Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Cristiano Perius é professor de filosofia na UEM.
não houvesse tantos desejos.
Aquele que olha sem ser visto. A dimensão do olhar reaparece nos versos seguintes: “as
a eloqüência, a fala... Ao contrário, o poeta recua para a dinâmica muda do olhar. “Para
que tanta perna... pergunta o meu coração, porém meus olhos não perguntam nada.”
2
Lembremo-nos que a fala, segundo a tradição da filosofia, é traduzida por lógos, razão discursiva, e, por
isso mesmo, articulada, no sentido de fônica, falada.
conceito das coisas, como a fala articulada é o conjunto de signos que constituem a
atualidade da língua. De fato, a fala conceitua, ao passo que a visão nunca é
interrompida. A fala reúne, ao passo que a visão dispersa. O coração pergunta, mas os
olhos não respondem. Apenas olham.
Bibliogr
afia
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002.
_____. Autobiografia para uma revista. In: Confissão de Minas. São Paulo: Cosac e Naify, 2011
_____. De l’être du phénomène: sur l’ontologie de Merleau-Ponty. Grenoble: Jérôme Millon, 1991.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngüe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas. O jovem Drummond e seu grupo em papel jornal.
Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
ESCOUBAS, Eliane. (Org.) Art et phénoménologie. Revue La Part de L´œil, n°7. Bruxelles : Académie
Royale des Beaux-Arts de Bruxelles, 1991.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne. In: Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural,
1988, p.120.
PRADO JR. Bento. Poema inédito. Jornal: Folha de São Paulo, Caderno “mais!”, 19 de março de 2000.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.
SANT'ANNA, Afonso Romano de. Gauche no tempo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Conferência 2
Título: Drummond e o engajamento literário
APRESENTAÇÃO: A conferência examina o tema do engajamento social do
artista na obra poética de Carlos Drummond de Andrade, adotando, como critério de
análise, as imagens produzidas a partir da atividade do olhar. Ligada ao corpo e a sua
dimensão sensível, as metáforas do olhar constituem uma distância intencional apta a
estabelecer uma relação de responsabilidade e de compromisso entre o eu lírico e o
mundo. Para discutir o alcance desse compromisso, comparamos as teorias do
engajamento literário de Jean-Paul Sartre e de M. Merleau-Ponty. Enquanto M.
Merleau-Ponty defende uma forma de engajamento perceptivo e apenas indiretamente
comprometido com a realidade social, Jean-Paul Sartre, ao contrário, compreende a
atividade literária a partir da categoria da ação, que mobiliza o engajamento explícito e
correlato à transformação do mundo. A poesia de Drummond, confrontada com esta
dupla compreensão do engajamento, satisfaz os dois conceitos.
O olho olha. Truísmo e paradoxo, pois o olhar que pousa nas coisas não
poderia permanecer. Pousar os olhos sobre as coisas significa, ao mesmo tempo, deixar
de ver. Manter a imagem ad infinitum é uma possibilidade da câmera. Tal mecanismo
ou modo de fixar imagens não serve para os olhos. O olhar percorre o que é visível
procurando significações, varre o mundo com a pretensão de descobrimento, alcança as
coisas a distância, sem possessão. A experiência do olhar significa a percepção de
imagens sob a opacidade do sensível. Nele estão as “retinas fatigadas” do poema “No
meio do caminho”, isto é, visão em carne e osso, não em pensamento.
A ideia representa, ao passo que o olhar apresenta. A palavra «ideia» já contém a
«ideia de luz», uma vez que é a matriz abstrata de algo sensível, a luz. A ideia de luz é,
então, a ideia da ideia de luz, pois recobrimentos metafóricos da luz. Trata-se de
perceber a linguagem como o conjunto histórico de sobreposições metafóricas
originadas no corpo. Ora, não temos ponto de vista absoluto, visão por clarividência,
mas coexistência com um mundo ambíguo e sensível.
O mundo te chama:
Carlos! Não respondes?
Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar.
RP, 121
PASSAGEM DO ANO
RESÍDUO
ESTÂNCIAS
3
Estamos pensando na forma simples da equação. Por suposto que há operações de diferentes tipos no
pensamento matemático.
4
Holzwege, cuja tradução francesa tem título expressivo: Chemins qui mènent nulle part. (Caminhos
que levam a parte alguma.) Paris: Gallimard, 1978.
5
“Toda expressão aparece sempre como um rastro, nenhuma idéia me sendo dada em transparência, e
todo esforço para fechar a nossa mão sobre o pensamento que habita a fala apenas deixa entre os dedos
um pouco de material verbal.” MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960. p. 111.
