o continente africano e o europeu,
facilitou, já que o povo português era de certa forma destituído de um orgulho
da raça, pois era um povo mestiço, anteriormente ao início das grandes
navegações. Esta plasticidade “contribuiria até para uma postura de certo
desleixo” (RICUPERO, 2003, p. 107), mas que não foi suficiente para torná-lo
plenamente adaptado, pois havia o sentimento de desterro, mesmo em terras
consideradas seu território.

Para Sérgio Buarque o português integrou-se tardiamente à Europa, o


que de certa forma desenvolveu o que ele chama de cultura da personalidade,
algo como se cada indivíduo conquistasse o seu mérito por si próprio e não por
uma herança de nome. Seriam indivíduos autossuficientes, corajosos e
heroicos, que tem como valores a honra, a fidelidade e a fidalguia. O povo
ibérico com isso, recusaria a questão da hierarquia, tendendo a um
individualismo, levando a uma espécie de frouxidão da estrutura social, criando

5
Professor de sociologia da América Latina do Department of Political and Social Science,
Institute for Latin America Studies, Freie Universität Berlin e pesquisador associado do Centro
Brasileiro de Análise
e Planejamento (Cebrap), São Paulo. <sergio.costa@fu-berlin.de>
assim, uma certa resistência à regra social, à lei, dificultando a governabilidade,
pelo menos na forma de democracia, como escreveu José Carlos Reis 6, no
livro As Identidades do Brasil.

Assim como Faoro, Sérgio acreditava que a implantação de um modelo


social e político europeu nos trópicos, deixou marcas indeléveis, sendo desta
forma, a base da imagem de Brasil. Nas palavras de Reis (2007, p. 123)

Vivemos nos trópicos sem uma cultura adequada própria,


tropical. Participamos do desenvolvimento da cultura de um
outro lugar [...] Entre o conhecimento do Brasil e a realidade
brasileira há uma defasagem abissal; pensamos com ideias
inadequadas à nossa realidade social, ideias que, ao invés de
facilitarem nossa relação com a realidade, a impedem.

Para os citados autores, esta transposição forçada de identidade acabou


por gerar impedimentos à modernização nacional, à racionalização na questão
administrativa, econômica e social no país. Enquanto para Gilberto Freyre em
Casa grande e Senzala fica certa nostalgia desse espírito português, já para
Sérgio Buarque, este sentimento deveria ser extinto, para que o povo brasileiro
pudesse mudar - e não só porque quisesse, mas por necessidade e premência.
Discordava também da visão de Oliveira Viana7 que a identidade brasileira era
una e fixa, ideia que está na obra do referido autor. Destaca a dificuldade das
instituições importadas com a realidade social brasileira, dificuldade que as
elites republicanas não tinham interesse em demonstrar, como fica explicitado
no seguinte trecho do livro:

Já temos visto que o Estado, criatura espiritual, opõe-se à


ordem natural e a transcende. Mas também é verdade que
essa oposição deve resolver-se em um contraponto para que o
quadro social seja coerente consigo. Há uma única economia
possível e superior aos nossos cálculos para compor um todo
perfeito de partes tão antagônicas. O espírito não é força
normativa, salvo onde pode servir à vida social e onde lhe
corresponde. As formas superiores da sociedade devem ser
como um contorno congênito a ela e dela inseparável:
emergem continuamente das necessidades específicas e
jamais das escolhas caprichosas. (HOLANDA, 1998, p. 188)

Segundo a historiadora Maria Odila Dias era o lado historiador de Sérgio


Buarque que se mostrava preocupado em elaborar formas de apreensão do
mutável, do transitório e dos processos do que ainda estaria por vir a ser a
sociedade brasileira (DIAS, 1998, p. 16)

