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Drummond: poesia corporal e irônica

por Cristiano Perius1

“Lá onde não chegou minha ironia,


entre ídolos de rosto carregado,
ficaste, explicação de minha vida,
como objetos perdidos na rua.”

Carlos Drummond de Andrade

Apresentação: A poesia de Carlos Drummond de Andrade pode ser iluminada pelo


“sentimento do mundo”, isto é, a experiência corporal de sentir o mundo a partir da
sinestesia dos sentidos. As categorias conceituais do entendimento humano são
conduzidas ao solo originário, agramatical e pré-linguistico da percepção que
compreende o mundo com o corpo. A partir das categorias corporais da percepção há
uma imagem que se destaca entre as demais, a saber: a ironia. Trata-se de uma forma de
riso tímido e recuado à expectação do mundo ou, segundo as palavras do poeta, de um
“sorriso na face de um homem calado”. Como benefício do elemento fisionômico do
olhar que ri, é possível explorar a ordem fenomenológica do mundo bruto, antes do
conceito. Irredutível e irrepresentável, o mundo é visado em seu próprio ser, alheio a
perspectivas formalistas do entendimento.

Vou apresentar a vocês no dia de hoje uma leitura fenomenológica de


Drummond. Por fenomenologia entenda-se os conceitos da filosofia de Merleau-Ponty e
Husserl. De Merleau-Ponty importa o estatuto originário da percepção, de Husserl o
conceito de epoché (redução fenomenológica). A poesia de Drummond, no entanto,
como em geral toda a literatura, não pode ser traduzida por conceitos. Isto quer dizer
que os conceitos não são necessários para a compreensão poética, mas nos auxiliam a
fixar a sua intencionalidade. Os conceitos não vem de fora, como se a arte lhes servisse
de ilustração, mas lhes são imanentes ao seu próprio fazer e discurso.
Iniciemos, pois, lendo o Poema de Sete Faces:

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,

1
Cristiano Perius é professor de filosofia na UEM.
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

“O homem atrás do óculos e dos bigodes, de poucos, raros amigos”

representam um homem tímido. A timidez caracteriza-se pela dificuldade de exposição

corporal própria de um homem reservado à presença muda do olhar. Quem é o tímido?

Aquele que olha sem ser visto. A dimensão do olhar reaparece nos versos seguintes: “as

casas espiam os homens”. Em nenhum momento está posto o pensamento, os conceitos,

a eloqüência, a fala... Ao contrário, o poeta recua para a dinâmica muda do olhar. “Para

que tanta perna... pergunta o meu coração, porém meus olhos não perguntam nada.”

A referência aos óculos e bigodes é corporal e sensível, anterior a categorias abstratas e