(o poeta) leva ao que (a poesia) traz, entre o que pesa e o que fica, sobra uma franja de
vida. Essa rosa de Baudelaire, “ausente de todos os buquês”, tem isto de desconcertante:
conciliando o que é oposto, ser de estranha posse. Mas atenção: O “homem e seu
contrário”, a “voz e o eco” da poesia não são formas de manter, além da luz, as
sombras? Não temos, sobre a finitude do tempo, um equivalente extemporâneo? O
resultado poético é esse limiar, incerto duas vezes, sobre o que leva e o que deixa, onde
algo fica. Perdido no caminho ou achado, tanto faz, se o fazer que a poesia alcança é a
ironia do olhar. Outro poema dizia que “de tudo fica um pouco”. — “Do medo, do asco,
da rosa ficou um pouco. De luz, de ternura ficou um pouco (muito pouco). De tudo
ficou um pouco.” Esse “abismo” da expressão, abismo do “pequeno” resultado, é, se
quisermos entender a «perda» metafórica, um paradoxo. Devemos nos acostumar ao
pouco da poesia ou, melhor, entendê-lo como irônico? A princípio, o olhar perde-se, por
certo, mas, para apreender. A perda da metáfora comunga com o ganho. Não
deixaríamos de ver se não tivéssemos visto. Desviar os olhos significa já ter visto, assim
como a metáfora busca, sob a pele aparente das coisas, novas semelhanças. O final dos
versos de “Estâncias” guarda uma breve consideração que serve de paralelo ao
conjunto do poema: “(...) Sim, ouvi de amor, em hora infinda, se bem que sepultada na
mais rangente areia que os pés pisam, e por sua vez — é lei — desaparecem.” [grifo
nosso] Apesar da conjuntura de metáforas em curso no poema, queremos apontar que
nos termos desta lei estão os “objetos perdidos na rua” que já havíamos encontrado. A
ironia estabelece um procedimento avesso ao esperado. Manobra o sentido atenta ao que
se perde sob o adquirido, fazendo ver o que não está dito. Tal experiência reflete o que
Merleau-Ponty diz sobre a percepção: “não é uma segunda positividade, um segundo
mundo que exporia suas riquezas sobre um segundo sol.” (MERLEAU-PONTY, 1960,
p. 29) Mais perto do sensível, “onde os pés pisam”, não produz a adequação perfeita
entre o solo úmido de significações e o universo etéreo, não reconstrói o sentido
segundo as leis de equivalência de uma estratosfera inteligível, não acede às linguagens
puras e sem ambiguidades de forma a purificar o sensível de sua opacidade intrínseca,
ao contrário, retrata o mundo sem conceitos ou juízos prévios à experiência corporal da
percepção6.
***
6
Esta inversão é irônica se consideramos a fenomenologia de Merleau-Ponty. Ao contrário de uma longa
tradição da História da Filosofia, que enxergava um déficit nos dados dos sentidos, a ser corrigido pela
operação racional, para o fenomenólogo da percepção, o entendimento é que é deficitário, ao passo que o
sensível é originário, pois tem a dignidade de ser primeiro, imediato e autônomo. Que se observe, neste
sentido, a surpresa de E. Bréhier ao indicar esta inversão radical: “Merleau-Ponty muda, inverte o sentido
ordinário do que chamamos filosofia. A filosofia nasceu das dificuldades concernentes à percepção
vulgar; é a partir da percepção vulgar e distanciando-se dessa percepção que se filosofou de início. Longe
de querer retornar a uma percepção imediata, a percepção vivida para chegar a uma concepção do mundo
inteligível que fosse coerente, que satisfizesse à razão, que supusesse uma outra faculdade de conhecer,
diversa da própria percepção. Merleau-Ponty toma esse idealismo platônico e segue precisamente o
caminho inverso: reintegrá-lo na percepção”. (MERLEAU-PONTY, M. O primado da percepção e suas
consequências filosóficas. Tradução de Constança Marcondes Cessar. Campinas: Papirus, 1990, p.68.)
segundo o “Poema de Sete Faces”. No entanto, a ironia abrange elementos que vão
além do traço fisionômico. O dicionário Aurélio conserva a definição padronizada de
ironia: “modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está
pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção
depreciativa e sarcástica em relação a outrem”. A anaforese 7 do tropo linguístico
transgride a correspondência direta do sentido, quando a intenção depreciativa e
sarcástica usa de malícia para obter o resultado desejado. Sugere a habilidade das
palavras, a astúcia do ditado anfibológico, a sátira e a censura, enfim, da expressão
jocosa, maldosa. Essa sorte de rodeio, geralmente eufemístico, no sentido da perífrase
lexical, encontra-se na primeira parte da definição: “modo de exprimir-se que consiste
em dizer o contrário daquilo que se está pensando”. O que importa na ironia é a
reviravolta do sentido, o entendimento segundo sobre o primeiro, como forma de
circuito em torno de um modelo sine partes. De fato, só chegado o fim da frase
compreende-se que é indireta. A ironia suspende o sentido do dicionário de forma a
provocar uma sorte de estranhamento entre o significante e o significado, mesmo
quando não estão comprometidos pela expressão anfibológica. Esta mudança de sentido
tem finalidade própria: traçar uma linha de sentido inversa e dentro da expressão direta.