6
José Carlos Reis é professor de história e historiografia do Departamento de História da
UFMG. Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/0668531706514549 >. Acesso em: 20 nov. de
2016.
7
Francisco José de Oliveira Viana (Saquarema, 1883 — Niterói, 1951) foi um professor, jurista,
historiador e sociólogo brasileiro, imortal da Academia Brasileira de Letras, autor de diversas
obras como por exemplo Populações Meridionais do Brasil (1920)
Raízes do Brasil traz no capitulo dois, de forma mais contundente, a
análise do historiador sobre a diferença entre os modelos de colonização
implantados pelos espanhóis - que traziam, por exemplo, como característica a
busca de uma linearidade na construção das cidades, onde os acidentes
topográficos não eram empecilho para impor sua forma - com a colonização
dos portugueses, que atendia às demandas impostas pela geografia, limitando
a forma de construção de suas cidades. Estas duas formas de construção
trazem para Sérgio Buarque outros dois conceitos, de inspiração weberiana: o
ladrilhador, relacionado à forma colonizadora espanhola, que mostrava uma
certa ordem e organização, e o semeador, tomando a referência o modelo
português, com características de desleixo e um certo abandono (HOLANDA,
p.43).

A ideia subjacente à essa comparação seria a de que os espanhóis viam


os territórios além-mar como uma extensão de seu reino, enquanto que os
portugueses tinham como objetivo principal a exploração para a
comercialização. Essa ideia foi bastante explorada por Caio Prado Junior, no
livro Formação do Brasil Contemporâneo.

O dualismo por sinal é uma característica que permeia toda a obra de


Buarque de Holanda, referenciando-se no conceito de tipo ideal de Weber para
distinguir a polarização que mostra sistematicamente a diferenciação entre os
modelos de colonização implementados no além-mar pelas potências ibéricas.

Outros exemplos de conceitos estão nas figuras do trabalhador e do


aventureiro, utilizadas para demonstrar a maneira que o homem exerce uma
atividade. No aventureiro o que interessa é o objetivo final, pouco importando
os meios utilizados para alcançá-lo. Para o aventureiro, é bem melhor coletar
uma fruta de uma árvore do que ter o trabalho de plantá-la. Ele prefere ignorar
obstáculos, é espaçoso, criativo, enxerga além, não está preocupado com a
paz ou estabilidade. Este perfil estaria presente em ladrões, empresários
desonestos, gente que manda fazer a exploração do trabalhador.

Já o perfil trabalhador busca observar as dificuldades a transpor. É


realista, dominado pelos meios, busca a estabilidade, tem como horizonte o
curto prazo e não suporta a maneira desestabilizada do aventureiro. Segundo
Buarque de Holanda, havia a participação de ambos os perfis na constituição
da nação, apesar de vincular o aventureiro ao modo como Portugal tratava o
Brasil: “ambos participavam, em maior ou menor grau, [...] e é claro que, em
estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real
fora do mundo das ideias” (HOLANDA, 1998, p. 44-45).

Nessa perspectiva, ressalta que a exploração das terras brasileiras foi


feita de maneira não planejada, não houve uma fundação de uma sociedade
voltada para a agricultura, não havia uma técnica no manejo desta terra,
apenas se usufruía o que ela podia oferecer, na depredação da natureza, em
um total desleixo, sem planejamento ou método racional de ação. Misturada à
relação com a terra, aparece a relação de exploração dos índios e depois dos
negros. Tanto Sérgio Buarque quanto Gilberto Freyre destacam a grande
contribuição dos índios e dos negros na construção do Brasil.
Entretanto, relevante pontuar que, enquanto o autor de Casa Grande e
Senzala ressalta a harmoniosa relação entre colonizadores e colonizados,
senhores e escravos, não havendo em sua obra nada que aponte uma ação
política no sentido de tornar estas relações menos assimétricas na sociedade
brasileira, o autor de Raízes ressalta as dificuldades administrativas, sociais e
políticas como resultantes da forma em que o país foi colonizado pelos
portugueses.

Para o autor, a mistura destas raças acentuou certas características


plásticas do português: “não havia uma relação de cooperação e sim para o
interesse individual. Quando se uniam, era por razões afetivas e religiosas, não
por interesse racional.” (REIS, 2007, p.126). Como observado, portanto, no
posfácio do professor Sérgio Costa, o autor traz em sua análise, ideias políticas
que o diferenciam tanto de Gilberto Freyre como de seu contemporâneo Caio
Prado Junior.
Sérgio Buarque de Holanda [grifo meu] rejeita radicalmente a
concepção dos portugueses como bons soberanos, bem como
a exaltação da “mestiçagem” como alternativa para a
democracia: Holanda quer superar as distâncias políticas e
busca consistentemente o sujeito político, que possa
personificar os interesses dispersos da maioria [...] aponta essa
preocupação em Raízes do Brasil não apenas na economia
como também na política, à qual atribui um grande potencial
para moldar a história [...] O que Buarque de Holanda chama
de “nossa revolução” corresponde, na verdade, a uma
democratização profunda, que levaria à superação da
hegemonia de uma pequena elite. No centro da “revolução”
conforme a concebia Buarque de Holanda, portanto, não está a
redistribuição social, e sim a neutralização das assimetrias
políticas. (2007, p. 13)