conceituais do pensamento. Contra a tradição clássica que racionaliza a sensibilidade
artística, o “Poema de Sete Faces” consagra o olhar. Segundo Husserl: “A intuição de
uma obra de arte se completa ao seio de uma estrita colocação entre parênteses de toda
disposição existencial do intelecto, assim como de toda disposição do sentimento e da
vontade”. (Apud ESCOUBAS: 1991, p.13) A disposição estética implica uma mudança
de atitude em relação ao mundo natural. Nela [dimensão estética], os objetos são postos
entre parênteses, isto é, “reduzidos” a um modo de aparecer que suspende todo e
qualquer tipo de interesse, seja especulativo ou utilitário sobre as coisas. Em outras
palavras, a fenomenologia aproxima a experiência estética da experiência originária e
sensível, onde o mundo aparece em sua fenomenalidade pura, sem conceito. Se Husserl
aproxima a intuição fenomenológica da intuição estética, como ele mesmo diz [sic]: “o
ver fenomenológico é primo-irmão do ver estético”, é porque “o artista se comporta
como fenomenólogo e não como cientista ou psicólogo, que operam por observação, na
intenção de se informarem sobre a natureza e sobre o homem”. (ESCOUBAS: 1991,
p.13) Esta visão pura, “desinteressada”, corresponde a “neutralidade” da arte, isto é, a
ausência, em primeira instância, de valor moral e cognitivo para o produto estético.
Fenomenologia e arte estão unidas na mesma visada, que é olhar o mundo pela primeira
vez. Mais ainda, este olhar puro, sem conceito, vê o mundo sem equivalentes subjetivos
e objetivos. Que se leia, neste sentido, o comentário de Patrícia Limido-Heulot: “Os atos
do sentimento e da vontade: a alegria (pelo que é), a tristeza (pelo que não é), o desejo
(pelo que poderia ser), etc., são as tomadas de um partido existencial dos sentimentos.
Tal é a atitude natural ordinária. Trata-se de uma posição oposta a da intuição estética,
onde a existência disto que aparece não é posta como real, mas, entre parênteses.”
(LIMIDO-HEULOT: 2010, p.5) Em outras palavras, a redução fenomenológica aparece
espontaneamente na arte, pois destitui o olhar da obrigação de ver o mundo segundo
uma visão utilitária ou interessada. E isto é assim porque “a atitude estética, que aboliu
todo interesse natural, psicológico, ou mesmo teórico, é então inteiramente conduzida
para o prazer da aparição: é um prazer que deixa a existência fora de jogo para se
consagrar à aparição, aos seus modos, ao seu como, logo, uma atitude que se instala na
contemplação sensível para si e apenas para si [pour lui-même et pour lui seul].”
(LIMIDO-HEULOT: 2010, p.7) O olhar do artista, assim, opera a redução
fenomenológica, pois mobiliza o sensível como tal ao aparecer, sem predicação
lingüística, como forma de limite (e de paradoxo). Se o “Poema de Sete Faces” conduz
o silêncio do olhar ao estado máximo, é porque o sensível contém em si mesmo o
estatuto de objeto fenomênico, antes do conceito. A presença pura das coisas, anterior à
linguagem, confirma a prerrogativa de que a predicação lingüística corrompe a estrutura
do dado. Como afirma Maurice Blanchot: “A linguagem, como escritura, não é posição,
mas, proposição.” (Apud COLLIN: 1971, p. 196) Por essa razão, a redução
fenomenológica assume, aos olhos de Merleau-Ponty, na Fenomenologia da
Percepção, a admiração diante do mundo, isto é, o espanto de ver o mundo sem
conceito: “A melhor fórmula da redução é sem dúvida aquela que lhe dava Eugen Fink,
o assistente de Husserl, quando falava de uma ´admiraçãoˋ diante do mundo. A reflexão
não se retira do mundo em direção à unidade da consciência enquanto fundamento do
mundo; ela toma distância para ver brotar os fios intencionais que nos ligam ao mundo
para fazê-los aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e
paradoxal.” (MERLEAU-PONTY, 1945, p.viii) Se o “Poema de Sete Faces” edifica um
abismo entre a língua, que pergunta, e olhos, “que não perguntam nada” (v.13), é
porque o sensível possui a qualidade de ser originário em face à linguagem articulada 2.
Ver, sem perguntar, porque as perguntas nunca acabam, ao passo que o silêncio recua
ao solo perceptivo da presença muda do olhar. Não ter palavras significa perder o

2
Lembremo-nos que a fala, segundo a tradição da filosofia, é traduzida por lógos, razão discursiva, e, por
isso mesmo, articulada, no sentido de fônica, falada.
conceito das coisas, como a fala articulada é o conjunto de signos que constituem a
atualidade da língua. De fato, a fala conceitua, ao passo que a visão nunca é
interrompida. A fala reúne, ao passo que a visão dispersa. O coração pergunta, mas os
olhos não respondem. Apenas olham.