Inverter o sentido da frase, tomá-la em sentido contrário, sem criar recurso adicional e
externo à expressão própria, usando os recursos fônicos e gestuais da palavra, disso
vale-se a ironia. Em outras palavras: a ironia deixa subentendido – e talvez por isso seja
cômica. É a forma “intelectual”, se é que podemos dizer assim, do riso, que supõe o
conhecimento do espaço simbólico entre os participantes, caso contrário pode passar
despercebida. A ironia produz o prazer intelectual de reconhecer uma analogia. Isso
equivale a dizer que, em certa medida, todo sentido é irônico, porque deve seu
surgimento ao desvio, ao intervalo entre o significado próprio e o figurado.
“Versos à Boca da Noite” relaciona poesia e olhar: “Passo a mão na cabeça
que vai embranquecer./ O rosto denuncia certa experiência./ A mão escreveu tanto, e
não sabe contar!/ A boca também não sabe./ Os olhos sabem — e calam-se.” Por vezes,
a dinâmica do olhar compõe-se de tamanha exuberância que desiste de contar (NP,
239): “Vontade de cantar. Mas tão absoluta/ que me calo”, apontando o excesso dos
sentidos sobre a síntese verbal. Por vezes um registro apenas, uma passagem, uma frase,
uma palavra, até o (indício do) silêncio em conta de um conjunto inteiro de imagens
7
Ana (do gr an(a): ação ou movimento contrário) + forese (do g. phoresis: ação de levar ou trazer,
transmissão).
(RP,208): “As bocas não diziam. Só os olhos”. (RP,126) “Calo-me, espero, decifro”. O
olhar é a atividade ininterrupta da visão sobre o mundo e por isso alcançou essa sorte de
autonomia visual, ou ao menos aparente, sobre as coisas ditas. Não põe luz sobre o seu
objeto de forma a retirá-lo, de uma vez por todas, das sombras, pelo contrário, atinge,
com sua “cortina” de carne, a realidade que está aparecendo (CE, 252): “Toda a
expressão mora nos olhos — e perde-se/ a um simples baixar de cílios, a uma sombra.”
A virtude do olhar está no fato de ser muda. Não fala, e por tomar distância aparente
sobre o mundo dito é que pertence à ótica fenomênica do mundo bruto, antes do
conceito. O olhar representa a origem silenciosa do mundo ainda não sistematizado
pelas categorias da gramática (CE, 267): “baixemos nossos olhos ao desígnio/ da
natureza ambígua e reticente”. Significa a com-posição de uma fonte permanente de
aparências cuja chave nós não temos, mas, participamos. A metáfora, enquanto forma
de aproximação à distância, como o olhar, é mais apta a dizer. Essa sorte de quedar-se à
presença, sem pronunciar, representa o olhar que não tem por prévio a ideia ou a
essência do que vê. Sugere, em dupla medida, um olhar desaprendido, mas que se
detém, trabalha sobre o visto de modo a aprender com a forma muda, antes do conceito.
Trabalho de visão reticente sobre o mundo, para, enfim, fazê-lo falar — como no lema
da fenomenologia: "É a experiência ainda muda que se trata de conduzir à expressão
pura de seu próprio sentido."8 Como aponta Merleau-Ponty, na “Fenomenologia da
Percepção”: “No silêncio da consciência originária vemos aparecer não somente o que
querem dizer as palavras, mas ainda o que querem dizer as coisas, o núcleo de
significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e
expressão” (MERLEAU-PONTY, p. 10). Antepredicativa, a expressão poética fixa
claramente a operação sensível, que é sem conceito:
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
AP,5
8
“C'est l'expérience [...] muette encore qu'il s'agit d'amener à l'expression pure de son propre sens."
MERLEAU-PONTY. Le visible et l´invisible. Paris: Gallimard, 1964, p. 171.
acontecimento minucioso. Tão logo se presta a considerar a realidade que se furta à
natureza multifacetada do mundo, atinge a qualidade de espectador tímido, ao canto.
Observador das coisas pequenas, de modo algum evidentes, a timidez é um traço da
indiscrição do poeta. Entre outras “inquietudes”, para lembrar a expressão de A.
Candido9, a timidez assinala a dificuldade que tem com o próprio corpo. A timidez está
na atitude de olhar mais do que ser visto, colocando entre si e o outro um
distanciamento que ri do espetáculo do mundo:
9
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: Vários Escritos.
São Paulo: Duas Cidades, 1977.
Passividade intencional de quem recusa corromper a estrutura do dado
Riso calado – sorriso irônico de quem vê, sem falar
não se trata de estar em face de
“É em virtude deste parentesco ontológico com o mundo, parentesco que o corpo
confere, que a consciência pode se abrir ao mundo: uma consciencia que não seria do
mundo não seria consciência de nada, falta desta conivência ontológica. Mais profunda
que a oposição da consciência e do objeto, da consciência e seu corpo, há o
acontecimento irredutível de um mundo, e, a rigor, não há senão mundo: porque ele é
sinônimo de sua encarnação, ié de seu ser-mundo, o sentir se completa como presença
do mundo.” 183
Bibliografia
DETIENNE, Marcel. Les maîtres de vérité dans la gréce archaîche. Paris: Editions
La Découverte, 1981.