Outro aspecto explorado no capítulo três do livro está o que Buarque de


Holanda chama de “civilização de raízes rurais”, que segundo o próprio, só foi
modificada com a Abolição da Escravatura, em 1888. É a família rural que
domina a política do Brasil, desde a sua independência. O Brasil viveu uma
situação sui generis de subordinação das cidades com relação ao campo. O
grande latifundiário e senhor de escravos era considerado o “cidadão”. A
habitação destes senhores era em suas terras lavradas, indo à cidade apenas
nas ocasiões de festejos e solenidades. Nas cidades moravam os pequenos
comerciantes, artesãos, mecânicos e as autoridades que representavam a
coroa. Buarque de Holanda traz assim, algo que tanto Oliveira Vianna quanto
Gilberto Freyre já traziam em suas obras, a imagem da família patriarcal, sendo
esta, a única forma institucional onde a autoridade não era questionada.

Para ajudar a entender o conceito de homem cordial, considerado por


muitos a ideia central do livro, se faz necessário entender - a partir do modelo
patriarcal acima citado - a invasão do público pelo privado, com o indivíduo se
comportando como se estivesse no seu espaço doméstico. A administração do
Estado Nacional nunca foi caracterizada pela agilidade; e a burocracia não é
imparcial ou eficiente, como Weber a idealizou. Pelo contrário, se dá no Brasil
desde os tempos de sua análise, seguindo a lógica familiar, protegendo
conhecidos, favorecendo as relações interpessoais. A lógica não é objetivar as
ações pensando numa maneira de favorecer a todos de maneira igualitária,
mas sim a questão do favorecimento através do clientelismo. A política se torna
coisa de chefes familiares e não de Estado.

Um dos primeiros problemas apontados em seu pensamento


sociopolítico seria no estabelecimento do Estado democrático, como nos alerta
Ricupero:

Até porque a relação entre família e Estado, diferentemente do


que sugerem teóricos políticos desde Aristóteles, não seria
tanto de continuidade, mas de oposição: do geral sobre o
particular [...] No caso da democracia liberal, o choque com a
situação brasileira, em que prevalece a família patriarcal, seria
ainda maior [...] a parcialidade, que o ambiente doméstico
favorece, seria incompatível com a atitude neutra diante dos
cidadãos, implícitas na democracia liberal. (2001, p. 114)

É no meio deste seio patriarcal que surge o tipo ideal do homem cordial,
que pode ser lido como um perfil psicossocial e também, como forma de
socialização. Esta cordialidade não está relacionada ao comportamento dócil
dos brasileiros, muito menos está relacionada a uma forma pacata ou inocente
na condução das relações sociais. A relação com o termo cordialidade
corresponde a sua origem etimológica – o que vem do coração, aproximando-
se da explicação apontada pelo professor Costa:

[...] tentativa constante de personalizar todas as interações


interpessoais: em primeiro plano devem estar os sentimentos, não o
anonimato da ordem legalizada que promete tratar a todos como
iguais. O “homem cordial” quer ser chamado pelo primeiro nome – de
preferência, por um diminutivo com “nhô” ou “nhá” – e não quer ser
tratado como apenas mais um entre milhões de cidadãos. Ele
corresponde a um sistema político no qual apenas amizades e
lealdades pessoais são relevantes, porque as decisões tomadas sob
influência das emoções não precisam seguir uma lei ou uma
argumentação universal; sua justificativa é sempre pessoal e
particular. A reprodução de hierarquias do poder anda de mãos
dadas com este padrão político. (2013, p. 15)

O homem cordial quer a intimidade das relações, quer ser amigo. É o


cara “gente boa”. Não aceita a impessoalidade no tratamento, é individualista.
Ele está pronto para assimilar qualquer ideia, desde que ela seja-lhe
apresentada de maneira afetiva, não se preocupando em buscar a
racionalização de análise mais profunda, por isso, aceita bem dogmas. No
Brasil de hoje este homem cordial pode ser visto na forma denominada “jeitinho
brasileiro” quando se precisa utilizar de alguma instituição pública ou privada,
pois nestes espaços vale-se de conhecidos, ou mesmo, de conhecidos de
conhecidos para “facilitar” ou “ajudar o desembarace” de tramitações
burocráticas.