Bibliogr
afia

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_____. Autobiografia para uma revista. In: Confissão de Minas. São Paulo: Cosac e Naify, 2011

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COLLIN, Françoise. Maurice Blanchot et la question de l’écriture. Paris, Gallimard, 1971.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas. O jovem Drummond e seu grupo em papel jornal.
Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

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KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. 2ª
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LIMIDO-HEULOT, Patricia. L´expérience esthétique, entre feinte intentionnelle et épreuve réelle.


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NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Comanhia


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RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.

SANT'ANNA, Afonso Romano de. Gauche no tempo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

Conferência 2
Título: Drummond e o engajamento literário          
APRESENTAÇÃO: A conferência examina o tema do engajamento social do
artista na obra poética de Carlos Drummond de Andrade, adotando, como critério de
análise, as imagens produzidas a partir da atividade do olhar. Ligada ao corpo e a sua
dimensão sensível, as metáforas do olhar constituem uma distância intencional apta a
estabelecer uma relação de responsabilidade e de compromisso entre o eu lírico e o
mundo. Para discutir o alcance desse compromisso, comparamos as teorias do
engajamento literário de Jean-Paul Sartre e de M. Merleau-Ponty. Enquanto M.
Merleau-Ponty defende uma forma de engajamento perceptivo e apenas indiretamente
comprometido com a realidade social, Jean-Paul Sartre, ao contrário, compreende a
atividade literária a partir da categoria da ação, que mobiliza o engajamento explícito e
correlato à transformação do mundo. A poesia de Drummond, confrontada com esta
dupla compreensão do engajamento, satisfaz os dois conceitos.

O olho olha. Truísmo e paradoxo, pois o olhar que pousa nas coisas não
poderia permanecer. Pousar os olhos sobre as coisas significa, ao mesmo tempo, deixar
de ver. Manter a imagem ad infinitum é uma possibilidade da câmera. Tal mecanismo
ou modo de fixar imagens não serve para os olhos. O olhar percorre o que é visível
procurando significações, varre o mundo com a pretensão de descobrimento, alcança as
coisas a distância, sem possessão. A experiência do olhar significa a percepção de
imagens sob a opacidade do sensível. Nele estão as “retinas fatigadas” do poema “No
meio do caminho”, isto é, visão em carne e osso, não em pensamento.
A ideia representa, ao passo que o olhar apresenta. A palavra «ideia» já contém a
«ideia de luz», uma vez que é a matriz abstrata de algo sensível, a luz. A ideia de luz é,
então, a ideia da ideia de luz, pois recobrimentos metafóricos da luz. Trata-se de
perceber a linguagem como o conjunto histórico de sobreposições metafóricas
originadas no corpo. Ora, não temos ponto de vista absoluto, visão por clarividência,
mas coexistência com um mundo ambíguo e sensível.

O mundo te chama:
Carlos! Não respondes?

Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar.
RP, 121

Vamos observar a pausa entre as estrofes. À pergunta “O mundo te chama:


Carlos! Não respondes?” segue o intervalo interfrasal apropriado para os versos. O
salto corresponde ao silêncio da resposta, seguido pela réplica da pergunta: “Não
respondes?/ Quero responder.” Nenhuma resposta, apenas o desejo. A continuação a
seguir: “a rua infinita/ vai além do mar” pressupõe o olhar que estamos perseguindo,
mas também os outros sentidos (RP, 211): “seria impossível guardar todas as vozes/
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite”. A característica do sensível é a
experiência de aceder o mundo de maneira situada e fática, sem parti pris soberano ou
absoluto. Essa falha no coração do diamante não deve ser tomada como ponto fraco do
sensível, corrigido pelos instrumentos racionais do espírito. Versos como (AP,14) “Eu
não vi o mar./ Eu vi a lagoa...” sugerem a situação de Minas Gerais e a lagoa de Furnas.
Impossível falar do que não viu: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia.../ Mas eu
nunca fui lá.” (AP,13) Entretanto, o responder – de “Quero responder” – tanto quanto o
caminhar – de “Quero caminhar” – indica o esforço do olhar, o cansaço do caminho
nas retinas fatigadas do poeta.
A opacidade do sensível, que restringe a visão ideal do mundo, isto é, a clara
evidência, perfaz a experiência corporal e fática de ver o mundo. “Versos à Boca da
Noite” fala de objetos perdidos (RP,192): “Lá onde não chegou minha ironia,// ficaste,
explicação de minha vida,/ como objetos perdidos na rua.” A rua, onde os objetos se
perdem, está em sintonia com o “meio do caminho” e com a estrada pedregosa de “A
Máquina do Mundo”. Estrada, rua, pedra, objetos perdidos, conservam um ar de
família, pois a rua acolhe, com seu poder de metáfora, o exercício da vida. Há, na
passagem da vida, “objetos perdidos...” que são definitivos. Outros poemas
complementam esta imagem.
NOSSO TEMPO

Este é tempo de partido


tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,


viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.


As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.


Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.


As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
RP,126

PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano


não é o último dia do tempo.
............................................
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário.
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
RP, 131

RESÍDUO

De tudo ficou um pouco.


Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz


captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco)

Pouco ficou deste pó


de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.


..........................................
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vexes um rato.
RP,158

ESTÂNCIAS

Amor? Amar? Vozes que ouvi, já não me lembra


onde: talvez entre grades solenes, num
calcinado e pungitivo lugar que regamos de fúria,
êxtase, adoração, temor. Talvez no mínimo
território acuado entre a espuma e o gnaisse, onde respira
mas que assustada! uma criança apenas. E que presságios
de seus cabelos se desenrolam! Sim, ouvi de amor, em hora
infinda, se bem que sepultada na mais rangente areia
que os pés pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.
NP, 241

A primeira estrofe de “Nosso Tempo” percorre o tempo presente. “Em vão


percorremos...” se “a hora pressentida esmigalha-se em pó na rua”, na segunda estrofe,
lembra a imagem interceptante da pedra do meio do caminho. A forma decomposta da
substância mineral marca a impossibilidade de vida, a dinâmica de impedimento da
pedra. A terceira estrofe permanece no detrimento da pedra, subjacente às iniciativas de
manutenção de vida: “Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”. A pedra, o caminho,
o tempo presente, como temáticas constantes no itinerário da obra, estão a favor do que
procuramos sob o signo dos olhos: a facticidade do olhar. A quarta estrofe contempla o
ponto cego da visão, apesar da mobilidade dos olhos: “Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz dormindo acesa na
varanda? Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo”. A tensão estabelecida entre a
visita do olhar e a síntese precária, entre a luz e as miúdas certezas, antecipa o quinto
período, que suspende o trabalho expressivo: “Calo-me, espero, decifro”. O ponto cego
da visão, a sugerir um contato mudo com as coisas, é a «perda» metafórica do sensível,
que a ironia alcança. O olhar permanece no domínio da expressão, mesmo quando não
encontra signo apropriado: “Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e
duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas
querem explodir.” Se não por desabafo, a expressão conta às vezes com essa sorte de
resultado ingrato: muito esforço para pouco material verbal.
Em “Passagem do Ano” e, sobretudo, “Resíduo”, estão o ponto nodal do
mecanismo poético, quando é compensador. Poderíamos opor, aqui, os objetos
matemáticos ao poema como princípios diferentes de agenciamento do sentido, segundo
a dicotomia clássica “sensível X inteligível”. Enquanto o «ta mātema» tem a
propriedade de ser a operação objetiva entre dois fatores conhecidos3, o poema é
indeterminado. O resultado matemático é evidente e indiscutível, ao passo que o poema
não é claro. Em poesia, de fato, não temos certezas, porque é da natureza do poema a
sua ambiguidade. Se lhe acontece chegar a algum destino (onde podemos lembrar os
caminhos de bosque heideggerianos4), não é por dedução lógica ou inferência indutiva.
O discurso metafórico opera o significado de modo a obter resultados difusos entre o
dito e o não-dito, podendo ser silêncio. O resultado, de qualquer modo, é “algo fino
entre os dedos”5, porque não pode ser medido.