Outra faceta do chamado homem cordial está bem explicitada na


seguinte frase: “você sabe com quem está falando?”. Mais uma vez a
impessoalidade exigida da Administração Pública é colocada de lado,
revelando uma falsa igualdade brasileira, quando figuras de destaque como:
personalidades famosas, filhos de funcionários ou os próprios funcionários
ligados ao Estado, pessoas de nível econômico mais elevado, se valem do seu
“status” social para não seguir as regras, sejam as leis regulamentas por um
código escrito, sejam as regras de convivência social. Estas pessoas
demostram que, quer seja pela questão social, profissional, econômica ou
hereditária, não devem ser questionadas em suas ações, revelando assim, um
conflito sobre a percepção do tecido social , que estaria composto por quem
deve cumprir as regras, e aqueles que não tem a obrigação de cumpri-las.
Esta relação foi explorada mais recentemente (1979) pelo antropólogo Roberto
da Matta num ensaio intitulado “Você sabe com quem está falando?”

A democracia é outro tema caro para o autor que considera que, no


Brasil, ela sempre foi “um mal-entendido”. Considera que os grandes
movimentos sociais e políticos presentes na história brasileira vieram de cima
para baixo, com a grande massa do povo indiferente a tudo. Buarque de
Holanda também tece críticas à intelectualidade local, pois reconhece nela
traços de uma mentalidade senhorial e conservadora.

Buarque de Holanda considera a abolição dos escravos, em 1888, como


o grande marco transformador da sociedade brasileira, trazendo um maior
desenvolvimento urbano, se opondo ao antigo predomínio rural. Esse novo
modelo foi se estabelecendo de maneira muito lenta - esta, inclusive, uma
característica comum às mudanças ocorridas no Brasil.

A ideia de abrandar as desigualdades sociais, tão cara às ciências


sociais brasileiras também foi muito defendida por Sérgio Buarque de Holanda
em sua obra Raízes do Brasil. As mudanças nas configurações sociais e
políticas prevalecentes no país acabaram sofrendo influências estrangeiras,
mas isso foi tomando uma forma original, distinta do modelo importado.

Ao apontar os paradoxos que acompanham a importação de valores


democráticos liberais em uma sociedade que um dia foi colônia de Portugal,
Sérgio Buarque de Holanda coloca uma espécie de idealização dos modelos
europeus, como uma fonte de valores genuínos e modernos, trazendo uma
forma de submissão política da elite brasileira, com relação à Europa.
Reconhece por outro lado, que as ideias importadas transformam as elites
brasileiras em dominadoras, por uma suposta europeização em cima da grande
massa, que não tem acesso a estas ideias.

Mais uma vez fica a imagem associada à Europa, de civilização e


modernidade, enquanto o resto do mundo seria incivilizado e obsoleto. Como
registra Sérgio Costa, “se considerado apenas em sua forma textual, Raízes do
Brasil deveria ser visto como um exemplo que confirma a representação
dicotômica entre uma Europa moderna e um resto do mundo arcaico” (2013, p.
18-19)
Raízes do Brasil é um clássico, apesar da pouca repercussão que tem
na sociedade em geral, dado a grandeza de um texto sofisticado, com uma
linguagem erudita, que traz ideias representativas de como foi se constituindo a
realidade sociopolítica brasileira. Importante ressaltar que o próprio autor dizia
que seu livro “já estava superado e plenamente datado” e que não era uma
pesquisa rigorosa e exaustiva. Essa uma referência importante, pois no
decorrer das décadas subsequentes à publicação de Raízes; e com as novas
configurações societárias advindas da Globalização, o Brasil também já sofreu
significativas transformações, nesta segunda década do século XXI, que o
colocam em uma situação de complexidade bem maior, na compreensão de
sua Sociedade e de seu projeto de Nação.