Perguntemos à poesia qual é seu resultado. Qual o ganho que a qualifica. “O


último dia do ano não é o último dia do tempo./ O último dia do tempo não é o último
dia de tudo./ Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens.” Entre o que

3
Estamos pensando na forma simples da equação. Por suposto que há operações de diferentes tipos no
pensamento matemático.
4
Holzwege, cuja tradução francesa tem título expressivo: Chemins qui mènent nulle part. (Caminhos
que levam a parte alguma.) Paris: Gallimard, 1978.
5
“Toda expressão aparece sempre como um rastro, nenhuma idéia me sendo dada em transparência, e
todo esforço para fechar a nossa mão sobre o pensamento que habita a fala apenas deixa entre os dedos
um pouco de material verbal.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960. p. 111.
(o poeta) leva ao que (a poesia) traz, entre o que pesa e o que fica, sobra uma franja de
vida. Essa rosa de Baudelaire, “ausente de todos os buquês”, tem isto de desconcertante:
conciliando o que é oposto, ser de estranha posse. Mas atenção: O “homem e seu
contrário”, a “voz e o eco” da poesia não são formas de manter, além da luz, as
sombras? Não temos, sobre a finitude do tempo, um equivalente extemporâneo? O
resultado poético é esse limiar, incerto duas vezes, sobre o que leva e o que deixa, onde
algo fica. Perdido no caminho ou achado, tanto faz, se o fazer que a poesia alcança é a
ironia do olhar. Outro poema dizia que “de tudo fica um pouco”. — “Do medo, do asco,
da rosa ficou um pouco. De luz, de ternura ficou um pouco (muito pouco). De tudo
ficou um pouco.” Esse “abismo” da expressão, abismo do “pequeno” resultado, é, se
quisermos entender a «perda» metafórica, um paradoxo. Devemos nos acostumar ao
pouco da poesia ou, melhor, entendê-lo como irônico? A princípio, o olhar perde-se, por
certo, mas, para apreender. A perda da metáfora comunga com o ganho. Não
deixaríamos de ver se não tivéssemos visto. Desviar os olhos significa já ter visto, assim
como a metáfora busca, sob a pele aparente das coisas, novas semelhanças. O final dos
versos de “Estâncias” guarda uma breve consideração que serve de paralelo ao
conjunto do poema: “(...) Sim, ouvi de amor, em hora infinda, se bem que sepultada na
mais rangente areia que os pés pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.” [grifo
nosso] Apesar da conjuntura de metáforas em curso no poema, queremos apontar que
nos termos desta lei estão os “objetos perdidos na rua” que já havíamos encontrado. A
ironia estabelece um procedimento avesso ao esperado. Manobra o sentido atenta ao que
se perde sob o adquirido, fazendo ver o que não está dito. Tal experiência reflete o que
Merleau-Ponty diz sobre a percepção: “não é uma segunda positividade, um segundo
mundo que exporia suas riquezas sobre um segundo sol.” (MERLEAU-PONTY, 1960,
p. 29) Mais perto do sensível, “onde os pés pisam”, não produz a adequação perfeita
entre o solo úmido de significações e o universo etéreo, não reconstrói o sentido
segundo as leis de equivalência de uma estratosfera inteligível, não acede às linguagens
puras e sem ambiguidades de forma a purificar o sensível de sua opacidade intrínseca,
ao contrário, retrata o mundo sem conceitos ou juízos prévios à experiência corporal da
percepção6.
***

Se nós, no primeiro momento, destacamos a aceitação da perda – como


movimento interno ao sensível –, destacaremos, agora, a ironia do olhar. O desejo de
ver, que marca as “pupilas gastas na inspeção contínua” e as “retinas fatigadas” do
poeta, será marcado por uma nova característica: o riso.
A poese do olhar é apta a perceber os “objetos perdidos na rua” como forma
de sedimentação verbal e elemento de resíduo sobre o caminho. A forma da ironia
parece ser, inicialmente, o exercício de linguagem que veicula a perda de forma a tirar
proveito dela, sem pretensões sobre o perdido. O encontro do olhar com a expressão
irônica é motivo de escândalo, mas, também, de humor e riso:
(...) O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. Ó rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.
RP,222

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.


O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!

A boca também não sabe.


Os olhos sabem — e calam-se.
..........................................
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.
RP,199

O “sorriso/ na face de um homem calado” lembra a fisionomia tímida do


poeta, “sério, simples e forte”, que “quase não conversa”, de “poucos, raros amigos”,

6
Esta inversão é irônica se consideramos a fenomenologia de Merleau-Ponty. Ao contrário de uma longa
tradição da História da Filosofia, que enxergava um déficit nos dados dos sentidos, a ser corrigido pela
operação racional, para o fenomenólogo da percepção, o entendimento é que é deficitário, ao passo que o
sensível é originário, pois tem a dignidade de ser primeiro, imediato e autônomo. Que se observe, neste
sentido, a surpresa de E. Bréhier ao indicar esta inversão radical: “Merleau-Ponty muda, inverte o sentido
ordinário do que chamamos filosofia. A filosofia nasceu das dificuldades concernentes à percepção
vulgar; é a partir da percepção vulgar e distanciando-se dessa percepção que se filosofou de início. Longe
de querer retornar a uma percepção imediata, a percepção vivida para chegar a uma concepção do mundo
inteligível que fosse coerente, que satisfizesse à razão, que supusesse uma outra faculdade de conhecer,
diversa da própria percepção. Merleau-Ponty toma esse idealismo platônico e segue precisamente o
caminho inverso: reintegrá-lo na percepção”. (MERLEAU-PONTY, M. O primado da percepção e suas
consequências filosóficas. Tradução de Constança Marcondes Cessar. Campinas: Papirus, 1990, p.68.)
segundo o “Poema de Sete Faces”. No entanto, a ironia abrange elementos que vão
além do traço fisionômico. O dicionário Aurélio conserva a definição padronizada de
ironia: “modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está
pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção
depreciativa e sarcástica em relação a outrem”. A anaforese 7 do tropo linguístico
transgride a correspondência direta do sentido, quando a intenção depreciativa e
sarcástica usa de malícia para obter o resultado desejado. Sugere a habilidade das
palavras, a astúcia do ditado anfibológico, a sátira e a censura, enfim, da expressão
jocosa, maldosa. Essa sorte de rodeio, geralmente eufemístico, no sentido da perífrase
lexical, encontra-se na primeira parte da definição: “modo de exprimir-se que consiste
em dizer o contrário daquilo que se está pensando”. O que importa na ironia é a
reviravolta do sentido, o entendimento segundo sobre o primeiro, como forma de
circuito em torno de um modelo sine partes. De fato, só chegado o fim da frase
compreende-se que é indireta. A ironia suspende o sentido do dicionário de forma a
provocar uma sorte de estranhamento entre o significante e o significado, mesmo
quando não estão comprometidos pela expressão anfibológica. Esta mudança de sentido
tem finalidade própria: traçar uma linha de sentido inversa e dentro da expressão direta.
Inverter o sentido da frase, tomá-la em sentido contrário, sem criar recurso adicional e
externo à expressão própria, usando os recursos fônicos e gestuais da palavra, disso
vale-se a ironia. Em outras palavras: a ironia deixa subentendido – e talvez por isso seja
cômica. É a forma “intelectual”, se é que podemos dizer assim, do riso, que supõe o
conhecimento do espaço simbólico entre os participantes, caso contrário pode passar
despercebida. A ironia produz o prazer intelectual de reconhecer uma analogia. Isso
equivale a dizer que, em certa medida, todo sentido é irônico, porque deve seu
surgimento ao desvio, ao intervalo entre o significado próprio e o figurado.
“Versos à Boca da Noite” relaciona poesia e olhar: “Passo a mão na cabeça
que vai embranquecer./ O rosto denuncia certa experiência./ A mão escreveu tanto, e
não sabe contar!/ A boca também não sabe./ Os olhos sabem — e calam-se.” Por vezes,
a dinâmica do olhar compõe-se de tamanha exuberância que desiste de contar (NP,
239): “Vontade de cantar. Mas tão absoluta/ que me calo”, apontando o excesso dos
sentidos sobre a síntese verbal. Por vezes um registro apenas, uma passagem, uma frase,
uma palavra, até o (indício do) silêncio em conta de um conjunto inteiro de imagens