No entanto, inegavelmente, Raízes do Brasil figura entre os clássicos da


historiografia brasileira e é uma importante fonte para a compreensão e a
interpretação do que é a sociedade brasileira.

3 Considerações.

A tradicional e histórica linhagem familiar, o investimento forte em


estudos e leituras, associado a um contexto de ebulição de ideias e a uma
personalidade questionadora, reflexiva, que se articulava com nomes de
destaque de sua época, fizeram com que o estilo e a forma de composição do
pensamento político e literário de Buarque de Holanda se consolidassem como
diferenciados, na historiografia brasileira.

Raízes do Brasil, seu livro mais conhecido, representa um marco na


compreensão da sociedade brasileira, jogando luzes sobre como se organizou
e como reverbera, desde a colonização, passando pelo império, a república,
chegando até os dias atuais, um modelo de sociedade pautado no
individualismo, na busca de privilégios, na concepção de que a Lei deve servir
“aos outros” e não a aqueles que erigem suas carreiras públicas baseadas no
clientelismo e no compadrio. Raízes do Brasil é, em suma, uma bem sucedida
interpretação do Brasil, em sua estrutura social e política, a partir de suas bases
históricas nacionais.

Buarque de Holanda, coerente com sua trajetória e com as profundas e


ricas contribuições dadas por meio de suas produções historiográficas, tem um
lugar na história brasileira. Foi reconhecido e respeitado em sua trajetória e
pelo conjunto de sua obra, tendo recebido, entre outros, o Prêmio Edgard
Cavalheiro, do Instituto Nacional do livro; o Prêmio Juca Pato, da União
Brasileira de Escritores e o Prêmio Jabuti de Literatura, da Câmara Brasileira
do Livro.

Apesar de todo o reconhecimento e do lugar que ocupava na


Universidade de São Paulo, não hesitou em afastar-se da academia e da vida
pública durante a ditadura, em solidariedade a amigos que foram exilados por
suas convicções. Em busca de construir uma sociedade mais crítica, mais
engajada e participativa nos rumos do país, com um manifesto de ética e
cidadania em seu nascedouro - e que se contrapusesse ao modelo elitista e
desigual evidenciado em sua obra - integrou o grupo que fundou o Partido dos
Trabalhadores, um dos maiores movimentos de oposição da história recente do
país.
Sem dúvida, um dos maiores intelectuais brasileiros do século XX,
Buarque de Holanda é pleno em sua vida e obra, de um movimento de busca
de fortalecimento da Identidade – brasileira e latino americana. A partir de
todos os movimentos vividos e registrados por ele em sua extensa trajetória de
vida e trabalho, observa-se como um elemento regular em sua ação, a busca
de superar uma sentença por ele mesmo desferida, em Raízes: "o americano
ainda é interiormente inexistente".

3. Referências bibliográficas.

CANDIDO, Antônio (org.) (1998). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São


Paulo: Fundação Perseu Abramo.

FAORO, Raymundo (1994). Existe um Pensamento Político Brasileiro? São


Paulo: Ática.

HOLANDA, Sérgio Buarque de (1998). Raízes do Brasil. 26° ed. São Paulo:
Companhia das Letras.

PÉCAUT, Daniel. (1990). Intelectuais e a Política no Brasil: entre o povo e a


nação. Tradução de Maria Júlia Goldwesser. São Paulo: Ática (Série Temas)

REIS, José Carlos. (2007). As identidades do Brasil 1: de Varnhagen a FHC.


9° ed. Rio de Janeiro: FGV.

RICUPERO, Bernardo. (2011). Sete lições sobre as interpretações do


Brasil. 2°ed. São Paulo: Alameda.

Fontes Eletrônicas:

COSTA, Sérgio. O Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em: <


https://goo.gl/GfNAQf > Data de acesso: 20 nov. de 2016.

GOMES, Ângela de Castro. A experiência colonial e as raízes do


pensamento social brasileiro: Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de
Holanda. Disponível em: < https://goo.gl/3YXjUa > Data de acesso: 20 nov. de
2016.

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