7
Ana (do gr an(a): ação ou movimento contrário) + forese (do g. phoresis: ação de levar ou trazer,
transmissão).
(RP,208): “As bocas não diziam. Só os olhos”. (RP,126) “Calo-me, espero, decifro”. O
olhar é a atividade ininterrupta da visão sobre o mundo e por isso alcançou essa sorte de
autonomia visual, ou ao menos aparente, sobre as coisas ditas. Não põe luz sobre o seu
objeto de forma a retirá-lo, de uma vez por todas, das sombras, pelo contrário, atinge,
com sua “cortina” de carne, a realidade que está aparecendo (CE, 252): “Toda a
expressão mora nos olhos — e perde-se/ a um simples baixar de cílios, a uma sombra.”
A virtude do olhar está no fato de ser muda. Não fala, e por tomar distância aparente
sobre o mundo dito é que pertence à ótica fenomênica do mundo bruto, antes do
conceito. O olhar representa a origem silenciosa do mundo ainda não sistematizado
pelas categorias da gramática (CE, 267): “baixemos nossos olhos ao desígnio/ da
natureza ambígua e reticente”. Significa a com-posição de uma fonte permanente de
aparências cuja chave nós não temos, mas, participamos. A metáfora, enquanto forma
de aproximação à distância, como o olhar, é mais apta a dizer. Essa sorte de quedar-se à
presença, sem pronunciar, representa o olhar que não tem por prévio a ideia ou a
essência do que vê. Sugere, em dupla medida, um olhar desaprendido, mas que se
detém, trabalha sobre o visto de modo a aprender com a forma muda, antes do conceito.
Trabalho de visão reticente sobre o mundo, para, enfim, fazê-lo falar — como no lema
da fenomenologia: "É a experiência ainda muda que se trata de conduzir à expressão
pura de seu próprio sentido."8 Como aponta Merleau-Ponty, na “Fenomenologia da
Percepção”: “No silêncio da consciência originária vemos aparecer não somente o que
querem dizer as palavras, mas ainda o que querem dizer as coisas, o núcleo de
significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e
expressão” (MERLEAU-PONTY, p. 10). Antepredicativa, a expressão poética fixa
claramente a operação sensível, que é sem conceito:
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
AP,5

Tímido e calado o poeta fita o mundo (RP,196): “sou apenas o sorriso/ na


face de um homem calado”. (NP,231) “Eu preparo uma canção/ que fale com dois
olhos./ Se não me veem, eu vejo.” Introspectivo, discreto, o poeta tem a incontestável
virtude de quem vê os outros. Na expectativa dos fatos está atento a toda sorte de

8
“C'est l'expérience [...] muette encore qu'il s'agit d'amener à l'expression pure de son propre sens."
MERLEAU-PONTY. Le visible et l´invisible. Paris: Gallimard, 1964, p. 171.
acontecimento minucioso. Tão logo se presta a considerar a realidade que se furta à
natureza multifacetada do mundo, atinge a qualidade de espectador tímido, ao canto.
Observador das coisas pequenas, de modo algum evidentes, a timidez é um traço da
indiscrição do poeta. Entre outras “inquietudes”, para lembrar a expressão de A.
Candido9, a timidez assinala a dificuldade que tem com o próprio corpo. A timidez está
na atitude de olhar mais do que ser visto, colocando entre si e o outro um
distanciamento que ri do espetáculo do mundo:

Há muito aprendi a rir,


de quê? de mim? ou de nada?
CE, 259

e amo cada vez mais


a essa minha maneira
torcida e reticente
CE, 290

Dentro de você há um desejo torto


BA,60

Se eu morrer, morre comigo


um certo modo de ver.
RP,180

À sombra do mundo errado


murmuraste um protesto tímido.
RP,181

A ironia de Drummond pressupõe o humor e o estado tímido que contempla


o que é visível. A inércia de homem tímido, torto ao canto, (AP,5) “atrás dos óculos e
dos bigodes”, compreende o ato de expectar os homens em silêncio. É esta expectação
contínua e insuperável que marca as retinas fatigadas do poeta, quando “os ombros
suportam o mundo”. O “sentimento do mundo”, na experiência fenomenológica de
exprimir a percepção sensível, é o efeito da meditação antepredicativa e agramatical de
olhar o mundo com o corpo, isto é, sem as categorias lógicas e racionais do espírito.
- riso fisionômico, corporal
sob o nome de corpo, um conceito novo de experiência, que dispensa recorrer à noção
de consciencia ou de sujeito
Não é uma dinâmica de possessão – representação
Mas de deixar o mundo ser o que ele é sem a perspectiva do idealismo
- dinâmica do olhar – agramatical,
- riso quieto, riso tímido

9
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: Vários Escritos.
São Paulo: Duas Cidades, 1977.
Passividade intencional de quem recusa corromper a estrutura do dado
Riso calado – sorriso irônico de quem vê, sem falar
não se trata de estar em face de
“É em virtude deste parentesco ontológico com o mundo, parentesco que o corpo
confere, que a consciência pode se abrir ao mundo: uma consciencia que não seria do
mundo não seria consciência de nada, falta desta conivência ontológica. Mais profunda
que a oposição da consciência e do objeto, da consciência e seu corpo, há o
acontecimento irredutível de um mundo, e, a rigor, não há senão mundo: porque ele é
sinônimo de sua encarnação, ié de seu ser-mundo, o sentir se completa como presença
do mundo.” 183
Bibliografia

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2002.

CANDIDO, Antônio. Inquietudes na poesia de Drummond em Vários Escritos. São


Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.

CASTIN, Nicolas. Sens et sensible en poésie moderne et contemporaine. Paris :


PUF, 1998.

DETIENNE, Marcel. Les maîtres de vérité dans la gréce archaîche. Paris: Editions
La Découverte, 1981.

GUÉRIN, Michel. O que é uma obra? Tradução de Cláudia Schilling. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1995.

______. Philosophie du geste. Arles: Actes Sud, 1995.

HAAR, Michel. La philosophie française entre phénoménologie et métaphysique.


Paris: PUF, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Acheminement vers la parole. Tradução de Jean Beauffret,


Wolfgang Brokmeier e François Fédier. Paris: Gallimard, 1976.

MERLEAU-PONTY, Maurice. La Prose du Monde. Paris: Gallimard, 1969.

_____. Le Visible et L’invisible. Paris: Gallimard, 1964.

_____. O Primado da percepção e suas conseqüências filosóficas. Tradução de


Constança Marcondes César. Campinas, SP: Papirus, 1990.

_____. Phenoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.

_____. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

TORRANO, J.A.A. O sentido de Zeus. São Paulo: Iluminuras, 1996.

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